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A criminalização do aborto voluntário no Brasil e a publicização do corpo feminino

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

NATALY RAFAELA ZIMMERMANN

A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO VOLUNTÁRIO NO BRASIL E A PUBLICIZAÇÃO DO CORPO FEMININO

Três Passos (RS) 2019

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NATALY RAFAELA ZIMMERMANN

A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO VOLUNTÁRIO NO BRASIL E A PUBLICIZAÇÃO DO CORPO FEMININO

Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Trabalho de Curso - TC.

UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. DEJ- Departamento de Estudos Jurídicos

Orientadora: MSc. Ester Eliana Hauser

Três Passos (RS) 2019

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À minha mãe, que foi feminista antes mesmo de conhecer a palavra. Ensinou a coragem, porque não pôde seguir de outra forma. Seu nome é força, destemida.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus avós, que reiteraram, inúmeras vezes, que nenhum problema é tão grande como demonstra ser, quando enfrentado de cabeça erguida. Foram, e são, meu motivo para continuar.

Ao meu pai, que me incentivou a questionar – tudo, o tempo todo.

À Defensoria Pública da Comarca de Três Passos, instituição que fez com que eu amasse o direito e me transformou enquanto indivíduo.

Ao corpo docente da UNIJUÍ, pelo aprendizado proporcionado.

À minha orientadora, professora Mestre Ester Eliana Hauser, que sempre me inspirou com amor que transmite na docência. Agradeço pela disposição, paciência e carinho que sempre despendeu.

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Basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que se manter vigilante durante toda a sua vida.

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RESUMO

O presente trabalho de conclusão de curso faz uma breve análise acerca do estado democrático de direito como garantidor da dignidade humana e demais direitos fundamentais e o significado de tais garantias neste modelo de sociedade. Discorre sobre o abortamento e as consequências da criminalização da prática, bem como apresenta uma breve síntese histórica sobre o tema, apontando, sobretudo, o controle sobre o corpo feminino perpetuado pela obrigação à maternidade, por meio de instrumentos como a igreja e o Estado. Descreve as principais teorias acerca do início da vida humana, apontando o peso que tais correntes incutem sobre as discussões políticas relativas ao assunto. Examina a publicização do corpo feminino por meio do controle estatal exercido sobre este, e também sobre as questões de gênero diretamente atreladas ao sistema penal. Trata a respeito dos direitos reprodutivos, planejamento familiar e a maternidade voluntária como direitos negado às mulheres, em razão de um padrão socialmente repetido e mantido com o passar das gerações, tornando o sofrimento e as privações intrínsecos à maternidade. Pondera sobre a legitimidade do estado ditar regras que subtraem a autonomia da mulher, reduzindo-a reduzindo-a um corpo que não mreduzindo-ais reduzindo-atende seus interesses pessoreduzindo-ais, mreduzindo-as à imposição estreduzindo-atreduzindo-al.

Palavras-chave: aborto, dignidade, controle, planejamento familiar, maternidade voluntária.

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ABSTRACT

The current thesis makes a brief analisys of the Democratic state as a guarantee of human dignity and other fundamental rights, also, the meaning of such guarantees in this particular social model. Descant about abortion and the consequences of its criminalization, furthermore, presentes a brief historical synthesis about the current theme, pinpointing the control over the female body, perpetuated by motherhood, via instruments and organizations such as the Church and the State. Expatiate the major theories surrounding the beginning of human life, pointing out the weight of such lines of thinking over political discussions on such matters. Examinates the publicization of the female body by way of control exerted by the State. Moreover, comments on the reprodutive rights, family planning and voluntary motherhood as rights that are denied to women as an aftereffect of a pattern that is socially accepted, repeated and sustained by generation after generation, making sure that suffering and privations are walking side by side with motherhood. It ponders on the legitimacy of the state to dictate rules that subtract the autonomy of the woman, diminishes the power of decision on personal interests, but the state imposition.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

1- ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, DIGNIDADE HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS: OS FUNDAMENTOS DO ESTADO BRASILEIRO...12

1.1 Estado Democrático de Direito e o valor da dignidade humana na Constituição Brasileira de 1988 ...12

1.2 Direitos Fundamentais à vida, à igualdade, à liberdade e à saúde e seu significado no Estado Democrático de Direito ...15

1.3 Autonomia da vontade, direitos sexuais e reprodutivos e planejamento familiar ...21

2. CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO VOLUNTÁRIO NO BRASIL, A PUBLICIZAÇÃO DO CORPO FEMININO E O VALOR DA DIGNIDADE HUMANA: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS ...23

2.1 A regulação jurídica do aborto no Brasil: aspectos históricos, conceituais e legais ...23

2.2 Sistema penal e questões de gênero: o controle do corpo da mulher no âmbito do sistema punitivo brasileiro ...35

2.3 Direitos sexuais e reprodutivos, planejamento familiar, maternidade voluntária e a criminalização do aborto voluntário no Brasil. ...37

CONCLUSÃO ...46 REFERÊNCIAS ...49 ANEXOS ...53 ANEXO A ...54 ANEXO B ...55 ANEXO C ...56 ANEXO D ...57

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho apresenta um estudo sobre o aborto, prática perpetuada por grande parte das sociedades, e incutida por ditames morais, políticos, sociais e religiosos, que impedem sua descriminalização, ceifando a vida de milhares de mulheres, que optam pela interrupção da gestação de forma clandestina, sem os cuidados inerentes a qualquer intervenção de tal natureza, considerando as complicações decorrentes do emprego de medicamentos, e/ou, outros métodos não seguros.

Notável que a criminalização da prática não tem o potencial para impedir que ela ocorra, tão somente impede que mulheres o façam em instituições adequadas, com observância das garantias fundamentais a elas alcançadas pela Constituição Federal.

Ceifa-se a liberdade do corpo feminino desde os tempos mais remotos, reportando a mulher ao privado, enquanto o homem tem acesso ao público, podendo exercer livremente sua sexualidade, sem ser vítima de ditames morais, bem como promover seus interesses em todas as instâncias sem qualquer impedimento ou restrição.

O movimento feminista permitiu que a questão do aborto fosse tratada como um problema de saúde pública, em razão dos alarmantes índices de morte materna em razão da prática, bem como pela tentativa de superação de ideias essencialmente machistas que permeiam a sociedade patriarcal.

Para realização do estudo serão analisados os índices de abortamento voluntário no Brasil, expressos por pesquisas do IBGE nos últimos dez anos, bem como a Pesquisa Nacional de Aborto, realizada em 2016. Entretanto, salienta-se que tais números não tem o condão de indicar a exata incidência da prática, dado que sua criminalização impede que as mulheres falem abertamente sobre o assunto.

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Ademais, serão efetuadas pesquisas bibliográficas sobre o tema, bem como sobre o super princípio da dignidade da pessoa humana e demais direitos fundamentais e sua positivação no Ordenamento Jurídico Brasileiro, votos políticos importantes para a flexibilização da discussão e da norma penal, também serão estudados textos sobre a maternidade voluntária e prazerosa.

Inicialmente, no primeiro capítulo, será tratado acerca da consolidação do Estado Democrático de Direito, sistema político institucional seguido pelo Brasil, prevendo que todo poder emana do povo, trazendo a ideia principal de democracia e respeito aos direitos humanos.

Serão analisados os direitos fundamentais à vida, igualdade, liberdade e saúde e o significado que possuem no Estado Democrático de Direito, e a (des)valorização destes com a questão da criminalização da interrupção da gravidez. Também será discorrido acerca da autonomia da vontade, direitos sexuais e reprodutivos e planejamento familiar, no sentido de ser retirado da mulher a possibilidade de promoção das próprias escolhas e vontades.

Posteriormente, o segundo capítulo compreenderá discussões sobre a publicização do corpo feminino tendo em conta a criminalização do aborto, com a relativização do princípio da dignidade em razão da legislação que restringe as possibilidades de interrupção da gravidez.

Ainda, serão trazidas ponderações em relação a regulação jurídica do aborto no Brasil, com apontamento de aspectos históricos, conceituais e legais, assim como será tratado sobre a questão da mulher no sistema penal, e o papel secundário que esta tomou na legislação penal, assim como nos demais aspectos da vida pública.

Por conseguinte, será abordada a perspectiva da maternidade voluntária e socialmente amparada, como um direito tolhido das mulheres, em razão da sociedade patriarcal em que se inserem.

Pode-se visualizar, por meio desse estudo, a dominação exercida sobre as mulheres pelo estado, tornando a maternidade compulsória e dolorida, legitimando o ser mulher tão somente após da efetivação do ser mãe, atrelando, portanto, uma

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condição à outra, sem promover os direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal a este indivíduo, que não poderá promover suas escolhas e projetos pessoais em razão de determinações estatais baseadas em questões puramente morais em detrimento ao feminino.

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1- ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, DIGNIDADE HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS: OS FUNDAMENTOS DO ESTADO BRASILEIRO

A constituição brasileira de 1988 afirmou ser o Brasil como um Estado Democrático de Direito e elegeu, já no seu parágrafo 1º, aqueles que são considerados os fundamentos da nação, destacando entre eles, o valor da cidadania, da soberania e da dignidade da pessoa humana. Tendo em vista tais fundamentos, o presente capítulo pretende discutir, o conceito de Estado Democrático de Direito, o valor da dignidade da pessoa humana, relacionando-os com os demais direitos fundamentais presentes no texto constitucional, em especial, aqueles que se referem ao direito à vida, à liberdade, à igualdade, à autonomia de vontade e à saúde.

1.1 Estado Democrático de Direito e o valor da dignidade humana na Constituição Brasileira de 1988

Para se chegar ao Estado, nas condições hoje avistadas, passou-se à superação do Estado Liberal e Social, tendo em conta que estes não eram mais capazes de promover o bem-estar coletivo, fazendo com que o corpo social buscasse mudanças. Considerando, portanto, que o estado se adequa e modifica-se de acordo com as necessidades do povo, surge a imperiosidade da implantação do Estado Democrático de Direito.

É na ressignificação da cidadania que o Estado Democrático de Direito ganha sentido, no âmago de um projeto civilizatório que dever ser produzido na convergência de interesses entre Estado, mercado e sociedade – e cientes de que o próprio Estado molda-se no condicionamento recíproco e na tensão produzida pelos arranjos e fricções geradas entre os fatores reais de poder. Para tanto, contudo, depende do exercício de uma cidadania ativa, tanto para temas nacionais quanto para as questões pós-nacionais, no açambarcamento das pautas emergentes com o zeitgeist contemporâneo da mundialização. (VIEIRA, 2015, p. 180.)

Érica do Amaral Véras (2016) evidencia que, após as duas grandes guerras o mundo começa a trilhar caminhos que visam coibir novas atrocidades como as cometidas durante tais anos, buscando, portanto, garantias às pessoas e limitações ao estado por meio de elementos normativos que pudessem salvaguardar a vida e a dignidade, tratando-as como subterfúgio aos demais direitos.

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Para alcançar este objetivo, a sociedade se uniu e lutou para conseguir a promulgação de leis e outros dispositivos legais que protegessem a humanidade, bem como a mudança do regime de governo, que fossem opostos aos regimes totalitários. Assim, vários países passaram a adotar o regime do estado democrático de direito, protegendo ao máximo a dignidade humana e o direito à vida.

Tem-se, neste sentido, que a ascensão da Constituição Federal de 1988 dá fundamento ao Brasil enquanto Estado Democrático de Direito, trazendo, já em seu primeiro artigo os elementos basilares da república e, consagrando, em seu bojo, diversos princípios que se mostram como direitos fundamentais positivados.

Neste sentido, para Lenio Luiz Streck e Luiz José Bolzan de Morais (2014, p. 72)

O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública no processo de construção e reconstrução de um projeto de sociedade, apropriando-se do caráter incerto da democracia para veicular uma perspectiva de futuro voltada à produção de uma nova sociedade, na qual a questão da democracia contém e implica, necessariamente, a solução do problema das condições materiais de existência.

A dignidade é um fundamento da República Federativa do Brasil, consagrada já no primeiro artigo da constituição federal, sendo uma garantia fundamental que encontra guarida no ordenamento jurídico brasileiro. Tal valor norteia a interpretação das demais normas jurídicas, sendo um princípio constitucional que oferece amparo em diversas áreas do direito.

De acordo com Sarlet (apud VÉRAS, 2016, p. 197):

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.

Historicamente, o conceito de dignidade surgiu como uma atribuição dada a determinados indivíduos, representando sua posição política ou o mérito proveniente

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do exercício de determinadas funções públicas, ou seja, decorria de realizações pessoais ou da integridade moral daqueles que a detinham.

Deste modo, de acordo com Luis Roberto Barroso (2012, p.4):

De modo geral, a dignidade era equivalente à nobreza, implicando em tratamento especial, direitos exclusivos e privilégios. Tendo essas premissas como base, não parece correto entender a ideia contemporânea de dignidade humana como um desenvolvimento histórico do conceito romano de dignitas hominis.

Na atualidade superou-se tal definição, visto que, conforme pautado por Luana Michelle da Silva Godoy (2009), a dignidade independe de crença, gênero ou origem social, devendo ser alcançada a todos os indivíduos, conforme expresso pelo artigo 1º da Declaração Universal da ONU (1948), que prevê que “todos dos seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade.”.

Ademais, conforme preceitua Barroso (2012), as barbáries provenientes do fascismo foram um importante marco para que se determinasse o conceito de dignidade da pessoa humana como é vista hoje, buscando a reconstrução de um mundo então devastado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial. Deste modo, passou-se a inserção do preceito em tratados internacionais, e nas constituições de diversos países, sendo que esta é trazida no Brasil como cláusula pétrea, um superprincípio, podendo ser vista como uma característica intrínseca dos demais princípios consagrados pela magna carta brasileira.

Assim, a dignidade da pessoa humana atinge patamar de princípio norteador das demais normas, no sentido em que pontua BARROSO (2012):

A dignidade humana se situa no ápice do sistema constitucional, representando um valor supremo, um bem absoluto, à luz do qual cada um dos outros dispositivos deve ser interpretado. Considerada como o fundamento de todos os direitos mais básicos, a cláusula da dignidade possui dimensão subjetiva e objetiva, investindo os indivíduos em certos direitos e impondo determinadas prestações positivas para o Estado.

Ademais, entende-se, que no ordenamento jurídico brasileiro não se faz necessária a atribuição de personalidade jurídica ao titular, ou seja, a proteção por tal

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princípio não ocorre a partir do nascimento com vida, mas da concepção no útero materno.

1.2 Direitos Fundamentais à vida, à igualdade, à liberdade e à saúde e seu significado no Estado Democrático de Direito

Para que haja, de fato, a gerência de um Estado Democrático de Direito, imperioso o respeito aos direitos humanos e garantias fundamentais, sendo necessário, portanto, que se observem os direitos à vida, igualdade, liberdade e à saúde, em suas diversas faces.

Em relação a criminalização do aborto, evidencia-se a importância da interpretação e aplicação de tais princípios, haja vista que a complexidade da situação encarada, bem como os moldes em que a sociedade se impõe às mulheres, especialmente aquelas com menor poder aquisitivo, impedem a visualização da conjuntura sob uma ótica livre de ditames morais.

Frisa-se, portanto, que o ordenamento jurídico brasileiro deve zelar e fazer com que se cumpra o direito a igualdade, o que se atrela diretamente a questão do abortamento voluntário, isso porque a igualdade entre os gêneros só será alcançada quando a mulher puder decidir sobre seu próprio corpo como faz o homem.

O direito da mulher à igualdade também pode ser invocado nas questões relacionadas com a interrupção voluntária da gravidez, uma vez que sua incriminação “contraria frontalmente o princípio da igualdade. Não só na forma evidente de desequilíbrio entre ricos e pobres, mas de uma maneira muito mais ínvia e invisível: entre as mulheres que concebem e os homens que participam dessa concepção”.(Sarmento apud Analise Tessaro, 2008, p. 206)

Ao longo dos séculos, primeiramente a igreja e posteriormente o estado, buscaram restringir a mulher a um ser privado, ou seja, enquanto o homem teve acesso a todas as esferas públicas, com as mais diversas liberdades que a ele sempre foram inerentes, a mulher teve sua existência limitada ao âmbito privado. Assim, para que chegassem a locais ou patamares habituais aos homens, tiveram que travar uma verdadeira batalha contra um sistema manifestamente patriarcal.

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[...] o masculino toma, invariavelmente, o lugar de dominação sobre o feminino. Exemplos disso são as figuras da virilidade masculina, da potência sexual, do heroísmo assumido pelo homem, contrastadas com a fragilidade doméstica habitualmente atribuída à mulher.

Isto posto, é dever de um estado que se denomina como democrático de direito, promover meios para que se ultrapasse esta barreira posta frente as mulheres e ao corpo feminino. Assim, a Constituição Federal de 1988, garante em seu artigo 5º, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, buscando impor a igualdade de gênero.

Ressalta-se a conceituação de gênero como sendo a construção anatômica do sexo biológico, dividindo os indivíduos entre homens e mulheres em razão de sua condição fisiológica. No entanto, Amanda Maurício Pereira Leite (2011, p.14), evidencia que gênero não pode ser tratado somente como uma característica biológica, mas como um fenômeno social, dado que “gênero se refere à construção social do sexo anatômico”, considerando a existência da pluralidade biológica, distinguindo também os humanos entre machos e fêmeas, mas apontando a ressalva de que “a maneira de ser homem e mulher é realizada pela cultura.”. Assim, os estereótipos culturalmente ligados ao feminino e masculina não decorrem da anatomia de seus corpos, mas da realidade social em que se inserem, com as expectativas depositadas sobre seus comportamentos.

Para Barroso (2014), a positivação do direito a igualdade impede a hierarquização entre indivíduos, bem como visa neutralizar as injustiças históricas, econômicas e sociais, e que, a submissão histórica das mulheres aos homens fez com que aquelas se tornassem economicamente dependentes destes, dando vasão a uma visão excludente e discriminatória da mulher, e do papel que esta tende a assumir na sociedade.

Oportuno salientar que, ainda que a lei estabeleça em seus dispositivos o tratamento igualitário entre homens e mulheres, este nunca ocorreu de fato, sendo que estas jamais conseguiram sair de seu status de mulher para alcançar uma posição social que estabeleça além dos limites de seu gênero, dificilmente sendo reconhecida por seus esforços e ganhos, sendo notada e diferenciada por sua condição natural.

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Neste sentido, para Joan W Scott (1999, p.17)

Os homens eram indivíduos porque eram capazes de transcender o sexo; as mulheres não poderiam deixar de ser mulheres e, assim, nunca poderiam alcançar o status de indivíduo. Não tendo semelhança com os homens, elas não poderiam ser consideradas iguais a eles e assim não poderiam ser cidadãs.

Com o passar dos anos superaram-se diversos paradigmas, por meio de lutas feministas, sendo que as mulheres passar a assumir maior espaço público, deixando de ser somente responsável pelo lar e criação, passando a se responsabilizar também pelo provimento, assumindo, portanto, uma dupla jornada. Passaram a estudar, votar, laborar e tomar para si outros campos que até então eram exclusivamente masculinos, mas sem nunca se desvincularem do lar e de sua inerente condição de mãe e cuidadora natural.

Assim, a falácia da igualdade não se alavanca, dado que já no tópico de criminalização do abortamento voluntário, finda-se, isso porque somente se alcançará a igualdade entre os gêneros quando for garantido à população feminina o domínio ao próprio corpo. Nesta toada, Barroso (2014) explícita: “Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca de sua manutenção ou não.”.

Veja-se, um homem pode optar por não ser pai, ainda que a pessoa em potencial nasça com vida, sem maiores constrangimentos, tendo apenas que dispor de montante para contribuir com o sustento da criança. A mãe, por outro lado, ainda que decida não gestar, será contrariada pelo estado, que colocará os direitos do feto acima dos seus.

Assim, ainda que tenha sido concedido o espaço público às mulheres, estas não podem ocupa-lo efetivamente, dado que continuam sendo as principais responsáveis pelo espaço privado, muitas vezes gerenciado de forma solitária.

Ademais, no que tange o direito à saúde, inegável a colocação do aborto como uma questão de saúde pública, nas palavras de Vanessa Cruz Santos et. al.(2013, p. 497)

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O abortamento é representado como um grave problema de saúde pública. Considerando apenas o território nacional, a estimativa é que ocorram anualmente mais de um milhão de abortamentos induzidos – uma das principais causas de morte materna no país. Esse tipo de aborto é uma temática que incita passionalidade e dissensão, além de atravessar um emaranhado de aspectos legais, sociais, culturais, morais, econômicos, jurídicos e ideológicos.

Destaca-se, neste sentido que, ainda que a carta constitucional de 1988 traga em seu bojo preceitos acerca da garantia ao direito a saúde, corroborado com o princípio da dignidade da pessoa humana, tratado acima, a criminalização da interrupção da gravidez não permite que tais direitos fundamentais sejam alcançados às mulheres. Isso porque, segundo SANTOS (2013), várias mulheres, de diferentes classes sociais, credos e idades causam aborto em si próprias, pelos mais diversos motivos, sendo que as que possuem melhores condições financeiras buscam realizar o procedimento em clínicas, tendo menos complicações, entretanto, as mais pobres utilizam métodos que apresentam grandes riscos.

Ainda para SANTOS (2013, p. 498):

As medidas para evitar uma gravidez no Brasil são insuficientes. Como resultado, várias mulheres se envolvem em situações de abortos inseguros, os quais, inúmeras vezes, resultam em complicações graves como hemorragias, infecções, perfuração do útero, esterilidade – muitas vezes levando-as a morte em consequência dessas práticas.

Notável, portanto, que as políticas públicas adotadas para a prevenção da gravidez e a promoção do planejamento familiar não são efetivas, assim como a regulamentação do aborto terapêutico e humanitário, e a proibição das demais motivações, não surte o efeito esperado, sendo que a prática segue sendo realizada, necessária a adequação da norma penal, no sentido de valorar os princípios consagrados pela constituição, garantindo à mulher tratamento digno e a liberdade de promover suas escolhas.

Para tratar sobre aborto faz-se necessário discorrer acerca do que é e quando se inicia a vida embrionária, tema abordado por diversas correntes, que, de acordo com Analise Tessaro (2008), se dividem em três principais, que abordam diferentes fatores para o marco inicial da vida humana, sendo elas: a perspectiva concepcional, biológico-evolutiva e, por fim, a relacional.

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A primeira tem como marco de formação do caráter de pessoa o momento da fecundação, quando ocorre a potencialidade de surgimento de uma vida independente, como expressa Maria Auxiliadora Minahin (apud TESSARO 2008, p. 191):

Não é a forma semelhante à de um adulto, ou o fato de já haver ocorrido ou não a instalação de órgãos e funções, que deve prevalecer na decisão de humanidade de um indivíduo, mas sim a constatação de sua capacidade de produzir-se a si mesmo.

Notório, portanto, que a adoção de tal teoria alcança cunho religioso e se fosse seguida, de fato, pelo legislador, poria severas limitações até mesmo a determinados medicamentos contraceptivos, cuja atuação se dá após a fecundação. Contudo, apesar de tal contradição, o ordenamento jurídico brasileiro faz referência a tal concepção, quando evidencia que, ainda que a personalidade jurídica comece após o nascimento com vida, a põe a salvo desde a concepção, conforme preceituado pelo artigo 2º do Código Civil: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”.

A segunda acepção trazida defende o início da vida, conforme elencado por TESSARO (2008) a partir do “aparecimento de sinais morfológicos do embrião, ou a partir de um determinado momento do processo de gestação”, assim, seria determinado um dos momentos da gravidez em que seria considerada iniciada a vida, não há pacificidade, no entanto, para a eleição deste momento.

Por fim, a teoria relacionar, que pretende vincular a atribuição do status de pessoa ao embrião ao sentimento da mulher em relação a este, ou seja, seria considerado pessoa quando a mãe assim o projetar, para TESSARO (2008, p. 196) “a perspectiva relacional coloca a mulher como figura determinante no seu processo reprodutivo, retirando-o do âmbito puramente biológico.”

Defende-se, entretanto, por diversas correntes adotadas em países desenvolvidos, a legalização do aborto voluntário até a vigésima segunda semana de gestação, respeitando, assim, a mulher – que poderá se assenhorar de seu direito de escolha e também o embrião, que só passa a ter sensibilidade após este marco.

Ainda que se tenham alcançados diversos direitos que se aproximam, na teoria, da igualdade entre os gêneros, os reflexos do machismo incidem sobre todas as áreas

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da sociedade. Assim sendo, inferem também, e principalmente, na questão do aborto legal e seguro. Tal questão também é reflexo da baixa representatividade feminina na política,

A baixa representatividade das mulheres no Parlamento cria óbices para a alteração deste paradigma de inferioridade e submissão feminina que perpassa toda a sociedade brasileira. Por não terem vozes no Congresso Nacional para representar seus interesses, poucos são os projetos de lei que contemplem à realidade das mulheres nas mais diversas áreas, como saúde, educação, trabalho e outras e que alterem esta questão de gênero que ainda reflete uma visão androcêntrica e hierarquizada do mundo. […] pequena participação das mulheres no Congresso Brasileiro se reflete na dificuldade de implantação de políticas de gênero, não apenas em relação à elaboração de leis que as contemple, mas também em mecanismos de pressão em relação ao Executivo para criar, implantar e manter tais medidas. (LURDES APARECIDA GROSSMANN, 2014, p.7)

Portanto, desde que a mulher se coloque como sujeito do espaço público, ocupando o espaço que historicamente lhe foi negado, far-se-á possível a apresentação de um novo ponto de vista, trazendo à tona discussões até então omitidas, em razão de uma sociedade dominada por homens. Daí a importância da representatividade feminina na política.

Ocorre, entretanto, que se legisla por homens e para homens, restando pouco representadas e beneficiadas as mulheres no patamar político, mantendo, por este motivo, posicionamentos como o da criminalização da interrupção voluntária da gravidez. Assim, pouco se faz no sentido de readequar as normas dispostas do artigo 124 ao 128 do Código Penal, que se mantêm intocados desde 1940 – mesmo com tantas modificações estruturais na sociedade desde então.

Desta feita, mesmo com o advento da constituição federal de 1988, que permitiu grandes avanços em relação a suposta igualdade de direitos, pouco se fala na descriminalização do aborto voluntário – e os projetos de lei submetidos restam sem aprovação, muito pela pouca representatividade feminina no poder legislativo.

Tem-se o estado como agente capaz de gerir e decidir o destino e a vida das mulheres, isso porque nega o direito a interrupção da gravidez e apresenta pouca preocupação voltada a integridade física e mental – posta a complexidade de fazer seguir uma gravidez indesejada:

A integridade física é abalada porque é o corpo da mulher que sofrerá as transformações, riscos e consequências da gestação. Aquilo que pode ser

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uma bênção quando se cuide de uma gravidez desejada, transmuda-se em tormento quando indesejada. A integridade psíquica, por sua vez, é afetada pela assunção de uma obrigação para toda a vida, exigindo renúncia, dedicação e comprometimento profundo com outro ser. Também aqui, o que seria uma bênção se decorresse de vontade própria, pode se transformar em provação quando decorra de uma imposição heterônoma. Ter um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher.(Grifou-se) (BARROSO, 2016, p. 9)

De tal sorte, vê-se tal proibição como uma afronta a diversos direitos fundamentais positivados no ordenamento jurídico brasileiro, ao passo que não atinge o objetivo inicial de coibir a interrupção da gestação, sendo, portanto, um contraponto ao status de Estado Democrático de Direito positivado na lei maior do país.

Questiona-se, ainda, a valoração excessiva do feto, pessoa em potencial, em detrimento da mulher, que já é, de fato pessoa. Assim, indo em busca da tutela dos direitos do nascituro acaba por se invisibilizar a mulher, que tem suas garantidas ignoradas, ou tidas como de menor importância, para que se permita a continuidade da gestação.

1.3 Autonomia da vontade, direitos sexuais e reprodutivos e planejamento familiar

Para BARROSO (2014), autonomia é “o fundamento do livre arbítrio dos indivíduos, que lhes permite buscar, da sua própria maneira, o ideal de viver bem e ter uma vida boa”, assim, prevê que, por meio da autonomia de vontade, as pessoas seriam livres para promover suas escolhas.

Entretanto, considerando o estabelecimento patriarcal da sociedade, com a submissão das mulheres aos homens, estas possuem maiores dificuldades para a promoção de seus interesses, por que se tornam mais vulneráveis aos meios de controle social, seja por ditames morais ou por normas estatais, como, por exemplo, a criminalização do aborto.

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Para Dworkin (apud Tessaro, 2008, p 206) “uma mulher que seja forçada pela sua comunidade a carregar um feto que ela não deseja não tem mais o controle do seu próprio corpo. Ele lhe foi retirado para objetivos que ela não compartilha. ”

Neste sentido, para FRANCOISE COLOLIN (apud Josefina Leonor Brown, 2007, p. 125)

Las mujeres llegan en forma tardía a la idea de constituirse como sujetos autónomos. Por

eso, independientemente de las muchas críticas que desde la perspectiva feminista pueda hacerse frente a la concepción liberal de libertad y sujeto, la idea de ser sujetas autónomas, dueñas de su razón y su voluntad, constituye para las mujeres una deuda a saldar.

Legisla-se sobre o corpo feminino sem a, ou com a mínima, participação de mulheres, visto que estas não foram incentivadas a se colocarem a serviço da política, restando tal tarefa para as poucas que se aventuram pelo poder legislativo cercado pela maioria masculina.

Neste sentido preceitua Grossmann (2014, p. 2)

A baixa participação política das mulheres no parlamento brasileiro impacta de maneira significativa nas políticas de gênero no Brasil. A atual democracia pressupõe a formação de consensos e alianças entre as diversas correntes políticas para que sejam criadas leis e implantadas políticas públicas. Desta forma, a pouca representação feminina acarreta uma demanda menor de projetos de lei que contemplem a perspectiva de gênero, bem como a falta de articulação para que as políticas públicas já previstas sejam efetivadas.

Isto posto, os poucos avanços em relação aos direitos reprodutivos podem ser justificados pela baixa representatividade feminina no poder legislativo, considerando, portanto, que a sociedade patriarcal tende a tomar força com um parlamento composto majoritariamente por homens.

Necessário promover a noção do planejamento familiar, trazendo à tona a responsabilidade inerente à procriação, ressaltando que não se busca tratar o aborto como uma medida que deva ser tomada, mas que, quando necessária, seja realizada da maneira menos traumática à mulher, que já é tão hostilizada pelos moldes em que a sociedade se impõe.

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2. CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO VOLUNTÁRIO NO BRASIL, A

PUBLICIZAÇÃO DO CORPO FEMININO E O VALOR DA DIGNIDADE HUMANA: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS

O presente capítulo apresentará uma análise da legislação penal brasileira quanto a criminalização da interrupção voluntária da gestação e avaliara tal opção normativa tendo em vista os princípios basilares do Estado Democrático de Direito, discutindo a legitimidade de o estado impor a obrigação da mulher levar adiante uma gravidez indesejada, em especial face aos preceitos fundamentais positivados pelo ordenamento Jurídico Brasileiro, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana. 2.1 A regulação jurídica do aborto no Brasil: aspectos históricos, conceituais e legais

Segundo SANTOS (2013) aborto refere-se a ideia de privação ao nascimento, que pode ocorrer de maneira natural ou provocada, ato por meio do qual leva-se à morte o fruto da concepção. Sob ponto de vista médico, considera-se aborto a interrupção da gestação até a 20ª ou a 22ª semana, ou então até que o feto pese 500 gramas ou meça 16,5 centímetros.

Ademais, etimologicamente, conforme traz Melina Séfora Souza Rebouças (2010), a palavra aborto advém do latim abortus, que se deriva de aboriri, sendo que ab significa distanciamento e oriri, nascer.

Em conformidade com o evidenciado por Lorena Ribeiro de Morais (2008), a prática poderá se dar de diversos modos, não sendo sempre considerado um ato punível. Subdivide-se em aborto natural, aquele que ocorre naturalmente, sem intervenção da gestante ou de terceiros para sua efetivação; acidental, que também não é punível, visto que vai além das possibilidades de ser evitado; criminoso, aquele causado por vontade da gestante ou de terceiros, que decorre de práticas que objetivam justamente esse fim, sendo este caso tipificado pelo ordenamento jurídico brasileiro; e, finalmente, o legal, que possui previsão em lei, nos casos de gravidez proveniente de estupro ou quando a manutenção da gravidez puder trazer riscos a vida da mulher, nos termos do artigo 128 do Código Penal, e, recentemente, nas situações em que a vida extrauterina for inviável – caso do feto anencefálico

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As questões morais, éticas, religiosas e até mesmo legais sempre permearam as discussões sobre o tema, que se assentou ao longo da história como um método de contracepção.

Tem-se registro de que o aborto acontecia desde a antiguidade, sendo mencionado no Código de Hamurabi, criado pela civilização babilônica no século V a. C. Neste Código, o aborto era referido como crime praticado por terceiro, e caso a prática abortiva resultasse na morte da gestante, o alvo da pena era o filho do agressor. O Código Hitita, criado no século XIV a. C., também considerava crime o aborto praticado por terceiros, sendo este punido com uma pena pecuniária, na qual o valor dependia da idade do feto. (TEODORO apud REBOUÇAS, 2010, p.11)

A Grécia utilizava o aborto como instrumento de controle demográfico, buscando manter a população em índices estáveis, e a prática era defendida por pensadores renomados como Platão e Aristóteles. Ocorria com maior frequência entre as prostitutas e, ainda que fosse legalizado, poderia ser punível nos casos em que fossem ofendidos os direitos de propriedade do pai sobre o herdeiro em potencial. (REBOUÇAS, 2010)

O que se têm é uma afirmação do poder patriarcal, permitindo a prática nos casos convenientes e punindo-a quando não fosse danosa ao modelo imposto socialmente. Contudo, à época, não se falava em contristar o direito a vida, mas o direito político que detinha o homem.

Outrossim, em outras civilizações, a prática abortiva afasta-se dos preceitos políticos, econômico e morais, tendo sido inclusive uma espécie de ritual para algumas tribos indígenas, que buscavam a interrupção da primeira gestação para que a segunda acontecesse com maior facilidade, como preceitua Rebouças (2010).

Com o advento do cristianismo passou a se condenar a prática com maior severidade, muito embora a própria bíblia cristã preveja o aborto no caso de adultério, tornando maldita a mulher que engravidou em relacionamentos extraconjugais,

E, havendo-lhe dado a beber aquela água, será que, se ela se tiver contaminado, e contra seu marido tiver transgredido, a água amaldiçoante entrará nela para amargura, e o seu ventre se inchará, e consumirá a sua coxa; e aquela mulher será por maldição no meio do seu povo.

E, se a mulher se não tiver contaminado, mas estiver limpa, então será livre, e conceberá filhos. (Números 5:27,28)

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Podem-se citar costumes de diversos povos, chegando a uma única conclusão, a visão tida do aborto é absolutamente cultural, sendo considerado imoral por certas comunidades, ao passo que pode ser prática comum a outros, divergindo geralmente no ponto em que as crenças destes povos também se divergem. Fato é que a mulher sempre foi ignorada para o estabelecimento dos ditames que colocariam limites à prática, buscando-se interesses econômicos, culto aos deuses, fortalecimento de outros filhos, a honra do marido, e nunca o interesse feminino, assim como ocorre em inúmeras outras questões.

Considerando o Brasil como um país que se desenvolveu a partir de colonização de terras indígenas, notório que a prática do aborto era realizada muito antes de passar a ser noticiada, ou regulamentada, o que só ocorre com a vinda dos portugueses e a catequização dos índios.

Evidente que abortos aconteciam tanto no Brasil, quanto em Portugal, contudo, por motivos diversos, que passam a se assemelhar quando a doutrinação cristã foi imposta aos índios.

Assim, no início da colonização, de acordo com Freyre (apud REBOUÇAS 2010), os índios buscavam fugir das missões, dados os abusos praticados pelos missionários e pela situação de miséria em que eram colocados, momento oportuno em que se deu aumento à mortalidade infantil e fora diminuída a taxa de natalidade, o que ocorre pelos abortos praticados pelas mulheres indígenas em razão de estarem desassistidas de pais e maridos que lhes provessem apoio durante a gestação.

Ainda no período colonial, segundo Del Priore (apud REBOUÇAS, 2010) destaca-se a função da mulher enquanto objeto para reprodução, não podendo estabelecer outros vínculos e desempenhar outras funções que extrapolassem a conjugal, portanto, o matrimônio era uma forma de garantir o aumento da população de forma ordenada, dada a necessidade de ocupação do território. Assim o aborto ia diretamente contra os interesses do estado, que desejava o aumento da população, auferindo, portanto, o apoio da igreja.

Assim, mesmo que, ainda naqueles tempos, ocorresse deliberadamente na clandestinidade, era alvo de duras críticas, considerado depravação moral, digno de

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reprovação religiosa e social – como continua ocorrendo, apesar do passar dos séculos.

Nestas circunstâncias e sob esta ótica advém o código penal de 1830, tratando o tema em seção que dispunha acerca do infanticídio, nos artigos 199 e 200, oferecendo pena prisão com trabalho de um a cinco anos para quem ocasionasse o aborto por qualquer meio, caso ocorresse sem o consentimento da gestante, dobrada seria a punição, ademais, o artigo subsequente previa penas aqueles que fornecessem drogas ou outros meios para a realização da prática, independente do sucesso desta, dobrando a pena quando fosse praticado por profissionais da área da saúde.(BRASIL, 1930)

Por conseguinte, com o advento do código penal republicano, de 1890 , como preceitua Bianca Paula (2017), passa a ser tipificado o auto aborto, cuja pena era atenuada quando fosse realizado para ocultar desonra própria. Tal código foi o primeiro a trazer a previsão do aborto legal nos casos em que a gestação poria em risco a vida da gestante, oferecendo punição inclusive ao médico que, por imprudência ou imperícia, causasse a morte da mulher durante o procedimento para realização do aborto necessário. Vê-se que tal dispositivo, divergindo do que ocorria até então, preconiza não somente o feto, mas passa a valorar também a vida e a honra da mulher.

Para Predebon (apud REBOUÇAS 2010) somente houveram mudanças na legislação acerca do tema com o advento do Código Penal de 1940, vigente até os dias atuais, prevendo possibilidades de auxílio estatal à prática, nos casos elencados nos artigos 124 a 128 da legislação penal. Entretanto, apesar do avanço havido, não ocorre a superação da condenação moral intrínseca ao aborto, que tem seu cerne em uma sociedade estruturada sobre crenças judaico-cristãs.

No Código Penal vigente, o legislador criminaliza a gestante que interromper a gestação, ou permitir que o façam, com pena de detenção de um a três anos, nos termos do artigo 124. Ademais, oferece pena a prática quando realizada por terceiro, priorizando os casos em que ocorre sem o consentimento da gestante. Contudo, deixa de penalizar o médico que realizar o aborto quando a manutenção da gravidez representar riscos de vida à mulher e/ou ser resultante de estupro.

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Para Luize Predebon (apud REBOUÇAS 2010), “[...] embora tenha ocorrido um avanço no código ao se considerar a mulher como cidadão possuidora de direitos, ainda há uma condenação moral ao aborto implícita neste”, o que também pode ser justificado pela influição da Igreja na fundação do código.

Ademais, REBOUÇAS (2010) na década de 70 o “[...] aborto passa a ser problematizado como um fato social, e não mais como um desvio da moral”, sendo que, a partir de então, passou a ser relacionado com as questões de renda e planejamento familiar, assim, em 90, quando a questão do planejamento familiar entrou em pauta, seja pela entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 - ou pela promulgação da a Lei nº 9.263/96, os movimentos feministas caminharam em direção a iniciar um movimento pela descriminalização do aborto.

Houveram, na época, avanços na legislação trabalhista, possibilitando o abono das faltas em decorrência de aborto, independente da causa deste, nos termos do artigo 131 da CLT.

Nos últimos anos noticiaram-se emblemáticos casos que contribuíram para a evolução da legislação em relação ao tema, primeiro, em razão do Habeas Corpus nº 84.025/RJ, no qual foi relator o Ministro Joaquim Barbosa, que se tratou de habeas corpus preventivo, objetivando a realização de aborto seletivo.

Conforme a ementa (BRASIL – Supremo Tribunal Federal, 2004) deu-se em

razão de pedido de autorização judicial para interrupção de gravidez, interposto pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em favor de uma jovem de 18 (dezoito) anos que gestava um feto manifestamente incapaz de alcançar a vida extrauterina, posto que era portador da anomalia genética denominada anencefalia¹.

De acordo com o relatório do remédio constitucional acima mencionado (BRASIL – Supremo Tribunal Federal 2004) pedido foi deferido pelo segundo grau de jurisdição, dada a interposição de apelação da decisão do juízo a quo pelo Ministério Público. Contudo, advogados interpuseram agravo regimental buscando a suspensão da reforma da decisão, ao passo que um padre impetrou habeas corpus pretendendo desmontar a decisão, cujo pedido liminar restou deferido. Dado os fatos, novo habeas corpus fora impetrado, pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero –

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Themis, buscando a cassação do acórdão anterior, para que a paciente pudesse, enfim, realizar o procedimento – o remédio não foi conhecido.1

Em seu Voto, o ministro Joaquim Barbosa (2004), delineou importantes questões acerca da possibilidade de interrupção da gravidez, interpretando que a esta nos casos em que o feto não tem potencialidade de vida extrauterina, visto que a antecipação do evento morte teria condão de evitar o sofrimento físico e psíquico da gestante, garantindo o respeito a, dentre outros preceitos fundamentais, a dignidade. Entretanto, ainda que tenha sido assegurado o direito de interromper a gestação, perdeu-se o objeto do Habeas Corpus, haja vista que, quando da decisão, já havia a gestante realizado o parto, tendo a criança sobrevivido por sete minutos.

Posteriormente, em 2013, houve a o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº54, cujas consequências, segundo Carolina Alves de Souza Lima (2014, p. 2) “[...] representam mudanças significativas no âmbito da proteção dos direitos da mulher na sociedade brasileira”.

Por meio de tal arguição restou declarada a inconstitucionalidade da interpretação que encaixava a interrupção da gestação cujo fruto fosse comprovadamente um feto anencéfalo nos casos tipificados pelos artigos do Código Penal que tratam sobre a proibição do aborto. Restou pacificado, portanto, que, nestes casos, ocorre o aborto seletivo, considerando que o feto que detém tal condição possui expectativa de vida que não supera dias, busca-se, portanto, evitar que a mulher se submeta aos nove meses de gestação para então ser submetida ao sofrimento de lidar com o falecimento da criança já nas primeiras horas de vida.

Volta-se, portanto, ao abortamento voluntário, não se tratando dos casos previstos em lei, e de sua necessária regulamentação, posto que a clandestinidade tem ceifado a vida de incontáveis mulheres.

1 Conforme preceituado por LIMA (2014, p. 9), “o anencéfalo carece de grande parte do sistema nervoso cental. No entanto, por preservar o tronco encefálico, ou parte dele, mantém as funções vitais, tais como o sistema respiratório e o cardíaco.” Contudo, a malformação torna o feto incompatível à vida extrauterina, dado que este não irá desenvolver capacidade cognitiva, de modo que, para a autora “jamais compartilhará da experiência humana.”

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Neste sentido, insta salientar que os números trazidos não são capazes de retratar a real situação, posto que a ilegalidade, os julgamentos morais socialmente proferidos, bem como a possível retaliação, faz com que diversas mulheres jamais tragam às luzes a realização da prática.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, no mundo, vinte e cinco milhões de abortos inseguros foram realizados anualmente entre 2010 e 2014, ainda, que 97% destes ocorreu em países em desenvolvimento na África, Ásia e América Latina – informações disponibilizadas pelo site da ONU – Brasil.

Segundo dados do Ministério da Saúde, expostos em site do HuffPost Brasil, em 2017 foram realizados no Brasil cerca de 1.636 (mil seiscentos e trinta e seis) abortos legais.

Neste diapasão, ainda que haja permissão para o aborto quando as gestações provêm de estupro, de acordo com estatísticas do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde, entre 2011 e 2016, 4.262 (quatro mil duzentas e sessenta e duas) adolescentes foram vítimas de estupro com posterior nascimento da criança, assim, ainda que seja um direito disponível, segue sendo negado a um significativo número de cidadãs, seja pela falta de informação, precariedade no atendimento, e até mesmo em razão de profissionais da área de saúde que se negam a realizar o procedimento. (HUFFPOST BRASIL, Aborto no Brasil: Como os números sobre abortos legais e clandestinos contribuem no debate da descriminalização, 2018.)

Não existem números oficiais sobre a prática do aborto ilegal, justamente pelo fato de figurar crime, exceto nas três possibilidades elencadas em lei, assim, existem tão somente aspirações acerca da quantidade de abortos realizados na clandestinidade.

Assim, foi registrada a ocorrência de 177.464 curetagens pós abortamento, bem como 13.046 esvaziamentos do útero por meio de aspiração manual intrauterina, totalizando 190.510 internações no ano de 2017 - destas, estima-se que ao menos dois terços sejam provenientes de abortos realizados de maneira insegura, contudo, isso não pode ser afirmado com certeza, dado que também estão inclusos os abortos

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espontâneos, contudo, pela estimativa médica a grande maioria advém, de fato, do aborto provocado.Os dados trazidos pelo site evidenciam ainda uma diminuição nas curetagens nos últimos anos, como pode ser visualizado no anexo “A”, o que, para Tânia Lago, é explicado pela diminuição da fecundidade no país. (HUFFPOST BRASIL, 2018.)

Quanto aos gastos derivados da realização de procedimentos hospitalares pós aborto, de acordo com os números disponibilizados pelo Ministério da Saúde, com a soma de curetagem e aspirações, chegou-se, em 2017, a um total de R$ 39,53 milhões. Especialistas estimam que, caso o procedimento fosse realizado de maneira segura – o que só seria possível com a descriminalização da prática, os gastos seriam reduzidos. (HUFFPOST BRASIL, Aborto no Brasil: Como os números sobre abortos legais e clandestinos contribuem no debate da descriminalização, 2018.)

De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto –PNA 2016 “[...] quase 1 em

cada 5 brasileiras, aos 40 anos já realizou, pelo menos, um abortamento. Em 2015, foram, aproximadamente, 416 mil mulheres. Como o levantamento foi apenas na área urbana, a estimativa é de 503 mil abortos”. (HUFFPOST BRASIL, Aborto no Brasil: Como os números sobre abortos legais e clandestinos contribuem no debate da descriminalização, 2018.)

Pode-se observar, por meio de tal pesquisa, que mulheres com menor escolaridade e renda tendem a realizar mais abortos, assim como o fator racial também é relevante – vê-se, ainda, que os estados do nordeste e sudeste do país apresentam maiores índices de ocorrência de abortamentos em relação aos demais estados, o que pode ser visualizado com maior clareza nos anexos “B”, “C” e “D”. (DINIZ, 2016)

Verifica-se, portanto, que a incidência da interrupção da gravidez num país com a legislação que o criminaliza não difere consubstancialmente do número de ocorrências em países com legislações mais brandas, que regulamentam a realização do aborto. (HUFFPOST BRASIL, Veja onde se faz mais aborto no Brasil, de acordo com o IBGE, 2017)

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Vê-se, com os índices apresentados, que a atual legislação regulamentadora não é efetiva em seu objetivo de impedir o abortamento. Assim, visando tratar o problema, cessando, ou ao menos diminuindo, as taxas de mortalidade a ele vinculadas, e, inclusive, o excessivo gasto público em razão de complicações no procedimento – que levam as mulheres a buscarem o Sistema Único de Saúde, imperioso que se adeque a norma às necessidades que se impõe, fazendo com que a interrupção da gravidez seja uma escolha que compita a mulher, e não ao estado, que domina seu corpo por meio da legislação.

Para permear e, inclusive, possibilitar as discussões sobre o referido tema, têm-se diversas teorias que falam acerca da teoria da vida, que deverão têm-ser levadas em consideração quando se fala na descriminalização da prática, tendo em conta que se deve respeitar o limite do razoável, bem como sopesar o momento em que o aborto deixa de ser uma possibilidade.

Tessaro (2008) destaca que a tecnologia a que se tem alcance atualmente, torna-se possível o acompanhamento total das fases de desenvolvimento, tendo-se conhecimento sobre todas as etapas de desenvolvimento do feto, de modo que é possível delimitar, com maior clareza o momento a partir do qual será considerada iniciada a vida humana.

Os novos recursos de diagnóstico pré-natal e o advento das técnicas de reprodução assistida trouxeram novo fôlego para as discussões sobre o momento em que se deve considerar existente a vida humana, inclusive no que se refere a sua proteção jurídico-penal. Isso porque, no que concerne ao diagnóstico pré-natal, atualmente é possível conhecer detalhadamente as etapas do desenvolvimento embrionário e fetal, inclusive a detecção de anomalias que comprometam sua inviabilidade extrauterina. (TESSARO, 2008, p. 190)

Contudo, ainda frente tais possibilidades, não existem respostas conclusivas da ciência acerca de um marco que expresse exatamente o início da vida humana. Da mesma forma, não se alcança um consenso entre religião, ciência e filosofia que possa estabelecer tal limite, restando apenas aspirações, expressas por meio de teorias. (TESSARO, 2008)

Segundo Tessaro (2008) são três as perspectivas principais que discutem e apresentam teses sobre o inicio da vida humana: a concepcional, biológico-evolutiva e relacional.

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Abordar-se-á, primeiramente, a perspectiva concepcional, que traz em seu bojo a existência da vida humana estritamente ligada a fecundação, assim, dando início a uma realidade genética independente, fator capaz de demonstrar, para os adeptos a tal teoria, o início da vida humana.

Segundo Tessaro (2008) a validade de tal perspectiva é atacada quando se considera que demais células do corpo humano possuem conteúdo genético individual e especializado de seu portador, não sendo atribuído a elas maior valoração em virtude de tal fator. Além disso, o zigoto não possui, por si só, condições para realizar os processos necessários para a formação de um ser humano, o que só se torna possível com a interação de demais moléculas, o que ocorre no útero materno, local que sequer foi alcançado.

Desta feita, sabe-se que o embrião pode se dividir até sua fixação na parede uterina, o que, de acordo com Tessaro (2008), também coloca em cheque tal teoria, posto que não seria admissível que uma vida humana se dividisse em outras vidas igualmente humanas.

Não se pode ignorar que boa parte dos óvulos fecundados, ainda que sejam um novo ser em potencial, estão fadados ao fracasso, posto que não alcançarão o interior do útero por motivos que extrapolam a vontade da mulher.

Outra percepção que atrai adeptos é a biológico-evolutiva, que aduz que o início da vida se dá com o desenvolvimento morfológico do embrião, ou após um momento determinado no processo de gestação. Assim, são estabelecidos critérios para o início da vida humana: a individualização, que ocorre com a nidação – quando o embrião faz suas divisões e é fixado no útero; o surgimento da crista neural, uma população de células multipotentes que dão origem a uma série de tecidos e, inclusive, aos neurônios; a mobilidade fetal; a viabilidade da vida extrauterina; o nascimento e o desenvolvimento da atividade racional na infância. (TESSARO, 2008)

Outro ponto marcante para tal teoria é o momento em que se dá início a atividade cerebral, o que ocorre na décima segunda semana de gestação, sendo que a partir de tal processo poderia o embrião tornar-se uma vida humana independente. Neste sentido, ressalta-se que o fim das atividades cerebrais incide na morte do

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indivíduo, e, para Franco (apud TESSARO, 2008, p. 194)“[...] não parece haver razão suficiente para não adotar igual posicionamento para considerar que, embora em formação, a vida humana já começou”. Ter-se-ia, portanto, com tal etapa do desenvolvimento, o início da humanidade do feto.

São postas críticas a esta teoria, no sentido que ela não estabelece que determinado ponto do desenvolvimento seja, por algum motivo, mais valioso, ainda, vai-se em encontro a oferecer ao feto valoração moral a determinada etapa escolhida de forma arbitrária, ao passo que, considerando como marco o desenvolvimento cerebral diminui-se a condição de pessoa daqueles que possuem a racionalidade deficiente.

Além disso, elucida-se sobre a teoria relacional, que vai além das citadas anteriormente, superando os aspectos morais e biológicos nelas constantes. Tal concepção zela que o início da vida humana esteja relacionado com a criação de vínculos entre a gestante e o feto enquanto mãe e filho, ou seja, quando a mãe passa a depositar expectativas afetivas no feto.

Para Kottow (apud TESSSARO, 2008,p. 196) a mulher deve também constituir

uma “potencialidade necessária para a gestação do ser humano”, sem que dependa da presença deste zigoto, e sim da “aceitação da mulher em assumir a potencialidade de ser mãe.”.

Ainda, de acordo com tal teoria:

[...] se é verdade que, para nascer, o embrião precisa da (da decisão da) mãe, então essa decisão muda a sua natureza, fazendo dele uma (futura) pessoa. A sua qualidade de ‘pessoa’ é, em suma, decidida pela mãe, ou seja, pelo sujeito que é capaz de o fazer nascer como tal. (FERRAJOLI apud TESSARO, 2008, p.16)

A hipótese apresentada também é alvo de críticas, que referem-se, principalmente, no tocante a não definir de maneira temporal a ocasião em que a gestante passará a atribuir ao feto a qualidade de pessoa. Entretanto, seus adeptos expressam que até o terceiro mês de gestação tal fato teria se dado, não pelo lapso temporal, daí o porquê de se distanciar da teoria biológico-evolutiva, mas por se tratar de tempo necessário para a tomada de decisão.

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Tal acepção busca conferir a decisão da mulher os preceitos da dignidade, sem vinculá-la a questões morais ou meramente biológicas, conferindo humanidade a este indivíduo, que poderá pensar sua situação, conferindo tempo para formar a expectativa de tornar-se mãe, sem que se negue que o abortamento é uma decisão moral, que não é tomada facilmente, mas sob uma conjuntura dolorosa à mulher. (TESSARO, 2008)

Sob a óptica legal, verifica-se pela legislação civil que se atribui personalidade jurídica ao ser humano tão somente após seu nascimento com vida, entretanto, são garantidos seus direitos desde a concepção.

Deste modo, destaca Tessaro (2008), restam protegidos os direitos do nascituro no sentido patrimonial, e também no que tange sua personalidade. Entretanto, o direito penal, apesar de tutelar o embrião, dispondo sobre a proibição da interrupção da gravidez e suas penalidades, atribuiu a ela sanções consideravelmente menores às conferidas ao homicídio, sendo notável, portanto, que, ainda que haja tutela sobre o nascituro, esta é efetivamente menor do que a oferecida aos já nascidos.

O dispositivo constitucional, por sua vez, denota a proteção ao direito a vida, sem expor maiores considerações, não há, portanto, um ditame legal que explicite quando é conferido ao embrião o status de pessoa.

Neste sentido, insta salientar que impõe-se dificuldade quanto a definição desta tutela ao fazer a subdivisão entre direito civil e penal, posto que, por óbvio devem ser garantidos os direitos do nascituro no que se refere ao nome e ao patrimônio para o casode continuidade da gravidez. Entretanto, no que tange ao direito penal, deverão também ser observadas as garantias concedidas à mulher, sendo que existem alternativas para que se exerça a tutela ao nascituro desde a sua concepção, o que pode ocorrer com a implantação de políticas públicas que conscientizem sobre o aborto – ou que ainda orientem na decisão da gestante, sem que seja necessária a intervenção da ultima ratio. (TESSARO, 2008)

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2.2 Sistema penal e questões de gênero: o controle do corpo da mulher no âmbito do sistema punitivo brasileiro

O sistema Penal não destoa do fluxo patriarcal seguido pela sociedade, estando, assim, contaminado por ideias que acabam por minimizar o papel da mulher, seja enquanto vítima ou autora da transgressão.

Para Vera Regina Pereira de Andrade (2015), o feminismo tem importante papel para a promoção da ressignificação entre os saberes feminino e masculino, empoderando o sigma feminino, considerando que o universo da criminologia, que até então estava atrelado ao androcentrismo, onde há tendência a colocar o masculino como sendo o único paradigma de representação coletiva, estando, portanto, acima dos demais.

As diferenças havidas, e socialmente acentuadas ou construídas entre os gêneros são essenciais à formação da sociedade como se encontra, diretamente ligada aos papéis tomados, ou impostos, àqueles que se identificam enquanto homens ou mulheres.

Neste sentido, para Barata (apud ANDRADE 2015, p. 02):

É a construção social do gênero, e não a diferença biológica do sexo, o ponto de partida para a análise crítica da divisão social de trabalho entre mulheres e homens na sociedade moderna, vale dizer, da atribuição aos dois gêneros de papéis diferenciados (sobre ou subordinado) nas esferas da produção, da reprodução e da política e, também, através da separação entre público e privado

Considerando que o direito tende a moldar-se as necessidades da sociedade, natural que a legislação penal, ponderando inclusive a época em que fora elaborada, tenda a colocar a mulher em papel secundário.

Coadunando ideias de Simone de Beavoir (apud BORGES et. al., p. 13), diz-se que

A história mostrou-nos que os homens sempre detiveram todos os poderes concretos; desde os primórdios tempos do patriarcado, julgaram útil manter a mulher em estado de dependência, seus códigos estabeleceram-se contra elas.

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Assim, dada a consolidação social, bem como o estabelecimento dos ditames penais, imperioso destacar a posição da mulher enquanto coadjuvante de um sistema primordialmente masculino, desenvolvido sobre uma estrutura patriarcal, sendo, portanto, de acordo com Vera Regina Pereira de Andrade (2015), duplamente violentada, isso porque o meio tomado não é eficaz para promover a proteção deste grupo, bem como pela reprodução da violência institucional intrínseca ao sistema.

A passagem da vítima mulher ao longo do controle social formal acionado pelo sistema penal implica, nesta perspectiva, vivenciar toda uma cultura de discriminação, humilhação e estereotipa. Este aspecto é fundamental, na medida em que não há ruptura entre relações familiares (pai, padrasto, marido), trabalhistas ou profissionais (chefe), relações sociais em geral (vizinhos, amigos, estranhos, processos de comunicação social) que violentam e discriminam a mulher e o sistema penal que a protegeria contra este domínio e opressão, mas sim um continuum e uma interação entre o controle social informal exercido pelos primeiros (particularmente a família) e o controle formal exercido pelo segundo. (ANDRADE. 2015, p. 04.)

Destarte, e consonância com as ideias de Marilena Chauí (apud BORGES et. al., p. 16), evidencia-se que a conversão das diferenças em uma relação hierárquica entre os gêneros, com o intuito de oprimir e dominar, é a representatividade de uma forma de violência

Ademais, também o controle sexual da mulher, perpetuado ao longo dos anos, reflete no código penal, que, para ANDRADE 2015, não protege em absoluto a liberdade da sexualidade feminina, posto que não há solidariedade para com a dor da vítima de crimes sexuais, por exemplo, levando muitas vezes a deslegitimação de seu discurso.

Nesta toada dá-se a questão do aborto, em razão de sua criminalização, primeiro, porque resta ignorado o sofrimento mental e físico incutido na prática, impondo, além de tal angústia, penalidades, criminalizando o indivíduo por promover suas próprias escolhas, baseadas em suas premissas, sejam essas culturais, morais, e, principalmente, econômicas.

Conforme enfatiza BORGES (2011), a observância do delinquir feminino sempre se voltou aos casos de aborto, infanticídio e homicídios passionais e, que quando aproximavam-se de outros crimes, o faziam em razão de seus companheiros, ou seja, a serviço de homens.

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Assim, a mulher no sistema penal, e principalmente no cárcere, mostra-se como uma perplexidade, dado que não foi historicamente o papel alcançado pelo grupo:

Tratar da mulher no sistema penitenciário apresenta um dilema, pois à mulher sempre coube cuidar da família, dos afazeres domésticos, dos filhos, e essa é a imagem associada ao imaginário social, como alguém frágil e dócil. (LIMA 2006, apud BORGES 2011, p. 69)

Vê-se, logo, a lei penal como instrumento que justifica e perpetua as diferenças entre os gêneros, sem alavancar a superação deste paradigma, submetendo o feminino a dupla penalização, considerando os entraves inerentes ao ser mulher, concomitantes as mazelas do direito penal que, além de não a proteger de maneira efetiva, articula sua condenação.

2.3 Direitos sexuais e reprodutivos, planejamento familiar, maternidade voluntária e a criminalização do aborto voluntário no Brasil.

A ampla dominação do corpo feminino ao longo da história impele uma série de impedimentos à mulher, que vê tolhidos seus direitos sexuais e reprodutivos. Ser um útero que trabalha em prol da sociedade retira do sexo feminino algo que vai muito além da capacidade de escolha: sua singularidade.

A capacidade de gerar um filho compulsa à imposição de ser mãe e assumir esse papel tão solitário na sociedade. Quando a maternidade deixa de ser uma opção, o ser mulher só é assim validado após cumprir o papel que lhe é socialmente imposto.

Dito isso, quando se vê uma mulher, automaticamente projeta-se nela uma mãe, não importando se essa não for sua vontade primordial, ou ainda se esta afirma não desejar gestar um feto e criar um filho, questiona-se acerca de suas certezas, descredibiliza-se sua decisão, nas palavras de Maria Luisa Femeniás (2009, p. 46):

Lá descripción idealizada de la madre como cuidadora natural invisibiliza, ignora o simplemente desestima la capacidade de las mujeres de decidir gestar un feto e/o criar un niño. Es decir, según ideal patriarcal de la maternidade y la asimilación histórica mujer = madre, supone la naturalización de la capacidade de decisión de las mujeres, em primer término, sobre sus próprio cuerpos. Es decir, se ignora de inicio la decisión

Referências

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