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Contingência e Infinito

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Academic year: 2021

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CARLOS ALBERTO RIBEIRO DE MOURA Departamento de Filosofia

Universidade de São Paulo Caixa Postal 8105 SÃO PAULO, SP calberto@usp.br

Resumo: O objetivo deste artigo é examinar o papel do infinito matemático na constituição da doutrina leibniziana da contingência. Procura-se mostrar em que sentido o infinito matemático é essencial para a elaboração de uma noção de contingência que decorra da própria natureza geral da verdade.

Palavras-chave: contingência; infinito; verdade; demonstração.

Abstract: The purpose of this paper is to discuss the role of mathematical infinity in the constitution of Leibniz`s doctrine of contingency. We try to show the sense in which mathematical infinity is essential for the elaboration of a notion of contingency that derives from the very general nature of the truth.

Key-words: contingency; infinity; truth; demonstration.

I

Dos três constituintes da noção leibniziana de liberdade – a inteligência, a espontaneidade e a contingência1 – foi quase sempre sobre este último que recaiu a suspeita dos intérpretes. Afinal, se a “substância livre” é o único

1LEIBNIZ, Essais de Théodicée, III, par. 288; 1969, p. 290: “...a liberdade, tal como a

exigem nas escolas teológicas, consiste na inteligência, que envolve um conhecimento distinto do objeto da deliberação; na espontaneidade, com a qual nós nos determinamos; e na contingência, quer dizer, na exclusão da necessidade lógica ou metafísica. A inteligência é como a alma da liberdade, e o resto é como seu corpo e sua base”.

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exemplo, entre os seres criados, de algo que por uma espécie de “milagre privado” não tem o seu comportamento previsível a partir de nenhuma “lei subalterna da natureza”2, se o agente humano é capaz de atos voluntários e pode determinar-se a agir após uma deliberação apoiada no entendimento, compreende-se mal como este privilégio do espírito frente às outras substâncias seja compatível com a doutrina da noção individual completa. Era esta compatibilidade, justamente, que Arnauld obstinava-se em não entender – no que ele era, feitas as contas, desculpável. Afinal, a “noção completa” só pode suscitar a imagem de um mundo habitado por uma necessidade “mais do que fatal”. Como falar em liberdade, em espontaneidade e em escolha, se já estava inscrito em minha noção individual que as paixões iriam sobrepor-se ao meu entendimento, que eu iria pecar e certamente ficar mal falado? Da mesma maneira, com que direito lamentar o fatum mahumetanum e apresenta-lo como uma fatalidade absurda e insuportável quando se reconhece, singelamente, que “tudo é produzido por um destino fixo” e que “é tão infalível o que ocorrerá, antes que ocorra, como é infalível o que ocorreu, depois de ocorrido”3? Agora, recomendar que na ação nós sigamos a nossa razão já que, se o futuro é determinado, não sabemos como ele o é nem conhecemos o que está previsto e resolvido, pode significar simplesmente o reconhecimento de que a liberdade não passa de uma ficção oriunda da ignorância e que a última palavra, nessa questão, já fora dada por Espinosa.

Mas, a bem da verdade, o que vale essa objeção? A impressão de fatalismo e o mal-estar de Arnauld só ganham sentido sob o horizonte da “liberdade cartesiana”. É apenas quando se admite, antecipadamente, a existência de uma região da experiência onde a indeterminação seria de direito, que a compatibilidade entre noção completa e liberdade torna-se não só enigmática como trivialmente impossível. Sendo assim, o que não se consegue entender, no fundo, é como pode haver, ao mesmo tempo, liberdade e determinação, e desde então tenta-se harmonizar, absurdamente, a liberdade de

2LEIBNIZ, “Verdades necessárias e verdades contingentes”; 1998, p. 344. 3LEIBNIZ, “Do destino”; 1990, p. 13.

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indiferença com a universalização máxima do princípio de razão. É agora que a doutrina da noção completa torna-se escandalosa: quando se imagina conciliar a determinação integral da substância com uma suposta indeterminação originária da vontade humana.

Todavia, é certo também que ao se entender que a liberdade não exclui a determinação, não se compreendeu ainda como ela deixaria de ser uma figura da necessidade. Vá lá que o mundo criado, sendo um dos mundos possíveis, não seja metafisicamente necessário, mas apenas necessário ex hypothesi ou “por acidente”4. Entretanto, resta saber como, uma vez criado, este mundo “contingente” não seria habitado por uma necessidade “mais do que fatal”. Assim, se é verdade que o modelo de Espinosa é afastado e que não é mais contraditório que César se detenha diante do Rubicão, é verdade também que este seria um outro César, habitante de um outro mundo possível5. Desde então, o que vale esta liberdade e o que César ganha com a mudança de teoria? Por isso, a distinção leibniziana entre o certo e o necessário6 parecerá inevitavelmente sofística enquanto não se compreender como a noção completa pode incluir todos os predicados de um sujeito, sem que a proposição enunciando qualquer um deles se torne uma verdade necessária. Era para resolver este “enigma” que Leibniz evocava uma “luz nova e inesperada”, vinda de “considerações matemáticas sobre a natureza do infinito”7. Mas sabe-se também que essa solução não deixou de ser considerada estranha, obscura – e de resultado incerto8. Todavia, antes de julga-la “dogmaticamente”, talvez valha a pena

4LEIBNIZ, Discours de métaphysique, par. XIII; 1972, p. 171. 5LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 51.

6Cf. LEIBNIZ, Discours de métaphysique, par. XIII; 1972, p. 171. Cf. também,

“Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 52: “...a conexão dos acontecimentos, se bem que ela seja certa, não é necessária, e sou livre para fazer ou não fazer esta viagem; pois se bem que esteja incluído em minha noção que eu a farei, também está incluído ali que eu a farei livremente”.

7LEIBNIZ, “Sobre a liberdade”; 1998, p. 331.

8Cf. ROSS, 1989; CARRIERO, 1993 e 1995. Tendo obtido a sua “luz” nas

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verificar como ela adquire seu sentido no interior do leibnizianismo, e que papel ela desempenha na arquitetônica do “sistema”. E para isso é preciso voltar por um momento à doutrina da noção completa, avaliar por que ela não representa uma exigência descabida e recensear, sobretudo, as condições em que ela recebe a sua cidadania filosófica, visto ser ali que se desdobra o cenário onde se locomove a questão da contingência.

II

A doutrina da noção completa seria o resultado do entrelaçamento entre a “natureza geral da verdade” – como inclusão do predicado no sujeito – e a universalização máxima do princípio de razão? Essa interpretação é correta, mas ela certamente permanece parcial e abstrata enquanto se deixa de relembrar que não há determinação completa de uma substância isolada, mas apenas de uma essência inserida em um “mundo” que ela exprime de seu “ponto de vista” e, assim, se diferencia integralmente das outras substâncias. Era exatamente este um dos tópicos que Leibniz insistia em frisar a Arnauld9. O que significa dizer que a “noção completa” não se refere ao domínio do simples possível, mas ao domínio do compossível. A noção completa será até mesmo um conceito essencial à compossibilidade. Sem uma noção “perfeita” que envolva todos os predicados passados, presentes e futuros de cada substância, seria impossível para Deus decidir em função de um saber totalmente determinante: as substâncias viriam à existência isoladamente e colocar-se-ia o problema de sua “ligação” post festum. Por isso, é a mesma coisa afirmar que toda substância tem sua noção completa e que Deus cria um conjunto de compossíveis. Se Deus

de 1699 ou de 1703, que a sua “solução” mereceria algumas palavras a mais. Cf. LEIBNIZ, “Conversações sobre a liberdade e o destino”; 1990, p. 30: “Definitivamente, existe um admirável segredo da natureza, que representa a fonte da contingência, aquilo que os escolásticos procuravam outrora ao tratar de radice contingentiae e que eu espero poder explicar claramente algum dia”.

9LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 41 : “Pois cada substância individual

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elegeu entre infinitos indivíduos possíveis aqueles que melhor convêm aos seus desígnios supremos, não se deve dizer que ele decidiu que Pedro renegaria ou

que Judas seria traidor; ele apenas decretou, em relação aos outros possíveis, que

viriam à existência Pedro que renegaria e Judas que trairia. Sem noção perfeita, a compossibilidade não significaria nada, e sem compossibilidade o “mundo” daria lugar a uma soma de decretos caprichosos. E é isso que não compreendem aqueles que vão protestar contra o “fatalismo”.

Mas se é assim só há substância, estritamente falando, ali onde existe exclusão de toda indeterminação. Por isso Arnauld erra ao contentar-se com uma noção geral para circunscrever a essência de um indivíduo, supondo que basta uma referência ao “pensamento” para concluir que “eu sou eu”. Não ocorre aqui como na noção específica de esfera, onde distinguimos as propriedades essenciais (a eqüidistância do centro) e as propriedades acidentais (o tamanho do diâmetro). É de maneira muito rápida que se exclui de minha noção individual a viagem que eu farei, quer dizer, que se aplica ao indivíduo os critérios que valem para a noção específica. Certamente, não é tão fácil ser profeta quanto ser geômetra. Mas por que não reconhecer que a indeterminação é apenas de fato, ao invés de insistir em declarar que ela seria de direito? Essa insistência redundaria em relegar a singularidade no acidental, – ela significaria, portanto, declarar que a singularidade deste mundo é indeterminável. Se existe unidade do mundo e logo determinação universal, por que a noção incompleta seria a única de direito determinável? Abaixo de qual patamar seria preciso conceder a existência do indecidível? Só se conserva o nome do indivíduo quando se admite que ele não é o integralmente determinável. Ou ainda: o integralmente diferenciável. Caso contrário, o mundo seria aquele do determinismo: um horizonte de inteligibilidade incompleta que nos permite pensar, até certo ponto, a unidade das leis, mas não a solidariedade das séries singulares.

É por isso que é preciso repensar a noção de substância. Nos Novos

Ensaios, Leibniz relembrará que não é nem um pouco surpreendente que não se

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os atributos, “se excluiu todo detalhe”10. Aqueles que professam a doutrina tradicional da substância e afirmam que ela suporta os acidentes enquanto nada a suporta, sem dúvida têm razão. Mas ficar nisso é fazer o jogo do nominalista: “Isto não basta ainda para nos dar uma noção distinta desses suportes”. Basta apenas para reconhecer o substancial, mas não para ter dele uma idéia distinta, uma idéia que envolve as condições e os requisitos da coisa11. Portanto, o mero apelo à “independência” é insuficiente para caracterizar a substância. Ainda é necessário precisar em que este subjectum ultimatum é último em relação aos seus predicados.

Nos textos anteriores a 1679, essa passagem da determinação negativa à determinação positiva só existe em germe, e é o critério da independência que prevalece12. Nesse momento, já está assegurada a distinção entre acidentes e predicados essenciais, entre os atributos cuja noção não inclui tudo aquilo que se pode atribuir ao sujeito (“rei” para Alexandre) e aqueles sem os quais o sujeito não seria aquilo que ele é. Mas ainda é impossível dizer em que este sujeito permanece sempre idem subjectum. Existe por um lado a essência, que assegura uma identidade grosso modo, por outro lado o “detalhe”, relegado ainda nas “denominações extrínsecas”. Essa aparente insuficiência se traduz em um embaraço relativo àqueles conteúdos que certamente são sempre sujeitos e singulares. Este embaraço vem do fato de que o “sujeito último” continua a ter sentido só por oposição às propriedades mutantes, como “subsistente” ou “perdurável”. Fala-se então de um idem subjectum, mas na maior parte dos casos essa identidade é postulada ou presumida; ela não é tal que não importa qual dessas propriedades seja reconhecida como pertencente a este sujeito e o distingua de não importa qual outro. Sob que condição, portanto, pode-se

10LEIBNIZ, Nouveaux essais sur l’entendement humain, II, 23; 1966, p. 186.

11LEIBNIZ, Discours de métaphysique, par. 8; 1972, p. 167: “É verdade que quando

vários predicados se atribuem a um mesmo sujeito, e este sujeito não se atribui a nenhum outro, nós o chamamos de substância individual; mas isso não é suficiente e uma tal explicação é apenas nominal”.

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conceber um sujeito como certamente independente e certamente idêntico? Apenas sob a condição de que a relação dos “existentialia” ao sujeito cesse de representar um problema, quer dizer, sob a condição de que o sujeito seja conseqüentemente definido não mais como um núcleo essencial incompleto, mas como um “ens” envolvendo de direito todos os seus predicados. Ora, é apenas a noção completa que determina o que é a independência. Se não fosse possível obter um conceito tal que todos os seus predicados pertencessem a este sujeito, e não a um outro, nunca estaríamos seguros de lidar com um sujeito último, que não requer nada de outro para dar a razão de suas propriedades13. Assim como é apenas a noção completa que garante a identidade a si de cada substância. Uma noção que fosse indeterminada quanto ao menor “detalhe” sempre poderia ser comum a dois indivíduos distintos14, e por isso mesmo na falta de uma noção completa nunca poderíamos estar seguros de salvaguardar a identidade a si de qualquer ser, portanto de lidar com um indivíduo propriamente dito. De direito, a circunscrição do sujeito seria sempre revogável, visto que a palavra “sujeito” não seria sinônima nem do supremamente independente nem do supremamente diferenciado. Ora, seria absurdo que o

13Cf. LEIBNIZ, “Da natureza da verdade”; 1982, p. 348: “Se uma noção é

completa, isto é, tal que se possa a partir dela dar razão de todos os predicados do próprio sujeito ao qual essa noção é atribuída, ela será a noção de uma substância individual. Pois a substância individual é um sujeito que não inere a outro sujeito, enquanto outros inerem a ela, de forma que todos os predicados de um mesmo sujeito são todos os predicados da mesma substância individual; pode-se, portanto, dar sua razão a partir da noção da substância individual, e somente a partir dela”.

14Cf. LEIBNIZ, “Sobre a liberdade, o destino e a graça de Deus”; 1990, p. 85:

“Nesta noção completa de Pedro... estão contidas não apenas os aspectos essenciais ou necessários, que decorrem das noções incompletas ou específicas e são demonstradas a partir dos termos, de modo que o seu contrário implica em contradição, mas também os aspectos existenciais, por assim dizer, ou contingentes, visto que só há noção perfeita ou completa da natureza da substância individual, e porque ela contém todas as circunstancias individuais, mesmo contingentes, até as mais pequenas e porque de outra maneira ela não seria última nem seria distinguida de não importa qual outra... pois a noção que permanecesse indeterminada na menor circunstancia não seria ultima mas poderia ser comum a dois indivíduos distintos”.

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sistema da determinação universal fizesse abstração do individual e o exilasse no indeterminável. Isso só pode ser admitido por um sistema que se contenta em determinar o fato (que um corpo, em circunstancias iguais, caia assim e não de outra maneira), não por um sistema que pretende determinar todo acontecimento e atribui-lo com certeza ao sujeito do qual ele depende15. O substancialismo de Leibniz é sobretudo essa exigência de determinação, supérflua para nosso determinismo, mas sem a qual de direito nunca se poderia distribuir, com certeza, não importa qual acontecimento.

Mas é preciso falar apenas de um sistema de distribuição universal dos acontecimentos, de forma alguma de uma absorção da existência na necessidade geométrica. Longe de se tratar de abolir ou de minimizar a contingência, trata-se de instaurar um sistema de decisão que opere até mesmo para os acontecimentos contingentes. O que do ponto de vista do determinismo parece uma exigência exorbitante, é ao contrário exigência mínima para uma determinação geográfica das propriedades, sejam elas contingentes ou necessárias. Por que temos dificuldade em compreender isso? Porque admitimos relações externas, acidentes dos quais não nos preocupamos em enunciar a qual sujeito eles pertencem, ou porque os deixamos em suspenso entre dois sujeitos16. E admitimos isso porque para a ciência basta determinar em um campo universal – que não tem mais nada a ver com um mundo.

Com efeito, o conceito de “noção completa” permanece paradoxal enquanto não nos reportamos ao ideal de conexão mundana entre as substâncias. É o que Leibniz indica em Sobre a liberdade. Eu via muito bem – assegura ele – o envolvimento do predicado no sujeito em toda proposição verdadeira afirmativa, “mas exatamente isso parecia aumentar a dificuldade”: se

15Cf. LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 46: ”Eu não entendo de forma

alguma outra conexão do sujeito e do predicado do que aquela que existe nas verdades as mais contingentes, quer dizer, que há sempre algo a se conceber no sujeito que serve para dar razão de porque este predicado ou acontecimento lhe pertence ou porque aquilo aconteceu antes que não”.

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minha análise mostra que um predicado está compreendido em um sujeito em determinado momento do tempo, “como em outro momento o sujeito pode estar privado de seu predicado e conservar a sua noção?” Com efeito, o que é a natureza do sujeito se ela comporta elementos que não lhe pertencem de modo permanente? Não haveria nenhum sentido em se falar em uma noção essencial, que compreende tanto os “essentialia” quanto os “contingentia”, se não houvesse omni-expressão, – se não se soubesse que “cada substância individual ... inclui em sua noção completa (tal como esta existe no entendimento de Deus) todo o universo, tudo aquilo que é, foi ou será”17. Sem omni-expressão, a noção completa se arruina. Todavia, afirmar que a determinação “vencedor na Farsália” desde sempre estava contida na noção de César não é fazer uma postulação fatalista? Ora, para Leibniz é apenas em sentido lato que se dirá que a determinação “Farsália” está compreendida na noção “Cesar” “assim como as propriedades o estão na definição do círculo”: enquanto Deus faz passar à existência as propriedades de espécie “círculo” isolada, uma determinação existencial “supõe a seqüência das coisas que Deus escolheu livremente”, e essa suposição de todo o resto basta para exclui-la da necessidade que governa uma essência constituída isoladamente. A noção completa é a reflexão, na essência, do infinito de um mundo escolhido livremente, – ela é a presença deste mundo contingente e não apenas a anulação da incerteza que vem do tempo. Pode-se pensar a contingência fora da incerteza: que Cesar tenha uma noção completa significa que ele existe no mundo e que aquilo que lhe acontecerá é portanto infalível. Mas significa também que ele é habitante deste mundo, e que só está destinado a ser morto por Brutus mundanamente, e não por “essência”. A noção completa é o relato já redigido dos faits divers, mas existe uma infinidade de outros relatos possíveis.

Todavia, dir-se-á, basta que a noção completa se ajuste ao sistema para receber direito de cidadania? Não se trataria de um conceito forjado? Não faltam textos que podem sugerir esta suspeita. É assim quando Leibniz afirma

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que “nós supomos que é da natureza de uma tal noção perfeita compreender tudo, afim de que o predicado esteja ali incluído”18. Na correspondência com Arnauld, a desenvoltura parece ir mais longe: “eu suponho que essa noção é

expressamente fabricada, de modo que dela se possa deduzir tudo aquilo que me

acontece”19. Mas com que direito fazer essa “suposição”? A resposta a Arnauld é simples: “eu dei uma razão decisiva que, em minha opinião, faz as vezes de demonstração; é que sempre, em toda proposição afirmativa verdadeira, necessária ou contingente, universal ou singular, a noção do predicado está compreendida de alguma maneira na noção do sujeito”20. Se a conexão indicada pela noção completa é uma exigência mínima – e não exorbitante – é porque não se pede mais ligação aqui “do que aquela que se encontra a parte rei entre os termos de uma proposição verdadeira”21. É notável que Arnauld confesse ter ficado “impressionado sobretudo” com essa razão, para a comemoração de Leibniz: o Sr. Arnauld “rendeu-se” à verdadeira noção de substância. Mas vale a pena verificar como se produziu esta súbita conversão.

Arnauld defende a indeterminação contra aquilo que lhe parece ser um sistema necessitarista. Como confunde determinado e necessário, ele recusa-se a colocar no mesmo plano aquilo que pertence invariavelmente à minha essência e os predicados variáveis. Para Leibniz não é essa a questão: simplesmente, deve haver uma razão a priori pela qual é a mim, de direito, que cabe esse predicado. Ninguém pode se contentar com o “sentimento interno” de que é o mesmo em diferentes momentos do tempo, o mesmo que fez esta viagem. É preciso que meus predicado sucessivos sejam predicados de um mesmo sujeito22. A tese parece ser metafisicamente perigosa? Trata-se de sustentar que todos os acontecimentos são univocamente distribuíveis, de direito, sem condição de tempo, e universalmente determináveis: por que, a este sujeito, este

18LEIBNIZ, Discours de métaphysique, 13; 1972, p. 172 (grifo meu). 19LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 46 (grifo meu). 20 LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 56.

21LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 56. 22LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 43.

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acontecimento e não um outro? Arnauld fala ainda de fatalismo? Leibniz não quer sugerir outra coisa “senão aquilo que todos os filósofos entendem ao dizer

praedicatum inesse sujecto verae propositionis”23. Se Arnauld nega isso ele será reduzido ao absurdo, ou então ninguém sabe o que é a verdade. Em suma, Leibniz reconduz a tese da determinação completa universal à questão da decidibilidade universal de “César é vencedor na Farsália”. Se de direito, do ponto de vista da onisciência divina, essa proposição é sempre verdadeira, dado que sua verdade consiste na não exclusão do predicado pelo sujeito, então é preciso que a parte rei essa conexão tenha estado sempre presente. Esta conclusão se impõe, se o verdadeiro é a inclusão do predicado no sujeito: se a verdade de uma proposição é independente do tempo e do lugar, a condição da verdade também o é.

Ora, essa “conclusão” poderia parecer o tipo mesmo da extrapolação dogmática, no sentido kantiano da palavra: transferir para as coisas aquilo que vale apenas para as proposições24. Mas para Leibniz só haveria extrapolação se a natureza das coisas estivesse submetida a um outro código de verdade que as proposições. Ora, a verdade é una, logo, o seu comentário é único: possibilidade de reconduzir os termos da predicação a uma proposição idêntica. A partir do momento em que demonstrar é reduzir a idênticos, não pode haver diferença de natureza entre as proposições verdadeiras. E a razão suficiente não é senão a afirmação dessa legislação unitária do campo da verdade. Donde os diversos textos de Leibniz onde a afirmação de que “nada é sem razão” é apresentada como corolário da inclusão do predicado no sujeito25, onde o princípio de razão suficiente entra em cena apenas como explicitação do

23LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 43.

24Sobre o dogmatismo como transformação sistemática de uma legislação dos

conceitos em legislação das coisas, cf. LEBRUN, 1970, cap. II.

25Por exemplo, “Leibniz a Arnauld”, 1978, p. 56: “...sempre é preciso que haja

algum fundamento da conexão dos termos de uma proposição, que deve se encontrar em suas noções. Este é o meu grande princípio, sobre o qual acredito que todos os filósofos devem permanecer de acordo, e do qual um dos corolários é este axioma vulgar de que nada acontece sem razão...”.

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princípio de não contradição, e onde só há uma diferença de grau entre proposições idênticas e não idênticas: enquanto nas primeiras o predicado e o sujeito coincidem, nas outras nós podemos sempre remontar, por uma explicação distinta, à conexão necessária entre os termos26. Das verdades necessárias às contingentes, a diferença na natureza da conexão dos termos é dada apenas pela distancia entre expresso e o implícito. Logo, não há nenhuma diferença de natureza entre os dois princípios enquanto eles estão incluídos na definição do verdadeiro e do falso.

Ora, no momento em que o princípio de razão adquire a sua originalidade, quando se coloca em primeiro plano os domínios sobre os quais versam as proposições, as verdades de razão ou as verdades intramundanas, ele permite instalar universalmente, em todos os domínios, a definição do verdadeiro, e mostra a restrição do princípio de identidade ao domínio exclusivo da matemática.27. De uma reabsorção de todos os domínios naquele da Mathesis, aparentemente passamos agora a uma delimitação da Mathesis como caso extremo da conexão necessária ou Razão. Assim, enquanto o princípio inest

subjecto no sentido estrito determina o campo da necessidade rigorosa, o

princípio de razão suficiente, se bem que ele seja a sua extrapolação determina, além disso, o campo da decidibilidade mínima: graças a ele estamos seguros sempre, em todas as partes, qualquer que seja o domínio sobre o qual verse a proposição, de que existe no sujeito uma razão da existência de qualquer predicado. É portanto apenas em seu nível que se obtém a extensão completa da correspondência entre legislação da verdade e legislação das coisas28.

Mas a validade do princípio é agora mínima e até mesmo negativa: ele nos assegura apenas que é impossível que uma razão não tenha determinado este acontecimento. E o seu modelo é desde então a balança: se tudo é igual de

26LEIBNIZ, “Da natureza da verdade”; 1982; p. 346. 27Cf. LEIBNIZ, “Monadologia”, 33/36; 1972, p. 401.

28Cf. LEIBNIZ, Nouveaux essais sur l’entendement humaine, IV, 17; 1966, p. 422: “...a

causa nas coisas corresponde à razão nas verdades. É por isso que freqüentemente a causa é chamada de razão...”.

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um lado e do outro, e se pesos iguais são postos em ambos os lados, “não há nenhuma razão para que um lado desça antes que o outro”29. Será esta a estratégia da Teodicéia: “eu não tomarei de forma alguma livre e indiferente por uma mesma coisa, e não oporei de forma alguma livre e determinado”30. A palavra

indiferença é lícita enquanto ela permanece sinônima de contingência, mas sob a

condição de que ela não signifique “que se seja absolutamente e igualmente indiferente pelos dois partidos opostos”, ou ainda, que liberdade seja sinônimo de indeterminação31. E isso, simplesmente porque é impossível que uma determinação provenha de uma “causa indeterminada”32, que o seu advento não seja acompanhado de uma exclusão dos outros casos possíveis. E que o

nouveau philosophe Bayle não venha dizer que é suficiente, para que haja causa

determinante, que eu simplesmente queira fazer uso de minha liberdade: “Querer simplesmente fazer uso de sua liberdade não tem nada de especificante ou que nos determine à escolha de um partido ou do outro”. Por que este rigor que parece desembocar no fatalismo? Porque se não há nada de determinante, “eis algo que aparece e existe sem preparação, sem que nada se disponha a isso .... é sair de nada”33. Se Deus deve ver ou poder mostrar como uma coisa existe, é porque a resposta a essa pergunta não é de forma alguma supérflua: admitir que algo surja da indiferenciação é faze-lo sair de nada. Se o ens é o diferenciável, a indiferença é o não-ser: “...o Nada, que é o mais imperfeito e o mais distanciado de Deus, é também o mais indiferente e o menos determinado”34. A impossibilidade de dar o porque e o como seria equivalente à impossibilidade de situar uma determinação em relação aos possíveis que não vieram à existência em seu lugar, quer dizer, seria faze-la apagar-se.

29LEIBNIZ, “Segundo escrito a Clarke”; 1978, p. 356. 30LEIBNIZ, Essais de Théodicée, par. 132; 1969, p. 186.

31LEIBNIZ, Essais de Théodicée, par. 302 e 365; 1969, p. 298-332. 32LEIBNIZ, Essais de Théodicée, par. 305; 1969, p. 299.

33LEIBNIZ, Essais de Théodicée, par. 320; 1969, p. 307: “Querer que uma

determinação provenha de uma plena indiferença absolutamente indeterminada é querer que ela provenha naturalmente de nada”.

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Mas se a liberdade não representa uma exceção à determinação, seria preciso então fazer dela um caso da Necessidade – que seria unívoca desde as verdades de razão até as verdades de fato? Ora, que haja “prevalência da inclinação” e que Deus saiba que o efeito seguirá essa inclinação não significa de forma alguma que era absolutamente inevitável que eu me determinasse assim. “Essas ações voluntárias não ocorrerão o que quer que se faça, ou quer as queiramos ou não, mas porque faremos e porque desejaremos fazer o que conduz a isso”35. Logo, a determinação universal não é sinônima de necessidade absoluta. Uma coisa é sustentar que o contingente é determinável, portanto que as proposições que o concernem já estão decididas, outra coisa é abolir a contingência. A doutrina aristotélica dos futuros contingentes é recusada, mas a própria expressão não é banida. É o que Leibniz tenta fazer Arnauld entender: os futuros contingentes são previstos em si mesmos e por suas razões, mas permanecem contingentes36. Se essa tese permanece paradoxal, é porque se dá um sentido muito forte à exigência de razão suficiente: imagina-se que não apenas todo predicado é determinável a priori, mas que ele é determinável por exclusão absoluta de todos os seus substitutos possíveis, quer dizer, pensa-se que ele não tinha substitutos possíveis. Raciocina-se então que se tudo é determinado, era em si mesmo impossível que César se detivesse no Rubicão. Donde o apelo de Leibniz à imaginação dos adversários: isso é possível, pois pode-se muito bem concebê-lo... Se se recusa a admiti-lo, é porque se exige de um “compossível” aquilo que só é exigível de um “possível absoluto”, é porque não se diferencia entre a exclusão de outras ocorrências do mesmo caso em função deste mundo e a exclusão do contraditório. É ou uma coisa ou outra: ou fora da necessidade geométrica só há o indeterminável, ou a simples determinação é posta no mesmo plano que a necessidade geométrica. Ou não há demonstração possível de nenhum predicado de César, ou então essa demonstração deve ser “tão absoluta” quanto aquela dos números ou da

35LEIBNIZ, Essais de Théodicée, Resumo da controvérsia; 1969, p. 367.

36LEIBNIZ, Discours de métaphysique, XIII; 1972, p. 171; Correspondência com

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geometria37. Assim, para que a determinação fosse perfeita e completa, seria preciso que nenhum outro sistema de determinações fosse imaginável e que o sistema dado tivesse sido o único possível. É a este preço que, para escapar ao necessitarismo, refugia-se na indeterminação e na loucura da “indiferença quimérica”.

Mas é preciso distinguir o plano da compossibilidade e o plano dos possíveis absolutos38. Assim, tudo é determinado sem falhas, visto que intra-mundano e porque todas as proposições que versam sobre este mundo são em si decidíveis, – mas em contrapartida, como trata-se apenas deste mundo, tenho direito de pensar em algo determinado de outra maneira. Extensão máxima do

praedicatum inest sujecto, o princípio de razão suficiente abranda portanto a

legislação do princípio de identidade, do qual o princípio do inest era todavia o comentário. Ora, é neste contexto que as “reflexões matemáticas sobre a natureza do infinito” revelam o seu sentido e a sua função arquitetônica: sem a “consideração do infinito”, sem a oposição entre a análise finita dos necessários, que se termina nas noções primitivas, e a análise dos contingentes, que vai ao infinito, não haveria como escapar à alternativa ou necessidade absoluta, ou o acidental puro e simples. Donde a importância dos textos onde Leibniz insiste em que a oposição entre os dois modelos de análise não é relativa à nossa finitude, e que nem mesmo Deus poderia demonstrar uma verdade

37LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 52.

38Cf. LEIBNIZ, “Leibniz a Bourguet”; 1978, p. 572-3: “Não concordo que para

conhecer se o Romance de Astréia é possível, seja preciso conhecer sua conexão com o resto do universo. Isso seria necessário para saber se ele é compossível com este e, por conseguinte, se esse Romance é, foi ou será em algum canto do universo. Pois sem isso, seguramente não haverá aqui lugar para ele. E é muito verdadeiro que aquilo que não é, não foi e não será, não é possível, se possível é tomado por compossível ... Mas é outra coisa saber se Astréia é possível absolutamente. E eu digo que sim, porque ela não implica em nenhuma contradição. Mas para que ela existisse efetivamente, seria preciso que o resto do universo também fosse inteiramente diferente do que é, e é possível que ele seja diferente”.

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contingente39, corrigindo aqueles outros que poderiam sugerir uma inexasustibilidade de fato, devida ao nosso estatuto de mens creata40. Se a impossibilidade de terminar a análise só dependesse da impotência do espírito criado, em si o campo da verdade voltaria a ser rigorosamente homogêneo, mas a contingência perderia qualquer sentido. Donde a necessidade de se dizer em que consiste, exatamente, esta incapacidade de analisar completamente.

Ora, se toda proposição verdadeira pode ser provada, enquanto as proposições necessárias podem ser provadas por “redução aos idênticos” ou por redução de seu oposto à contradição, uma “proposição verdadeira contingente não pode ser reduzida aos idênticos, mas nós a provamos contudo mostrando que, se a resolução é prosseguida cada vez mais, ela se aproxima perpetuamente dos idênticos, e todavia nunca chega a eles inteiramente. Cabe portanto somente a Deus, cujo espírito envolve todo o infinito, possuir uma certeza a respeito de todas as verdades contingentes”41. Tudo que o entendimento finito poderá fazer é mostrar que, da regra que ele segue na resolução continuada, “não procederá jamais nenhuma contradição”42. Portanto, não se deverá dizer que somos incapazes de analisar os contingentes por não poder reduzi-los aos idênticos, pois em si não é assim que se analisa as verdades contingentes, mas como só podemos provar reduzindo aos idênticos, nós só podemos provar proposições relativas a noções incompletas, e nunca

39Cf. LEIBNIZ, “Sobre a liberdade”; 1998, p. 332-3: “No caso das verdades

contingentes ... se bem que o predicado esteja no sujeito, todavia ele nunca pode ser demonstrado a partir deste, e nunca se chega a reconduzir a proposição a uma equação, quer dizer, a uma identidade: sua resolução, ao contrário, se prolonga ao infinito. Apenas Deus vê, não, bem entendido, o fim da resolução, que não existe, mas pelo menos a ligação dos termos, que dizer, o envolvimento do predicado no sujeito, pois ele ve tudo o que está na série”.

40Cf. LEIBNIZ, “Sobre a característica e a ciência”; 1998, p. 162: “...assim como no

caso das proporções irracionais, o processo de resolução vai ao infinito..., da mesma maneira um processo idêntico faz com que as verdades contingentes reclamem igualmente uma análise infinita que só Deus pode percorrer”.

41LEIBNIZ, 1998, p. 277. 42LEIBNIZ, 1998, p. 243.

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quando elas concernem a noções individuais completas, que “envolvem o infinito”. Agora a demonstração completa nunca é alcançada, mesmo se nos aproximamos cada vez mais dela , “de tal forma que a diferença seja menor que qualquer diferença dada”43.

Sendo assim, a raiz da contingência é o infinito44. Por que essa tese pareceu “estranha”? É preferível circunscrever assim a “raiz da contingência “ do que localiza-la no ininteligível, como a matéria primeira aristotélica, ou simplesmente situa-la na liberdade da vontade divina, como Duns Scotus45. A uma tese filosófica arbitrária, Leibniz opõe uma contingência que decorre da própria natureza da verdade. Não há outra raiz da contingência do que aquela que provém da natureza da proposição, a saber, que existe a indemonstrabilidade46. Donde a importância de que a indemonstrabilidade seja uma das variantes do praedicatum inest subjecto, e não uma exceção à sua jurisdição. Visto que há um estatuto das verdades concernentes ao infinito, o inanalisável não é por isso o irracional. E é justamente essa diferença intrínseca entre o necessário e o contingente que impede o entendimento criado de analisa-lo perfeitamente, ou mesmo Deus de poder demonstra-lo, como se para ele só houvesse analise perfeita enquanto análise terminável.. Portanto, não é

43LEIBNIZ, 1998, p. 251.

44 Cf. “Origem das verdades contingentes...”; 1998, p. 337.

45 Estabelecendo que a “raiz da contingência” está fora das coisas contingentes e

localizando-a na “liberdade da vontade divina”, Duns Scotus não deixava de sublinhar que essa concepção da “causa primeira” era oriunda da “fé católica” e extravasava, por isso mesmo, o campo da razão natural: não há justificação puramente metafísica da contingência. Cf. GILSON, 1952, cap. IV.

46Cf. LEIBNIZ, “Sobre a liberdade, a contingência e a providência”; 1990, p. 105:

“Com efeito, se admitimos a noção de Necessidade que todo mundo admite, segundo a qual são necessárias aquelas coisas cujo contrário implica em contradição, se depreende facilmente da natureza da demonstração e da consideração da análise, que podem existir verdades irredutíveis, por meio de alguma análise, à identidade ou ao princípio de contradição, mas que precisam de uma série infinita de razões, conhecida a fundo apenas por Deus; e essa é a natureza de todas as coisas que se chamam livres ou contingentes”.

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porque não conseguimos terminar a análise que não podemos demonstrar as verdades contingentes, mas porque elas são por natureza intermináveis, portanto, para nós não domináveis. Sobretudo, que não se acredite que nossa finitude nos dissimula que todas as proposições são necessárias e que em si a contingência se reabsorva na necessidade.

Se o princípio do inest parece acarretar o necessitarismo, como parecia ao próprio Leibniz antes da “luz” obtida nas Investigações gerais, de fato ele só o acarreta quando nós o confundimos com apenas um de seus modelos de verificação: a redução finita aos idênticos. Que se alargue ao contrário a sua verificabilidade, e sua omni-validade será compatível, ao mesmo tempo, com o reconhecimento e com a aclimatação da contingência. Sem a noção de resolução de direito infinita, seria preciso ou que todas as verdades fossem resolúveis por um processo finito, o que nos condenaria ao necessitarismo, ou que as verdades não fossem finitamente resolúveis, o que faria então com que em si houvesse o acidental puro e simples. Através disso aparecem duas das funções complementares do infinito matemático. Em primeiro lugar, dar um estatuto irredutível à contingência. Em segundo lugar, salvaguardar a unidade de campo do princípio do inest: a contingência está incluída no sistema da determinação47. Portanto, é a integração do infinito na legislação da verdade

47Visto que a determinação é a certeza objetiva, quer dizer, uma verdade que pode

ser conhecida (Teod. I, 36), Deus regula a equivalência entre a determinação e a certeza, mas de forma alguma a equivalência entre a determinação e a necessidade. “A preciência em si mesma não torna a verdade mais determinada; ela é prevista porque ela é determinada, porque ela é verdadeira; mas ela não é verdadeira porque é prevista”(Teod. I, 38). “Essa determinação vem da própria natureza da verdade, e não poderia prejudicar a liberdade” (Teod., I, 37). Melhor ainda: mesmo se os futuros contingentes não dependessem dos decretos de Deus, ainda assim haveria, para ele, “meios de prevê-los”: ele os veria tais como eles são na região dos possíveis (Teod., I, 42). No campo da verdade tudo é determinado, quer dizer, de direito previsível. Mas só se poderia falar em necessidade se fossem imagináveis apenas os possíveis pertencentes ao sistema de compossíveis que foi escolhido. Se não houvesse outro mundo, o determinado seria o necessário. Como a preciência vige de direito em todas as partes, ela não poderia incidir sobre os compossíveis deste mundo e transformá-los em

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que, ao mesmo tempo em que preserva a sua homogeneidade, salva a originalidade do indivíduo48, faz da noção completa outra coisa que uma essência matemática, e faz da contingência outra coisa que uma conexão necessária dissimulada. Outra coisa, mas de tal maneira, todavia, que Deus pode decidir tanto aqui quanto ali sobre a verdade das proposições. Portanto, não apenas a noção completa integral de minhas verdades contingentes não faz de minha história uma fatalidade, como ela também restitui as verdades necessárias ao seu justo lugar, verdades necessárias que nós temos tendência a tomar por únicos modelos da determinação. Certamente, à diferença das verdades contingentes, as necessárias valem em todos os mundos possíveis, mas elas só concernem a “seres incompletos”, e devem ser situadas do lado dos contínuos ideais, inferiores aos atuais49. Assim, longe dos singulares serem anexados ao reino da “necessidade bruta”, é a Mathesis, enquanto sistema de determinação,

inelutáveis. O erro é ligar decidibilidade a necessidade metafísica. É nessa via que se confirma a diferença de natureza entre determinação e necessidade: a determinação não é uma necessidade mais frouxa e, na expressão “necessidade moral”, a palavra “necessidade” é apenas metafórica: “esse modo de necessidade, que não destrói a possibilidade do contrário, só tem esse nome por analogia; ela se torna efetiva não pela exclusiva essência das coisas, mas por aquilo que está fora delas e acima delas, a saber, pela vontade de Deus. Essa necessidade é chamada de moral porque, junto ao sábio, necessário e devido são coisas equivalentes”(Teod., Abrégé, 8). Certamente, “pode-se dizer, em certo sentido, que é necessário que os danados pequem, que Deus escolha o melhor”(Teod. I, 282), mas deve-se relembrar, sobretudo, que essa necessidade não é “essencial e absoluta”, isto é, que ela diz respeito a este agrupamento de compossíveis, não está inscrita em uma essência, de modo que a encontraríamos em todos os mundos possíveis.

48Cf. LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 38-9: “É preciso filosofar de outra

maneira sobre a noção de uma substância individual e sobre a noção específica de esfera”.

49Cf. LEIBNIZ, “Leibniz a Sofia”; 1978, p. 562-4: “Nos ideais ou nos possíveis que

compreendem não apenas este universo mas ainda todos os outros que possam ser concebidos, o todo indeterminado é anterior às divisões... A continuidade unitariamente regrada, se bem que ela só seja suposição e abstração, forma a base das verdades eternas e das ciências necessárias”.

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que deixa de ser confundida com a necessidade geométrica. É esta a outra função da “consideração do infinito”: ao mesmo tempo em que permite que se inscreva o contingente na Mathesis, ela proíbe que esta se reduza à verificabilidade por idênticos. Se a indeterminação é expulsa do mundo, é porque só existem indivíduos a todo momento discerníveis. Se é em si impossível reduzir as proposições contingentes a identidades, não se deve ver nisso um caso limite do princípio do inest que, bem ou mal, reataria com este para ali integrar – e edulcorar – o contingente: ao contrário, é de pleno direito que existe irredutibilidade ao idêntico.

Ora, é a “consideração do infinito” que, no mesmo gesto em que proíbe a redução aos idênticos, sanciona por isso mesmo um princípio de variedade e nos dá a certeza de que a diversidade é original. O império da verdade é o mesmo em todas as partes, mas essa uniformidade não acarreta a homogeneidade das regiões metafísicas. Visto que é o Mesmo que ecoa em todas as partes, como estamos sempre diante de variações, por que não reconhecer a diversidade infinita? Ela não é mais obstáculo à inteligibilidade, e a prodigalidade da existência só suscita a ilusão do caos em razão de uma concepção muito pobre e muito grosseira da essência, a dispersão infinita dos pontos de discernibilidade só pode parecer desordem para quem tem uma idéia unívoca da ordem. E se de fato “é impossível para nós ter o conhecimento dos indivíduos e encontrar meio de determinar exatamente a individualidade de alguma coisa”50, visto que ela “envolve o infinito”, essa constatação de finitude nunca poderá ser um lamento: sem esse infinito não haveria em si determinação sempre possível, portanto não haveria indivíduos em si sempre distintos. Sem dúvida, para nós seria mais cômodo se existissem os “átomos de Demócrito”, princípios indiferentes e homogêneos. Mas “também não haveria então diferença entre dois indivíduos diferentes de mesma figura e mesma grandeza”51, em última instância haveria uma repetição pura e simples de idênticos, um alinhamento sem razão dos indiferentes, logo, haveria a indeterminação. Ora, isso é impossível, se bem

50LEIBNIZ, Nouveaux essais sur l’entendement humaine, III, 3, par. 6-7; 1966, p. 248-9. 51LEIBNIZ, Nouveaux essais sur l’entendement humaine, III, 3, par. 6-7; 1966, p. 248-9.

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que pudesse ser mais confortável para nosso conhecimento finito: a diversidade é sempre variedade, nunca simples dispersão, a pluralidade de essências não é justaposição de idênticos porque cada uma delas é afetada, desde o início, de uma intensidade que lhe é própria, e em função da qual existe o melhor conjunto de compossíveis52. Se a pluralidade não fosse infalivelmente signo de diferença qualitativa ou de diferença de intensidade dos componentes, só haveria superlativo quantitativo e não determinação a melhor. Haveria coleção de possíveis arbitrariamente feita, mas o “combate dos possíveis” seria sem razão. Apenas essa hipótese da intensidade das essências, quer dizer, da diversidade qualitativa inicial, é compatível com a aplicação do princípio de razão suficiente53. Mas ao mesmo tempo ela acarreta a admissão de uma instância de escolha: só haverá saída racional para o desfecho do combate se houver diversidade qualitativa universal, mas essa arbitragem não pode ocorrer sem uma balança. A finalidade decorre do postulado da heterogeneidade qualitativa: sem a discriminação inicial dos “graus de essência”, se a existência não fosse julgada a mais harmoniosa, se ela não significasse “agradar a Deus”, a possibilidade de sempre poder determinar não estaria garantida. Se determinar não consiste em circunscrever os limites de regularidade de um funcionamento, mas em recolocar cada coisa no lugar que a torna distinta das outras, no centro da rede infinita de suas diferenças, então Deus, por sua escolha, é o fiador dessa determinação completa.

Mas se é assim, a regulação do universo não significa o desdobramento de um destino morno. Tivéssemos alcançado o “ponto de perspectiva” a partir do qual a ordem se manifesta, sua extrema variedade ainda fascinaria, as surpresas nos esperariam. Surpresas, mas não o irracional nem o imprevisível. E se isso nos causa estranheza, é porque temos o hábito de localizar a necessidade ali, a contingência aqui, como se não fosse a mesma verdade, a mesma legislação que regesse os dois domínios, como se fora das leis só houvesse a indeterminação, logo, como se a cientificidade supusesse a anulação ou a colocação entre parênteses da variedade, e

52LEIBNIZ, “De l’origine radicale des choses”; 1972, p. 341: “A possibilidade é o

princípio da essência; da mesma maneira, a perfeição ou o grau de essência (pelo qual há um máximo de compossíveis) é o princípio da existência”.

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que em contrapartida o reconhecimento desta variedade – um pouco depois batizada de “concreto” – proibisse a cientificidade. Dizer que o mundo é “bem regulado” é dizer que ele é perfeito, isto é, que não apenas os perfis de regularidade que nele delimitamos são codificados, mas também todas as figuras da variação. E de fato, por que restringir a inteligibilidade ao invariante? Por que o conhecimento suporia a uniformidade? “Eu preferiria a variedade nas curiosidades do que grandes pedaços de ouro onde tudo se assemelha”54.

Mas “perfeição” não significa apenas que a profusão do individual não representa um obstáculo à inteligibilidade. É não apenas malgrado ela, mas sobretudo através dela que transparece a consonância. Não nos esqueçamos de que o infinito, se ele proíbe a demonstração das proposições contingentes, é também aquilo que legaliza a contingência; nem de que a omni-expressão, se ela nos condena às “pequenas percepções”, também nos integra nas expressões da mesma série. Aquilo que à primeira vista parece marca da finitude sempre se revela, olhando melhor, inserção na ordem. A perfeição não apenas concilia ordem e variedade como também as faz passar uma na outra55. Que haja conformidade, mas não a ponto de que ela exclua o inesperado. Que haja o inesperado, mas não a ponto de que ele nos incline a desesperar de encontrar uma regra: em qualquer bosque do parque, cada concerto tem seu sabor próprio, mas eu devo poder imaginar o que são os outros concertos e nunca ficar tão fascinado pelo que se passa aqui, a ponto de esquecer a lição do Arlequim: “ali é exatamente como aqui ”56. Em outros termos, a diversidade é onipresente, mas ela só acarreta rupturas da

54Cf. LEIBNIZ, Essais de Théodicée. II, 213; 1969, p. 247: A bondade e a beleza não

consistem “em algo de absoluto e de uniforme, como a extensão, a matéria, o ouro...”.

55Cf. LEIBNIZ, “Monadologia”, 58, I; 1972, p. 403-4: “E este é o meio de obter

tanta variedade quanto é possível, mas com a maior ordem que se possa, quer dizer, este é o meio de obter tanta perfeição quanto se pode”.

56Cf. LEIBNIZ, “Leibniz a Sofia Carlota”; 1978, p. 348: “...toda a minha filosofia...

é fundada em dois ditos tão comuns quanto aquele do teatro italiano, de que ali é exatamente como aqui, e este outro, de Tasso: che per variar natura è bella, que parecem se contrariar, mas que é preciso conciliar entendendo um do fundo das coisas, o outro das maneiras e aparências”.

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ordem na superfície, nos “fenômenos”. A “estranha” consideração sobre o infinito era imprescindível não só para aclimatar a contingência como também para legitimar a diversidade máxima e compreende-la como um conjunto de variações sobre o mesmo tema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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