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5

CAPÍTUL

O

VARIÁVEL SEXO/GÊNERO E

ALTERNÂNCIAS

FONÉTICO--FONOLÓGICAS EM FALARES

DO RIO GRANDE DO SUL

Elisa Battisti Claudia Camila Lara INTRODUÇÃO

Estudos sociolinguísticos orientados pela Teoria da Variação (LABOV, 2008[1972]) vêm constatando que as mulheres lideram a aplicação de processos variáveis envolvendo variantes inovadoras não estigmatizadas (LABOV, 2001, 2010). Neste capítulo, retomamos os resultados de dois

Battisti, Elisa; Lara, Claudia Camila; "Variável sexo/gênero e alternâncias fonético-fonológicas em falares do Rio Grande do Sul", p. 129-150 . In: Freitag, Raquel Meister Ko.; Severo, Cristine Gorski (Org). Mulheres, Linguagem e Poder - Estudos de Gênero na Sociolinguística Brasileira. São Paulo: Blucher, 2015. ISBN: 978-85-8039-121-3,

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estudos que aparentemente contradizem essa tendência. Verificam que a liderança das mulheres pode não estar correlacionada ao prestígio das for-mas alternantes e que aos homens cabe algum protagonismo na aplicação de processos inovadores, o que se explica por padrões socioculturais locais. A contribuição do trabalho está no fato de conciliar abordagem quantitativa e qualitativa de alternâncias fonético-fonológicas, indo do tratamento estatístico da variável sexo como categoria objetiva a gênero como identidade cultural e socialmente específica, para discutir a aparente contradição. Também presta contribuição ao tratar da aplicação de processos variáveis na fala de comunidades em que o contato português-línguas de imigração ainda se verifica, o que colabora para a descrição do português brasileiro em variedades regionais matizadas pela fala bilíngue.

Os estudos retomados são de Lara (2013) e Battisti e Dornelles Filho (2015), que analisam, respectivamente, o vozeamento/desvozeamento vari-ável de /p/ e /b/ (pudim~[b]udim, bairro~[p]airro) no português de contato com o Hunsrückisch, língua de imigração alemã falada no Brasil meridio-nal; e a palatalização variável das plosivas alveolares diante de /i/ (tipo~[tS] ipo, dica~[dZ]ica) no português de contato com a fala dialetal italiana na antiga região colonial do Rio Grande do Sul. As comunidades investigadas são Glória, situada na zona rural de Estrela, município gaúcho fundado em meados do século XIX por imigrantes alemães; e Flores da Cunha, municí-pio gaúcho fundado no final desse século por imigrantes italianos.

No estudo de Lara (2013), as mulheres lideram a aplicação do vozea-mento/desvozemanto variável, mas a variante é estigmatizada. No estudo de Battisti e Dornelles Filho (2015), as mulheres aplicam mais o processo do que os homens, mas a análise mostra que as taxas de aplicação por mulheres têm se mantido estáveis nos últimos vinte anos, enquanto as dos homens sofreram grande incremento. As questões que daí surgem, e para as quais buscamos resposta, são: que elementos da sócio-história e cultura locais explicam os padrões de aplicação? De que quadro de práticas sociais de gênero localmente construído as variantes fazem parte?

Iniciamos o capítulo abordando os estudos de Lara (2013) e Battisti e Dornelles Filho (2015) em seu objeto, comunidade investigada e proce-dimentos metodológicos. Em seguida, passamos à apresentação e discus-são dos resultados dos estudos, dando maior atenção ao verificado para sexo/gênero nas etapas quantitativa e qualitativa das análises. Nossas considerações finais fecham o capítulo.

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5.1 OS ESTUDOS

O vozeamento/desvozeamento variável de /p/ e /b/ no português de contato com o Hunsrückisch, investigado por Lara (2013), caracteriza-se foneticamente por afetar o intervalo de tempo entre a soltura da plosiva e o início da vibração das cordas vocais. No vozeamento, a vibração das pregas vocais precede a soltura da consoante plosiva. No desvozeamento, a vibração das pregas vocais é simultânea, ou quase simultânea, à soltura da consoante plosiva.

De acordo com Altenhofen e Margotti (2011, p. 299), a realização variável das consoantes plosivas “explica-se pela inexistência, na língua materna (Hunsrückisch), da oposição desvozeada-vozeada, a qual leva à ausência de distinção em português”. Para os autores, o traço mais carac-terístico do português de contato com o adstrato alemão é o desvozeamen-to das obstruintes sonoras. É um dos mais estigmatizados socialmente e mais perceptível por um membro de outra comunidade de fala.

A palatalização, investigada por Battisti e Dornelles Filho (2015), afe-ta as consoantes /t/ e /d/ em seu ponto de articulação: são produzidas não com a obstrução à corrente de ar pelo toque da ponta da língua nos alvé-olos, mas com o toque da língua um pouquinho mais para trás, em dire-ção ao palato duro. Nessa posidire-ção, a língua antecipa o gesto articulatório necessário à produção de /i/, vogal seguinte que desencadeia o processo. O modo de articulação de /t/ e /d/ também é alterado: ocorre a africatização das consoantes, isto é, há um pequeno escape de ar ao final da articulação.

Conforme Noll (2008), a palatalização das plosivas alveolares é uma das mais marcantes características do português brasileiro no contraste com o português europeu. Ocorre na maior parte do Brasil, é um fenô-meno urbano que possui, hoje, o status de padrão suprarregional. No Rio Grande do Sul, a proporção de palatalização em Porto Alegre é superior a 90% (KAMIANECKY, 2002), mas inferior a 50% em comunidades do interior do estado (BATTISTI, 2014).

A comunidade de fala abrangida por Lara (2013), Glória, situa-se na zona rural de Estrela, município do Vale do Rio Taquari. Caracteriza-se pelas atividades econômicas do setor primário (produção de leite, suíno, frango, milho, soja e mandioca). Glória possui cerca de 400 habitantes e Estrela, 32.535 (IBGE, 2014). O município de Flores da Cunha, comuni-dade de fala do estudo de Battisti e Dornelles Filho (2015), localiza-se no Nordeste do Rio Grande do Sul, na serra gaúcha. Seus principais setores econômicos são comércio, indústria (móveis, vinho), serviços e agricultura (uva, hortifrutigranjeiros). Sua população está em torno de 28.974

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habi-tantes (IBGE, 2014).

Figura 1: Localização dos municípios de Estrela e Flores da Cunha no Rio Grande do Sul.

Tanto na comunidade de Glória quanto no município de Flores da Cunha, asatividades econômicas ligadas ao plantio e produção de alimen-tos são realizadas por núcleos familiares, em pequenas propriedades ru-rais. Sujeitos da geração mais nova não estão presentes nessas atividades. Deslocam-se à zona urbana para trabalhar no comércio, indústria e setor de serviços.

5.1.1 Procedimentos de Lara (2013)

Os dados de fala receberam tratamento sociolinguístico quantitativo, ou análise de regra variável (LABOV, 2008[1972]). Houve estudo quali-tativo (MILROY, 1987) da rede social dos informantes e de suas práticas sociais em subgrupos da comunidade (comunidades de prática). Utilizou--se do método de análise de regra variável para a verificação dos fatores condicionadores (linguísticos e extralinguísticos) a que a variação das plo-sivas bilabiais /p, b/ encontra-se sujeita. Usou-se o pacote de programas VARBRUL, versão GoldVarb X, para verificar a tendência de o desvoze-amento/vozeamento progredir, regredir ou manter-se estável na comuni-dade. A análise de rede social buscou examinar o papel do conhecimento mútuo e da intensidade do relacionamento dos entrevistados (MILROY, 1987, 2002) em grupos de sujeitos reunidos em torno de empreendimentos comuns (ECKERT, 2000) na difusão e manutenção das variantes.

Os dados para a análise de regra variável foram levantados de vinte e quatro entrevistas sociolinguísticas com habitantes de Glória. Nas

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entre-vistas, abordaram-se temas do cotidiano como a participação do indivíduo na comunidade, o convívio diário no local, a ocupação com as atividades profissionais e de lazer, as festividades relevantes para os moradores. A pesquisadora não utilizou a fala dialetal alemã, somente o português du-rante a entrevista. Mesmo assim, houve alguma alternância de código para o dialeto alemão na fala dos informantes, que conheciam a pesquisadora e sabiam de seu pertencimento à comunidade de Glória. Os informantes distribuíram-se em três faixas etárias (15 – 30 anos, 31 – 46 anos, 47 anos ou mais), três níveis de escolaridade (ensino fundamental, ensino médio e ensino superior) e dois sexos/gêneros (feminino e masculino). Posterior-mente, elaborou-se a matriz de relacionamento em rede social dos infor-mantes, que revelou comunidades de prática locais.

A análise quantitativa teve como variável dependente o vozeamento de /p/ e desvozeamento de /b/. As variáveis independentes, linguísticas e sociais, foram: contexto precedente, contexto seguinte, sonoridade da con-soante-alvo, tonicidade da sílaba, número de sílabas, sexo/gênero, idade, escolaridade, bilinguismo.

Na realização das entrevistas sociolinguísticas, obtiveram-se também informações para a análise de rede social, conforme uma matriz de rela-cionamentos em rede. A partir dos estudos de Blake e Josey (2003), usou--se uma escala de três graus de relacionamento para elaborar essa matriz de rede conforme a cultura local: um para o convívio diário, dois para a frequência de encontro semanal (regular) ou mensal (eventual) e o valor mínimo de conectividade, três, para pouca frequência, ou seja, encontro anual (raro) ou para os informantes sem vínculo atual.

Na última etapa, analisou-se a participação dos sujeitos nas ativida-des de comunidaativida-des de prática reveladas na análise de rede social: Clube de Mães, Coral, Teatro e Igreja. Durante o ano de 2012, a pesquisadora observou as práticas sociais nessas comunidades, buscando averiguar o engajamento dos sujeitos e o valor das variantes nesses grupos.

5.1.2 Procedimentos de Battisti e Dornelles Filho (2015)

A etapa quantitativa do estudo consistiu numa análise em tempo real, estudo de tendência (LABOV, 1994): um tempo depois e na mesma co-munidade de fala, analisam-se dados de fala do mesmo número de entre-vistas, de informantes de mesmo perfil, mas não exatamente os mesmos informantes. Para tanto, utilizaram-se doze entrevistas sociolinguísticas de informantes de Flores da Cunha do VARSUL (UFRGS, UFSC, UFPR, PUCRS) realizadas em 1990 e doze do BDSer (UCS) realizadas de 2008 a 2009 no mesmo município. Como a estratificação etária é diferente nesses

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dois bancos de dados – os informantes do VARSUL distribuem-se em dois grupos etários, os do BDSer, em quatro – consultou-se a ficha social dos informantes e, com base na idade declarada no momento das entrevistas, conseguiu-se chegar a três grupos etários (25 a 39 anos, 40 a 59 anos, 60 ou mais anos) compatíveis nos dois bancos. Além disso, distribuíram-se os informantes por sexo/gênero (masculino e feminino).

Os dados levantados das vinte e quatro entrevistas foram codifica-dos conforme as seguintes variáveis: (a) Dependente: palatalização de /t d/ desencadeada por vogal anterior alta subjacente /i/ (tia~[tS]ia, dia~[dZ] ia)1; (b) Independentes – sociais: idade (25-39, 40-59, 60 ou mais anos) e sexo/gênero (feminino, masculino); independentes – linguísticas: contexto fonológico precedente, contexto fonológico seguinte, status da vogal alta, qualidade da consoante-alvo, posição da sílaba na palavra, tonicidade. Os dados codificados foram então submetidos ao pacote de programas VAR-BRUL, versão Goldvarb X, para análise de regra variável (LABOV, 2008 [1972]), com que se buscou verificar se, no intervalo de vinte anos, a pa-latalização teria progredido na comunidade, se a tendência à progressão da regra ainda se mantém, como também as variáveis condicionadoras do processo.

A etapa qualitativa do estudo, na linha de Eckert (2000), envolveu análise de conteúdo das entrevistas sociolinguísticas e de matérias de jornal local, com que se verificou que as práticas sociais afirmadas pelos infor-mantes e aquelas que mereceram cobertura jornalística pertencem sobretu-do às categorias Família, Trabalho, Religião, Estusobretu-do, Lazer. Houve obser-vação de práticas sociais em Flores da Cunha de 2008 a 2013, tanto na ida à comunidade para a realização das entrevistas, quanto em visitas a festas e celebrações locais – Corpus Christi, Fenavindima, Festa Colonial da Uva.

1 Diferentemente de Battisti e Rosa (2012), Battisti e Dornelles Filho (2015) incluíram na análise apenas dados com /e/ após /t,d/ em sílaba átona em que houve a efetiva elevação da vogal. A elevação de /e/ em sílaba átona, regra que alimenta a palatalização no português brasileiro, é pouco expressiva em Flores da Cunha. Além disso, de acordo com Battisti e Rosa (2012, p. 20), metade das vogais [i] derivadas de /e/ não desencadeia a palatalização: nos dados do VARSUL, a elevação foi de 25% e a palatalização de /t d/ por [i] elevado de /e/ foi de 11%. Nos dados do BDSer, a elevação foi de 32% e a palatalização de /t d/ por [i] elevado de /e/ foi de 15%.

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5.2 RESULTADOS

5.2.1 Lara (2013)

Na análise quantitativa de 14189 contextos de vozeamento/desvoze-amento das plosivas bilabiais, obteve-se a proporção total de aplicação de apenas 1,6%. A tendência geral de aplicação da regra, expressa pelo input 0,003, é muito baixa. Isso sugere que a realização analisada seja residual, venha a desaparecer da fala em português brasileiro (doravante PB) num futuro relativamente próximo.

Mesmo sendo baixa a aplicação, o processo apresenta alguma sistema-ticidade. A análise revelou que as variáveis sonoridade da consoante-alvo, escolaridade, contexto precedente, bilinguismo, sexo/gênero e tonicidade da sílaba têm papel no vozeamento/desvozeamento das plosivas. Do ponto de vista social, o sexo/gênero feminino, falantes com mais de 47 anos, com nível fundamental e médio de escolaridade e bilíngues ativos condicionam a aplicação da regra. Do ponto de vista linguístico, a consoante-alvo /b/, o tepe precedente, a sílaba tônica condicionam o processo.

O papel do sexo/gênero feminino na aplicação do vozeamento/desvo-zeamento das plosivas fica um pouco mais claro no cruzamento de grupos de fatores, como o das variáveis sexo/gênero e idade. O resultado desse cruzamento apresenta-se na Figura 2:

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O cruzamento mostra que, nos grupos etários mais jovens, o sexo/gê-nero masculino apresenta uma proporção de aplicação da regra levemente maior do que a do sexo/gênero feminino. É no grupo etário mais velho que esse comportamento se inverte: a proporção de aplicação do sexo/gênero feminino é bastante maior do que a do sexo/gênero masculino. Talvez o fato de os homens mais velhos (+ de 47 anos) terem tido a oportunidade de seguir seus estudos em centros urbanos quando jovens, e as mulheres não, justifique esse comportamento. Por isso, realizou-se o cruzamento de sexo/ gênero e escolaridade. Os resultados estão na Figura 3:

Figura 3: Cruzamento de sexo/gênero e escolaridade.

Apenas no nível fundamental de escolaridade há diferenças sensíveis entre os sexos/gêneros na aplicação da regra, em que se destaca o sexo/ gênero feminino. Nos outros níveis, o contraste entre os sexos/gêneros é quase inexistente. Isso sustenta a ideia de que, se o sexo/gênero feminino e não o masculino, como se esperava, promove a regra, tal papel se relacione com menores índices de escolaridade. Mais elucidativo é o cruzamento das variáveis idade e escolaridade, cujos resultados estão na Figura 4:

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Figura 4: Cruzamento de idade e escolaridade.

No grupo etário mais jovem, a diferença entre os níveis de escolari-dade é irrelevante. À medida que a iescolari-dade aumenta, o nível fundamental de escolaridade passa a ter papel na aplicação da regra. Reforça-se a ideia de que, quanto maior a escolaridade, o contato com o PB e a realização de práticas sociais em PB, menor é a incidência da realização do processo variável. A escolarização hoje no Brasil é mais efetiva do que foi há 30 ou 40 anos, quando menos pessoas cursavam ensino universitário e os níveis de escolarização nas comunidades rurais eram muito baixos.

Os resultados da análise de regra variável e os cruzamentosauxiliaram a compreender tanto a baixa aplicação da regra de vozeamento/desvozea-mento das plosivas bilabiais quanto as variáveis a que se correlaciona essa característica residual do contato PB- Hunsrückisch no português falado em Glória. A análise de rede social, com consideração às comunidades de prática em que as redes se consolidam, auxiliou a esclarecer, em um nível mais próximo ao dos indivíduos, o que a análise de regra variável consta-tou.

A análise de rede social, de acordo com Milroy (1987), indica o quan-to uma pessoa influencia ou é influenciada por seus contaquan-tos nas comuni-dades de que faz parte.

A matriz de relacionamento em rede dos informantes de Glória re-presenta uma rede de alta densidade e multiplexa: todos os informantes se conhecem, sabem uns dos outros e se localizam dentro da comunidade. Ou, ainda, já participaram de atividades em comum, mas no momento não interagem mais. A maioria dos indivíduos conecta-se múltiplas vezes, por participarem de mais de uma comunidade de prática ou serem familiares

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íntimos. Um exemplo disso são os informantes A.S. e C.S., que participam das comunidades de prática coral e igreja e são casados; ou os informantes G.S e A.C., que são vizinhos e participam do grupo de teatro.

Verificou-se, durante as entrevistas sociolinguísticas e nas interações nas comunidades de prática, que os informantes, ao interagirem, praticam o bilinguismo de forma alternada: ora falam PB, ora Hunsrückisch. Por exemplo, isso ocorreu em uma situação em que um membro, feminino, com mais de 47 anos, participante do coral chegou para o ensaio e cumpri-mentou os demais falando Hunsrückisch. Observou-se que muitos respon-deram o cumprimento no dialeto, mas os mais jovens cumprimentaram em PB e, imediatamente, o membro que acabara de chegar os cumprimentou em PB.

As práticas bilíngues realizadas pelos membros do coral ocorrem nos ensaios, nas reuniões, em ocasiões informais, mas restringem-se à inte-ração de indivíduos bilíngues ativos e passivos. Nas ocasiões em que se apresentam, na missa ou em bailes, os coralistas manifestam-se em PB. O Hunsrückisch aparece apenas nos cantos. Isso denota que o veículo de comunicação hoje é o PB. O falar Hunsrückisch tem valor, é um elemento da memória local, que se faz presente em festividades coletivas, porém não é mais prática social diária, com que se constituem as identidades na comunidade, em grupos de que os habitantes de Glória fazem parte, como o coral. Os informantes não parecem ter vergonha ou menosprezar aber-tamente o falar dialetal alemão. Ele apenas vem perdendo força porque os indivíduos não fazem mais uso dele nas interações realizadas em seu coti-diano, na vida em sociedade. É o que se percebe até mesmo nas atividades realizadas pelo coral. Delas participam bilíngues ativos e passivos, mas o PB predomina na maior parte das interações.

No que se refere especificamente ao efeito do sexo/gênero feminino no vozeamento/desvozeamento das plosivas bilabiais, a observação de práticas sociais em subcomunidades de Glória foi reveladora dos papéis desempe-nhados pelas mulheres e sua relação com o processo investigado. Ser mu-lher em Glória é comportar-se como gente grande (adulta) desde a infância. As mulheres são orientadas para o trabalho, ajudam em casa ou na escola. As mais novas (15 a 30 anos) aprendem com suas mães e avós (mais de 47 anos) a trabalhar, cuidar da casa e dos filhos e a participar das atividades da comunidade. Aquelas que se deslocam para as cidades (Estrela, Fazenda Vilanova, Bom Retiro do Sul, Teutônia, Lajeado e outras) para trabalhar durante o dia no comércio, escritórios, bancos, supermercados e nas in-dústrias geralmente estudam no turno da noite. Cursam o ensino médio ou graduação. Desenvolvem atividades não-locais, ou seja, deslocam-se para outros lugares em função de atividades profissionais. Esse é o maior grupo

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atualmente. Nessa faixa etária, se encontram também algumas mulheres trabalhando em casa e na comunidade em atividades agrícolas como o plantio de milho, soja e outros produtos; no trato de vacas leiteiras, suínos e aves (frango de corte). É o que fazem as informantes T.L., de 26 anos e D.A., 17 anos, que se dedicam, por opção, à agricultura. Sobre o desloca-mento diário à zona urbana e estudo à noite, veja-se, para ilustração, um trecho de entrevista sociolinguística:

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...trabalho de dia numa instituição financeira, volto pra casa, tomo meu banho, vô pra escola, quando volto, às vezes, tem trabalho pra fazê [...], há oito anos fazendo a faculdade. [...] eu tenho colegas inclusive que foram meus colegas de aula que hoje tão seguindo a atividade junto com os pais, né, muita área de terra, uns com leite, uns com suínos, aves, conheço bastante gente. [...] eu quando che-go em casa [...] tô na rua, né, tô mexendo no pátio, alguma coisa a gente sempre faz. (G.S., fem., 28 anos)

As mulheres da faixa etária intermediária (31 a 46 anos) trabalham fora, isto é, nos centros urbanos, ou nas propriedades rurais familiares, em casa. Nesse grupo, observa-se uma mudança em relação às mulheres do grupo mais velho (mais de 47 anos): passaram a acompanhar os homens nos negócios, por exemplo. As informantes M.K, 45 anos e A.S., 39 anos, começaram a fazer faxina na cidade (como diaristas), a trabalhar em fá-bricas, além de participar ativamente na administração das propriedades rurais juntamente com os maridos. A respeito de atividades diárias dessa faixa etária, veja-se outro trecho de entrevista sociolinguística:

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Meu dia a dia é levantá cedo, botá o café na mesa, se arrumá e vô pro serviço, eu trabalho o dia inteiro fora, volto de tardezinha, né. [...] a gente sai assim quando tem alguma coisa, a gente participa da comunidade e assim quando tem algum evento (festas da comu-nidade) a gente sempre, sempre ajuda, né, não tem um evento que a gente fica de fora, a gente sempre trabalha ou participa da diretoria (da comunidade). [...] eu assumi a sê candidata a presidente do coral, né, eu escolhi então doze mulheres, né, a diretoria é formada só por mulheres. (A.S., fem., 42 anos)

No grupo etário mais velho (mais de 47 anos), estão mulheres ainda na ativa e mulheres já aposentadas. A rotina das mulheres trabalhadoras nesse grupo etário não é muito diferente da rotina no grupo intermediário. Veja-se ilustração no seguinte trecho de entrevista:

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Eu levanto cedo, ajudo a minha filha que fica cuidando da proprie-dade [...] levanto às cinco horas, fazemo todo o trabalho: tirá leite, tratá (os animais) [...] depois vô pra cidade trabalhá. Vai fazê agora em maio oito anos que eu tô nessa rotina, trabalhando no sindicato dos trabalhadores rurais. (D.L., fem., 53 anos)

Já as atividades das mulheres aposentadas nesse grupo etário são dis-tintas, estão na base dos índices significativos de vozeamento/desvozeamen-to das plosivas bilabiais por elas promovidos. Desobrigadas do trabalho profissional diário, encontram tempo para um maior envolvimento com a comunidade, o que as põe na condução de práticas ligadas à sócio-história e tradições locais e em que traços do contato do português com a fala dia-letal alemã emergem, se não mesmo o uso do próprio Hunsrückisch. As informantes I.B., 66 anos e I.L., 60 anos, são exemplos de líderes da comu-nidade. São aposentadas como professora e agricultora, respectivamente. Elas organizam grupos de atividades comunitárias que são, por sua vez, a forma de lazer local. Por exemplo, coordenam o coral (encontros sema-nais), jogo de bolão (esporadicamente), ginástica (uma vez por semana), teatro (apresentação de natal), grupo de 3ª idade (mensal), apostolado da oração (contato mensal), vôlei (semanal), clube de mães (reunião mensal), da escola e igreja (contínuo). Veja-se trecho da entrevista de uma delas:

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O meu envolvimento com a comunidade foi intenso e ainda é bas-tante intenso. [...] depois que eu me aposentei aqui como diretora (da escola), encaminhei a aposentadoria depois de dez anos de di-reção [...] eu moro com meu pai e continuo com uma vida bastante ativa aqui na comunidade, né, sô secretária da sociedade Santa Ce-cília que é a sociedade de cantores, envolve mais ou menos trinta membros, trinta cantores, trinta e cinco, né, [...] eu sou secretária do clube de mães que exige bastante também, a gente se envolve bastante, também sou vice-tesoureira da sociedade de água potável da comunidade [...] além assim, né, de atividades sociais, né, [...] nessa parte cultural sempre tem alguma coisa pra gente se envolvê [...] participo do grupo vida saudável (grupo de ginástica), do qual sou vice-coordenadora. (I.B., fem., 66 anos)

Entendemos que a presença de marcas de contato na fala de I.B. e do grupo de mulheres que ela representa seja efeito do papel social por elas desempenhado. São líderes culturais, atuam como zeladoras de tradi-ções, guardiães da memória coletiva relacionada ao processo de imigração alemã ao Brasil e sua fixação nos territórios do Sul. A considerar seu grau

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de instrução, elevado para o grupo etário, e o fato de ter sido professora, ministrante de aulas de geografia, se poderia esperar que, mesmo bilíngue, minimizasse as marcas do contato com a fala dialetal no português. I.L. é, dentre as mulheres, a que apresenta a maior proporção de vozeamento/des-vozeamento variável. Também é aquela que, nas práticas do canto coral, por exemplo, pode cumprimentar os outros integrantes em Hunsrückisch, mesmo que respondam em português.

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O clube de mães, o que que nóis fizemo, né, por exemplo, ajudemo a comunidade, cada fim do ano a tiretoria intrega e compra algu-mas coisas pra comunidade, ela vê o que que falta, ou pra icreja e participa também da parte litúrgica da missa, assim, as leitura, né. Porque tem cada domingo (missa), é o clube de mães, a tiretoria escolhe o clube de mães ou a turma da catequese ou a comunidade ou a apostolado [...] isso que participemo, assim. [...] a gente ensaia toda semana (no coral), o ano inteiro, toda semana, [...] nóis en-saiemo cantos pra paile, festa e fúnebres que é o objetivo do nosso coral, né, então, a gente tem compromisso e canta no natal, enterro dos associados e casamento se eles querem, é natal, kerp, páscoa. [...] eu não sei se já perdi um (baile) nóis sempre trapalhemo (na organização do baile), né. (I.L., fem., 60 anos)

Em termos linguísticos, pode-se pensar que o português com traços do falar dialetal seja, em alguma medida, uma prática estilística, uma ma-nifestação de identidade local que legitima o desempenho do papel de líder nas comunidades de prática. Se confirmada, num futuro relativamente pró-ximo, a tendência desenhada pelos grupos etários mais jovens, de desapa-recimento do traço de contato investigado, talvez o desempenho do papel de líder cultural em Glória prescinda desse e de outros traços, a depender de transformações na própria comunidade, principalmente econômicas e educacionais.

Portanto, o papel condicionador do sexo/gênero feminino verifi-cado na análise quantitativa do vozeamento/desvozeamento das plosivas bilabiais no português falado em Glória não vai contra a máxima variacio-nista de que as mulheres liderariam processos de variação e mudança lin-guística adotando as variantes prestigiadas. O fato de um traço estigmati-zado do contato do português com a fala dialetal alemã emergir na fala de mulheres deve ser compreendido localmente como manifestação cultural, como prática social feminina relacionada às demais práticas de mulheres de idade mais avançada e aposentadas, que legitimam e atribuem valor às alternantes, hoje já residuais nessa comunidade.

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5.2.2 Battisti e Dornelles Filho (2015)

A análise quantitativa de 7944 dados de fala de Flores da Cunha, 4710 levantados de entrevistas do VARSUL (1990) e 3234 de entrevistas do BDSer (2008-2009), mostrou que a tendência a palatalizar aumentou na comunidade nos últimos vinte anos. É o que indicam os valores de input (numa escala e 0 a 1) para os dados do VARSUL, de 0,37 e para os dados do BDSer, de 0,53. A proporção total de aplicação da regra em cada amostra conforma-se à tendência expressa pelos valores de Input: foi de 41,7% nos dados do VARSUL e de 51,7% nos dados do BDSer, como se vê na Figura 5.

Figura 5: Proporção total de aplicação da regra nos dados do VARSUL e do BDSer.

Chama atenção, na ordem de seleção dos fatores apontados como mais significativos pelo programa de análise estatística, uma mudança no posicionamento da variável sexo/gênero: foi a primeira colocada na análise da amostra do VARSUL, passou a segunda colocada na análise da amostra, como se vê no Quadro 1.

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Quadro 1: Variáveis selecionadas na análise quantitativa das amostras do BDSer e do VARSUL.

VARSUL (1990) BDSer (2008-2009)

Sexo/gênero

Contexto fonológico seguinte Qualidade da consoante-alvo

Idade

Idade Sexo/gênero

Qualidade da consoante-alvo Contexto fonológico seguinte

Entre os grupos de fatores selecionados estão variáveis linguísticas e sociais, mostrando o relevo das restrições gramaticais no condicionamento da palatalização. Nossa discussão, pela temática deste trabalho, retomará apenas os resultados das variáveis sociais.

O controle da variável idade nas duas amostras confirma que a palata-lização de /t/ e /d/ é mudança em progresso em Flores da Cunha: os pesos relativos dos grupos etários mais jovens são maiores do que os pesos dos grupos mais velhos. Chama atenção o fato de o grupo etário mais jovem ter despontado na amostra mais recente, do BDSer.

Figura 6: Resultados em pesos relativos para a variável Idade nas amostras do VARSUL e do BDSer.

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Diferentemente dos outros grupos etários, os jovens de Flores da Cunha têm hoje mais mobilidade territorial: deslocam-se a centros urba-nos maiores para estudar, trabalhar e, eventualmente, em seus momentos de lazer, e retornam a Flores da Cunha, onde seguem residindo, mesmo que não seja na zona rural (na ‘colônia’, no vocabulário local). Nisso, au-mentam as oportunidades de interação com pares de outras comunidades, tornando sua fala suscetível a inovações como a palatalização. Veja-se um trecho de entrevista sociolinguística de informante jovem do BDSer:

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A gurizada daqui não quer mais trabalhar na colônia. [...] Vão pra Caxias estudar. Todos fazem faculdade, a grande maioria. Aí, então, ninguém mais quer trabalhar na colônia como acontecia an-tigamente, as famílias eram numerosas, as pessoas ficavam na colô-nia e não estudavam, né. [...] Eu acho que mais pessoas continuam morando aqui e vão e voltam, do que se mudam. São poucos que se mudam. (Inf. FC-211, 25-29 anos, fem., ZR)

Em relação à variável sexo/gênero, os pesos relativos obtidos na análise das duas amostras mostram que o fator feminino tem o mesmo papel, condiciona a palatalização em Flores da Cunha. No entanto, os efeitos da oposição feminino-masculino desacentuaram-se nos últimos vinte anos, como mostra a Figura 7.

Figura 7: Resultados em pesos relativos para a variável Sexo/Gênero nas amostras do VARSUL e do BDSer.

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Diferenças nas práticas sociais femininas relacionadas principalmente à educação, lazer e atividades profissionais podem explicar o caráter fa-vorecedor: as ocupações femininas (professoras, secretárias, atendentes) exigem mais uso da linguagem do que nos trabalhos domésticos. As prá-ticas sociais das mulheres podem ser menos localizadas que a dos homens no âmbito do estudo, compras, amizades, o que, como afirmado sobre os jovens, as coloca em contato com integrantes de outras comunidades de fala. Efeito dessas interações pode ser o incremento de inovações lin-guísticas como a palatalização. Mas e o que dizer dos homens? Não só o aumento do peso relativo, como o incremento nas proporções de aplicação são significativos: houve aumento de 17% para 40% de palatalização pelo fator masculino da amostra do VARSUL para a do BDSer, e diminuição de 65% para 59% de palatalização pelo fator feminino. Por que a proporção da aplicação da regra do sexo/gênero feminino diminuiu e a do masculino aumentou? Que mudanças na comunidade justificariam alterações nas ten-dências de sexo/gênero?

Battisti e Dornelles Filho (2015) exploram pressupostos labovianos numa análise estatística complementar, para buscar resposta a essas ques-tões. A mudança nos índices se justificaria não apenas por mudanças só-cio-históricas e culturais na comunidade de fala, mas principalmente pelo percurso natural do processo de aquisição da linguagem.

De acordo com Labov (1994, p.83) e o pressuposto da mudança ge-racional (generational change, em inglês), nosso sistema fonológico está definido na juventude e se estabiliza na vida adulta. Mudanças linguísticas resultam de mudanças na comunidade. Já pelo pressuposto da assimetria na transmissão linguística (asymmetry of language transmission, em inglês) de Labov (2010, p.198), homens da geração mais velha (geração 1) não se envolvem na mudança, homens entre 30 e 50 anos (geração 2) são os primeiros a terem mães afetadas pelos processos e mostram um incremento rápido nos valores de aplicação equivalentes aos de suas mães (entre 50 e 70 anos de idade). Assim, homens estarão cerca de uma geração atrás de suas mães até o fim do processo, quando a diferença de sexo/gênero dimi-nui. É o que pode explicar a aproximação nos índices dos fatores feminino e masculino no intervalo de vinte anos.

Os autores consultaram as fichas sociais dos vinte e quatro informantes que forneceram dados para a análise (quantitativa) em tempo real, buscan-do a idade declarada pelo informante no momento da entrevista. Seguinbuscan-do o pressuposto da mudança geracional, tomou-se a idade de quinze anos como aquela em que o sistema fonológico se estabilizaria e calculou-se o ano em que cada informante tinha quinze anos. O cruzamento dessa infor-mação com as proporções individuais de palatalização e o sexo/gênero dos

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informantes pode ser visto na Figura 8.

Figura 8: Cruzamento da idade de estabilização do sistema fonológico, proporção individual de palatalização e sexo/gênero dos informantes.

No gráfico da figura 8, a linha de regressão cinza mostra que a aplica-ção da regra pelo fator feminino é mais alta do que a aplicaaplica-ção pelo fator masculino, mas se mantém praticamente estabilizada em quase cem anos. E, há cem anos, já havia palatalização na fala de mulheres quando o pro-cesso era inexistente na fala dos homens. É o que mostra a linha de regres-são preta, além do rápido aumento da palatalização pelo fator masculino nos últimos anos. Se houve progressão da regra por sexo/gênero, ela ocor-reu na fala masculina, como parte do padrão previsto pelo pressuposto da assimetria na transmissão linguística.

Além da assimetria, vale registrar as mudanças havidas na comunida-de que se pocomunida-dem associar a esse padrão comunida-de sexo/gênero. As atividacomunida-des pro-fissionais dos homens diversificaram-se nos últimos anos, principalmente com a revitalização do setor industrial no ramo moveleiro e o incremento da indústria da uva e do vinho, na produção de sucos e vinhos. São ati-vidades que oportunizam aos homens a realização de práticas comerciais no Brasil e exterior e o contato com integrantes de outras comunidades de fala. A adoção de um padrão suprarregional com palatalização pode ser prática linguística com contornos estilísticos, motivada pelas demandas profissionais.

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No que diz respeito à comunidade de fala em si, vale registrar que Flores da Cunha, como as demais localidades da antiga região colonial italiana do Rio Grande do Sul (RCI-RS), abre-se a inovações, inclusive às linguísticas (palatalização), mas valoriza aspectos da cultura local, de base étnica italiana. Há hibridismo cultural na RCI-RS: práticas tradicionais e inovadoras coexistem. A mudança linguística (entre outras mudanças) progride, mas moderadamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os estudos retomados e discutidos neste trabalho referem-se à aplica-ção de processos variáveis no português falado em comunidades do sul do Brasil onde houve e ainda há contato com línguas de imigração. Interpre-tar os efeitos de sexo/gênero implica compreendê-los na interação dessa variável com outras variáveis sociais e também com referência a elementos sócio-históricos e culturais das comunidades de fala investigadas.

No estudo do vozeamento/desvozeamento variável das plosivas bila-biais no português falado em Glória, o fato de o sexo/gênero feminino e o grupo etário mais idoso tenderem a promover um processo que gera formas estigmatizadas e já em desaparecimento relaciona-se a práticas so-ciais locais que envolvem bilinguismo português-dialeto alemão e resgatam tradições dos imigrantes, como as do canto coral, clube de mães, festas religiosas, apostolado da oração e atividades comunitárias. Essas mulhe-res atuam como gestoras nativas do patrimônio cultural da comunidade, o que legitima e valoriza as formas estigmatizadas. Por isso, não se pode afirmar que os resultados de Glória para o fator feminino contradigam a máxima laboviana de que as mulheres são líderes da variação e mudança pela adoção de formas prestigiadas. Além de o processo tender ao desa-parecimento, as formas vozeadas/desvozeadas adquirem algum valor nas comunidades de prática locais em razão dos papéis desempenhados pelas mulheres idosas de Glória, as promotoras do processo, nesses grupos.

Em Flores da Cunha, a constatação de que o comportamento que de fato mudou foi o de homens na aplicação do processo de palatalização de /t/ e /d/ é melhor compreendido em relação aos padrões culturais locais. Na comunidade, reproduzem-se padrões tradicionais (relacionados à his-tória da imigração italiana) em diferentes campos – gastronomia, religião, família, ocupações, lazer –, mas com algumas inovações. Os jovens, que tendem a palatalizar e fazem o processo progredir na comunidade, estu-dam e relacionam-se com pares em comunidades vizinhas, mas retornam a Flores da Cunha e seguem vivendo lá, indicando uma orientação positiva à comunidade. O mesmo se pode dizer de homens e mulheres. As mulheres

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palatalizam mais do que os homens, mas o comportamento desses últimos vem fazendo um percurso que anuncia a futura aproximação nos índices dos fatores masculino e feminino. É o que revelou a análise estatística mais refinada, guiada por pressupostos labovianos, esclarecendo os efeitos de sexo/gênero como implicados pelo processo de aquisição e relacionados a mudanças na comunidade.

Os estudos revisados vão além do tratamento quantitativo de dados de variação, lançando mão de procedimentos metodológicos qualitativos na consideração a práticas sociais e elementos da sócio-história local para compreender os efeitos de sexo/gênero nos processos investigados. A inves-tigação de atitudes linguísticas dos membros das comunidades de fala para com o português e as línguas de imigração poderia esclarecer os valores atribuídos a diferentes traços do contato e a própria prática bilíngue. Essa etapa não realizada é a perspectiva de nossos estudos futuros, que trarão também mais esclarecimentos sobre os efeitos de sexo/gênero na variação linguística.

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