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A intervenção Federal na segurança pública do Rio de Janeiro e a gestão punitiva da pobreza no Brasil: uma análise biopolítica

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Academic year: 2021

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UNIJUI - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

EMANUELE DALLABRIDA MORI

A INTERVENÇÃO FEDERAL NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO E A GESTÃO PUNITIVA DA POBREZA NO BRASIL: UMA ANÁLISE BIOPOLÍTICA

Ijuí (RS) 2019

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EMANUELE DALLABRIDA MORI

A INTERVENÇÃO FEDERAL NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO E A GESTÃO PUNITIVA DA POBREZA NO BRASIL: UMA ANÁLISE BIOPOLÍTICA

Monografia final do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Monografia.

UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS - Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientador: Dr. Maiquel Ângelo Desordi Wermuth

Ijuí (RS) 2019

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Dedico este trabalho aos meus pais, que, aceitando o quanto eu podia dar de mim, ainda que pouco, deram-me sempre tudo de si.

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AGRADECIMENTOS

Dos muitos agradecimentos “acumulados” no decorrer deste caminho, dirijo, o maior e mais profundo, aos meus pais, Sérgio e Almanir, que dedicam-se com toda sua vida ao ofício de mostrar e ensinar a mim e a meu irmão os valores e atitudes que entendem necessários à nossa formação como seres humanos.

Ao meu irmão, Leonardo, que entendeu as minhas ausências e me apoiou desde os momentos simples aos mais complexos.

À Anna Maria e Marilisa, pela confiança e apoio durante toda a minha graduação, e também pelos diálogos, que nos levaram a refletir desde o direito até os afetos e as angústias.

Ao meu orientador, Maiquel, pela dedicação e zelo com que me conduziu neste trabalho, e por cativar-me, durante a graduação, a questões que hoje me inquietam e impulsionam a novos estudos e perspectivas.

A todos os meus amigos e familiares, pelo apoio e por todo o carinho que sempre me dirigiram.

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“É muito fácil falar de coisas tão belas De frente pro mar mas de costas pra favela”. Planet Hemp, “Zerovinteum”

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RESUMO

A presente pesquisa estuda o Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, que instituiu a intervenção federal na segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, sob a perspectiva da seletividade do direito penal e através de uma incursão que visa entender o viés biopolítico dessa medida. Através do estudo da maneira como se efetuou, historicamente, a ação do Estado e de suas instituições nas comunidades segregadas, busca responder ao seguinte questionamento: em que medida a intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro evidencia um mecanismo punitivista de gestão da pobreza nas periferias fluminenses, reforçando o caráter seletivo e biopolítico da atuação do sistema penal brasileiro? Para percorrer tal caminho, o objetivo geral é investigar o contexto no qual se deu a edição do Decreto, analisando a atuação dos órgãos encarregados pela intervenção federal e pela segurança pública, considerando-se os estudos da Criminologia Crítica e da biopolítica. Assim, realiza-se, no primeiro capítulo, além de uma digressão histórica acerca da formação das periferias fluminenses e do modo como Estado nelas interferiu e interfere na atualidade, também o estudo das interpretações lançadas pela Criminologia Crítica, permeados, ambos os temas, pela perspectiva biopolítica. No segundo capítulo, faz-se uma análise constitucional do Decreto a partir de um estudo das bases do Estado Federal, e, por fim, analisa-se práticas atuais empreendidas nas áreas segregadas a fim de verificar se a intervenção seletiva é, nesses locais, regra ou exceção. A pesquisa revela uma operacionalidade do sistema repressivo e das práticas de governo que tende, historicamente, a dirigir às áreas pobres, habitadas por um grupo específico de pessoas, uma intervenção altamente truculenta e seletiva. Operacionalidade que, poder-se-ia dizer, promove eficazmente a conversão de vidas em vidas nuas, portanto, matáveis, eis que despidas de seus valores intrínsecos, sujeitas, pois, a toda a sorte de práticas, discursos e violências.

Palavras-chave: Biopolítica. Criminologia Crítica. Intervenção Federal. Segregação urbana. Seletividade penal.

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ABSTRACT

The current research studies Decree 9.288, of February 16, 2018, that implemented federal intervention in public security of the State of Rio de Janeiro, under the criminal law selectivity perspective and through an incursion that intent to understand the biopolitical bias of this measure. Through the study of how was accomplished, historically, the action of the State and its institutions in the segregated communities, it aims to answer the following question: to what extent does the federal intervention in public security of the State of Rio de Janeiro make evident a punitivist mechanism of poverty management in the favelas fluminenses, increasing the selective and biopolitical feature of the Brazilian criminal system? The general objective that guides this research is to investigate the context in which the intervention was decreed, analyzing the performance of the agencies responsible for the federal intervention and the public security, considering the studies of critical criminology and biopolitics. Thus, the first chapter does a historical digression on formation of the outskirts of Rio de Janeiro and the manner the State has been intervening on them. Besides, it studies the interpretation launched by critical criminology. The biopolitical perspective permeates the chapter. The second chapter does a constitutional analysis of the Decree based on the study of the basis of the federal state. Finally, it analyses current practices carried out in segregated areas in order to check if the selective intervention is, in such places, the rule or the exception. The research reveals an operationality of the repressive system and the government practices that tends, historically, to direct to the poor areas, inhabited by a specific group of people, a highly truculent and selective intervention. It might be said that this operationality effectively promotes the conversion of lives into naked lives, therefore, lives that may be killed, as far as denuded of them intrinsic values and, because of this, subject to all kinds of speeches, practices and violence.

Key words: Biopolitics. Criminal law selectivity. Critical criminology. Federal intervention. Urban segregation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 8 1 A SELETIVIDADE PUNITIVA BRASILEIRA SOB UM VIÉS BIOPOLÍTICO: a segregação urbana e carcerária da população subalternizada ... 10 1.1 Os cinturões de pobreza urbanos como manifestação da segregação biopolítica no espaço urbano ... 11 1.2 A atuação seletiva do sistema penal brasileiro: um entrecruzamento da Criminologia Crítica com a biopolítica ... 19 2 A INTERVENÇÃO FEDERAL NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO: o incremento da seletividade penal ... 29 2.1 O Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018: leitura constitucional ... 30 2.2 Regra ou exceção: a intervenção federal no Rio de Janeiro como manifestação da naturalização da seletividade punitiva ... 40 CONCLUSÃO ... 51 REFERÊNCIAS ... 54

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa estuda o Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, que instituiu a intervenção federal no âmbito da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. Seu desafio, contudo, consiste em analisar tal Decreto não apenas em seu aspecto constitucional, como também investigar que práticas, mecanismos e discursos encontram-se subjacentes à tomada da medida.

O problema de pesquisa que orienta o presente trabalho e demarca os vieses que se busca estudar, pode ser assim formulado: em que medida a intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, determinada por meio do Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, evidencia um mecanismo punitivista de gestão da pobreza nas periferias fluminenses, reforçando o caráter seletivo e biopolítico da atuação do sistema penal brasileiro?

Para empreender esse projeto, tem-se, como objetivo geral, investigar o contexto no qual se deu a edição do Decreto referido, analisando a atuação dos órgãos encarregados pela intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Da variedade de caminhos revelados a partir dessa escolha, elege-se dois objetivos específicos para orientar e delinear a pesquisa: investigar a seletividade do sistema penal a partir do enfoque da Criminologia Crítica, evidenciando o caráter biopolítico desta seletividade, quando aliado à questão da favelização das grandes cidades; e, analisar a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro a partir do viés da seletividade biopolítica com que dita intervenção tem se realizado nas periferias fluminenses.

Assim, estuda-se, no primeiro capítulo, o que se poderá designar três temas centrais. Inicialmente, irá se verificar, em uma perspectiva histórica, quais foram as circunstâncias que

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motivaram o surgimento das áreas segregadas no Rio de Janeiro, o que, posteriormente, culminou na ascensão e consolidação das favelas. Nesse ponto, são analisados diferentes expedientes empregados pelo Estado nessas áreas, no decorrer dos anos. O segundo tema a ser desvendado neste capítulo será a Criminologia Crítica, que, por meio de suas diversas linhas, revelou, como se verá, uma operacionalidade dos sistemas penais contemporâneos profundamente desigual, seletiva e deslegitimada. Atravessará o estudo desses temas um terceiro: a biopolítica. Por meio das investigações inauguradas por Michel Foucault, as quais foram, posteriormente, ampliadas e às quais foi dada uma nova perspectiva, por Giorgio Agamben, entende-se que a biopolítica pode fornecer elementos necessários para uma leitura mais profunda do cenário que se coloca.

No segundo capítulo, por sua vez, serão analisados os pressupostos constitucionais para a decretação de uma intervenção federal, o que conduz para um breve estudo acerca do federalismo e do modo como está estruturado o Estado Federal brasileiro na Constituição Federal de 1988. E, por fim, para realizar a necessária complementação dos temas até então tratados, serão exploradas situações e práticas atuais empreendidas nas áreas segregadas a fim de verificar se a intervenção seletiva é, nesses locais, regra ou exceção.

Utiliza-se, no presente estudo, o método de abordagem hipotético-dedutivo, em uma pesquisa do tipo exploratória. Nesse intento, são adotados procedimentos tais como seleção de bibliografia e documentos afins à temática, interdisciplinares, capazes e suficientes para que se construa um referencial teórico coerente sobre o tema, responda o problema proposto, corrobore ou refute as hipóteses levantadas e atinja os objetivos propostos na pesquisa, leitura e fichamento do material selecionado, reflexão crítica acerca desse material, e, por fim, exposição dos resultados obtidos.

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1 A SELETIVIDADE PUNITIVA BRASILEIRA SOB UM VIÉS BIOPOLÍTICO: A SEGREGAÇÃO URBANA E CARCERÁRIA DA POPULAÇÃO SUBALTERNIZADA

A ideia de cidade atravessa a história do mundo e carrega consigo inúmeros significantes. Sérgio Martins (apud CANETTIERI, 2014, p. 27), aduz que a “‘cidade é trans-histórica’, elemento de criação do trabalho humano que se perpetua no tempo, não com as mesmas formas ou conteúdos, mas que se (re)produz”. Nesse processo vivo e dinâmico, muitas são as configurações que a cidade pode adquirir.

Pretende-se analisar, no presente capítulo, o processo de conformação do ambiente urbano do Estado do Rio de Janeiro, quanto aos seus espaços periféricos ou segregados e ao modo como nelas o Estado interferiu historicamente e interfere na atualidade, levando em consideração as relações de poder pautadas na ideia de raça. Busca-se investigar em que medida o uso de diferentes mecanismos – ora discursivos, ora jurídicos, ora políticos – foram e continuam sendo utilizados como justificativas para realizar uma intervenção diferenciada nesses locais e em relação a uma determinada parcela da população.

Nesse contexto, também será estudada a atuação dos órgãos do sistema penal, eis que, conforme Alessandro Baratta (2016, p. 167), o cárcere é apenas a “ponta do iceberg [...], o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal”. O incremento na adoção de políticas e medidas repressivas voltadas à segurança pública e como resposta à violência urbana, aliado ao constante discurso de medo e insegurança propagado na sociedade por diversos atores sociais, faz com que o Direito Penal seja visto como o tratamento apto a curar uma série de problemas sociais e estruturais da sociedade brasileira.

Cabe considerar, contudo, de acordo com Gizlene Neder (2005), que tais questões têm uma explicação histórica e sociológica que precisa ser examinada. Assim, a partir de apontamentos oriundos do pensamento criminológico crítico, será analisada a seletividade da atuação do sistema penal brasileiro desde uma perspectiva histórica e social.

Neste percurso, a biopolítica será a lente pela qual se quer investigar os temas aqui propostos. Embora se verifique diferentes linhas de pensamento em relação ao tema, em

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autores tais como Michel Foucault e Giorgio Agamben, ambos fornecem elementos essenciais para a busca de uma melhor compreensão de fenômenos políticos atuais e pretéritos.

1.1 Os cinturões de pobreza urbanos como manifestação da segregação biopolítica no espaço urbano

Henri Lefebvre (2011) aduz que a transformação da cidade não se dá apenas em função de “processos globais” como o crescimento da produção material no decorrer das épocas, mas também em função de modificações profundas no modo de produção, nas relações entre campo e cidade e nas relações de classe e de propriedade. Todos esses fatores, pois, influenciam na forma como se dá a ocupação do espaço urbano e, consequentemente, na formação mais ou menos acentuada de áreas segregadas.

No presente estudo, a hipótese de Lefebvre pode ser aplicada quando se analisa as mudanças ocorridas na sociedade a partir da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, por fatores como a abolição da escravatura (1881), a proclamação da República (1889) e a modernização do sistema de produção do país. Conforme Lilian Fessler Vaz (1994), foram mudanças de ordem econômica, social, política, cultural e espacial, as quais manifestaram-se especialmente na cidade do Rio de Janeiro, onde se localizava a sede do governo.

Se, por um lado, é possível enaltecer os pontos positivos da abolição da escravidão e da modernização, por outro, é necessário reconhecer algumas questões que subjazem esses aspectos e cujos efeitos ainda reverberam na configuração da sociedade brasileira atual. Aqui, entende-se que devem ser percebidos dois pontos: a remodelação da cidade do Rio de Janeiro – por meio de planos como o conhecido “bota-abaixo” –, e suas consequências para as pessoas que até o momento habitavam determinados locais e a instauração de um racismo de base pseudocientífica.

Apesar de que se possa imputar o processo de modificações urbanas à série de mudanças que se delineavam à época, é necessário fazer a crítica à aceitação dessa redefinição de maneira irrefletida. Isso, pois, de acordo com Neder (1997, p. 107), a redefinição do ambiente urbano carioca, quando da implantação da República, “está longe de ser uma criação natural, inerente à dinâmica do processo de modernização, resultante de uma ordem pensada

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também como natural e que estabelece um fio evolutivo contínuo na direção do progresso”. Trata-se, pois, da necessidade de avaliar os diversos mecanismos e discursos que estiveram implicados nesta reordenação da espacialidade urbana.

A ideia da remodelação do ambiente urbano do Rio de Janeiro esteve ligada ao surgimento de um novo saber: a medicina social. Jaime Larry Benchimol (1992) explica que ela já vinha se constituindo desde as décadas de 1830 e 1840, firmando-se definitivamente a partir de 1850. Tratava-se de uma medicina nova, que empregava não apenas novas formas de conhecimento, como também de intervenção na sociedade, propondo-se, inclusive, como poder político. Utilizando-se de conhecimentos sobre geografia, geologia, história e economia, “a medicina social observa, inventaria e analisa o espaço em busca da preventiva localização do perigo para a saúde de seus habitantes” (BENCHIMOL, 1992, p. 115).

Buscando solucionar a ocorrência de grandes epidemias, este novo saber “diagnosticava causas naturais, relacionadas às peculiaridades geográficas do Rio de Janeiro, e, sobretudo, causas sociais, tanto no nível do funcionamento geral da cidade como de suas instituições”, como responsáveis pela degeneração da saúde não só física quanto moral da população (BENCHIMOL, 1992, p. 116). Dentre as causas sociais, as habitações coletivas eram o principal alvo das críticas.

Tais habitações, que ao longo do tempo receberam diversas denominações – casas de alugar cômodos, estalagens, cortiços, sendo esse utilizado pelas autoridades sanitárias quando desejavam imprimir sentido pejorativo ao termo –, podiam ser identificadas por possuírem algumas características em comum. Caracterizavam-se por conter uma aglomeração excessiva de pessoas em pequenos dormitórios, bem como elementos de uso comum, como banheiro, tanque, pátio, corredor, mas, além disso, por resultarem de um sistema comum de produção de moradias. Nesse sistema, os proprietários cediam seus imóveis a terceiros, que realizavam pequenos investimentos na construção de casinhas ou subdivisão de edificações existentes, cobrando altos aluguéis e obtendo lucros exorbitantes (ALMEIDA, 2016; VAZ, 1994).

Observa-se que a existência de habitações coletivas remonta ainda à década de 1850, embora sua construção tenha se intensificado a partir das décadas finais do século XIX e início do século XX. Nesse período, verificou-se um crescimento demográfico muito intenso, de modo que muitas pessoas acudiram à cidade em busca de trabalho: imigrantes nacionais,

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estrangeiros, escravos libertos e outros trabalhadores dispensados em virtude da modernização dos serviços. Assim, fatores como os altos aluguéis, a necessidade de moradia barata e a limitada disponibilidade de construções para atender tal contingente de pessoas, fizeram com que se multiplicassem as “moradias possíveis para esta população: as habitações coletivas” (VAZ, 1994, p. 582).

A partir do momento em que foi estabelecida uma relação “entre as habitações coletivas populares e a insalubridade da cidade” (VAZ, 1994, p. 583), passaram a ser adotadas, no decorrer dos anos, diversas políticas voltadas à sua eliminação, baseadas nos saberes de médicos e engenheiros. Foi nesse contexto, que envolvia intenso crescimento urbano, crise habitacional e grandes epidemias, que surgiram os planos de embelezamento da capital da República, que visavam transformá-la em uma cidade civilizada, “metrópole moderna e cosmopolita, à semelhança dos grandes centros urbanos da Europa e dos Estados Unidos” (BENCHIMOL, 1992, p. 227).

Dentre as medidas adotadas para concretizar o objetivo, destaca-se a construção de avenidas, em especial a Avenida Central, projetada com um traçado que “rompia [...] o labirinto de ruas estreitas e movimentadas, em cujas estalagens, cortiços ou casas de cômodos residia grande parte do proletariado carioca” (BENCHIMOL, 1992, p. 227). O embelezamento da cidade, portanto, encobria múltiplas estratégias, dentre as quais a erradicação da população trabalhadora que residia na área central. Representava “um processo de expropriação ou segregação de determinadas frações sociais de uma área privilegiada, ‘central’, do espaço urbano, em proveito de outras frações sociais” (BENCHIMOL, 1992, p. 229).

Com a eliminação dos cortiços do centro da cidade, aos poucos, os médicos higienistas e os engenheiros direcionaram suas preocupações a outro alvo: as favelas. Assim, em meados da década de 1920, foi colocada em prática a primeira campanha contra as favelas, chamadas, à época, de “lepra da esthetica”, vergonha infamante para a cidade (VALLADARES, 2000). Em 1930, foi levado a cabo um novo plano de remodelação e embelezamento do Rio de Janeiro, que denunciava o perigo representado pela permanência da favela. Por fim, em 1937, criou-se o Código de Obras, que proibia a criação de novas favelas e se dispunha a administrar e controlar seu crescimento.

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Embora as favelas tenham sido reconhecidas expressamente no Código de Obras, passando também a receber tratamento jurídico, diversos foram os mecanismos e discursos adotados que destacaram, conforme Conn (apud ALMEIDA, 2016), a natureza legislativa sui generis da favela. No âmbito habitacional, o Código reconheceu, pela primeira vez, a responsabilidade do Estado em prover habitações adequadas aos residentes das favelas, visto que elas eram concebidas com caráter provisório. Contudo, as regras de propriedade eram diferentes das demais áreas da cidade: nesses locais, por exemplo, os loteamentos deveriam ter, pelo menos, 31m², enquanto nas zonas residenciais da cidade deveriam ter, pelo menos, 360 m² (ALMEIDA, 2016).

Em relatório da Fundação Leão XIII, era defendida a necessidade de se criar escolas nas favelas, ao invés de inserir as crianças moradoras desses locais nas escolas das proximidades, pois, dentre outros motivos, nas escolas públicas era exigido um padrão mínimo de apresentação, ao qual as crianças da favela não poderiam se adequar, em razão de pobreza excessiva, falta de educação dos pais, etc. Além disso, no âmbito do Primeiro Congresso Brasileiro de Serviço Social, foi apresentada uma pesquisa contendo resultados provenientes de testes psicológicos aplicados em crianças da Favela da Providência, segundo os quais tais crianças seriam intelectualmente inferiores às crianças “normais”, e, portanto, representariam um problema para as escolas (ALMEIDA, 2016).

Rafael Gonçalves de Almeida (2016), ainda analisando as políticas aplicadas nas favelas, destaca a criação da Lei das Favelas (Lei nº 2.875), de 19 de setembro de 1956, a qual foi celebrada como um mecanismo de proteção da população favelada. Contudo, na medida em que definia normas específicas para a favela, que se tornara objeto jurídico, também a excluía de outras possibilidades. Como exemplo, o autor cita a Lei Municipal nº 660, de 19 de novembro de 1951, que facilitava a regularização fundiária, contudo, expressamente excluía as favelas de sua área de abrangência. Assim, em razão do caráter jurídico excepcional que lhe fora atribuído, aquelas restavam prejudicadas. Daí decorre que “identificar uma área como ‘favela’ não é reconhecer objetivamente sua condição material, mas sim atribuir a essa área, associar a ela, permitir que nela funcione, todo um conjunto de mecanismos de controle” (ALMEIDA, 2016, p. 426).

Percebe-se, nesses dois movimentos – tanto no combate aos cortiços, quanto, posteriormente, às favelas –, o emprego de um discurso biopolítico, no qual, conforme Laura

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Bazzicalupo (2017), a natureza humana funciona como critério normativo. Nesse sentido, o Rio de Janeiro seria um “corpo urbano”, do qual as favelas representavam a “doença, moléstia contagiosa, uma patologia social que precisava ser combatida” (VALLADARES, 2000, p. 14).

Michel Foucault, considerado o autor que efetivamente deu conteúdo ao conceito de biopolítica, passa a utilizar-se explicitamente do termo somente no final da década de 1970. Contudo, de acordo com Bazzicalupo (2017), o tema já emergia anteriormente, especialmente por meio de seus estudos no âmbito da clínica e psiquiatria, que demonstravam a existência de uma forma de poder ligada ao ser vivente. A autora expressa que é nesse campo – transpassado pela medicina, clínica e psiquiatria –, que surgem as manifestações mais precoces do poder de gestão dos seres vivos, por meio de mecanismos que:

Desempenham uma função de organização social decisiva, fornecendo, além de técnicas de controle da população frente a emergências epidemiológicas ou a pragas sociais como o alcoolismo, também instrumentos de classificação que não possuem um caráter individualizante, mas estatístico, de grupos, de populações [...] de risco, a serem marginalizadas ou corrigidas de maneira funcional pela saúde pública (BAZZICALUPO, 2017, p. 42).

Em “A história da sexualidade I: a vontade de saber”, Foucault (2005, p. 129) elabora uma explicação ao termo biopolítica, para designar uma nova tecnologia de poder surgida a partir de meados do século XVIII; por meio dela, ao poder soberano – que, antes, caracterizava-se pelo poder de “causar a morte ou deixar viver” – acresce-se uma nova tecnologia: a de um poder que age sobre a vida, “que empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de conjunto”. Desse modo, proliferam-se as tecnologias políticas que investem sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida e todo o espaço da existência.

O termo biopolítica, assim, designa “o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana” (FOUCAULT, 2005, p. 134). Ou seja, o poder é exercitado tendo como fim e em base da própria vida, o que implica “fazer da vida objeto de um juízo político de valor tanto para selecioná-la como para melhorá-la” (BAZZICALUPO, 2017, p. 35).

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Estudando o uso da medicina como forma de controle, Foucault (2004, p. 80) entende que ele se dá não apenas pela consciência ou pela ideologia, mas “começa no corpo, com o corpo”, sendo esse uma realidade biopolítica. A medicina é, para o autor, também uma estratégia biopolítica. Assim, no contexto aqui analisado, além dos usos da medicina individual para controle e confinamento daqueles que seriam considerados anormais (por meio dos manicômios, por exemplo), a cidade – que passava por um período de grande aumento populacional –, passou a ser vista como “um foco de pestilência física e moral que precisava ser destruída” (ANITUA, 2008, p. 243). O movimento higienista, que compreendeu um aparato de medidas médicas aptas a “curar” tanto a célula quanto o organismo, teve, nesse contexto, papel fundamental.

Nesse sentido, Foucault (2004, p. 96-97), analisando a medicina social surgida na Inglaterra, percebe que, a partir do final do século XIX, desponta uma medicina que é tanto apta para realizar o esquadrinhamento geral da saúde pública, como também – e principalmente –, exercer “o controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às ctorná-lasses mais ricas”. Por meio da intervenção em locais insalubres, verificações de vacina e registros de doença, exercia-se um controle da população a nível coletivo, mas que era, especialmente, dirigido às classes mais pobres. Tal controle despertou, inclusive, reações violentas por parte da população, sendo que muitos grupos passaram a reivindicar o direito das pessoas de “não passarem pela medicina oficial, o direito sobre seu próprio corpo, o direito de viver, de estar doente, de se curar e morrer como quiserem”.

No contexto brasileiro, conforme se observou anteriormente, a utilização das práticas higienistas aconteceu, naturalmente, em momento posterior, eis que a própria urbanização foi tardia em relação ao verificado no continente Europeu. Mas, conforme Bazzicalupo (2017, p. 42), os discursos médicos, tidos como “verídicos” por sua natureza incontestada, possibilitaram orientar “as condutas cotidianas, modificar os hábitos de risco, permitindo a intrusão em âmbitos estritamente privados, como o corpo, os hábitos sexuais, a vida reprodutiva”.

Além da verificação dos fatores que levaram à segregação urbana da população pobre, cumpre também analisar outro tipo de segregação, que está intimamente relacionada com a primeira: a discriminação racial. O desenvolvimento de teorias raciais deu-se,

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primeiramente, nos países da Europa Ocidental, chegando posteriormente ao Brasil, sendo que, a partir do final do século XIX e início do século XX, passaram a compor a agenda política do Estado brasileiro (RIBEIRO; BENELLI, 2017). Isso pois, até então, como destaca Lilia Schwarcz (2012) o escravo era propriedade, “não cidadão”.

A raça “era introduzida, assim, com base nos dados da biologia da época e privilegiava a definição dos grupos segundo seu fenótipo, o que eliminava a possibilidade de pensar no indivíduo e no próprio exercício da cidadania e do arbítrio” (SCHWARCZ, 2012, p. 38). Com a inserção das teorias raciais como discurso científico, buscou-se comprovar que havia uma desigualdade biológica entre as pessoas, ou seja, desigualdades pautadas na natureza, as quais não seriam, portanto, desigualdades sociais.

Neder (1997, p. 110) assinala que, paralelamente às reformas urbanísticas efetuadas no Rio de Janeiro, também foram colocadas em prática novas estratégias de controle social da população, que seriam “projetadas face à massa de ex-escravos”. A autora chama esse movimento de medo branco, “manifestado diante das possibilidades de alargamento do espaço (político e geográfico) da população afro-brasileira”.

Contudo, poder-se-ia questionar como foi possível a proliferação de um discurso racista, nas esferas de exercício de poder, se, conforme Foucault, ele havia se transformado em uma tecnologia voltada para a vida. Para o autor (2005, p. 304), o racismo estabelece, “nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer”. Foucault busca entender como é possível que, aquele mesmo poder, que tem por objetivo a vida – que trata justamente de prolongar sua duração, multiplicar suas possibilidades –, pode exercer o direito de matar, a função do assassínio: “como esse poder que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o poder da morte, como exercer a função da morte, num sistema politico centrado no biopoder?” (FOUCAULT, 2005, p. 304).

Foucault entende o mecanismo capaz de permitir o funcionamento disso que seria um paradoxo é o racismo de estado, eis que é a condição para que se possa exercer o direito de matar: ele permite o funcionamento do velho poder soberano do direito de morte. E com o termo “morte”, cumpre ressaltar, o autor não entende apenas “o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para

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alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.” (FOUCAULT, 2005, p. 306).

Nessa lógica, o racismo cumpre duas funções. A primeira delas é fragmentar uma população, fazer cesuras no contínuo biológico da espécie humana, subdividindo-a em raças e qualificando algumas como boas e outras como más. A segunda, por sua vez, consiste em fazer funcionar uma relação pautada no biológico, segundo a qual “a morte do outro não é simplesmente a minha vida; [...] a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura” (FOUCAULT, 2005, p. 305).

Renata Celeste Sales Silva (2017, p. 116) escreve, sobre o paradoxo do modus operandi do biopoder, que nesse ponto se evidencia a genialidade analítica de Foucault:

Ali onde nosso sentido comum nos levaria a louvar o caráter humanitário de intervenções políticas que visam incentivar, proteger, estimular e administrar o regime e as condições vitais da população, ali mesmo nosso autor descobrirá a contrapartida sangrenta desta nova obsessão do poder pelo cuidado purificador da vida.

Para a autora (2017, p. 116), Foucault compreendeu que “a partir do momento em que a vida passou a se constituir como elemento político por excelência, [...] o que se observa não é uma diminuição da violência”, mas sim a “exigência contínua e crescente da morte em massa dos outros”, dos corpos populacionais que ela denomina exógenos.

A questão do racismo no Brasil, contudo, parece ser vista como secundária ou sequer como um problema. Conforme Schwarcz (2012, p. 31), há um racismo “silencioso e que se esconde por trás de uma suposta garantia da universalidade e da igualdade das leis, e que lança para o terreno do privado o jogo da discriminação”. Embora, a partir dos anos 1930, tenha surgido um discurso positivo acerca da mestiçagem, como o símbolo do sincretismo cultural brasileiro, a autora assinala que essa redenção verbal não se concretizou no cotidiano, de modo que as populações mestiças e negras continuaram sendo discriminadas nas esferas da justiça, do direito, do trabalho e até do lazer.

Essa conjuntura de desigualdades, naturalmente, manifesta-se não só culturalmente e nas relações sociais entre os diversos grupos, mas também – de forma muito acentuada – na

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esfera do controle social exercido pelo sistema penal e todo o aparato a ele relacionado. De acordo com Baratta (2016, p. 169), “o cárcere vem a fazer parte de um continuum que compreende família, escola, assistência social, organização cultural do tempo livre, preparação profissional, universidade e instrução dos adultos”.

Tendo isso em vista, pretende-se analisar, no próximo tópico, o tema da seletividade do sistema penal brasileiro, a fim de verificar as consequências, nesse âmbito, das práticas de segregação e de racismo anteriormente abordadas. Considerando-se a lição de Eugenio Raúl Zaffaroni (2001), segundo o qual o sistema penal apresenta características nefastas que lhe são estruturais, como reprodução da violência, concentração de poder, destruição de relações horizontais ou comunitárias, além da própria seletividade – características essas que são próprias do seu exercício de poder –, busca-se verificar, especialmente a partir dos estudos de Giorgio Agamben, como se dá, nesse contexto, a instauração de um estado de exceção, propício à produção do que o autor chama de vidas nuas, expostas a toda espécie de violência e, inclusive, à morte.

1.2 A atuação seletiva do sistema penal brasileiro: um entrecruzamento da Criminologia Crítica com a biopolítica

Conforme se abordou no tópico anterior, a favela e as periferias são lugares em que se manifestam uma série de mecanismos de controle, atuantes de forma mais ou menos oculta. A atuação arbitrária e brutal do sistema penal brasileiro, como mecanismo de controle social, contudo, desde há muito se mostra mais às claras que ocultamente. Zaffaroni (2001, p. 12) identifica tamanha perda da racionalidade dos sistemas penais dos países latino-americanos, que afirma que a verificação das contradições entre a operacionalidade real desses sistemas e os discursos jurídico-penais pode requerer “demonstrações mais ou menos apuradas em alguns países centrais, mas, na América Latina, [...] requer apenas uma observação superficial”.

Desde a abolição da escravidão e com a intensa migração que se iniciou no século XX, “cresceu o problema de controle da massa de negros libertos, brancos pobres e imigrantes”, de forma que “mudanças nas instituições policiais ocorreram concomitantemente à reforma urbanística” (VALENTE, 2015, p. 41-42). Ou seja, desde o princípio, tais indivíduos foram tratados como perigosos. Conforme Neder (2005, p. 11), naquele momento

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“especulava-se sobre as formas de garantir a ordem e a disciplina num país de ex-escravos; particularmente, a ordem republicana definia-se claramente por uma opção de manutenção da exclusão social”.

O contexto atual, contudo, não é diferente, mesmo com todas as experiências vivenciadas no país desde a proclamação da República – especialmente o fato de ter passado por um período de ditadura militar e posterior redemocratização, com a promulgação de uma Constituição cidadã. Isso por que, conforme leciona Neder (2005), o Brasil não alterou substancialmente o perfil autoritário e excludente das suas instituições de controle social (policial e judicial), o que prejudica largamente o processo de redemocratização. Marcelo Lopes de Souza (2012, p. 127) refere-se a “momentos de ‘democracia’ representativa um tanto caricatural, em que os direitos humanos de grande parcela da população são sistematicamente desrespeitados”. Permaneceu, assim, com o perfil de uma república autoritária e excludente.

Souza (2012, p. 118) aponta para uma militarização da questão urbana: o avanço do que antes era entendido como “caso de polícia” para uma questão explicitamente militar. O autor analisa, assim, ações perpetradas nas favelas objetivando realizar uma “guerra ao tráfico”, as quais ostentam tanto discursos quanto estratégias de caráter belicoso. Nesta “guerra”, contudo, os grandes inimigos são, na sua esmagadora maioria, “jovens negros e mulatos, muitas vezes franzinos, armados com enormes fuzis, mas calçados com chinelos de borracha”, ou seja: a juventude pobre dos espaços segregados.

Assim, se, em determinado momento as favelas passaram a ser vistas como lócus de manifestações culturais, a partir dos anos 90 essa imagem se alterou, sendo substituída por outra – propagada especialmente pela mídia – que identificava as favelas como territórios controlados por traficantes e como locais onde se origina a violência e insegurança na cidade. Tal ideia serviu para justificar a “metáfora da guerra”, autorizando ações cada vez mais repressivas a serem levadas a cabo por unidades especializadas, com treinamento e equipamento militares (OLIVEIRA, 2014).

João Pacheco de Oliveira (2014) cita como exemplo a criação de um batalhão especializado em operações militares nas favelas, o BOPE. Conhecido pela realização de incursões violentas, com o emprego de técnicas militares de assalto a terrenos inimigos, o

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Batalhão não apresentou, contudo, resultados significativos de redução da insegurança urbana ou controle local das favelas. Ante as violências propagadas pelo BOPE, o autor (2014, p. 136) aponta a criação das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, como tentativa de “corrigir os erros de ações puramente repressivas”, haja vista que, “nos planos originais, a instalação das UPPs seria seguida pela criação de uma ‘UPP social’, que se ocuparia com a identificação de prioridades e a superação dos problemas vividos pela comunidade”.

Contudo, Oliveira (2014) atenta para os problemas compreendidos na noção de “pacificação”. Segundo o autor (2014, p. 136), o termo remete a uma ideia vigente no período colonial, que “designava uma transformação profunda sofrida por um grupo, em que seus componentes pagãos, imorais e anárquicos eram substituídos por uma condição supostamente nova e mais elevada, propícia à sua participação na sociedade colonizadora”. Assim, ainda que não seja possível perceber de imediato, as ações voltadas a esse fim carregam um referencial simbólico que produz efeitos na sociedade. A “comunidade pacificada”, nesse contexto, seria aquela que passou por uma série de medidas que, além do objetivo de desalojar o controle do crime organizado, tinham uma “natureza civilizatória”.

Tendo em vista tal cenário, característico das favelas do Rio de Janeiro, mas não exclusivo delas, eis que é demonstrativo da atuação do sistema penal em todo o país, cumpre estudar essa atuação criticamente. Para esse intento, os estudos desenvolvidos pelo pensamento criminológico crítico fornecem elementos importantes, tendo em vista que estabeleceram diversas críticas às teorias criminológicas vigentes ao tempo do seu surgimento – as quais projetam, até hoje, para o direito penal, alguns dos seus postulados antiliberais – e também demonstraram as desigualdades e irracionalidades presentes nos sistemas penais contemporâneos.

Destaca-se, nesse ponto, a importância das ideias surgidas por ocasião desse novo movimento criminológico no âmbito da América Latina, haja vista que muitos autores abordaram o tema considerando os aspectos históricos e a posição periférica destes países. Conforme assinalam Lucas Machado e Jackson da Silva Leal (2016), deve-se considerar que América Latina é um espaço que foi inventado desde aspectos opressores e violentos, com a eliminação do outro, por meio de processos de colonização que não podem ser esquecidos quando de uma análise que se propõe não superficial. Por tal razão, verifica-se a importância do estudo voltado às características que são próprias do local onde o Brasil está localizado.

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A perspectiva criminológica crítica consolidou-se a partir da década de setenta do século XX, como aponta Salo de Carvalho (2013), com uma compreensão macrocriminológica a respeito das ciências criminais, visando a superar a perspectiva microcriminológica até então vigente. De acordo com Baratta (2016, p. 160, grifo do autor), a criminologia crítica lança mão de ideias que se contrapõem à velha criminologia, que “buscava a explicação dos comportamentos criminalizados partindo da criminalidade como um dado ontológico preconstituído à reação social e ao direito penal”. Assim, desloca-se o enfoque teórico “do autor para as condições objetivas, estruturais e funcionais, que estão na origem dos fenômenos do desvio”, e, ainda, do “interesse cognos-citivo [sic] das causas do desvio criminal para os mecanismos sociais e institucionais através dos quais é construída a ‘realidade social’ do desvio”.

Cabe destacar que a criminologia crítica não foi um pensamento criminológico homogêneo, conforme reconhece Baratta (2016), de forma que Carvalho (2013) aduz que mais correto seria referir-se a “criminologias críticas”. Contudo, esse mesmo autor assinala que, não obstante tal heterogeneidade, ainda assim seria possível definir o movimento criminológico crítico como uma unidade de pensamento, em virtude do fato de que um dos fios condutores de qualquer de suas distintas tradições criminológicas é a negação do pressuposto do delito natural, que era sustentado pelo paradigma causal-etiológico (criminologia ortodoxa).

Sem pretender expor cronologicamente as diversas posições criminológicas que culminaram por fim na abordagem criminológica crítica, eis que não é o objeto da presente pesquisa, é possível destacar algumas contradições e características verificadas ao longo de diversos estudos, que expuseram alguns mitos do discurso criminológico e jurídico penal tradicional e revelaram a real operacionalidade dos sistemas penais e a seletividade com que atua o direito penal.

Dentre eles, cita-se o enfoque do etiquetamento, também conhecida como labeling approach ou enfoque da reação social. Seu mérito reside em ter deslocado totalmente o foco da criminologia, como assinala Gabriel Ignacio Anitua (2008, p. 588), pois deixou de perguntar quem é criminoso para questionar quem é considerado como tal. Assim, “as definições legais ou institucionais deixariam de ser assumidas acriticamente como algo

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natural, e a ênfase seria colocada exatamente nessas definições”. Ou seja, a partir de então, o estudo da criminologia se deslocará da criminalidade para os processos de criminalização.

Segundo Baratta (2016, p. 88-89), os criminólogos do labeling approach buscam, então, responder a questões como: “quem é definido como desviante?”, “que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?”, “em que condições este indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?”, e, “quem define quem?”. O autor ainda destaca que o enfoque colocou em discussão o princípio da igualdade, demonstrando que a criminalidade não é o comportamento de uma minoria, mas sim da maioria dos cidadãos. Além disso,

Segundo a sua definição sociológica, é um status atribuído a determinados indivíduos por parte daqueles que detêm o poder de criar e aplicar a lei penal, mediante mecanismos seletivos, sobre cuja estrutura e funcionamento a estratificação e o antagonismo dos grupos sociais têm uma influência fundamental. (BARATTA, 2016, p. 112-113)

Para o autor, apesar das limitações do labeling approach, ele conduziu a resultados irreversíveis, sacudindo os fundamentos da ideologia penal tradicional. Ademais, Vera Malaguti Batista (2011, p. 79) também assinala a importância do marxismo para a compreensão da questão criminal, eis que seus autores, embora não tenham desenvolvido um pensamento articulado a respeito, “apontavam o sentido classista das criminalizações históricas e do poder punitivo”.

Outros importantes estudos na demonstração da seletividade do sistema penal e da atuação de suas agências foram os relativos à chamada cifra oculta da criminalidade e à criminalidade do colarinho branco, aos quais Lola Anyiar de Castro (1983) designou de “fantasmas” da criminologia tradicional. A cifra oculta da criminalidade representa a diferença existente entre a criminalidade real e a estatística, ou seja, aquela que é efetivamente perseguida. Os estudos que constataram a existência da cifra oculta contribuíram para a crítica às estatísticas oficiais sobre a criminalidade, verificando que essas sugerem “um quadro falso da distribuição da criminalidade nos grupos sociais” (BARATTA, 2016, p. 102).

Tal cifra mostra-se mais contundente em estudo desenvolvido por Edwin Sutherland em relação aos crimes de colarinho branco. Conforme assinala Baratta (2016, p. 101), Sutherland demonstrou, em artigo referente ao tema, com base em dados extraídos de estatísticas de vários órgãos americanos competentes em matéria de economia e de comércio,

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o “quão impressionantes eram as infrações a normas gerais realizadas neste setor por pessoas colocadas em posição de prestígio social”.

Baratta (2016) salienta, assim, que foi demonstrada a medida muito escassa em que a criminalidade de colarinho branco é perseguida, em relação a outras formas de criminalidade, não obstante tais crimes estarem previstos na lei penal. Estas pesquisas levaram, portanto, à demonstração de que a criminalidade não é comportamento de uma restrita maioria, mas sim da maioria dos membros da sociedade. O que muda, porém, é a forma como a atuação dos órgãos oficiais se orienta na perseguição dos crimes.

No contexto da América Latina muitos autores trataram da crítica criminológica respeitando as peculiaridades locais. Destaca-se, contudo, o que foi produzido por Zaffaroni (2001), em razão da profunda crítica que realizou aos sistemas penais latino-americanos, revelando que operam com um nível extremamente alto de violência, seletividade e empregando um discurso jurídico-penal que em nada se assemelha à realidade.

Para Zaffaroni (2001), a legitimidade de um sistema penal é dada pela sua racionalidade, que compreende tanto a coerência interna do discurso jurídico-penal, quanto o seu valor de verdade em relação à operatividade social. Contudo, os sistemas penais latino-americanos não cumprem com nenhum desses requisitos. Além disso, o discurso jurídico-penal pretende mostrar que o exercício total de poder do sistema jurídico-penal é exercido quando da atuação do “sistema penal formal”. Porém, o que ocorre é que há um amplo âmbito onde se exerce um controle social punitivo – chamado pelo autor de poder configurador, que é o exercício de um controle social militarizado, verticalizado e disciplinar – mas que é excluído pela própria lei do discurso jurídico-penal.

Com isso, o exercício do sistema penal formal, que é eventualíssimo em relação à atuação do sistema de controle social, é tido como a totalidade desse exercício de poder. Nas palavras do autor (2001, p. 25):

Levando-se em conta a programação legal, deve-se concluir que o poder configurador ou positivo do sistema penal (o que cumpre a função de disciplinarismo verticalizante) é exercido à margem da legalidade, de forma arbitrariamente seletiva, porque a própria lei assim o planifica e porque o órgão legislativo deixa fora do discurso jurídico-penal amplíssimos âmbitos de controle social punitivo.

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Zaffaroni (2001, p. 27) demonstra, ainda, que nem mesmo dentro do sistema penal formal a legalidade é respeitada. Uma das razões apontadas pelo autor é que a sua capacidade operacional é ínfima em relação ao que está previsto na lei, e, portanto, quer pretender dispor de um poder que não possui. Ou seja, “o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis”.

Para além dessas construções, o autor (2001, p. 38-39) ainda enuncia que há uma deslegitimação dos sistemas penais pelos próprios fatos, sendo a morte o mais notório deles, que exprime essa deslegitimação para “além dos limites teóricos porque atinge diretamente a consciência ética”. Ao fato “morte” acresce-se o “enorme volume de violência provocada pelos órgãos do sistema penal na forma de corrupção, degradação, morte violenta de seus próprios integrantes, privações de liberdade, privações, etc.”.

Zaffaroni (2001, p. 12) percebe todas essas características como algo que se encontra encoberto por um discurso jurídico-penal que se pretende legítimo e verdadeiro, embora sustente que ele “se desarma ao mais leve toque com a realidade”. Contudo, Carvalho (2006, p. 256) aponta para o estabelecimento de um novo discurso defensivista, que “encontra guarida em ideólogos que disseminam a beligerância penal não apenas como reitora da política criminal mas, igualmente, como base interpretativa do direito penal (dogmática penal)”.

O autor (2006, p. 257) cita, além das pautas programáticas dos Movimentos de Lei e Ordem, a ampliação da aceitação e aplicação das premissas do direito penal do inimigo, formulação de autoria de Günter Jakobs, segundo a qual direito penal seria subdividido em um direito penal do cidadão outro do inimigo. O cidadão, conforme esse raciocínio, seria aquele que “mesmo tendo cometido um erro (crime), oferece garantia cognitiva mínima de comportamentos de manutenção da vigência das normas”, portando, a ele deve ser aplicado o direito penal do cidadão, o qual mantém todas as garantias. Contudo, determinados indivíduos não oferecem essa mesma garantia, negam-se “a participar do contrato ou pretendem destruí-lo”, e, portanto, a eles deveria ser aplicado o direito penal do inimigo, que acarreta em um “processo de despersonalização do criminoso, no qual a perda da personalidade política (cidadania) deflagraria exclusão dos direitos a ela inerentes”.

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A partir de tais verificações, Carvalho (2006) expressa o perigo representado pelo estabelecimento de um discurso que justifica a adoção de práticas terroristas, como o trazido pelo direito penal do inimigo. Para o autor (2006, p. 255),

Torna-se absolutamente preocupante quando as funções reais (genocidas) passam a ser defendidas como base de um novo discurso oficial (funções declaradas), pois a transferência da programação real do direito penal do terror ao nível enunciativo potencializa o incremento da violência na nova realidade que se deseja criar.

Assim, sob o pretexto de garantir a segurança, uma série de medidas punitivistas são legitimadas, de modo que “a exceção ganha contornos de estado de permanência” (CARVALHO, 2006, p. 260). Para o estudo dessa conjuntura que parece constantemente ampliar-se no Brasil, torna-se relevante deter-se na análise realizada por Giorgio Agamben.

O autor dá certa continuidade às pesquisas iniciadas por Foucault sobre o tema biopolítica, porém, aborda-o de maneira diversa, agregando novos elementos à análise. Conforme Fábio Henrique Duarte (2017, p. 80), Agamben “demarca seu próprio horizonte temático e filosófico”. Assim, enquanto, para Foucault, a biopolítica seria uma característica da modernidade, Agamben entende que ela é “algo inerente à política ocidental desde suas origens” (DUARTE, 2017, p. 80). Caracteriza a pesquisa do autor o fato de ter apresentado conceitos tais como vida nua e homo sacer, e ter se detido no estudo do estado de exceção, fornecendo importantes elementos para a análise de temas relacionados à soberania, política, direito, etc.

A figura do homo sacer, buscada por Agamben no direito romano arcaico, reveste-se de características muito singulares. Homem sacro era aquele que, tendo sido julgado pelo povo por ter cometido algum delito, não poderia ser sacrificado (aspecto divino), porém, se alguém o matasse, não estaria cometendo um homicídio (aspecto do direito) (DIÓGENES, 2012). Conforme explica Francisco Bruno Pereira Diógenes (2012, p. 51), o homo sacer encontrava-se excluído tanto do direito humano, quanto do direito divino. Encontrava-se, pois, sem qualquer espécie de proteção, consistindo nisso sua punição: “na indeterminação de vagar por sua comunidade sob o perigo iminente (com a permissão jurídica) de ser morto por qualquer um, sem que sua morte fosse considerada crime, ou seja, homicídio” (DIÓGENES, 2012, p. 49).

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A vida do homem sacro é, para Agamben, vida nua (DIÓGENES, 2012). Para compreensão desse conceito, reporta-se a dois termos também buscados por Agamben no grego clássico: bíos e zoé. Segundo o autor (2002, p. 9, grifo do autor), “os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida”; serviam-se, ao contrário, de dois termos: “zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens e deuses), e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo”.

A figura da vida nua de Agamben pode ser melhor compreendida a partir de estudos realizados por Hannah Arendt, no livro “Origens do totalitarismo”, a respeito de uma situação muito peculiar surgida após as grandes guerras ocorridas no século passado. Segundo Diógenes (2012), a autora observou que, após a Primeira Guerra Mundial, cresceu o número de pessoas e grupos sem Estado – os apátridas –, que, após passarem por inúmeros eventos políticos, tinham sua condição cada vez mais indeterminada. O autor (2012, p. 89) explica, em relação a esses grupos, que

por vezes, não se podia sequer saber a [sua] origem – o que se dava tanto pela constante mudança de nacionalidade dos habitantes de territórios em disputa, como pelo fato, assinala a autora, de que alguns grupos simplesmente optavam por essa condição, preferindo-a à deportação quando voltar ao país de origem significaria exclusão e marginalização social.

Tais pessoas, despidas de sua condição de cidadãos, não poderiam trabalhar ou residir legalmente onde quer que se encontrassem, vivendo sem a proteção de qualquer lei ou tratado internacional. Diógenes (2012) explica que a conclusão a que chegou Hannah Arendt foi que essas pessoas foram abandonadas a uma situação de meramente humanos, tendo perdido suas qualidades políticas:

A autora chama a atenção para o âmbito particular a que foram jogados aqueles expulsos de suas comunidades, precisamente, o da mera existência, da existência natural, individual e privada, que nos foi dado desde o nascimento e se opõe ao que foi organizado a partir do princípio da justiça, o qual clareia e define nossa vida política (DIÓGENES, 2012, p 95).

A partir dessa leitura, é possível perceber a característica notada por Agamben de que “a vida nua está inscrita nos dispositivos do poder soberano” (CASTRO, 2016, p. 59). A possibilidade de criar-se uma situação de apatridia revela que, retirando-se a nacionalidade daquelas pessoas, ficavam elas expostas a qualquer poder soberano, ao mesmo tempo em que não poderiam servir-se das leis de qualquer Estado. Cria-se, portanto, um homo sacer, uma

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pessoa que ingressou em uma zona de indistinção justamente por sua correlação com o poder soberano (CASTRO, 2016).

O modo pelo qual o poder soberano captura a vida nua, conforme explica Castro (2016), é pelo estado de exceção, sobre o qual Agamben realiza um amplo estudo. Duarte (2017, p. 81) leciona que o que caracteriza o estado de exceção, conforme o entendimento de Agamben,

é a indistinção entre a legalidade e a ilegalidade, perpetuando, por meio da legalidade, a ilegalidade, incluindo a vida humana num aparato de direitos, conforme a disposição do Estado democrático de direito, mas ao mesmo tempo transformando-a em vida nua, destituída de direitos e, portanto, matável. Paradoxo este que está na base da política moderna e contemporânea.

Assim, Agamben (2004, p. 14), em sua obra “Estado de Exceção”, explica que o significado imediatamente biopolítico do estado de exceção é que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão. Para exemplificar esse atributo, ele utiliza como exemplo a “military order” promulgada pelo presidente dos Estados Unidos após os ataques de 11 de setembro, que autorizava a detenção indefinida “dos não cidadãos suspeitos de envolvimento em atividades terroristas”; e, ainda, o USA Patriotic Act, que autorizava a manutenção da prisão de estrangeiro suspeito de atividades que pusessem em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos, mas que, no prazo de sete dias, tal estrangeiro deveria ser expulso ou acusado de violação da lei de imigração ou acusado de algum outro delito. Ocorre que, por meio de tais normas, anula-se “radicalmente todo o estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável”.

Nessa perspectiva, percebe-se que o indivíduo fica exposto; poder-se-ia dizer que transformado em vida nua. E, na medida em que essa representa o isolamento da zoé em relação ao seu bíos, o estado de exceção, conforme explica Diógenes (2012, p. 56), “representa o momento em que mais facilmente se isola tal forma de vida do convívio verdadeiramente humano e constitui, para Agamben, portanto, um dispositivo biopolítico fundamental, que cria e se apoia sob o mesmo pressuposto, a vida nua”.

O grande dilema trazido pelo autor (2004, p. 13), é que, para ele, o estado de exceção “tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea”, de modo que “a criação voluntária de um estado de emergência permanente

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(ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive os chamados democráticos”. Se assim é, portanto, é absolutamente necessário notar que qualquer Estado, por mais democrático que seja, contém o constante risco de transformar-se em estado de exceção, justamente por que esse se refere a uma zona de indiferença, de anomia, “que não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico [...], em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam” (AGAMBEN, 2004, p. 39).

Carvalho (2006, p. 9) adverte que a tensão entre a crise de segurança individual, na qual a sociedade se vê como vítima em potencial, e a crise da segurança pública, que se manifesta na incapacidade do Estado em administrar os riscos, faz surgir “tentações autoritárias” que “brotam com a aparência de serem instrumentos eficazes ao restabelecimento da lei e da ordem”.

Tendo isso em vista, é necessário que se olhe com atenção para os caminhos tomados pela política e pelo direito no Brasil, a fim de verificar o nível de legitimidade e adequação das medidas tomadas, com o que propõe um Estado Democrático de Direito que, como o Brasil, tem, em sua Constituição Federal, dentre seus objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a erradicação da pobreza e marginalização.

2 A INTERVENÇÃO FEDERAL NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO: O INCREMENTO DA SELETIVIDADE PENAL

Após realizar-se uma incursão histórica a respeito da segregação urbana e seletividade do sistema penal em relação à uma parte da população brasileira, o presente capítulo dedica-se a estudar a intervenção federal em concreto, através de duas diferentes orientações: primeiramente, em uma leitura constitucional do instituto, e, posteriormente, apresentando seus resultados práticos em contexto com os temas anteriormente analisados.

Na história recente do constitucionalismo brasileiro, especificamente a partir da Constituição Federal de 1988, esta é a primeira ocasião em que uma intervenção federal é decretada, embora tenha sido, especialmente nas primeiras décadas da República, descomedidamente utilizada (LEWANDOWSKI, 1994). Isso por que, conforme se verá a seguir, a intervenção federal trata-se de uma medida excepcional, que mitiga

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momentaneamente um dos pressupostos do Estado federal, e, portanto, apenas em estrito respeito aos pressupostos constitucionais é que pode ser decretada.

Conforme salientou-se no principiar deste estudo, contudo, o desafio aqui proposto é o de ultrapassar o âmbito do estudo dos pressupostos constitucionais da intervenção federal, voltando o olhar para as práticas veladas e para os discursos não declarados que permeiam a tomada da medida. Assim é que, no segundo ponto deste capítulo, analisar-se-á quais foram os impactos práticos da intervenção, especialmente nas favelas fluminenses, sendo postos em perspectiva alguns estudos que revelam uma prática atual de intervenção diferenciada nesses locais.

2.1 O Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018: leitura constitucional

Para o adequado estudo do instituto da intervenção federal, é fundamental analisar, primeiramente, no âmbito da organização do Estado, as características e peculiaridades da forma federativa de Estado, na medida em que se trata de uma previsão especificamente voltada à manutenção do Estado federal. Assim, dedica-se o presente título à elucidação desses conceitos, bem como à análise, em concreto, do Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018.

De acordo com José Afonso da Silva (2003, p. 98), forma de Estado refere-se ao “modo de exercício do poder político em função do território”. A origem do federalismo remonta ao constitucionalismo e pensamento político norte-americanos, quando da promulgação da Constituição dos Estados Unidos da América, em 1787, tendo representado “uma novidade no âmbito das assim chamadas formas de Estado e suas tipologias” (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017, p. 969).

Assim o é, pois apresentou características distintas das formas de Estado até então mais empregadas: o Estado unitário, caracterizado por possuir um centro de poder que se estendia por todo o território, e, a Confederação ou União de Estados, formas compostas, que consistiam na união de Estados mediante pactos regidos pelo direito internacional público, os quais permaneciam, contudo, soberanos e independentes (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017).

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Raul Machado Horta (1995, p. 345) aponta que, atualmente, a Confederação é uma referência histórica, “pois já encerrou sua trajetória no domínio da organização de Estados, após as experiências relevantes da Confederação Germânica, da Confederação Suíça e da Confederação Norte-Americana”. Por outro lado, o autor também ensina que o Estado Unitário vem passando por um processo de renovação estrutural, ampliando seu grau de descentralização e dando lugar ao chamado Estado Regional.

Silva (2003) explica que o cerne do Estado federal consiste na repartição regional de poderes autônomos, sendo que a sua estrutura e regras devem ser traçados na Constituição Federal. O Estado Federal, conforme Horta (1995, p. 346), “pressupõe na sua origem a existência da Constituição Federal, para instituí-lo”. Dentre as razões apontadas para a adoção da forma de federativa de Estado, destaca-se a questão geográfica do país e a formação cultural da comunidade, eis que um vasto território, como é o caso do Brasil, costuma apresentar grande diversidade cultural e paisagística. Assim, o federalismo apresenta-se como uma fórmula que dá ao governo a possibilidade de realizar anseios nacionais, atentando, ao mesmo tempo, às peculiaridades locais (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009).

Embora assuma traços distintos em cada Estado em que é adotado, conforme a formatação em concreto que a ele é dada, pode-se identificar determinados elementos comuns, caracterizadores do Estado federal, conforme se verá a seguir. Nesse intento, também se analisará como a Constituição Federal de 1988 tratou das matérias, a fim de se verificar como se organiza o Estado federal brasileiro.

O primeiro elemento, que, conforme Silva (2003), é o cerne do conceito, é a repartição de competências entre a União e os Estados-membros, o que “condiciona a fisionomia do Estado Federal, para determinar os graus de centralização e de descentralização do poder federal” (HORTA, 1995, p. 348). No Brasil, a Constituição Federal prevê, em seu artigo 1º, que República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal. Da mesma forma, em seu artigo 18, que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, de modo que a repartição das competências é feita entre esses entes. Tem-se, pois, sobre uma mesma população, mais de uma esfera governamental, que, em geral, é composta pela da União e de cada Estado-membro, mas que, no Brasil, é formada ainda pela esfera governamental dos Municípios.

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