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Modernidade e tradição nas obras de Amedeo Modigliani

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ISABELA DE OLIVEIRA SALINAS

MODERNIDADE E TRADIÇÃO NAS OBRAS DE AMEDEO MODIGLIANI

CAMPINAS

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MODERNIDADE E TRADIÇÃO NAS OBRAS DE AMEDEO MODIGLIANI

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Supervisora/Orientadora: Profa. Dra. Taisa Helena Pascale Palhares

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA ISABELA DE OLIVEIRA SALINAS, E ORIENTADA PELA PROFESSORA DRA. TAISA HELENA PASCALE PALHARES.

CAMPINAS

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Salinas, Isabela de Oliveira,

Sa33m SalModernidade e tradição nas obras de Amedeo Modigliani / Isabela de Oliveira Salinas. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

SalOrientador: Taisa Helena Pascale Palhares.

SalDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Sal1. Modigliani, Amedeo, 1884-1920. 2. Venturi, Lionello, 1885-1961. 3. Modernismo (Arte) - Itália. 4. Pintura italiana - Séc. XX. 5. Arte moderna. I. Palhares, Taisa Helena Pascale, 1974-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Modernity and tradition in the work of Amedeo Modigliani Palavras-chave em inglês:

Modernism (Art) - Italian Italian painting - 20th century Art, Modern

Área de concentração: Filosofia Titulação: Mestra em Filosofia Banca examinadora:

Taisa Helena Pascale Palhares [Orientador] Rosa Gabriella de Castro Gonçalves

Fernanda Ferreira Marinho Camara

Data de defesa: 18-09-2019

Programa de Pós-Graduação: Filosofia Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-8620-6290 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2338850754561821

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 18/09/2019, considerou a candidata Isabela de Oliveira Salinas aprovada.

Profa. Dra. Taisa Helena Pascale Palhares Profa. Dra. Rosa Gabriella de Castro Gonçalves Profa. Dra. Fernanda Ferreira Marinho Camara

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Agradeço à minha orientadora Taisa Palhares por todo auxílio durante a pesquisa, pela confiança em meu trabalho e pela oportunidade de prosseguir meus estudos junto ao Departamento de Filosofia. Dentre as muitas coisas que aprendi com você, aprendi o verdadeiro significado de uma pesquisa interdisciplinar e da apreciação crítica da arte.

Aos membros da banca do exame de qualificação, Ana Gonçalves Magalhães e Fernanda Pitta, assim como às professoras que participaram do exame de defesa, Rosa Gabriella Gonçalves e Fernanda Marinho Camara. Todas as recomendações e críticas foram fundamentais para conclusão do trabalho.

Agradeço aos colegas do Centro de Pesquisa em Estética, Psicanálise e Teoria Crítica da Unicamp pelas leituras e discussões e por me darem exemplos de excelência na pesquisa acadêmica.

A todos os professores do Departamento de Filosofia da Unicamp por me ensinarem a paixão pela filosofia, pelo rigor de suas aulas e pesquisas. Vou passar toda a minha vida aprendendo com vocês.

Ao professor Stefano Valeri e ao professor Claudio Zambianchi pela oportunidade de pesquisar no Arquivo Lionello Venturi, em Roma. Ao colega Cristiano Rosati, que me acompanhou no arquivo em todos os momentos, sempre muito atencioso e solicito.

Agradeço ao Paulo Sérgio Bonafina e à Idineia Perez, pela oportunidade de compartilhar momentos inesquecíveis. Ao Paulo Vinicius, pelas infindáveis leituras e correções, pela ajuda na pesquisa no arquivo, sem a qual não teria conseguido concluir a dissertação.

Agradeço à minha mãe, Rossana, pelo exemplo de dedicação e perseverança, por ter me ensinado a superar os desafios com paciência e pelo apoio que é sempre essencial em todas as minhas conquistas. Também agradeço a minha família por todo o suporte e por fazerem de Belo Horizonte lugar de acolhimento e felicidade.

Aos meus colegas do grupo de pesquisa, Alberto Sartorelli, Bruna Batalhão, Éder Aleixo e Juliana Siqueira. Agradeço especialmente ao João Rampim e à Fernanda Ramos, pela amizade, generosidade e carinho, por sempre me ajudarem não só com a pesquisa, mas com a descoberta do novo mundo da filosofia.

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Rafael Palazi, agradeço muitíssimo a dedicação com a qual me ajudou a finalizar o trabalho, sendo o leitor e comentador mais aplicado que já conheci. Sua companhia tornou o fazer desse trabalho muito mais prazeroso, obrigada por me mostrar que não estou sozinha.

Por fim, expresso minha gratidão a todos que contribuíram direta ou indiretamente para esta conquista. Obrigada!

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O objetivo deste trabalho é tratar das relações entre modernidade e tradição nas obras do artista italiano Amedeo Modigliani (1884-1920) a partir da interpretação do crítico e historiador da arte Lionello Venturi. Modigliani não desfrutou de muito sucesso durante sua vida, especialmente em sua terra natal. Ocorre que, na década de 1930, será recuperado no ambiente italiano enquanto artista modernista por excelência. Propomos elucidar de que modo Venturi refuta uma aproximação de Modigliani do movimento de Retorno à Ordem, uma vez que essa recusa não significa uma defesa de uma tendência abstratizante por parte do artista. A compreensão de Venturi sobre as obras de Modigliani nos interessa na medida em que o reconhecimento de sua autenticidade parte de uma análise minuciosa dos elementos que compõe sua poética em estreita relação com sua personalidade artística. Assim, suas obras são consideradas autênticas na medida em que Modigliani soube se afastar de regras e prescrições, não renunciando a encontrar uma expressão coerente e adequada para seu modo de sentir. Assim, a hipótese que esta pesquisa procurou demonstrar é que as dicotomias de Modigliani mantêm uma tensão entre modernidade e tradição, que é expressão de um conceito de modernidade artística não prescritivo e que não se submete aos cânones.

PALAVRAS-CHAVE:

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The aim of this work is to deal with the relations between modernity and tradition in the works of Italian artist Amedeo Modigliani (1884-1920) from the interpretation of the critic and art historian Lionello Venturi. Modigliani did not enjoy much success during his lifetime, especially in his homeland. It turns out that in the 1930s, will be recovered in the Italian environment as a modernist artist par excellence. We propose to elucidate how Venturi refutes a Modigliani approach to the Return to Order movement, since this refusal does not mean a defense of an abstracting tendency by the artist. Venturi's understanding of Modigliani's works interests us insofar as the recognition of their authenticity comes from a thorough analysis of the elements that make up his poetics in close relation to his artistic personality. Thus, his works are considered authentic insofar as Modigliani knew how to depart from rules and prescriptions, not renouncing to find a coherent and adequate expression for his way of feeling. Thus, the hypothesis that this research sought to demonstrate is that Modigliani's dichotomies maintain a tension between modernity and tradition, which is an expression of a concept of non-prescriptive artistic modernity that does not submit to canons.

KEY-WORDS:

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Introdução p. 11

1. Percurso artístico e estilístico de Modigliani p. 19

1.1. Primeiras incursões na arte (1889-1909) p. 19

1.2. Experiência com a escultura (1909-1914) p. 27

1.3. Retomada da pintura (1914-1919) p. 32

2. O ambiente italiano de 1920 a 1935 p. 36

2.1. A política cultural italiana no entreguerras e o Retorno à Ordem p. 36

2.2. Disputa pela modernidade artística: Sarfatti e Venturi p. 40

3. A recepção crítica de Modigliani em Lionello Venturi p. 59

3.1. Modigliani como orientador da pintura italiana p. 60

3.2. Modigliani retorna à ordem? p. 62

3.3. Modernidade e tradição p. 70

3.4. Modigliani autêntico artista moderno p. 79

Conclusão p. 83

Referências Bibliográficas p. 90

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Introdução

O interesse por pesquisar a contribuição do artista italiano Amedeo Modigliani (1884-1920) para o desenvolvimento da arte moderna surgiu a partir de algumas questões. Em primeiro lugar, a ambiguidade em torno de sua figura, visto que é um dos artistas de maior sucesso no mercado internacional de arte1, ao passo que entre os críticos e historiadores não

desperta muita curiosidade. Isso nos levou a questionar a respeito dos motivos que levaram Modigliani a ser visto como um artista marginal e, assim, excluído das principais narrativas sobre o modernismo. Em segundo lugar, também nos perguntamos se em todos os momentos de sua recepção persistia a leitura de seu trabalho como secundário ou infrutífero para discutir questões realmente relevantes para a constituição de um conceito positivo de modernidade e modernismo.

Modigliani, enquanto artista vinculado à Escola de Paris, apresenta um estilo heterodoxo, no qual adota procedimentos próprios das manifestações artísticas modernas, mas sem se propor a romper definitivamente com a tradição. Em suas obras verificamos um diálogo com Cézanne, cubismo e fauvismo, ao mesmo tempo com várias tradições, clássicas e não clássicas, depurando todas essas interlocuções em um estilo singular. Modigliani é conhecido pelos pares de oposições que permeiam sua vida e sua poética: cristão e judeu, civilizado e primitivo, clássico e oriental, tradição e modernidade, oposições estas que repercutem em seu estilo. Formalmente, adere às premissas cézannianas para construção do espaço a partir da sobreposição de cores, ao modo de conferir emancipação à cor própria dos fauvistas e à sintaxe cubista de simultaneidade de movimentos. Contudo, mesmo assimilando essas experiências, permanece nos tipos tradicionais do nu e do retrato, caracterizando fisionomicamente e psicologicamente seus personagens e construindo um espaço que os abarca e, principalmente, adota a linha como regente de seu estilo.

No contrafluxo dos artistas que estavam a frente dos movimentos franceses de vanguarda, como Picasso e Matisse, Modigliani também parte dos problemas colocados pelo Impressionismo e por Cézanne, mas encontra uma solução diversa. Vemos nas obras do artista o rompimento com certas normas estabelecidas a partir do Renascimento, como a correção 1 Em 2015, o quadro Nu cochè pintado em 1917/18 foi vendido por US$ 170,405,000 pela Christie’s. Outro nu de Modigliani, Nu couché (sur le côte gauche) foi vendido pela Sotheby’s em 2018 por US$ 157,000,000, adquirido em 2013 por US$26,900,000. Em 13 de maio de 2019 a escultura Tête (1911-1912) foi vendida por US$ 34,325,000 e o quadro Lunia Czechwska (à la robe noire), de1919, por US$ 25,245,000. Bouilloire et fruits, de Cézanne foi vendida por US$ 59,295,000 e Arbres dans le jardin de l’asile, de Van Gogh por US$ 40,0000,0000, no mesmo leilão na galeria Christie’s em Nova York.

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anatômica, a utilização da cor “própria” do objeto, a ilusão da matéria e o desenho do detalhe. Todavia, mantém-se em um limiar entre abstração e figuração, no sentido que valoriza elementos da linguagem plástica de forma isolada, como a cor e a textura, mas suas figuras e espaço são reconhecíveis, mesmo que estilizados e não naturalistas.

O estilo de Modigliani certamente amadurece ao longo de sua trajetória, mas não há mudanças abruptas, vemos, pelo contrário, grande coerência de estilo na sua breve carreira. O pintor afirmava, ainda em 1904, que sua missão como artista era atingir a “beleza suprema” e que, apesar de exigir esforços dolorosos, estes criariam “os mais belos esforços da alma”2.

Embora suas obras adquiram um caráter mais melancólico no fim de sua vida, parece que o propósito se mantém. Ademais suas intenções como artista e expectativas a respeito da função da arte também são contrastantes com as da maioria de seus contemporâneos, que se prestam a uma negação voluntária da beleza ou à afirmação de um conceito invertido de belo, associado ao feio e ao grotesco.

A primeira fase da recepção crítica de Modigliani circunscreve-se ao ambiente francês da década de 1910-1920. Entre seus admiradores encontramos, por exemplo, Apollinaire e Gustave Coquiot que, embora tenham deixado relatos importantes para a reconstrução do seu percurso e personalidade, não propuseram uma interpretação profunda de suas obras. Frequentemente o artista era associado aos cubistas, na maioria das ocasiões em que suas obras foram expostas, enquanto vivo, era ao lado de obras cubistas. Apesar de alguns, como o artista Lipchitz, terem sido sensíveis à sua singularidade e limite frente aos procedimentos e objetivos das principais vanguardas, tal limitação não foi bem recebida por uma crítica cada vez mais entusiasmada com as experiências abstratas mais radicais. Havia aqueles que o consideravam pouco original3 ou demasiado maneirista e decorativo. De modo geral, críticos e artistas próximos à Modigliani souberam identificar a tensão entre linha e cor em suas pinturas, a progressiva primazia que a linha vai adquirindo em seus trabalhos, assim como os traços de sua personalidade que se refletem em sua poética, a sentimentalidade e fúria que perpassam toda sua obra, sua aversão à mesquinhez da burguesia e a empatia para com os seres miseráveis, tanto quando ele próprio. Contudo, nenhum deles realmente propôs uma

2 Carta para Oscar Ghiglia, em 1904.

3 Acusado de não promover nenhuma inovação formal, em comparação principalmente com o cubismo. “Des Italiens: (…) seul, Amedeo Modigliani réclame l’attention, il opère des déformations habiles assez inattendues, mais son travail, pour intéressant qu’il soit, est trop hâtif et manque parfois d’une vraie originalité.” OLIVIER, 1920, p. 10.

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explicação crítica de suas obras que ultrapassasse uma abordagem biográfica e superficial. No ambiente italiano do fim dos anos 1920 e início dos 30, Modigliani é recuperado enquanto artista italiano modernista por excelência, leitura que marca a segunda fase de sua recepção crítica. As décadas de 1920 e 1930 na Itália foram marcadas por diversas tentativas de consolidar a contribuição italiana para a grande narrativa da arte moderna. Nesse momento, surgem as grandes coleções, galerias e publicações especializadas que estimulam a circulação e discussão de arte no país, assim como as primeiras mostras oficiais de arte moderna italiana em âmbito internacional4.

Desse modo, as obras do artista foram mobilizadas para afirmação de que a Itália também produzia arte moderna de qualidade. No contexto de ascensão do regime fascista de Mussolini, vemos que há certo consenso no reconhecimento de Modigliani, e as dicotomias que antes de apresentavam como impedimento para o considerar relevante nesse momento são evidenciadas como suas maiores qualidades. Considerado um autêntico artista moderno, que representa a contribuição italiana para o modernismo, Modigliani encontra respaldo na interpretação de críticos que não estabelecem o moderno como ruptura com a tradição. A despeito de tal consideração, que tomamos aqui nessa dissertação como fundamental para a compreensão da obra de Modigliani, a sua consagração como autêntico artista moderno é levada adiante por críticos com agendas políticas distintas e, paralelamente, com concepções divergentes acerca do que é a arte moderna e quais seus melhores expoentes.

Vale a pena notar que o período do entreguerras italiano é conhecido por ser um período conservador, não só politicamente, mas também artisticamente. Configura-se no contexto artístico um retorno ao gosto neoclássico, que reverbera a retórica fascista de promoção de uma arte “nacional, clássica e monumental”. As dicotomias presentes na poética de Modigliani, tais como são reivindicadas como expressão de um Retorno à Ordem, isto é, da recuperação de premissas “clássicas” dos mestres do Renascimento italiano em detrimento de uma linguagem abstratizante ligada às vanguardas francesas. Assim, o limite de Modigliani em relação às sintaxes modernas é utilizado para afirmar sua italianità inata e, consequentemente, sua relevância enquanto artista moderno por recuperar elementos da tradição clássica italiana, 4 “Entre 1932 e 1938, a Itália organizou várias ações de propagação de sua arte e cultura no continente europeu e nas Américas. Quando consideramos a história das artes visuais nesse cenário, é impossível não pensar no papel que a secretaria da Biennale di Venezia teve na organização de uma série de mostras internacionais de arte moderna italiana que circularam em várias capitais europeias. O uso das artes visuais para a divulgação da cultura italiana também se estendeu para mostras organizadas sobre a arte do Renascimento na Itália.” MAGALHÃES, 2013, p. 4

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imbuída de valores morais superiores expressos pela harmonia, ordem e clareza de sua linguagem plástica.

Tomamos nessa dissertação as posições assumidas pela jornalista M. Sarfatti como expressão dessa utilização da poética de Modigliani para uma posição política ligada ao nacionalismo italiano naquele período. Sarfatti fora, manifestamente, líder do grupo Novecento e figura importante na concretização da política cultural empreendida por Mussolini, recupera Modigliani na chave do “Retorno à Ordem” e mobiliza suas obras para propaganda ideológica do regime através da arte. Interessada em apontar a insuficiência das experiências francesas na arte e a superioridade italiana na arte moderna, elege Modigliani como exemplo para os jovens artistas, na medida em que soube se afastar dos procedimentos franceses e retoma a tradição. Apesar de Sarfatti reconhecer a importância do Impressionismo particularmente, o fato mais importante é que as vanguardas abstratas do século XX eram vistas pela autora como demasiado intelectualistas, de modo que seus procedimentos necessariamente recairiam em significados intelectuais abstratos, originando obras estéreis e sem conexão com a natureza.

Será justamente a predominância da linha no estilo de Modigliani que é, segundo Sarfatti, o ponto central em sua argumentação que visa uma postura de refreamento das pesquisas abstratizantes mais radicais em nome de uma expressão mais realista e de retorno à tradição, no sentido da valorização do desenho, composição e estilo. São esses elementos que levam a autora aferir que Modigliani seja definido como “Botticelli moderno”5

Essa dissertação compreende e tem por um de seus objetivos demonstrar limitações de uma tal leitura. Em contraposição a ela destacamos também a apurada interpretação de Lionello Venturi. Ele que também buscou justificar a contribuição do artista para a arte moderna italiana, mas em um sentido que compreendemos nessa pesquisa como deliberadamente outro. Venturi recusara fixar a obra de Modigliani como pertencente ao Retorno à Ordem esclarecendo que o artista desejava, antes, reverter essa constante. Interessado em colocar a Itália no eixo do modernismo, que para ele é inaugurado pelo Impressionismo e continuado por Cézanne e pelas vanguardas. Venturi acredita que a Itália deveria reconhecer o “gosto” internacional francês como orientador da pintura moderna em detrimento do gosto neoclássico que prevalecia no ambiente italiano daquele momento. Esse gosto neoclássico é ainda denunciado pelo autor como fruto da condescendência com os ideais conservadores do regime fascista. Uma vez

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advogando a favor do “gosto” internacional francês, o crítico assume Cézanne como modelo ético, e promove a visão dos “primitivos” modernos como terceira via para a batalha entre “clássicos e românticos”, já superado na França, mas ainda persistente na Itália.

A defesa de Modigliani feita por Venturi perpassa o reconhecimento da importância do contato com o “gosto” francês. O crítico argumenta que o reconhecimento de Modigliani, mesmo que por razões equivocadas, já é índice de que a Itália está superando um gosto “neoclássico” ressurgido no pós-guerra, que insensibiliza críticos e artistas em nome de leis retiradas da tradição acadêmica ou de elementos estranhos à arte. Da mesma maneira que Modigliani era considerado inexpressivo para os italianos até então, passou a ser enaltecido, Venturi esperava que o mesmo acontecesse em relação às vanguardas como o Cubismo e Expressionismo, as quais eram vistas por críticos como Sarfatti e Ugo Ojetti, outro interlocutor de Venturi que se posicionava a favor de um retorno ao clássico, como experiências que não expressavam a arte moderna de maior qualidade no momento.

Este trabalho procura defender ainda que motivado pelo contato com o ambiente francês – que teria imposto ao público um gosto que tinha sua razão de ser apenas na expressão do artista e não na representação ilusionista do assunto – Modigliani soube libertar-se de exigências exteriores à arte.

A predominância da linha no estilo do artista, desse modo, não é vista pelo crítico como sinal de retorno às práticas e premissas da arte clássica. Para Venturi, apesar do diálogo com a tradição, sua linha concretizada difere-se da dos antigos mestres por sua natureza, já que não parte mais da exigência de ser contorno da matéria. A linha surge da tentativa de equilibrar o gosto antitético do artista, ao mesmo tempo construtivo e decorativo, antítese que só é possível na modernidade, com a consolidação do debate sobre autonomia da arte. Assim, o que Modigliani teria de essencialmente italiano seria sua postura e expectativas frente à arte, uma “simpatia” ao mundo à sua volta e um ideal de beleza, mas não uma italianità.

Assim, o crítico reconhece os limites de Modigliani em relação às premissas de Cézanne e à sintaxe das vanguardas, a interlocução com as diversas tradições, inclusive a clássica e acadêmica, que não se configura como Retorno à Ordem nem mera via de defesa de Cézanne ou da abstração enquanto procedimento estilístico.

Acreditamos que, ao disputar a poética de Modigliani contra uma apropriação fascista, Venturi nos oferece elementos para pensá-lo enquanto autêntico artista moderno que

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tanto dialoga com a tradição sem ser Retorno à Ordem; quanto é completamente italiano, mas não no sentido de possuir uma italianità inata; e representa a continuidade do “gosto francês” na Itália, sem caminhar rumo a uma progressiva abstração. Em sua poética, nenhuma das interlocuções que estabelece teria função de prescrição, na medida que o artista que dá a regra a seu próprio fazer, não se furtando a encontrar uma expressão coerente e adequada para seu modo de “sentir” a arte em nome de esquemas abstratos e leis exteriores à sua própria personalidade artística.

Tendo em vista, portanto, que as dicotomias presentes na poética de Modigliani suscitam leituras tão paradoxais. Acreditamos ser necessário, tendo em vista a nossa hipótese, lançarmos nosso enfoque de análise na segunda recepção, na qual suas obras assumem valor positivo e são disputadas para defender sentidos diferentes do que é o moderno. Buscamos retomar o que estava em jogo no ambiente italiano entre 1928-1935, privilegiando a interpretação de Lionello Venturi como fio condutor para sustentar nossa hipótese. A partir das questões levantadas por Venturi para sustentar que Modigliani é autêntico e moderno sem se configurar como expressão de um Retorno à Ordem ou do Neoplasticismo, o presente trabalho parte da seguinte hipótese: as dicotomias de Modigliani devem ser compreendidas enquanto elemento que tensiona a relação entre modernidade e tradição.

A interpretação de Venturi fornece recursos para pensar a relação entre modernidade e tradição na poética de Modigliani sem que seu limite à sintaxe moderna seja visto como índice de sua insuficiência e falta de originalidade ou como proposta de volta ao clássico. Dentre eles, destacamos aqui Modigliani ser considerado pelo crítico um autêntico artista moderno, pois o critério para a arte não está em nenhum esquema contingente, como a forma clássica ou a abstração moderna, mas na própria personalidade do artista. Desse modo, Venturi propõe uma explicação crítica de cada um dos elementos formais da poética de Modigliani, relacionando-as com sua personalidade.

A questão é que o artista se inspira tanto na tradição quanto no modernismo e nas vanguardas, mas o que faz de suas obras autênticas é que nenhuma dessas inspirações tem o sentido de prescrição. Não é nem exaltação da tradição enquanto modelo do que seja a melhor arte já produzida, nem do modernismo enquanto ruptura com os cânones da tradição. A personalidade de Modigliani que dá a regra de sua arte, ao passo que o artista não renuncia a encontrar uma expressão adequada e coerente com o seu modo de sentir, imprimindo sua personalidade em todos esses sentimentos transformados em arte.

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Assim, com o intuito de mostrar que a crítica à Modigliani exprime uma valorização de suas obras que passa pelo reconhecimento de sua originalidade tanto frente a tradição quanto às vanguardas, a partir da demonstração de que seus procedimentos e resultados não partem de uma adesão programática às escolas e estilos, essa dissertação está organizada da seguinte maneira:

No primeiro capítulo, analisamos as relações entre linguagem moderna e tradição presentes em sua poética, abordando seu percurso artístico e estilístico, suas fontes e diálogos, para compreender como ao longo de sua carreira elementos diversos serão reelaborados a fim de produzir um estilo singular. Apresentamos uma pequena biografia e análise do desenvolvimento do estilo de Modigliani antes de se mudar para Paris em 1911, assim como os primeiros anos na capital francesa. Além disso, comentamos sua experiência com a escultura, que acreditamos ser um ponto de inflexão em sua carreira, uma vez que é a partir dela que Modigliani alcança a síntese linear que caracteriza seu estilo consolidado. Posteriormente analisamos como Modigliani transpõe a experiência com a escultura para a pintura. No quinto subcapítulo, abordamos como a partir de uma diversidade de influências6, da mescla de linguagens figurativas modernas e da tradição, Modigliani consolida um estilo consistente e singular.

Já no segundo capítulo, buscamos contextualizar o período do entre guerras italiano, abordando no primeiro subcapítulo as principais características do movimento do Retorno à Ordem. No segundo subcapítulo, tratamos da política cultural empreendida pelo regime fascista em promoção de diversas tendências modernistas que permitiam embasar um discurso de retorno a um passado heroico, afirmando uma superioridade italiana também no campo artístico. No terceiro subcapítulo, apresentamos em linhas gerais o Novecento Italiano como expressão do Retorno à Ordem na Itália e, por último, a disputa acerca da modernidade empreendida por Venturi e Sarfatti, no sentido de que Venturi defende a importância do “gosto francês” para que se faça arte moderna, na medida em que os franceses impuseram ao público um gosto que tem sua razão de ser apenas na expressão do artista e não da representação das coisas a fim de dar a ilusão delas.

Por fim, no terceiro capítulo, apresentamos propriamente a crítica de Lionello

6 O termo influência é utilizado no sentido de produzir ressonância, portanto, de nenhuma maneira isso implica em uma recepção passiva e acrítica. Não significa também que a produção de Modigliani não esteja vinculada com outras manifestações que não serão tratadas nessa pesquisa, pela necessidade de delimitação do tema.

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Venturi às obras de Modigliani evidenciando como o crítico o afasta do movimento de Retorno à Ordem, recorrendo a uma explicação crítica dos elementos pictóricos de suas obras que demonstra como sua linha difere-se da dos antigos mestres, uma vez que é exigência de um gosto intrinsecamente antitético que busca harmonizar construção em profundidade e decoração em superfície, e não meramente contorno material dos corpos. Ademais, mostramos como essa recusa não significa que Venturi adere à concepção oposta, de que o artista expressa uma tendência neoplástica. Desse modo, advogamos a favor de que a arte de Modigliani, assim como argumenta Venturi, é considerada autêntica por não adotar como prescrição nem os esquemas da tradição nem da modernidade, encontrando soluções próprias, sobretudo porque em sua análise deve-se levar em conta critérios que provém da personalidade do artista.

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1. Percurso artístico e estilístico de Modigliani

1.1. Primeiras incursões na arte (1889-1909)

Amedeo Modigliani nasce na cidade italiana de Livorno, em 1884, filho caçula de uma família judia outrora abastada, mas que naquele momento passava por dificuldades financeiras. O dia do nascimento do artista, 12 de julho, coincidiu com a primeira apreensão dos bens da família Modigliani pelo governo. Com cada vez mais bens hipotecados e dificuldades financeiras, é Eugénie Garsin, mãe de Modigliani, que garantia o sustento e educação de seus filhos, dando aulas particulares de francês para arcar com as despesas básicas. Eugénie, ao contrário de seu marido Flaminio Modigliani, vinha de uma família judia que enriquecera por meio da especulação imobiliária e que conseguiu manter suas posses. Desse modo, imersa numa cultura judaico-italiana de tom intelectualmente elevado, foi educada em bons colégios, aprendeu inglês e francês, o que contribuiu para a educação que Modigliani recebe durante a infância e juventude. Em alguns relatos, como o de Llewelyn Loyd7, encontramos uma descrição de Modigliani como um rapaz culto, versado em literatura e filosofia. Interessava-o principalmente D’Annuzio, Nietzsche e Baudelaire, referências que o acompanham por toda vida.

O interesse de Modigliani pela pintura se iniciou desde quando era jovem. Em 1898, após contrair pleurisia e febre tifoide, solicita a sua mãe deixar o liceu Guerrazzi para frequentar somente as aulas de desenho e pintura no ateliê de Guglielmo Micheli8 (1886-1926). Tal como seu professor Fattori, Micheli impulsionava a pintura de paisagem, feita fora do ateliê, a fim de captar a espontaneidade da natureza e dos modelos a partir de traços de cores que expressavam as impressões recebidas. Todavia, encorajava seus alunos a trabalhar no ateliê para que dominassem as técnicas básicas da pintura, em algumas aulas dedicavam-se a copiar modelos vivos, em outras exploravam as relações entre cores, mas sempre com liberdade para explorar o que lhes despertava maior interesse. Micheli fazia algumas observações sobre o trabalho de seus alunos, mas não fazia correções diretas, agindo não como um severo professor, mas um 7 LOYD apud PARISOT. In: Modigliani, 2005. O comentário está na coletânea de memórias de Loyd, Tempi

Andati.

8 Na Academia de Belas-Artes de Florença, Micheli foi aluno de Giovanni Fattori (1825-1908), o representante mais famoso do grupo italiano macchiaioli.

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orientador amigável e respeitoso com todos que frequentavam seu estúdio.

O período de sua juventude é frequentemente tratado como momento de aprendizado e estudo de técnicas, estilos e procedimentos, no qual o artista pinta com um realismo fácil sem estilo pessoal, apesar de já se mostrar resistente às manifestações improvisadas e artificiais da pintura erudita. São dessa época quadros como A estrada da

Toscana (anexo 1), de 1889, e o desenho Retrato de um jovem rapaz (anexo 2), de 1900.

Percebemos que o artista domina as técnicas de proporção e perspectiva da reprodução naturalista e assimila por meio dos macchiaioli a experiência impressionista de transpor as cenas da natureza por meio de manchas de cores luminosas.

Em 1900/01, depois de ficar novamente doente, Modigliani decide fazer uma viagem de convalescença pela Itália. Em Capri, o artista escreve duas cartas para Oscar Ghiglia, amigo e colega de ateliê que havia acabado de ter uma obra aceita para a Bienal de Veneza de 19019. Na primeira delas, afirma que por quatro meses não havia produzido nada e que o material estava acumulando, mas que logo ia para Florença, para trabalhar, “e no verdadeiro sentido do termo, isto é, para dedicar-me com fé, corpo e alma à organização e desenvolvimento de todas as impressões, todos os germes de ideias que recolhi nesta paz, como num jardim místico”10. A segunda carta corrobora o maravilhamento de Modigliani diante das obras

clássicas, que o ajudavam a ter clareza de seus anseios e aspirações, afirmando que em Capri, “na beleza clássica da paisagem, existe, a meu ver, um sentimento onipresente e indefinível de sensualidade.”11

No outono de 1901, Modigliani vai para Roma e novamente expressa sua vontade de voltar a pintar e o ímpeto sugerido pela “beleza” presente na cidade.

Suas doçuras febris [de Roma], seus campos trágicos, suas formas de beleza e harmonia, todas essas coisas são minhas, através de meu pensamento e minhas obras. Mas não posso contar aqui toda a impressão que ela me causou, nem todas as verdades que pude buscar nela. Vou me dedicar a uma nova obra, e desde que a determinei e a formulei, mil outras aspirações sobressaem da vida cotidiana. (...) Tento, além disso, formular, com o máximo de lucidez possível, as verdades sobre a arte e sobre a vida, que recolhi nas esparsas belezas de Roma; e como a relação íntima delas me veio à mente, tentarei revelá-la e recompor sua construção, direi quase a arquitetura metafísica, para criar

9 Oscar Ghiglia expõe seu Autorretrato.

10“(…) ma a dire a dedicarmi con fede (testa e corpo) a organizzare e a sviluppare tutte le impressioni, tutti i germi

d’idee che ho raccolto in questa pace, come in un giardino mistico…” MODIGLIANI apud La parigi di

Modigliani, 2014, p. 100-101.

11 “Nella bellezza classica del paesaggio è un sentimento (per me) onnipresente e indefinibile di sensualità.” Op. cit. Ibidem.

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minha verdade sobre a vida, sobre a beleza e sobre a arte.12

As correspondências com Ghiglia revelam a busca de Modigliani por sua própria personalidade artística, o anseio por individualizar-se em meio a diversidade de inspirações e de novas correntes artísticas que surgiam na Itália. É um momento de excitação e lucidez, pelo menos no que diz respeito a sua vontade de ir além dos preceitos e ensinamentos obtidos em Livorno.

Logo após a estadia em Roma, o artista segue para Florença e matricula-se em 1902 na Scuola libera di nudo, onde Giovanni Fattori ensina pintura. No ano seguinte, vai para Veneza e, assim como em Florença, entra para Scuola libera di nudo, mas desta vez prefere visitar os museus que frequentar as aulas. Modigliani permanece na cidade até mudar-se para Paris, em 1906, sendo que retornava com frequência a Livorno durante esse período.

Não é difícil encontrar relatos de amigos e conhecidos do artista que testemunham sua paixão e emoção ao falar sobre a arte dos primitivos italianos, os sieneses do XVI e, especialmente, do italiano Carpaccio, apreço exemplificado pelas fotografias fixadas nas paredes de seu ateliê13. Em Nápoles, se interessa pelos afrescos antigos, vestígios arqueológicos, mas é Tino di Camaino, escultor de túmulos monumentais do século XIV, que mais o afeta. Em Florença, tem a oportunidade de estudar de perto as obras primas dos mestres florentinos da Renascença, mas também da escola flamenga, veneziana, espanhola e francesa. Ainda nesse momento, pode apreciar esculturas em pedra e em mármore, o que deixa uma forte impressão em seu trabalho posterior. Contudo, o tempo em Veneza marca especialmente sua trajetória, quando entra em contato direto com a pintura veneziana; mas também com uma arte nova e excitante, exposta na Bienal de 1903, representada majoritariamente pelos Impressionistas franceses e por Rodin. O próprio artista afirma que em Veneza recebe

12 “Le sue dolcezze febbrili, la campagna tragica, le sue forme di bellezza e di armonia, tutte queste cose che sono

mie, per il mio pensiero e per la mia opera. Ma io non posso qui dirti tutta l’impressione che io trovo in lei, né tutte

le verità che ho saputo cogliere da lei, Io attenderò a una nuova opera e dacché io l’ho precisata e formulata mille altre aspirazioni vengono fuori della vita quotidiana. Vedi la necessità del metodo e dell’applicazione. Cerco inoltre di formulare con la maggior lucidità le verità sull’arte e sulla vita che ho raccolto sparse nelle bellezze di Roma”. Op. cit. Ibidem.

13O escritor e crítico de arte francês Gustave Coquiot (1865-1926) também empreendeu uma análise da vida e das

obras de Modigliani, incluindo-o em seu segundo ensaio Des peintres Maudits, no qual comenta “No ateliê do aluno Amedeo, estão lado a lado Due dame veneziane de Carpaccio (…) e La Morte e l'Assunzione della Vergine; também de Carpaccio: Disputa di santo Stefano, de Carpaccio; San Giorgio che combatte il drago (…). Modigliani também pregou [em sua parede] Ritratto di Donna, de Lotto (da galeria Carrara); Cristo e sua madre, de Orcagna; Gesù in casa di simone, de Véronèse; de Perugino: Natività e D. Baltasar; Vergine col Bambino, da galeria Pitti,

assinado por Lippi; La Primavera, de Botticelli; finalmente, fotografias de quadros de Ticiano, Corregio e até mesmo de Andrea del Sarto.” (COQUIOT, 1924, pp. 102 e 103).

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ensinamentos preciosos, que o permitiram amadurecer suas obras, pois lá “a alma se perde e se exalta no infinito.”14

Na última carta enviada à Ghiglia enquanto ainda estava na Itália, Modigliani expressa certo desânimo e aflição a respeito do contraste entre os antigos mestres e seus “discípulos” contemporâneos, afirmando a diferença entre “as obras dos artistas que mais se comunicaram e viveram com a natureza e aqueles que hoje buscam sua inspiração no estudo e querem educar-se nas cidades das artes”15. O artista via como seu objetivo libertar-se das

prescrições em nome de seu próprio ideal criador, colocando-se com sinceridade a frente da natureza como fizeram os antigos mestres italianos, e não copiando seus modelos, alegando que “o homem que não sabe extrair de sua energia novos desejos, e quase um novo indivíduo, destinados a sempre demolir tudo o que sobrou de velho e podre para afirmar-se, não é um homem, é um burguês, um comerciante.”16. Embora aspirasse o quadro, a pintura finalizada,

compreendia que trabalhava mais “mentalmente e na contemplação da natureza.”17

Em Veneza, suas aspirações parecem um pouco mais direcionadas, frente às imprecisões de outrora, mas permanece a contradição entre seus ideais, a concepção mental de suas obras e a execução prática delas. Revelando seu descontentamento com o tratamento dado à arte pela tradição acadêmica, destaca-se a vontade declarada de atingir a beleza a qual aspirava, mas que não podia ser encontrada por meio da cópia dos estilos e procedimentos daqueles que, no passado, a haviam conquistado.

A Beleza, tem, ela também, direitos dolorosos, mas que, no entanto, criam os mais belos esforços da alma. Obtém o fogo sagrado (...) de tudo o que pode exaltar sua inteligência. Tente provocá-los, perpetuá-los, esses estimulantes fecundos, pois somente eles podem levar à inteligência a seu poder criador máximo. É por isso que devemos lutar. Podemos nos fechar no círculo de uma moral estreita? Afirme-se e supere-se sempre.18

Assim, vemos Modigliani postular a necessidade de se apresentar às exigências estéticas acima das obrigações em relação à sociedade. O artista mostrava-se atormentado e insatisfeito com sua produção, isso se manifesta no fato de que a maioria de suas obras desse período foram destruídas por ele próprio, pois sempre eram suprimidas por uma nova aspiração.

14MODIGLIANI apud PARISOT, C. Modigliani. 2006, 2005c, p. 48. 15Ibidem, p. 46.

16“L’uomo che dalla sua energia non sa continuamente sprigionare nuovi desideri e quasi nuovi individui destinati

per afermarsi sempre ad abbattere tutto quel che è di vecchio e di putrido restato, non è un uomo, è un borghese, uno speziale, quel che vuoi.” MODIGLIANI apud La parigi di Modigliani, 2014, p. 102.

17MODIGLIANI apud PARISOT, p. 46. 18MODIGLIANI apud PARISOT, p. 47.

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Passando de questões técnicas e pictóricas à problemas de filosofia, Modigliani recorrentemente se questionava a respeito de sua missão como artista e dos meios para alcançá-la.

Em 1906, se muda para Paris, expressando que desejava, sobretudo, fugir do provincianismo sufocante do ambiente italiano. A ida para a capital parisiense para ele soava como a saída para desviar-se das preocupações comerciais e dos convencionalismos na concepção e prática da pintura. Modigliani rapidamente integra-se ao ambiente artístico da cidade. Já em 1907, expõe pela primeira vez, cinco aquarelas e dois quadros, no Salon

D’Automne19. Nessa mesma exposição, ocorre uma retrospectiva de Cézanne que Modigliani

tem a oportunidade de visitar. Seu estilo, naquele momento ainda pouco singular, passa confluir com o de Cézanne. É de 1907 Retrato de Maude Abrantes (anexo 3), obra na qual o artista utiliza uma iluminação uniforme, sem sombras e com pequenas distorções, caracterizadas por Krystof20 como obra entre o simbolismo e o expressionismo, pelo caráter onírico de sua figura introspectiva e despersonalizada. Já a gradação de cores proposta para a composição do rosto, por exemplo, não volta a aparecer em suas obras. Vale ressaltar que mesmo os retratos datados do ano seguinte, a saber, de 1908, já apresentam uma sobreposição de cores construtivas vindas de Cézanne.

Desde então é possível notar como o mestre francês inspirou Modigliani: na utilização da cor para estabelecer a relação entre superfície e profundidade, de modo a conferir volume às figuras retratadas; a relação interna entre os elementos constitutivos da obra, para além do conteúdo simbólico ou da estrutura narrativa e iconográfica; a preocupação em captar os sentimentos humanos; e a própria inadequação ao estudo acadêmico.

Todas essas características em comum são também frutos de uma aproximação intelectual. Modigliani está refletindo sobre as propostas de Cézanne a respeito da função da arte e do artista. Para ele a arte acadêmica falhava em sua tentativa de imitar a natureza, pois a impressão de espaço era conquistada através da aplicação de regras rígidas e a organização do espaço pictórico se dava a partir de uma estrutura preestabelecida. Se a função da arte e do

19No catálogo da exposição, encontra-se a respectiva lista de obras do artista: as aquarelas, tête de profil; Etude,

Portrait; e os retratos, Portrait de L.M; Étude de tête. No Salon d’Automne de 1907, a atenção ainda estava voltada para os fauvistas, que no ano anterior tinha provocado reações energéticas, positiva e negativamente. Matisse exibe

Le luxe I, considerada uma obra de estilo mais calmo e harmônico em comparação com obras de anos anteriores,

como Femme au chapeau, de 1905.

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artista era a de imitar a natureza, conseguindo o efeito mais “natural” e verossímil, para Cézanne, o meio para se atingir esse objetivo era através da observação e não das regras acadêmicas. Os mestres classicistas não respeitavam as formas reais da natureza, seus quadros são antes arranjos de formas aprendidas com a antiguidade clássica. A conquista da impressão do espaço e da solidez era por eles efetivada através da aplicação de firmes regras tradicionais e não porque observassem novamente cada objeto representado.

As pesquisas plásticas de Cézanne vão no sentido de preservar as conquistas impressionistas no campo da cor sem, no entanto, sacrificar a ordem e a clareza do quadro. Isso quer dizer encontrar uma maneira de manter a sensação de profundidade conservando o brilho das cores e o arranjo ordenado. A pintura de áreas inteiras em puras cores primárias punha em perigo a ilusão da profundidade, pois assemelha-se a padrões planos, uma das principais preocupações de Cézanne. A solução para o conflito, encontrada pelo artista, foi de sacrificar a perspectiva “correta”. Uma vez que a perspectiva linear foi inventada para criar a ilusão de espaço – e Cézanne interessava-se mais por transmitir a sensação de solidez e profundidade – o artista descarta o desenho convencional em favor de uma reorganização espacial dos elementos pictóricos que recupere mais fielmente as sólidas e duradouras formas da natureza. As dificuldades encontradas por Cézanne surgem do conflito entre a necessidade de uma gradação de tom para sugerir profundidade e o desejo de preservar as cores que vemos.

Cézanne parte do Impressionismo, de sua rejeição aos cânones realistas, mas reage à fragmentação da forma sólida empreendidas pelos impressionistas, procurando recuperar o peso e a forma dos objetos, usando a cor para conferir-lhes densidade. “Na pintura de Cézanne, os objetos são decompostos e reconstruídos na trama do espaço; o quadro já não é a superfície sobre o qual se projeta a representação da realidade, e sim o plano plástico em que ela se organiza”21. Esse aspecto da obra de Cézanne vai ser assimilado não só por Modigliani, mas

pelos principais artistas do Cubismo e do Fauvismo.

Em 1908, expõe cinco quadros e um desenho no XXIV Salon des Indépendants, entre eles Nudo Dolente (anexo 4) e A Judia (anexo 5). Neste último quadro, nota-se uma paleta discreta com cores sóbrias, borradas, que transpareciam sobre as pinceladas visíveis e curtas, vindas da lição de Cézanne. Num estilo também próximo ao de Toulouse Lautrec, artista que Modigliani já havia tido contato a partir do hebdomadário satírico Le Rire, segundo Parisot22,

21ARGAN, Arte Moderna, 2006, 1988c, p. 302. 22PARISOT, 2007, p. 51.

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amplamente difundido na Itália entre 1985-1900. Uma linha longa e quase ininterrupta faz o contorno do rosto, aparecendo com destaque apenas no desenho da cabeça, do pescoço e do rosto. No Estudo para a Judia (anexo 6), feito em giz e aquarela, vemos que o artista sintetiza em poucas linhas longas os contornos, esses que na pintura quase desaparecem em meio às pinceladas de cores escuras.

Vemos que a relação entre linha e volume não é tradicional e que seu estilo nesse momento é mais pictórico que linear. Há elementos no quadro definidos pelo tratamento puramente pictórico da superfície, isto é, sem uma finalidade mais concreta no quadro a não ser sua própria plasticidade, como é o caso da faixa de cor no canto inferior direito e da espécie de pluma que enfeita o chapéu, que acaba por confundir-se com o fundo azulado da tela.

Nesse momento, o cubismo entrava em cena abalando as noções convencionais de espaço e perspectiva. Com isso, rapidamente Picasso se torna o grande herói do mundo artístico. Picasso pinta Les Demoiselles de Avignon em 1907, um ano antes da exposição de Modigliani no Salon des Indépendants, chamando atenção de críticos importantes, como o poeta Guillaume Apollinaire, que se torna grande defensor da estética cubista. Assim como Picasso, Modigliani frequentava o Beteau-Lavoir, mas ficou indiferente à revolução técnica e estética promovidas por ele juntamente com Georges Braque. Isso se manifesta no fato, por exemplo, de que alguns sinais da influência cubista só aparecem posteriormente em sua arte.

Mesmo que as obras desse período já comecem a delinear certo grau de autonomia pelo uso de elementos que enfatizam a planaridade do quadro, trata-se de uma figuração que tenta cumprir o papel de descrever e caracterizar psicologicamente o modelo. Esse é o momento de sua trajetória em que percebemos o Modigliani tateando entre os diferentes movimentos modernos, no qual o tratamento dado ao espaço e às figuras ainda é convencional. Segundo Doris Krystof23, apesar das pinceladas soltas, vagas e indefinidas, A Julia é uma pintura cujo principal objetivo reside não na criação de certa autonomia no uso das cores e dos planos, mas na transmissão de um estado de espírito. A contenção e o olhar desafiador do modelo denunciam o interesse do pintor pela psicologia dos retratados.

Ainda em 1907, Modigliani é apresentado para o médico Paul Alexandre, seu primeiro marchand, que fica entusiasmado com as obras do artista e começa a apoiá-lo financeiramente, comprando seus desenhos e pinturas e arranjando para ele encomendas. Em

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O Retrato de Paul Alexandre (anexo 7), de 1908, vemos que o artista apresenta uma perspectiva

tradicional, no qual o sujeito é apresentado numa postura distinta e confiante, que passa a impressão de que ele pertence à alta sociedade. Na parede por detrás de Paul Alexandre, vemos o que parece ser o quadro A Judia, modo de identificá-lo como colecionador de arte. As cores são mais vibrantes e menos borradas, com sombreados mais suaves e de certo modo naturalistas, que visam enfatizar a mesma perspectiva do retrato que o artista usa como referência. Krystof acredita ser um quadro absolutamente clássico, mas que a caracterização psicológica corresponde mais aos anseios modernos sobre a captação da psique, como feita por Edward Munch, exaltado no Salon d’Automne de 1908.

Em 1910, Modigliani expõe novamente no XXVI Salon des Indépendants, apresentando seis obras, entre elas, O Violoncelista (anexo 8) e O Mendigo (anexo 9), nas quais notamos a presença das técnicas de Cézanne predominando em seu estilo. Modigliani também busca dar os volumes por meio da harmonia das cores, como pode-se observar nas telas Retrato

de Ambroise Vollard (anexo 10) e Dama em Azul (anexo 11), pintados por Cézanne em 1899 e

1900 respectivamente. As obras de Modigliani de 1909/10 são caracterizadas por um estilo mais pictórico, que será atenuado a favor de um estilo cada vez mais linear e sintético. Inicialmente, sua obra procura um caminho entre o cromatismo da pintura fauve, o expressionismo e a decomposição cézanniana, rejeitando o apelo à cor pura, faz uso dos ocres e dos tons sombrios.

Mesmo que suas obras não tenham feito muito sucesso em tais exposições, apenas sua participação já indica que o artista se integrou com desenvoltura no ambiente artístico parisiense. Nesse momento, a linguagem de Modigliani permite perceber que ele está em diálogo com os principais grupos de vanguarda, ou ainda, com os que também partem das experiências de Cézanne. Ainda não tem primazia os traços que vão singularizar o estilo de Modigliani, que parece ainda não ter encontrado a sua própria maneira de resolver os problemas colocados por Cézanne. Nesse período de assimilação da linguagem das principais correntes modernas, já é notório na produção de Modigliani o gosto pela linha simples e limpa, os contrastes de cor, a pincelada gestual, assim como a caracterização psicológica do retratado e certa estilização. Elementos que estarão presentes, embora desenvolvidos à sua maneira, em seu estilo posterior.

Em 1909, Fillipo Tommaso Marinetti, poeta, pintor e crítico de arte, publica no Le

Figaro, o artigo intitulado “O futurismo”, considerado primeiro manifesto dessa corrente

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tradicionais, Marinetti reivindica uma arte que rompe com a tradição, para exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, em suma, a beleza da velocidade. Os futuristas surgiam como rivais e opositores do grupo de Picasso e do cubismo, que era considerado por eles um academicismo fracassado. Em glorificação à guerra, ao militarismo, patriotismo, como via para a higienização do mundo, os futuristas ansiavam por destruir a arte dos museus, a academia, num gesto de ruptura com o passado. Gino Severini, que introduziu os futuristas na França junto com Félix Fénéon, tenta persuadir Modigliani a unir-se ao movimento. O artista, por sua vez, recusa aceder ao movimento, certamente por não compactuar com suas aspirações de ruptura com o passado e por não lhe interessar a adesão a qualquer grupo com programas bem estabelecidos.

Antes de encontrar a forma e a técnica própria que o caracterizam, Modigliani absorve algumas tendências e recusa outras. Isso até talvez de modo até inconscientemente, pois no desenvolvimento da sua arte recupera alguma das inovações pictóricas das quais antes havia se afastado. A única influência que Modigliani aceita desde o primeiro contato é a de Cézanne e que permanecerá em seu estilo consolidado. É, no entanto, só a partir da experiência com a escultura que Modigliani encontra seu próprio caminho como artista moderno.

1.2. Experiência com a escultura (1909-1914)

As novas correntes que haveriam de nascer a partir da lição dos pós-impressionistas ainda estavam em gestação quando Modigliani começa seu trabalho como escultor em 1909. Muitos pintores mais jovens buscaram novos métodos para solucionar, ou pelo menos contornar, as dificuldades que Cézanne sentira. O entusiasmo moderno pela arte primitiva24, em especial pela escultura africana, foi fundamental para que esses artistas encontrassem meios para revigorar a arte ocidental. A expansão do controle europeu sobre as colônias na América do Sul, África e Ásia no fim do século XIX fez com que muitos artefatos fossem enviados aos países colonizadores, onde eram comercializados e exibidos. Museus étnicos foram abertos em muitas cidades europeias e vários artistas empreendiam viagens para conhecer de perto a cultura

24De maneira geral, o termo “primitivo” foi usado desde pelo menos meados do século XIX para distinguir as

sociedades europeias contemporâneas e suas culturas de outras sociedades e culturas que eram então consideradas menos civilizadas. Até meados do século XIX, o termo era também usado para descrever obras italianas e flamengas dos séculos XIV e XV. Mas na virada do século seu alcance foi ampliado para referir-se às antigas culturas egípcias, persa, indiana, javanesa, peruana e japonesa, aos produtos de sociedades vistas como “mais próximas da natureza” e ao que muitos historiadores chamaram de a arte “tribal” da África e Oceania. O rótulo “primitivismo”, por outro lado, foi usado genericamente para descrever um interesse ocidental em sociedades designadas como “primitivas” e seus artefatos, e/ou para reorganizá-las.

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desses lugares “exóticos”. Paralelamente, crescia entre os jovens artistas o desejo de romper com as convenções da arte tradicional e, em especial para a parcela dos desiludidos com a vida moderna, a arte das culturas não europeias parecia condizer a esse anseio por algo mais instintivo e sincero do que as habilidades técnicas reverenciadas na academia.

A descoberta da escultura africana, portanto, não é acidental. Corresponde a uma necessidade social e estética por algo menos artificial, traduzida em uma concentração na forma pura e na compreensão da emoção como fonte primordial da expressão. Apesar do moralismo de algumas interpretações primitivistas25, seu apelo foi fundamental para libertar os artistas das

regras da representação. As investigações plásticas de artistas como Modigliani, Picasso e Matisse, nesse momento, iam na direção de descobrir diferentes maneiras para equilibrar o uso das cores e a sensação de solidez dos objetos sem recorrer às regras da academia. Para além de uma ingênua barbárie, eles viram nas formas anônimas, estáticas, nem realistas nem convencionalmente idealizadas da arte primitiva, caminhos pelos quais direcionar as pesquisas. Interessa a essencialidade plástica das formas absolutas que não admitem qualquer relação com um espaço externo e excluem qualquer mediação naturalista entre significado e significante.

Em 1909, Modigliani instala-se na Cité Falguière, em Montparnasse, no estúdio vizinho ao do escultor Constantin Brancusi (1876-1957). É por seu intermédio que Modigliani entra em contato com a escultura negra. Impressionado pelas possibilidades que abriam à expressão por meio da construção linear, passa a dedicar-se quase exclusivamente ao trabalho como escultor até meados de 1914 quando abandona o ofício por questões de saúde e por dificuldade financeira, principalmente durante os anos da guerra.

Acreditamos que a experiência da escultura é um ponto de inflexão na carreira de Modigliani na medida em que o permite desenvolver o estilo linear que caracteriza seu estilo maduro. Isso porque é a partir desse momento que Modigliani começa a integrar-se com mais vigor no desenvolvimento das vanguardas. É a partir da escultura que Modigliani começa a preocupar-se com a redução da forma ao essencial, com as relações que podem ser estabelecidas exclusivamente pela linha, de volume, de contorno dos corpos, de fabricação da penumbra do

25“(…) os conceitos do ‘primitivo’ foram usados tanto pejorativamente quanto uma medida de valor positivo. No

final do século XIX, uma variedade de pressupostos e preconceitos culturais contribuiu para os discursos sobre o ‘primitivo’. Para a maioria do público burguês dessa época a palavra significava povos e culturas atrasados e incivilizados. (…) Ao mesmo tempo, visões mais positivas da pureza e bondade essencial da vida ‘primitiva’, em contraste com a decadência das sociedades ocidentais supercivilizadas, estavam ganhando espaço na pintura europeia. Essas visões eram influenciadas tanto por noções do ‘bom selvagem’ (…) como por tradições bem estabelecidas de pastoralismo na arte e na literatura.” Cf. HARRISON, 1998, p. 6.

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espaço. Destacando cada vez mais o contorno, Modigliani conquista rapidamente um desenho firme e seguro, definindo os diferentes planos plástico-volumétricos a partir da curvatura das linhas, elemento que marca seu estilo mais característico.

A investigação plástica de Modigliani, assim como de muitos seus contemporâneos, encaminha-se no sentido de fazer emergir a realidade absoluta e autônoma do quadro, de buscar uma ideia arquitetônica que garantisse mais solidez construtiva. Contudo, percebemos que embora sua pesquisa de muitas maneiras se cruze com a de outros artistas modernos, algumas de suas soluções singularizam seu trabalho. Principalmente em suas esculturas, mas também nas pinturas, é evidente que seu estilo é definitivamente moderno, porém, persiste algo que remete diretamente às formas “atemporais” da tradição. Seja pela repetição de esquemas, pela austeridade de suas figuras que suscitam uma atmosfera de culto e adoração, por perseguir um ideal de beleza eterno e atemporal para além da matéria. Enfim, as obras de Modigliani, de alguma forma, carregam esses elementos ligados às tradições pictóricas do passado clássico e não clássico, exatamente por parecer não ser possível localizá-las no tempo ou no espaço ganham esse caráter de universalidade.

Brancusi o inspira na redução da forma a sua essencialidade, vemos aproximações no tratamento unificado da superfície, porém, o resultado final é completamente diverso, por esse caráter de universalidade conferido por Modigliani. Enquanto Brancusi se move rumo à abstração, Modigliani não cede ao acabamento polido, quase mecânico, do artista romeno, como podemos perceber em Mademoiselle Pogany (anexo 12), 1913. Alguns de seus esboços de cariátides em aquarela, assim como seus retratos, principalmente os realizados entre 1914 e 1917, também remetem à maneira de Picasso de utilizar a cor e construir os espaços. Porém, aqui também percebemos que há um limite e, como bem apontado por Argan, Modigliani não leva às últimas consequências a decomposição cubista, assimilando sua sintaxe, mas retornando ao tradicional nu e ao retrato figurativo. Nesse momento, nos restringirmos a expor como formalmente essas questões se manifestam em seu estilo, para depois discutirmos as diferentes interpretações de pôr que Modigliani não aceita a ideia de uma pintura analítica e retorna para elementos convencionais da tradição.

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kouros26, para explorar as potencialidades de uma linha mais fechada e sintética. Em 1910, o artista começa a trabalhar nos desenhos preliminares suas esculturas que serão executadas a partir de 1911. A busca de temas da Antiguidade parece coerente com o interesse do artista por conquistar uma solidez estrutural, as figuras femininas agachadas ou em pé, suportando o peso em seus braços, permitem que Modigliani trabalhe a distribuição de massas nas diferentes poses, como em Cariátide (anexo 13), de 1913.

As esculturas de Modigliani foram, em certa medida, bem recebidas no meio artístico. Pois já em 1911 – portanto um ano depois de exibir O violoncelista no Salon

D’Automne – Modigliani exibirá sete esculturas (anexo 14 e anexo 15), aquarelas e desenhos

de cariátides no estúdio de seu amigo Amedeo Sousa Cardoso. No mesmo ano Modigliani exibe suas cariátides no XXVII Salon des Independants, mas fora da sala cubista na qual expuseram artistas como Delaunay, Gleizes, Léger, Metzinger e Fauconnier.

A principal exibição de suas esculturas, no entanto, ocorre no Salon d’Automne de 1912, no qual sete esculturas denominadas Cabeças-Grupo decorativo foram incluídas na sala Cubista, junto com obras de artistas como Picabia, Metzinger, Picabia e Kupka, ligadas à primeira fase do cubismo, ainda marcado pela geometria cézanniana e pela perspectiva dinâmica, que apresenta o objeto capturado de diferentes ângulos e em momentos sucessivos do tempo. Podemos ver a partir de uma fotografia do Salon (anexo 16) que se tratava de cabeças alongadas, com eixo nasal fino, fenda nos olhos, que remetem ao estilo das esculturas negras. Apesar de Modigliani evocar a arte africana sem qualquer referência específica, há uma assimilação dos ritmos quebrados das curvas e da maneira de interagir das formas.

O escultor Jacques Lipchitz, amigo próximo de Modigliani, em seu livro Modigliani (1954) relembra a época em que conheceu o artista, no momento que em iniciava o trabalho com a escultura na Citè Falguère e comenta sua exibição do Salon de 1912:

Eu o vejo como se fosse hoje, inclinando-se sobre aquelas cabeças, enquanto ele me explicava que havia concebido todas elas como um conjunto. Parece-me que essas cabeças foram exibidas mais tarde no mesmo ano no Salon d'Automne, organizadas de modo gradativo como tubos de um órgão, para produzir a música peculiar que ele queria.27

26 As cariátides eram usadas na arquitetura da antiguidade clássica como suporte de entablamentos ou de outros

elementos similares. Modigliani utilizou este motivo em cerca de sessenta desenhos e em vários quadros. Cf. KRYSTOF, 1998, pp. 36-37.

27 “I see him as if it were today, stooping over those heads, while he explained to me that he had conceived all of

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O comentário de Lipchitz permite parecer haver desde o início do trabalho de Modigliani como escultor o fato de ter em mente um conjunto arquitetônico, uma unidade estilística entre as esculturas que lhe conferisse um caráter de monumento. Percebemos que Modigliani buscava com essas esculturas retomar o caráter de culto e adoração que marcou a arte primitiva. E não só da Antiguidade greco-romana, mas também das tradições não ocidentais. Seu retorno ao passado se dava na medida em que associava a beleza à ideia de eternidade e atemporalidade, e a partir disso, buscou um sintetismo linear cada vez mais rigoroso e refinado para fazer emergir do quadro o que lhe é mais essencial.

Nas cariátides em aquarela de 1913 vemos cariátides mais elaboradas, com os corpos mais distorcidos, de maneira que já podemos perceber um tratamento dado à linha no qual a tensão resulta do ritmo aberto e fechado das curvas sinuosas. A curvatura da linha que define os planos e volumes, elemento que vai ser cada vez mais explorado em suas obras, até o momento em que Modigliani encontrará quase um equilíbrio entre o desenho da linha e a manutenção da intensidade dos campos de cor. Em Cariátide 5 (anexo 17), de 1914, vemos a assimilação da sintaxe cubista que surge a partir da lição estrutural de Cézanne, a sobreposição e justaposição de múltiplas visões a partir de diferentes ângulos. Isso com o propósito de apresentar os objetos não só como se mostram, mas também como são, isto é, não só no aspecto que possuem de um determinado ponto de vista, como na relação entre a sua estrutura e na estrutura do espaço.28

Em comparação com a escultura pronta, os esboços são mais angulosos e as medidas do corpo mais estreitas; a escultura já apresenta uma figura mais sólida, em que a massa está mais bem distribuída, embora também fuja das proporções clássicas, o peso é mais concentrado nas pernas, que não se afunilam tanto. Nota-se que a experiência com a escultura e o contato com a arte primitiva e Brancusi modificam o trabalho de Modigliani, reorientam sua pesquisa no sentido de que encontra novas soluções para o problema da estrutura e solidez do quadro. Lipchitz nos dá um relato interessante sobre a relação do artista com a escultura, no qual indica que a escolha de Modigliani pela técnica da talha direta era uma resposta à sua constatação do estado debilitado que a escultura de sua época se encontrava, graças a influência de Rodin e de sua modelagem em argila. Nesse sentido, Lipchitz comenta as aspirações de

arranged in stepwise fashion like tubes of an organ to produce the special music he wanted”. LIPCHITZ,

Modigliani, 1954, p. 14.

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Modigliani como escultor:

Falando de diferentes tipos de pedras – pedras duras e pedras macias – Modigliani disse que a própria pedra fazia pouca diferença; o importante era dar à pedra esculpida a sensação de dureza, e isso vem de dentro do próprio escultor: independentemente da pedra que usam. Alguns escultores fazem seu trabalho parecer macio, mas outros podem usar até mesmo as pedras mais macias e dar sua dureza de escultura. De fato, sua própria escultura mostra como ele usou essa ideia.29

As obras escultóricas de Modigliani nos mostram como Modigliani mescla a herança clássica da coluna com elementos modernos, como a torção corpórea e o sintetismo linear, fruto de uma libertação da rigidez formativa que marcava o ensino acadêmico, como percebemos em Cariátide (anexo 18). Embora, no início, o artista tenha explorado os motivos da Antiguidade como função de suportes arquitetônicos, para explorar as relações de massa e volume, gradualmente as cariátides vão se autonomizando. Isso significa que Modigliani, após explorar as soluções encontradas a partir do contato com Brancusi e a escultura negra, transporá sua experiência da escultura para o plano pictórico. Com isso as cariátides vão perdendo o caráter de “esboço” e “experimento” para se tornar meios para afirmação de um estilo singular. De fato, por volta de 1914, Modigliani abandona definitivamente o trabalho como escultor, retomando a pintura com mais vigor do que nunca. A essa altura vemos que Modigliani já apresenta algumas das características pelas quais seu estilo é reconhecido: as distorções dos corpos com cabeças e pescoços alongados, os olhos vazados, a presença da linha sintética, a evidenciação de elementos autônomos do quadro e a preocupação para além da reprodução naturalista do motivo

1.3. Retomada da pintura (1914-1919)

O retorno de Modigliani a pintura é exclusivamente voltada para o nu e o retrato. O artista irá transpor suas experiências com a escultura para o plano pictórico, contudo, cada vez mais seu estilo vai se libertando das influências e se tornando mais original, no sentido que, a estilização esquemática e a linhas sintéticas permanecem e Modigliani consegue explorar essa linha sem sacrificar a intensidade dos campos de cor. Seus quadros são planos plásticos que

29 “When we talked of different kinds of stone – hard stones and soft stones – Modigliani said that the stone itself

made very little difference; the important thing was to give the carved stone the feeling of hardness, and that came from within the sculptor himself: regardless of what stone they use, some sculptor make their work look soft, but others can use even the softest of stones and give their sculpture hardness. Indeed, his own sculpture shows how he used this idea” LIPCHITZ, 1954, p. 21.

Referências

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