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Estratégias de pequenos agricultores livres de cor perante a expansão dos engenho de açúcar escravistas em Campinas : 1779-1836

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Laura Candian Fraccaro

Estratégias de pequenos agricultores livres de cor perante a

expansão dos engenhos de açúcar escravistas em Campinas:

1779-1836.

Campinas 2018

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Estratégias de pequenos agricultores livres de cor perante a

expansão dos engenhos de açúcar escravistas em Campinas:

1779-1836.

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em História, na Área de História Social.

Orientador: Robert Wayne Andrew Slenes

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À

VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA

PELA ALUNA LAURA CANDIAN

FRACCARO E ORIENTADA PELO PROF. DR. ROBERT WAYNE ANDREW SLENES.

Campinas 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 21 de setembro de 2018, considerou a candidata Laura Candian Fraccaro aprovada.

Prof. Dr. Robert Wayne Andrew Slenes Prof. Dr. Rafael de Bivar Marquese Prof.ª Dr.ª Henrice Altink

Prof. Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar Prof. Dr. Aldair Carlos Rodrigues

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Agradeço ao meu orientador e professor Robert Slenes por todo ensinamento e auxílio ao longo da construção dessa tese. Não teria me apaixonado pela pesquisa se não fossem nossas reuniões quando eu ainda era graduanda. À professora Henrice Altink pelas suas contribuições valiosas à minha pesquisa e à escrita da tese. À professora Alida Metcalf agradeço pela generosidade em compartilhar fontes e me auxiliar a organizar os dados dessa pesquisa. Agradeço também às funcionárias do Centro de Memória da Unicamp sem as quais essa pesquisa não seria possível. Obrigada, Aline Assêncio e Renata, pelo acesso sempre descomplicado às centenas de documentos que consultei ao longo desses anos no CMU. Outros arquivos e seus funcionários se mostraram fundamentais para a pesquisa e merecem menções: Arquivo do Estado de São Paulo e Arquivo Edgar Leuenroth. Agradeço aos professores Ricardo Pirola e Aldair Rodrigues pelos comentários e críticas no exame de qualificação. Meus profundos agradecimentos aos amigos e familiares que estiveram ao meu lado durante a construção dessa tese, entendendo as minhas ausências por esses longos anos. Por fim, essa pesquisa não seria possível sem o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo 2014/01016-0) que por anos financiou minha subsistência e minha ida a congressos e arquivos.

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FRACCARO, Laura Candian. Estratégias de pequenos agricultores livres de cor perante a expansão dos engenhos de açúcar escravistas em Campinas: 1779-1836. Tese de Doutorado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, SP, 2018.

A expulsão de pequenos agricultores na fronteira mercantil por grandes senhores escravistas, orientados para a exportação, é um tema clássico na historiografia brasileira. Mesmo assim, há poucos estudos de história social que procurem abordar a questão, e pouquíssimos que tentem enfocar a análise nas perspectivas e estratégias dos pequenos produtores. O presente trabalho tem como objetivo fazer isso, num estudo de caso centrado em Campinas, SP, na virada do século XVIII para o XIX. Utilizam-se na pesquisa os métodos da micro-história e a ligação nominativa de fontes, que permitem reconstruir as biografias de indivíduos e grupos de parentesco, para intuir suas estratégias econômicas e sociais.

A região de Campinas, chamada de Vila de São Carlos entre 1797 e 1842, passou por um crescimento muito rápido e intenso a partir das últimas décadas do século XVIII. A população livre, entre o período de 1789 e 1801, teve um crescimento impactante, em torno de 18% ao ano. Esse constante crescimento demográfico de Campinas sofreu uma alteração brusca no período entre 1814-1829. A população livre nesse período manteve-se praticamente estagnada, revelando um cenário muito diferente do crescimento apresentado anos antes. A rápida expansão da produção de açúcar, concentrada em propriedades escravistas dedicadas a esse cultivo, indica que tais empresas agrícolas invadiram as terras de muitas famílias, ocasionando um amplo êxodo.

A presente pesquisa tem como objetivo estudar como se deram as relações entre os pequenos produtores livres, especialmente aqueles de cor, e a produção de açúcar que se expandia, buscando as estratégias traçadas por esses agricultores frente ao avanço dos engenhos e à perspectiva de terem suas terras “expropriadas” pelos senhores desses empreendimentos. Serão questionados os sentidos da pequena produção e de suas possibilidades de sobreviver e crescer em uma sociedade estruturada cada vez mais por uma economia de plantation. Para tal foi escolhido o período de 1779-1836, pois compreende o momento anterior à expansão da produção açucareira e se estende até o último recenseamento, quando a Vila de São Carlos já se apresentava como uma significativa exportadora de açúcar.

Será utilizado o método de ligação nominativa de fontes, cuja proposta é seguir, ao longo dos anos e em todo tipo de documentação, os produtores de alimentos descritos como pardos nos recenseamentos para que se possam analisar as estratégias traçadas em momentos diferentes da expansão da produção de açúcar e as possibilidades de ascensão. Seus domicílios, também descritos nos recenseamentos, serão seguidos ao longo dos anos para que as eventuais transformações em suas composições sejam analisadas e relacionadas com as demais documentações.

Palavras-chave: Escravidão, Agricultura - América Latina, Posse de terra – Legislação –

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The expulsion of small farmers in frontier market by major export-oriented slave masters is a classic subject in Brazilian historiography. Nevertheless, there are few studies of Social History which seek to address the issue, and fewer that try to focus the analysis on the perspectives and strategies of smallholders. This paper aims to do this, using the township of Campinas, São Paulo State, at the turn of the eighteenth century to the nineteenth as a case study.

The research methods of micro-history and nominative record linkage chosen on this research allow to reconstruct the biographies of individuals and kin groups, to sense their economic and social strategies. The township of Campinas, called Villa de San Carlos between 1797 and 1842, went through a very fast and intense growth in the last decades of XVII. The free population, between 1789 and 1801, had an impressive growth of around 18 % per year. This constant population growth of Campinas had a sudden change in the period between 1814-1829. The population in this period remained virtually stagnant, revealing a very different scenario of growth presented years before.

The rapid expansion of sugar production, concentrated in slave properties dedicated to this crop, indicates that such farms invaded the lands of many families, causing a large exodus. This research aims to study the relationship between the free small producers, especially those of color, and the expanding sugar production plantations, seeking the strategies outlined by these small farmers due the prospect of having their land "expropriated" by the lords of those developments.

This research will look for the meaning of the small productions for those smallholders and the chances of survival or even enrichment in a plantation economy society. The period 1779-1836 was chosen because it includes the previous expansion of sugar production time and extends to the Lists of Inhabitants, when the township of San Carlos has presented itself as a significant exporter of sugar. The nominative record linkage method purpose is to follow over the years and on all kinds of documentation, food producers described as farmers of color in the census so that we can analyze the strategies designed at different periods of the expansion of plantation. Their households, also described in the census, will be followed over the years so that any changes in their compositions are analyzed and related to other documentation.

Key-words: Slavery, Agriculture- Latin America, Land tenure – Legislation – Brazil, Sugar,

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Tabela 1: Idade dos Chefes de Domicílio, 1773...p. 50 Tabela 2: Idade dos chefes de domicílio, 1773, 1797, 1818 ...p. 54 Tabela 3: Escravos e domicílio, 1773...p. 55 Tabela 4: Escravos e domicílio, 1779... p. 55 Tabela 5: Escravos e domicílios, 1797...p. 56 Tabela 6: Bens Rústicos: proprietário, escravos e área...p.101 Tabela 7: Bens rústicos: média e mediana da área (braças quadradas) por escravaria...p.102 Tabela 8: Bens rústicos: Cunha, Campinas e São Jose dos Campos...p.104 Tabela 9: Chefes de domicílio, cor e escravos...p. 172 Tabela 10: Inventários, 1798 – 1829... p. 172

Gráfico 1: Produção de açúcar e milho (arrobas), 1798-1822...p. 64 Gráfico 2: População total, escrava e livre...p. 65 Gráfico 3: População livre e escrava até 1826...p.69

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AESP – Arquivo do Estado de São Paulo AEL – Arquivo Edgard Leuenroth

CMU – Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas TJSP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

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Introdução ... 11

Metodologia ... 20

Capítulo 1 – Movimentos da História ... 35

1.1 A importância dos movimentos ... 37

1.2 De passagem a destino ... 43

1.3 Quando o destino também é de Gaviões ... 62

Capítulo 2 – Sesmaria, terra, posse e açúcar ... 71

2.1 Posse, terra e direito... 73

2.2 A posse questionada: senhores de terras, posseiros e açúcar ... 86

2.3 Da posse ao título: permanências e fugas ... 94

Capítulo 3 – A vida na terra ... 107

3.1 A vida em meio a canaviais: riqueza e posse de cativos ... 108

3.2 A vida em meio à família e à vila ... 125

Capítulo 4 – A convivência nada amigável com os engenhos e seus senhores ... 135

4.1 A grama é sempre mais verde do outro lado: invasões ... 136

4.2 A competição no mercado local ... 146

4.3 Agregados, camaradas e agricultores “a favor”: negociando o trabalho ... 153

4.4 Sobre os que decidiram ficar ... 168

Epílogo ... 175

Lista de Fontes ... 179

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Introdução

Essa tese contará a história de mulheres e homens comuns que viveram em uma zona de fronteira em expansão mercantil e geográfica entre os séculos XVIII e XIX no Brasil. Ao lado de suas famílias, camaradas e amigos, percorreram longas distâncias para tentar a vida em um local novo. Derrubaram matas monumentais, fizeram suas roças e construíram suas casas. Porém, não estavam sós; produtores de açúcar e plantadores de cana também logo montaram seus engenhos. Tensões e conflitos de terras tornaram-se cotidianas, evidenciando que a permanência na fronteira não seria um trabalho fácil para esses homens e mulheres.

No desenrolar da história, agricultores viram uma paragem de viajantes transformar-se em uma vila produtora de açúcar para abastecimento do mercado mundial. O acesso à terra mudaria completamente, a composição social também, obrigando famílias inteiras de pequenos lavradores a organizarem estratégias para sobreviver ao avanço dos produtores de açúcar, ao aumento da competição no mercado local de alimentos, entre tantos outros desafios. A história contada aqui é uma tentativa de inserir esses pequenos lavradores na história global, entendendo como a demanda por açúcar alterou a forma que se trabalhava, cultivava e vivia no Brasil. Para tal, as trajetórias de algumas famílias serão utilizadas para explicitar como pequenos agricultores enfrentaram, geração após geração, os efeitos de viver em uma zona de fronteira em expansão mercantil.

Quando Campinas era apenas um bairro de Jundiaí, o mercado mundial de açúcar passava por intensas transformações, tendo seu eixo de produção alterado nas décadas seguintes. No final do século XVIII, a revolta de escravos em São Domingos, Haiti, retirou a colônia francesa do posto de uma das maiores produtoras de açúcar do mundo e fez com que o preço desse produto subisse, estimulando o interesse no cultivo da cana em outros lugares. Nas colônias britânicas, a proibição do comércio de escravos em 1808 dificultou esse cultivo. A diminuição de competitividade permitiu que novos produtores investissem na exportação do açúcar e, especialmente os do Sudeste, conseguissem adentrar no mercado de exportação de

commodities.1 A competitividade dentro do território brasileiro não era alta, já que desde o século XVIII os produtores do Nordeste tinham certa dificuldade de acompanhar a produção de

1 EISENBERG, Peter. Homens Esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil – séc. XVIII e XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 1989, p. 317; SANTOS, Ynaê Lopes dos. Irmãs do Atlântico. Escravidão e espaço urbano no Rio de Janeiro e Havana (1763-1844). Tese (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Para um estudo sobre um processo similar, mas em Cuba, ver: FERRER, Ada. Freedom’s Mirror: Cuba and Haiti in the Age of Revolution. New York: Cambridge University Press, 2014.

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outros países exportadores, como Jamaica e São-Domingos.2 Adiciona-se a baixa competitividade nacional e fora do Brasil, à demanda por commodities tropicais como café e açúcar impulsionada pela Revolução Industrial.3 Com a produção de açúcar para exportação, a trajetória da vila passou a estar entrelaçada com a do mercado mundial. De acordo com Tomich (2011), “a demanda de algodão, café e açúcar atingiu proporções sem precedentes durante o século XIX, e a produção dessas safras revitalizou a escravidão em Cuba, nos Estados Unidos e no Brasil como parte dessa emergente divisão capitalista internacional do trabalho”.4

Tamanha demanda atingiria e transformaria áreas inteiras que dedicassem parte de sua produção para abastecer a demanda internacional. E foram diversas as mudanças que tal cenário proporcionaria a Campinas. A composição dos fogos, a natureza da produção local, a concentração de escravos e o acesso à terra alteram-se.

A região ocupada por Campinas era no limite das terras conhecidas pelos portugueses e, com pouco mais de cinquenta domicílios, não tinha grandes pretensões. Aqueles que nela viviam tinham pequenas produções de alimentos e escravarias que não passavam de uma dezena. A tímida plantação de cana era dedicada ao abastecimento regional de aguardente, porém esse cenário mudou rapidamente a partir das últimas décadas do século XVIII. Sua produção de açúcar atingiu uma importante monta em 1826, tomando o porto de Santos, alcançando outros países e movimentando milhões de réis.

Há 50 anos fundou-se um engenho de açúcar no distrito de Anhumas e prosperando este tem-se fundado por toda a extensão deste distrito, que hoje possui 85 [engenhos]. (...)as ditas fábricas têm em totalidade 2.712 cativos [P]roduzem 150 mil arrobas de açúcar5 e como todas elas tem alambiques que produzem por ano 9 mil canadas de aguardentes, exportam se estes gêneros para o mercado do Rio de Janeiro e pelo porto de Santos.6

Deixava, então, para trás o passado de bairro de Jundiaí que servia de pequena paragem para viajantes. Campinas fornece, portanto, um cenário ideal para o estudo sobre como pequenos agricultores lidaram com o avanço não só da plantation como também do capitalismo. A chamada “Segunda Escravidão”7 traria mudanças intensas nas maneiras em que

2 KLEIN, Herbert S. & LUNA, Francisco Vidal, Slavery in Brazil, New York: Cambridge University Press , 2010, p. 35-52.

3 MARQUESE, R. & SALLES, R. Apresentação. In: MARQUESE, R. & SALLES, R. (orgs.) Escravidão e capitalismo histórico no século XIX, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

4 TOMICH, Dale. Pelo Prisma da Escravidão. Trad. Antônio de Pádua Danesi, São Paulo: Edusp, 2011, p.89 5 Cada arrouba equivale a 14,74560, ficando 150 mil arroubas cerca de 2.221 toneladas.

6 Arquivo do Estado de São Paulo, Ofícios diversos, Mapa Estatístico da Vila de São Carlos de 1826, Remetente Antônio Francisco de Andrade.

7 TOMICH, Dale. Pelo Prisma da Escravidão...; LAVIÑA, Javier & ZEUSKE, Michael. (orgs.) The Second Slavery: Mass Slaveries and Modernity in the Americas and in the Atlantic Basin, Berlin: LIT Verlag, 2013.

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se ocupava a terra, no ritmo da produção agrícola e na concentração de riqueza. O Mapa Estatístico de 1826 continuava em outras linhas evidenciando essas mudanças na cidade. A escravaria local era majoritariamente de origem africana; “crioulos 353 homens e 396 mulheres”, enquanto africanos eram “2418 homens e 483 mulheres”. A alta taxa de masculinidade e a origem africana dos escravos são evidências do tipo de produção acelerada que a cana exigia naquele momento. De acordo com Blackburn (2016), “A segunda escravidão estava ligada à aceleração do capitalismo industrial e conforme este se expandia o número de tarefas extenuantes a serem realizadas se multiplicava”8 e, assim, o trabalho escravo tornava-se

essencial.

Aliada ao estímulo do mercado internacional estava a preocupação do governo colonial em ocupar a Província de São Paulo com o objetivo central de controlar a ameaça da expansão das colônias espanholas. De acordo com Bellotto (2007), o governo da capitania pretendia ocupar essa região limítrofe, da qual Campinas fazia parte. As povoações funcionariam como “um forte tampão entre a região hispano-americana e a área que abrigava Minas e a capital do Estado do Brasil, Rio de Janeiro”.9 Essa política teve papel fundamental

no estímulo ao ingresso da Vila de São Carlos, atual Campinas, no mercado mundial. Havia o interesse em garantir o povoamento e a estabilidade dos moradores com objetivo de evitar a perda do território para os espanhóis e a família ocupava local central no discurso sobre o povoamento de São Paulo, pois ofereceria estabilidade e o pessoal necessário para compor eventuais destacamentos militares.10

Foi nesse contexto que muitas famílias dirigiram-se a Campinas em busca da possibilidade de iniciar um cultivo e vender para os viajantes da estrada que margeava a localidade. Dentre tantas, cinco famílias decidiram sair de seu bairro, onde eram vizinhos, em Atibaia e se mudar para Campinas. E, em 1799, pouco menos de quatro anos após a mudança, todos foram levados à justiça por terem se introduzido em uma sesmaria e começado um roçado. Entre ordem de despejos, reentradas na sesmaria e mudanças para outras vilas, ficava cada vez mais claro que seus movimentos estavam relacionados ao avanço da produção de açúcar.

8 BLACKBURN, Robin. Por que segunda escravidão? In: MARQUESE, R. & SALLES, R. (orgs.) Escravidão e capitalismo histórico no século XIX, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p.19.

9 BELLOTTO, Heloísa L. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). 2. ed. São Paulo:Alameda, 2007. p.60.

10 TEIXEIRA, Paulo E. Açúcar, escravidão e chefes de domicílios: Campinas, 1765 a 1829. African slavery in the Américas: the Brazilian experience, XIII Congresso Internacional de História Econômica – IEHA, Buenos Aires, 2002. Disponível em: <http://historia_demografica.tripod.com/pesquisadores/teixeira/ieha-2002.pdf>, acesso em: 1 nov. 2013.

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A região de Campinas era, portanto, nesse período, uma fronteira aberta em expansão. Em 1740, as primeiras datas de sesmarias foram distribuídas. Era ainda uma área com pouquíssima ocupação, que permitia o estabelecimento de domicílios. Ainda em 1779, a Vila de São Carlos contava com uma população reduzida e apenas 66 fogos.11 Esse vazio demográfico atraiu famílias e indivíduos que vislumbravam construir seus domicílios e investir no cultivo de alimentos para sua subsistência, quiçá para o comércio local. Quando os posseiros decidiram sair de Atibaia e ir para a Vila de São Carlos, a população já mostrava seu crescimento, chegando no ano anterior, em 1798 a pouco mais de 2500 pessoas e 328 domicílios.12

A Vila de São Carlos, então, estimulada tanto pelo cultivo de cana quanto pelas políticas para o povoamento, viu sua população e sua produção aumentarem rapidamente a partir das últimas décadas do século XVIII. O número de livres passou de 388, no ano de 1774, para 3700, em 1814, enquanto a população cativa crescia em um ritmo maior, de 87 para 1893 escravos nesse mesmo período e atingindo o número impressionante de 4800, em 1829.13 A produção de açúcar de São Carlos ultrapassava nesse último ano mais de 120 mil arrobas e a vila despontava como importante produtora de açúcar da Província de São Paulo.

Essa constante movimentação de pessoas para Campinas sofreu uma alteração brusca no período entre 1814-1829. Cabe lembrar aqui que o ano de 1829 corresponde ao último recenseamento completo da Vila de São Carlos. A população livre nesse período mantém-se praticamente estagnada, passando de 3700 para apenas 3746 e revelando um cenário muito diferente do crescimento apresentado anos antes. Enquanto isso, a população cativa cresceu de 1893 para 4800.14 Para Paulo Teixeira (2002), credita-se o baixíssimo crescimento do número de livres a “uma grande evasão de casais com filhos” da vila. O autor assinala que, no mesmo período, o aumento esteve presente no número de domicílios singulares e desconexos, evidenciando a evasão de famílias inteiras. Como demonstraremos adiante, os filhos e netos dos posseiros, que em 1799 invadiram uma sesmaria, abandonaram a vila ou permaneceram como jornaleiros e sem contar com uma lavoura de subsistência.

A rápida expansão do cultivo de açúcar, juntamente com a emigração de muitas famílias sugere que os engenhos invadiram as terras de muitos agricultores pobres ou criaram

11 Arquivo do Estado de São Paulo, Lista de Habitantes de Campinas de 1779. 12 AESP, Lista de Habitantes de Campinas de 1798.

13 SLENES, Robert W. A. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil, Sudeste, século XIX, 2ª Ed. corrigida, Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011, p. 78. TEIXEIRA, Paulo Eduardo. Op.cit., p. 09.

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condições que desestimularam a permanência deles na Vila. Afinal, o ritmo ainda maior da produção de açúcar exigia um maior acesso à madeira, a novas fontes de água, a terrenos maiores para revezamento do solo e para criação de animais, levando os donos de extensas terras a buscar ainda outras porções de território. O cultivo de açúcar para exportação chegava a queimar as florestas em uma proporção quatro vezes maior do que o cultivo feito nas roças, necessitando, portanto, uma área cada vez mais abrangente.15 Além das necessidades do cultivo da cana de açúcar, a produção de alimentos e a criação de animais por parte desses grandes produtores podem ter acirrado a competição entre os produtores com pequena ou nenhuma escravaria.

Eram comuns os conflitos judiciais em torno do direito à posse da terra. Muito frequentemente, os pequenos posseiros, como os da sesmaria de Gavião, alegavam que, por não estar cultivada, a terra poderia ser ocupada e quem o fizesse ganhava direito sobre ela. De certa maneira, os princípios mais fundamentais das leis agrárias portuguesas estavam difundidos entre pequenos invasores, posseiros e agricultores: a terra é de quem nela trabalha. Uma visão que ia de encontro às defesas de sesmeiros, que como o Coronel Gavião, muitas vezes, ganharam o título, sem ter a menor intenção de iniciar um cultivo.

Mesmo fora dos tribunais, esse processo de atrito entre os produtores com nenhum ou poucos escravos e os grandes proprietários de terra parece ter marcado outras cidades. Luna e Klein (2010) compararam a composição demográfica dos produtores de alimentos e animais entre cidades que produziam e não produziam gêneros exportáveis. Em Cunha, nas primeiras décadas do século XIX, a produção era destinada aos alimentos e o valor da produção de exportáveis representava menos de 5% do valor de todas as produções agrícolas. Apesar do uso intenso de escravos no cultivo de alimentos e na criação de animais, a escravaria era bem distribuída, não havendo grandes concentrações. Jacareí, por outro lado, dedicava-se à produção de alimentos, porém a partir da década de 1820, iniciou o cultivo de café. Diferentemente de Cunha, os produtores de café tornaram-se responsáveis por cerca de um terço da produção de alimentos da Vila.16 Areias e Jundiaí apresentaram um cenário semelhante para as primeiras

décadas do século XIX. A participação dos produtores de milho sem cativos na produção diminuiu, assim como dos proprietários das escravarias menores.17 A comparação fica clara.

15 DEAN, Warren. Ecological and Economic Relationships in Frontier History: São Paulo, Brazil. In: WOLFSKILL, George; PALMER, Stanley. (eds.) Essays on Frontiers in World History. College Station, TX: Texas A & M University Press, 1983, p.89.

16 LUNA, Francisco V. & KLEIN, Herbert S. Escravidão africana na produção de alimentos. São Paulo no século XIX. Estudos Econômicos, vol.40, nº 2, jun. 2010, p. 295-317, p.304.

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Cabe lembrar que essas duas localidades, Jundiaí e Areias, eram importantes centros produtores de, respectivamente, açúcar e café. Assim, as unidades agrícolas dessas regiões estavam crescendo com o passar do tempo e desalojando os produtores menores, com ou sem escravos. O crescimento das unidades agrícolas que produziam milho, mas não produziam café ou açúcar, também revelou esse padrão de crescimento, resultando no predomínio cada vez maior da produção baseada no braço escravo e dos maiores produtores. (LUNA; KLEIN, 2010) 18

Desalojar pequenos produtores parece ter sido uma regra no estabelecimento de grandes produções. Em seu livro Rio Claro, Warren Dean descreveu o processo de expropriação de terras sofrido pelos posseiros e pequenos produtores no momento em que os sesmeiros adquiriram os direitos às propriedades. Os grandes produtores afastavam os posseiros para as margens das grandes propriedades. Ao sofrerem esse processo, os posseiros desempenhavam dois importantes papéis para a grande produção: deixavam para trás uma terra já desmatada e com seu avanço afastavam a ameaça indígena.19

A concentração de processos de disputa de terras no período em que se iniciava a produção de açúcar para exportação em Campinas confirma que havia conflitos constantes entre os agricultores e os senhores de engenho. No período entre 1808-1829, ocorrem 48 ações de Força, que são ações movidas quando há alguma ameaça à propriedade. Das 89 ações de Força que compõem o acervo do Tribunal de Justiça de Campinas do Centro de Memória da Unicamp, 55 concentram-se no período de 1801-1829, estando as demais diluídas até 1850. Há para esse período uma concentração de processos denominados Libelos Cíveis cujo teor é de disputa de posse, queima de cultivos ou ainda agressões entre vizinhos.

A maneira que a agricultura era feita também passava por transformações. A concentração de escravos mostra que a composição dos produtores agrícolas estava se alterando drasticamente na Vila de São Carlos. Em 1801, os fogos com menos de 10 cativos continham 27,2% da população escrava. Em 1829, esse número cai para 12,9%. A concentração escrava fez com que fogos com mais de 50 escravos passassem a ter 49,4% da população cativa. A concentração fica evidente quando comparamos com o ano de 1801, no qual esses mesmos fogos continham apenas 10,2%.20 Se retornarmos ao Mapa Estatístico de 1827, vemos que a mão de obra escrava era essencialmente africana. O tráfico de africanos para o sudeste do Brasil havia aumentado substancialmente entre o fim do século XVIII e as primeiras décadas do XIX. Entre 1776 e 1800, foram pouco mais de 290 mil escravos. Já no período de 1801 a 1825, a

18 Idem, p.308.

19 DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Trad. Waldívia Portinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.32 e 37.

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quantidade quase dobra, chegando a 557.491.21 A presença de escravos africanos indica que a produção agrícola da região sudeste estava cada vez mais interligada com o mercado mundial, o que poderia afetar diretamente a permanência dos produtores de alimentos.

Valter Martins (1996) relata uma manutenção no número de fogos de pequenos agricultores. Para o autor, pequeno agricultor é aquele que, independentemente do número de escravos, produz alimentos. Ainda com essa amplitude em seu conceito de pequeno lavrador, encontra-se em Campinas, no ano de 1829, praticamente o mesmo número de fogos chefiados em 1800. Eram 314 nesse ano, passando a 317 em 1829. A composição étnica se alterou. No começo do século, 68,1% dos chefes de fogos de pequenos agricultores eram pardos e, quase três décadas depois, esse número cai para 35,5%.22 O cultivo de alimentos que antes era dominado por libertos e pardos livres passou a ser majoritariamente branco.

Os dados de Valter Martins corroboram a conclusão de Peter Eisenberg em um estudo sobre as gerações de agricultores de Campinas. Para Eisenberg, os produtores que tiveram algum tipo de enriquecimento foram aqueles que investiram no cultivo de cana. Fossem eles plantadores de cana de partido ou donos de engenhos, sua mobilidade social seria mais certa do que aqueles que se dedicavam aos alimentos. Os senhores de engenho constituíam a maior parte das pessoas mais ricas enquanto entre os mais modestos a ocupação comum era de lavrador. A distância entre as riquezas mais modestas comparadas às mais ricas se intensificou. O autor ressaltou que os plantadores de cana ou senhores de engenho eram brancos. 23 Há a possibilidade de embranquecimento de uma parcela desses produtores. Uma vez tendo enriquecido e conquistado prestígio social, alguns produtores pardos podem ter sido descritos como brancos na documentação. Essa possibilidade já apareceu em outros trabalhos, inclusive, sobre regiões próximas de Campinas, como Porto Feliz.24 Como a proposta aqui apresentada pretende seguir os produtores nos recenseamentos ao longo dos anos, o eventual processo de embranquecimento também será percebido e analisado.

Os dados compilados por Eisenberg, Slenes e Martins demonstram que houve aumento na concentração de renda e na concentração de escravos, o que nos pode indicar que se não houve uma intensa concentração de terras, houve disputas sobre elas. As possibilidades

21 Ver: The Transatlantic Slave Trade Database, www.slavevoyages.org, acesso em: 3 fev. 2018.

22 MARTINS,Valter. Nem senhores, nem escravos: os pequenos agricultores em Campinas, 1800-1850, Campinas: Ed. CMU/Unicamp, 1996, p.40.

23 EISENBERG, Peter. Senhores de engenho e plantadores de cana em Campinas, 1798-1829 (Relatório de Pesquisa). In: Homens Esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil – séc. XVIII e XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 1989.

24 GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c. 1850). Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj, 2008.

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de se manter na terra e de ascender socialmente foram duramente impactadas em menos de meio século, após a expansão do cultivo de açúcar para exportação. O avanço das grandes propriedades levou famílias inteiras a se mudarem, porém muitas outras permaneceram na Vila, traçando todo tipo de estratégia para sobreviver em meio ao avanço da produção de açúcar.

Ao mesmo tempo em que essa zona de fronteira aberta oferecia um espaço para firmar e dar início a uma roça e à construção de um domicílio, ela atraía o interesse de grandes produtores de açúcar e poderia ter trazido consigo um novo mercado repleto de consumidores. Conviver às margens das grandes propriedades poderia ser simultaneamente perigoso por trazer instabilidade à posse da terra e sedutor porque o mercado local também aumentava, possibilitando a venda de um excedente da produção.

Em poucas décadas a produção de açúcar e a plantação de cana tornaram-se volumosas e podem ter rivalizado com os produtores de alimentos cuja representação demográfica e econômica sofreu uma queda vertiginosa, percebida, principalmente, por um êxodo de famílias que deixaram a cidade em busca de uma nova fronteira em expansão ainda nas primeiras décadas do século XIX. Ao mesmo tempo que poderia encontrar nas unidades produtoras de açúcar um rival, os pequenos agricultores poderiam talvez se tornar fornecedores de alimentos. Em Cunha, de acordo com Luna e Klein (2010), produtores de alimentos viram sua população escrava aumentar com os rendimentos de cultivos e da criação de animais para o mercado. 25 Porém, o avanço do açúcar parece ter sido muito mais intenso em Campinas. De acordo com Müller, em 1836, já não havia terras devolutas na referida vila.26

A relação entre produtores tão diferentes pode até ter sido complementar. Os agricultores que se dedicavam aos alimentos poderiam suprir a demanda das escravarias e da população livre que aumentava, ao mesmo tempo que aproveitariam os eventuais trabalhos sazonais que os produtores de açúcar pudessem oferecer. O Mapa Estatístico mencionava que os engenhos, durante a fabricação de açúcar que durava de dezembro a maio, pagavam aos jornaleiros 200 réis/dia, indicando que por algum período do ano, os engenhos precisavam de mão de obra extra. Porém, essa relação complementar não parece ter sido suficiente para custear a vida desses trabalhadores. Os donos de engenhos e partidores de cana assumiram para si também a produção de alimentos, o que tornou ainda mais difícil a permanência dos produtores de alimentos. A dificuldade era tamanha que não foi à toa que, à época da morte de um dos posseiros da sesmaria do Coronel Gavião, seus filhos não mostraram interessem algum nas

25 LUNA, F. V. & KLEIN, H. S. Escravidão africana..., p.301.

26 MÜLLER, Daniel P. Ensaio d'um quadro estatístico da Província de S. Paulo, ordenado pelas leis provinciais de 11 de abril de 1836, e 10 de março de 1837. p.48.

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ferramentas ou animais de roça. No censo do período, todos foram descritos como vivendo de jornais, evidenciando que cultivar tinha ficado no passado. Desta maneira, Campinas, como estudo de caso, proporciona elementos para analisar o processo de expansão e encolhimento da fronteira para os pequenos produtores e como esses últimos relacionaram-se com o avanço das propriedades produtoras de exportáveis.

Essa dualidade já fora apontada por outros autores. Warren Dean relata essa dualidade da presença dos posseiros em meio às grandes lavouras. No início, esses pequenos proprietários encontraram um mercado para os excedentes de sua produção de alimentos. Após algum tempo e devido à expropriação de suas terras poderiam passar de fornecedores de alimentos a fornecedores de mão de obra barata. Àqueles pequenos produtores que recebiam permissão de permanecer nas terras, restava uma situação de dependência do poder político dos grandes fazendeiros.27 Dean (1977) ressalta ainda que esse processo de interação entre os posseiros e os sesmeiros não foi feito de forma pacífica.

Para José de Souza Martins (1996), a história da fronteira no Brasil é a história do conflito social, das revoltas, de disputas, de sonhos e esperanças.28 Há, para o pesquisador, dois movimentos que modificam a zona de fronteira: a ocupação demográfica e a econômica. Se seguíssemos a análise de Martins, poderíamos dizer que, na fronteira que se estabelecia na Vila de São Carlos, o movimento de povoamento parece ter acontecido quase simultaneamente ao estabelecimento da fronteira econômica. Produtores de alimentos fixaram-se com suas produções e, com o avanço da fronteira econômica, encontrariam na região mercados locais para vender possíveis excedentes e um espaço de estabilidade em sua posse. Porém, a partir do momento que a produção de açúcar na Vila tornou-se intensa e os engenhos se expandiam, em uma velocidade muito grande, a manutenção da terra para esses produtores de alimentos de subsistência tornou-se mais difícil e a esperança de um enriquecimento mais distante.

A experiência dessa massa de trabalhadores está intrinsecamente ligada ao acesso à terra e à própria formação da mão de obra no Brasil. Para além das restrições e expropriações que esse grupo vivia, haveria a possibilidade de ascensão econômica e social para aqueles que conseguiam se manter como produtores de alimentos. A experiência de pardos e seus descendentes na manutenção da terra teria, portanto, peculiaridades?

27 DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Trad. Waldívia Portinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 33-35.

28 MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira. Retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão e da frente pioneira. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, SP, 8(1): 25-70, maio 1996.

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A trajetória dos produtores de alimentos parece estar intimamente relacionada à expansão da produção de açúcar, desde a chegada dos primeiros engenhos de aguardente até o avanço das grandes propriedades exportadoras na vila. O significativo êxodo de famílias inteiras, apontado por Teixeira (2002), indica que a permanência na vila estava ameaça pelo açúcar e que, nem sempre, os agricultores entraram na justiça para proteger a posse, preferindo migrar. As escolhas feitas por esses agricultores trazem importantes indícios de como interpretaram e encararam a expansão do açúcar, a dificuldade de manter suas posses e a possibilidade de se tornarem apenas trabalhadores a jornal. Mais do que uma história local, essa tese contará a história de como pessoas comuns lidaram com o avanço do capitalismo.

Metodologia

Acredito que as trajetórias e as escolhas dos agricultores que permaneceram na Vila de São Carlos podem nos ajudar a entender também o que aconteceu com aqueles agricultores que saíram da vila. Ao resgatar as trajetórias vividas por esses agricultores, poderemos entender como operavam os arranjos produtivos e sociais do cultivo de alimentos dentro de uma economia em amplo desenvolvimento e quais os sentidos que essa população imputava à sua posse, ao cultivo, e à constante ameaça que suas terras sofriam e à realidade iminente de se tornarem trabalhadores.

Para tal, proponho a análise tanto das trajetórias de alguns agricultores pardos como de agricultores brancos, cotejando as fontes e analisando as diferenças entre esses dois grupos em relação ao acesso à terra, as possibilidades de ascensão social e também na manutenção da propriedade, apesar do avanço da produção mercantil na cidade.

A partir de análises das trajetórias de pequenos produtores, traçadas a partir dos censos, inventários e processos jurídicos, apresentamos as escolhas feitas por eles na situação contraditória em que se encontravam: proximidade simultaneamente vantajosa e ameaçadora às unidades produtoras de açúcar. Com as trajetórias, podemos entender a maneira que procuravam construir arranjos produtivos e sociais para cultivar alimentos dentro de uma economia em crescimento.

Para responder a essas inquietações é necessário estudar esse processo a partir da perspectiva da micro-história, seguindo os rastros deixados por esses posseiros, agricultores e pequenos produtores ao longo de suas vidas. A proposta aqui desenvolvida é segui-los, portanto, usando a abordagem da micro-história e o método da ligação nominativa. Ao acompanhar

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produtores de alimentos e seus domicílios por diversos anos, podemos analisar as estratégias utilizadas em diferentes momentos da expansão da produção de açúcar.

Essa perspectiva faz-se necessária para se construir uma visão mais abrangente sobre a relação entre os pequenos produtores, a economia interna e a plantation que considere as experiências para além dos conflitos pelos quais esses sujeitos passaram. A micro-história permite analisar as escolhas individuais nas trajetórias vividas por esses sujeitos, evitando interpretações estritamente econômicas ou marcadas pela violência.

Outras pesquisas abordaram os agricultores em Campinas. Valter Martins tinha como objetivo principal perceber os níveis de acumulação dos produtores de alimentos da Vila de São Carlos. O autor conseguiu uma ampla amostragem da cultura material que cercava o grupo pesquisado. Porém, ao priorizar apenas o cruzamento dos nomes desses produtores com inventários e testamentos, o autor faz um recorte que prioriza aqueles que conseguiram acumular algum bem. Os processos de disputas de terras e os processos crimes não são foco de sua análise, o que faz com que as trajetórias desses agricultores pouco rivalizem com a expansão do açúcar na vila. Paulo Teixeira e Dora Costa (2000) também tinham como objetivo Campinas no mesmo período, porém as análises foram feitas por meio da abordagem demográfica, sem contemplar os resultados com a perspectiva dos próprios sujeitos.29

Famílias inteiras lidaram com a iminência de serem expulsas de suas terras e perderem meses de trabalho em suas roças para dar lugar à produção de açúcar. Ameaçados de serem retirados de suas posses ou expropriados de suas produções e obrigados a viver da venda de sua força de trabalho, esses homens e mulheres teceram numerosas estratégias para assegurar sua permanência. Outros podem ter aproveitado o mercado local que crescia. A análise de como produtores rurais, principalmente os de alimento, lidaram com o avanço da produção de açúcar, seja na perspectiva de serem despejados pelas empresas produtoras desse exportável ou na oportunidade de aproveitarem o mercado de consumo e trabalho impulsionados pelo açúcar torna-se essencial.

Ainda que seja um tema clássico, há poucos estudos que analisam o processo de expulsão de pequenos lavradores pelas grandes propriedades produtoras de exportáveis. Mais escassos ainda são os que enfocam a análise nas perspectivas dos pequenos agricultores. Torna-se importante analisar os significados do cultivo e da posTorna-se da terra em relação à iminência de se perder a terra; da justiça, da legislação da terra e também os sentidos da permanência, apesar

29 TEIXEIRA, Paulo. Op.cit. e COSTA, Dora Isabel P. As mulheres chefes de domicílios e a formação de famílias monoparentais: Brasil, século XIX. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 17, n.1/2- jan. dez. 2000.

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dos avanços da produção de açúcar, e do êxodo em busca de uma nova fronteira. As questões postas por essa pesquisa emanam dos próprios desafios de se analisar a fronteira e também a relação entre os pequenos produtores de alimentos com os produtores de exportáveis. Não se originam, portanto, de uma especificidade do estudo de caso, mas da urgência de se pensar a história rural, intrinsecamente conectada com a história do trabalho, seja esse assalariado ou não.

Para recuperar os significados que esses homens e mulheres comuns criaram em relação a seus cultivos, perda de suas terras e outras questões centrais como justiça e legislação, foram utilizados o método de ligação nominativa com a perspectiva da micro-história, pois acredito que essa abordagem permita analisar as diversas estratégias engendradas ao longo de suas vidas. Desta maneira, atitudes que parecem a uma primeira vista sem significado óbvio, como a mudança para a vila vizinha ou a escolha de um cultivo diferente, possam integrar o repertório de estratégias acessíveis desses trabalhadores.

Henrique Espada Lima vem demonstrando a eficácia de tal abordagem, ao pesquisar, “os arranjos de vida” engendrados por libertos logo após a alforria. Ao seguir alguns libertos e contratos de doação, Lima percebeu que muitos permaneciam ao lado de seus senhores idosos ou doentes. Na interpretação do autor, esses libertos não estavam sendo enganados por seus senhores cuja intenção seria lhe expropriar mais trabalho. Pelo contrário, os libertos vislumbravam a possibilidade de terem acesso à propriedade de seus senhores quando esses falecessem, ou seja, uma alternativa para o futuro que parecia mais atraente do que iniciar a vida em liberdade sozinhos, sem recursos e vulneráveis.30

Lima critica a ideia recorrente de considerar a liberdade dos alforriados como um sinônimo de liberdade de negociar a força de trabalho. Aborda, dessa forma, as noções sobre liberdade a partir da perspectiva dos próprios agentes históricos. Ao indagar sobre os contratos de locação de serviços aos quais libertos se submetiam para pagar dívidas ligadas à alforria, Lima percebeu que, frequentemente, a relação entre o valor do que se devia e o tempo de serviço não correspondia ao valor de mercado do trabalho contratado, sendo o tempo muito maior. Para o autor, essa decisão estaria relacionada ao modo como os próprios libertos viam a sua condição de precariedade. Lima (2005) argumenta que os libertos não fariam esse tipo de contrato por estarem submetidos a uma lógica tão intensa de dominação senhorial que mesmo podendo se libertar escolheriam prestar mais tempo de serviço. Fariam porque tentavam garantir por mais

30 LIMA, Henrique Espada. “Arranjos de vida e moradia de ex-escravos no Desterro no século XIX a partir das fontes cartoriais”. In: IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2009, Curitiba.

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tempo sua subsistência e eventuais cuidados dos patrões no caso de doenças, diminuindo, assim, a incerteza no futuro. 31

Os estudos sobre os diferentes significados que os subalternos construíram revelam que, apesar da posição social que ocupavam, esses grupos disputavam interpretações sobre o trabalho, a liberdade e as leis. Márcia Motta analisou disputas legais de terra e a legislação sobre o tema. Influenciada por E. P. Thompson, a autora buscou os sentidos de legitimação da propriedade. Ao combater a ideia de que a legislação agrária possuía apenas uma interpretação possível, Motta (1998) revela uma diversidade de conceitos sobre justiça que os pequenos posseiros e “senhores de terras” construíram ao longo do século XIX.32 Para a autora, “as

interpretações conflitantes em cada litígio evidenciam como as partes em conflito lidavam com o questionamento da extensão de área que ocupavam ou da própria legalidade da ocupação ou, ainda, dos direitos dos arrendatários. Mas evidenciam e revelam ainda mais: fala de uma realidade indiscutivelmente não estática”.33Apesar dos esforços da autora em buscar as

diferentes interpretações sobre o direito de acesso à terra, prioriza o momento do conflito, retirando das trajetórias de posseiros e arrendatários uma série de estratégias e arranjos que fizeram para evitar embates, por exemplo.

A análise baseada na micro-história e o método de ligação nominativa revela variados aspectos das vidas das pessoas. Ao invés de fazer análise seriada de uma fonte, a ligação nominativa propõe a coleta do máximo possível de fontes que um indivíduo possa ter produzido ou nas quais tenha sido mencionado ao longo de sua vida. Por exemplo, se a pesquisa fosse limitada a registros de disputas, a conclusão seria de que era comum para pequenos agricultores levar questões à justiça e enfrentar senhores poderosos. Apelar aos juízes parece ter sido o último recurso desses produtores, especialmente se considerarmos a alta probabilidade de confrontos terem desfechos violentos ou mortais. Aqueles que iniciaram uma ação contra um grande proprietário fizeram-no como última solução, pois o embate direto poderia ter consequências muito perigosas para um pequeno produtor. Deixar a vila e ir em busca de novos lugares pode ter sido a resposta daquelas famílias que decidiram sair de Campinas nas décadas de 1810 e 1820.

Proponho interpretar a fuga dos sitiantes não como uma incapacidade de construir um espaço territorial e social para si, mas como uma possível forma de evitar o confronto direto

31 LIMA, Henrique Espada. “Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX.” In: Topoi, v.6, n.11, Rio de Janeiro, 2005.

32 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: Conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura/APERJ, 1998.

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e, por consequência, a perda do controle sobre a própria vida. Uma vez sem a segurança de produzir seus próprios alimentos, esses pequenos agricultores poderiam enfrentar situações de dependência social e miserabilidade.34 Mover-se pela fronteira poderia trazer a possibilidade de novos laços, mais promissores, até mesmo com senhores de engenhos. Perguntar-se quais as (des)esperanças que teriam aqueles que estivessem em uma disputa e colocá-las em perspectiva é recuperar as experiências dos agentes históricos e suas próprias noções de liberdade.

Portanto, entendo que a última opção para esses pequenos produtores seria o conflito direto na justiça ou mesmo o enfretamento pessoal com os grandes produtores. Limitar o estudo apenas às ações judiciais faz com que todas as estratégias de resistências construídas ao longo dos anos sejam ignoradas. James Scott faz uma densa crítica aos pesquisadores que priorizam apenas o conflito direto e argumenta que esperar que as resistências dos agentes históricos sejam sempre violentas ou diretas é colocar nossas expectativas sobre o objeto a ser estudado e ignorar os perigos e coerções que eles poderiam sofrer. Para esse mesmo autor, a prática de, paulatinamente, invadir a terra de um grande proprietário feita por pequenos camponeses garantiria mais segurança do que tomar um pedaço de terra publicamente ou desafiar seu proprietário judicialmente.35

Os pequenos produtores se valiam, portanto, de diversas estratégias para resistir ao avanço da plantation descrito por Emília Viotti da Costa.36 Transformavam a composição de seu domicílio, incluindo ou se desfazendo de parentes ou agregados, com o objetivo de construir relações que assegurassem condições mínimas para manter a sua posse. Outros tantos escolhiam se mudar com suas famílias para outras vilas, abandonando seus cultivos ao invés de iniciar uma disputa legal. Portanto, é necessário analisar os variados destinos desses agricultores para entender como lidaram com o momento que viviam.

O interesse em estudar outros aspectos da vida de agricultores para além das disputas legais têm uma longa tradição nos estudos da micro-história. O primeiro autor e um dos fundadores da micro-história, Eduardo Grendi, argumentava que “a cultura e os relacionamentos entre trabalhadores eram extremamente importantes para explicar como os indivíduos organizavam-se socialmente”.37 Grendi apontava para a importância que a

34 SCOTT, James C. The moral economy of the Peasant: Rebelion and subsistence in Southeast Asia. New Haven and London: Yale University Press, 1976, p.27

35 SCOTT, James. Weapons of the weak: everyday forms of peasant resistance. New Haven, Yale University Press, 1985, p.32.

36 COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia, SãoPaulo: Editora da Unesp, 4ª edição, 1998.

37 LIMA, Henrique Espada. A micro história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.172.

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antropologia e demografia deveriam ter nos estudos históricos. Em sua opinião, a pesquisa histórica deveria ser muito similar à pesquisa de campo feita por antropólogos. O cotidiano, a cultura, as relações entre trabalhadores, família, parentela, e outros grupos tornam-se ferramentas centrais para um historiador da micro-história. Por essa razão, a ligação entre muitas fontes é indispensável para abordar as relações e cultura de uma pequena comunidade. A microanálise permite, então, por meio de um foco reduzido, uma abordagem totalizante de práticas sociais e históricas. Desta maneira, o domicílio e a família passam a ter um papel fundamental na análise uma vez que as relações produzidas a partir deles trazem aspectos cruciais da produção e de reprodução de relações em uma sociedade.38 De acordo com Grendi,

a análise de uma família e seu domicílio fornece uma perspectiva global de toda uma sociedade e suas mudanças.

Seguindo as sugestões de Grendi, Giovanni Levi comparou a sua investigação sobre exorcismo em um vilarejo italiano a uma pesquisa antropológica. Para ele, a abordagem da micro-história no estudo que fez era “semelhante à pesquisa de campo, como se estivéssemos na praça de Santena ouvindo, durante 25 anos, tudo aquilo que aconteceu nas famílias e que, graças ao acúmulo de notícias, se define sempre mais, como fisionomias e acontecimentos particulares”.39 O autor observou, no entanto, que a análise deveria focar mais nas relações

estabelecidas pelos moradores do que em estruturas familiares.40 Mais uma vez, as relações sociais aparecem como centrais para a análise da micro-história. Através de laços de solidariedade e parentela é possível entender como pequenos agricultores buscaram lidar com propriedade, pobreza, mudanças climáticas, como seca, e a morte de um membro das famílias, que por si só reduziria a força de trabalho de um domicílio. A micro-história criou novos desafios para os estudos históricos e deslocou o centro da análise da estrutura, seja ela política ou econômica, para os sujeitos considerados insignificantes. Demonstrou, ainda, que pequenos produtores, camponeses, mulheres, escravos estavam inseridos na sociedade, forjaram culturas, relações e estratégias para sobreviver.

O cotidiano contém parte das estratégias de vida desse grupo. As escolhas do cultivo, do momento de se investir em algum animal, de ter mais um filho, de receber ou se mandar embora um parente, não podem ser ignoradas pelo pesquisador. Essas escolhas fazem

38 Idem, p. 194.

39 LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 89.

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parte do projeto da vida do pequeno produtor, relacionam-se intimamente com as mudanças do mercado e o ajudam a construir suas experiências de liberdade.

O método utilizado foi o de “ligação nominativa”, no qual se estabelece que um indivíduo deve ser seguido ao longo dos anos nas mais diversas fontes documentais, possibilitando, desta maneira, analisar as diversas escolhas engendradas por ele. Será utilizada também a análise da estrutura familiar desses sujeitos a partir da Lista de Habitantes, também conhecido como recenseamentos. As famílias desses sujeitos serão acompanhadas, seguindo a as observações de Lutz Berkner (1972) para esse tipo específico de fonte documental.41 Se as

famílias são seguidas com constância nos recenseamentos, as mudanças em sua composição podem ser analisadas e relacionadas com as transformações do contexto que ocupam. As transformações econômicas e sociais são perceptíveis na composição familiar e a própria rede familiar de dependentes pode ser considerada uma das formas de estratégia desses pequenos agricultores para a manutenção de sua terra e produção.

Através da análise das trajetórias dos pequenos produtores de alimentos que viviam em Campinas, serão analisadas a estrutura agrária da época, os conflitos que dela se originavam, a legislação relacionada, as estratégias de cultivo e permanência dos pequenos produtores e a relação entre as grandes produções voltadas para a exportação e as produções de alimentos. Campinas fornece um cenário propício para análise dos conflitos entre plantation e pequenos produtores e posseiros.

Tenho como objetivo principal entender quais foram as estratégias traçadas pelos homens livres de cor cuja produção agrícola passou a estar em constante conflito com os grandes produtores de açúcar e engenhos que se estabeleceram em Campinas a partir da segunda metade do século XVIII. São analisadas as estratégias de plantio, a composição dos fogos, as relações de dependência entre os familiares e também redes sociais nas quais esses pequenos produtores se inseriam, a fim de assegurar sua permanência na propriedade, sob o perigo iminente de se tornarem trabalhadores sem acesso à terra.

Para um agricultor, a permanência de dependentes em sua propriedade era fundamental para a manutenção e o crescimento da produção. Quando um chefe de família sustentava seus filhos durante a infância, esperava que as crianças já em idade para o trabalho retribuíssem esse investimento, auxiliando no cultivo. Ele esperava também que seus filhos lhe oferecessem cuidados na velhice.

41 BERKNER, Lutz “The stem family and the development cycle of the peasant household: na eighteenth-century Austrian example” The American Historical Review, vol.77, n°2 (Apr., 1972).

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Planejar a família fazia parte das estratégias para aumentar ou manter o cultivo de uma forma que se assegurasse minimamente a subsistência. Berkner, tendo como objeto a estrutura familiar em domicílios austríacos, argumentou que o tamanho de uma família não seria fixo ao longo do tempo.42 A família passava por diversos ciclos nos quais podia estar ora extensa ou nuclear e seu tamanho não poderia ser analisado sem considerar a distribuição de riqueza naquele dado momento. O autor tecia, portanto, sua crítica aos estudos de Peter Laslett, cuja tese central colocava a família nuclear como predominante e a família extensa como uma estrutura pouco representativa. 43 Berkner era avesso às tipologias rígidas estabelecidas por

Laslett e propunha uma análise mais abrangente dos estudos sobre família.

Apesar de basear sua análise em um conceito de família consanguínea, a leitura de Berkner sobre esses diversos movimentos pelos quais um domicílio passa ao longo da história pode ser muito útil para os estudos sobre fogos. Se a pobreza e a concentração de riqueza aumentavam, o número de integrantes em um mesmo domicílio se alteraria. Agregavam outras pessoas quando podiam, ao mesmo tempo em que se rearranjavam em outros domicílios em um momento de necessidade.

Em estudos recentes, mostrou-se que os arranjos para a manutenção de dependentes extrapolavam a família consanguínea. Lima, ao analisar registros de doação de propriedades entre senhores e escravos, aponta uma nova percepção para as relações de co-dependência. Os senhores ou senhoras que se encontravam em uma situação de vulnerabilidade, seja por conta da velhice ou de doenças, viam em seus escravos uma fonte de renda, de companhia e cuidados. Prometiam, como recompensa, doações de dinheiro, propriedades ou alforria, com a condição de que eles se comprometessem a cuidar de seus senhores. Por sua vez, seus escravos operavam com a esperança de que um dia seriam proprietários de uma casa ou terreno. O autor conclui que:

Configurando uma sorte de arranjo semiformal de previdência, podem ser lidos como contratos de co-dependência e arranjos de vida na velhice que poderiam envolver parentes mais ou menos próximos, companheiros informais ou mesmo dependentes e escravos. 44

Em uma vila que passava por um processo de transformação e se localizava em uma zona de fronteira, a esperança do chefe de família em manter seus dependentes na terra poderia ser em vão. O responsável pelo fogo teria, então, que construir estratégias para evitar ou adiar

42 Idem, p.404-405.

43 Idem, p. 399.

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ao máximo a saída de seus dependentes. Estes últimos poderiam se manter junto à família, uma vez que vislumbravam um horizonte no qual havia a possibilidade de herdar ferramentas, animais, uma pequena casa. Eram estratégias traçadas ao longo dos anos com o objetivo de assegurar o cultivo, a estabilidade no domicílio.

A permanência de herdeiros, a vinda de agregados não consanguíneos, a compra ou venda de um escravo e a própria dissolução de um domicílio são elementos fundamentais para analisar como as mudanças locais e mundiais interferiam na vida familiar. As alterações na composição de um fogo podem indicar que a propriedade em questão, por exemplo, passou por momentos de crise, seja por diminuição na produção devido a intempéries climáticas ou por investidas de outros produtores que sabotavam o cultivo ou tentavam dificultá-lo. Essas mudanças na composição podem trazer indicações de como os pequenos produtores resistiam e formulavam estratégias para se manterem como agricultores.

Essa perspectiva de microanálise sobre as mudanças nos arranjos familiares teve importante influência de Giovanni Levi, cuja proposta opunha-se a modelos estáticos e tinha como objetivo incluir as especificidades e as diferenças entre as famílias analisadas.45 Avesso à ideia de se ater apenas em registros seriados, Levi utilizou o cruzamento de diversas fontes para escrever a trajetória de três famílias do Piemonte. Propôs ainda que as formas de solidariedade e cooperação que extrapolavam o domicílio fossem objeto de estudo. Dessa premissa, o conceito de família para Levi apresenta-se de forma mais ampla: “Falaremos de família no sentido de grupos não-co-residentes, mas interligados por vínculos de parentela consanguínea ou por alianças e relações construídas.”46 Seu conceito mais abrangente de

família está intrinsecamente relacionado à ideia de que essas pessoas traçavam alianças externas ao domicílio com o objetivo de diminuir as incertezas de suas vidas.

Compartilho da preocupação de Levi de que há alianças, favores e reciprocidades que extrapolam a família residente e também a família consanguínea. Em momentos de crise, pode-se recorrer a um grupo de pessoas que não pertença à família. São alianças traçadas com amigos e parceiros no trabalho ao longo dos anos que não podem ser ignoradas.

Acredito que, aliada ao cruzamento de outras fontes, a utilização de recenseamentos pode contribuir muito para a análise das transformações dos arranjos familiares. Para Lutz Berkner (1972), a descrença na eficácia do censo como uma fonte para analisar mudanças e

45 LIMA, Henrique E. Microstoria: escalas, indícios e singularidades. 1999. Tese (Doutorado em História). IFCH- Universidade Estadual de Campinas, Campinas, , p. 247.

46 LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.98.

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processos se explica devido à metodologia utilizada por alguns pesquisadores. Para esse autor, quando se utiliza uma fonte, como censos demográficos, não se pode analisar apenas um momento específico de uma família, ou uma comparação entre dois períodos distantes. O censo assim utilizado funciona apenas como um registro fotográfico que obscurece e ignora as mudanças pelas quais as famílias passavam.47 Essa escolha permite ao pesquisador um acesso

momentâneo e restrito à composição do domicílio e o priva de ver as alterações que os próprios membros faziam quando se encontravam em uma situação precária ou de bonança. As mudanças, portanto, passam despercebidas, fazendo com que a estrutura familiar seja considerada constante e praticamente imutável.

Ao considerar o domicílio e suas transformações, a família, com todos os seus membros, passa a ser o foco da análise e não apenas os homens. Essa perspectiva ajuda a incluir as mulheres como parte essencial da História. Propomos, como metodologia, a coleta e comparação dos arranjos nos domicílios em conjunto com a pesquisa nominativa e prosopográfica. Acreditamos que o uso dessa metodologia em um estudo sobre a fronteira traz uma importante abordagem sobre os indivíduos que migravam. Frequentemente retratados como homens solitários ou em grupos essencialmente masculinos, como (para)militares, esses indivíduos costumam figurar, então, como únicos responsáveis pelo desbravamento de novos terrenos, pela perseguição e expulsão de indígenas e pela abertura de caminhos para a produção agrária.

Da maneira que se pensa a fronteira – como um local pouco habitado, perigoso e repleto de conflitos – raramente, as mulheres são mencionadas como parte da História.48 Ao seguir os domicílios e traçar a história de famílias inteiras podemos contornar a abordagem essencialmente masculina do tema, pois passamos a analisar a fronteira para além do conflito, focando na movimentação dos domicílios, portanto, incluindo diretamente as mulheres.

A ideia de que as mulheres não estavam presentes em movimentos da fronteira tem como importantes contribuidores dois dos clássicos pensadores da história do Brasil: Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. O primeiro contribuiu para a imagem de mulheres confinadas ao espaço privado das casas.49 Holanda, por sua vez, colocou a fronteira como um

local de conflito contínuo com os indígenas, sobressaindo em sua narrativa os combatentes, homens, o que contribuiu para reafirmar a fronteira como um espaço quase que exclusivamente

47 BERKNER, Lutz. Op.cit, p.405.

48 A ausência das mulheres em estudos sobre a fronteira não significa que não haja um grande número de trabalhos sobre as mulheres em outros temas para o período. Para citar apenas alguns desses estudos, ver:

49 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Edição crítica de autoria de Guillermo Giucci, Enrique Rodríguez Larreta e Edson Nery da Fonseca. Paris: ALLCA XX, 2002.

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masculino. Reinterpretadas em outros trabalhos50, essas concepções fizeram com que a história da fronteira brasileira fosse escrita principalmente com base na experiência masculina, fazendo com que sejam poucos os trabalhos cujo foco inclua mulheres ou família. Nesse tema, os trabalhos de Alida Metcalf e Eni de Samara (2005), ainda que de extrema importância para o tema, são um dos poucos que dedicam suas análises às famílias, mulheres e também crianças.51

Não foi ou é exclusividade da historiografia brasileira apontar regiões de fronteira como espaços quase que exclusivamente masculinos. O espaço a ser dominado, a natureza a ser reprimida ou os confins desconhecidos ocuparam linhas e ganharam importância na literatura, como se a própria fronteira fosse um ator histórico. Para algumas autoras52, a fronteira sempre

retratada como um espaço de uma natureza “virgem” que precisaria ser “domada” e “penetrada” seria, em si, feminina para a literatura, restando aos homens o papel de subjugá-la. Deriva-se daí a importância de construir os desbravadores como exclusivamente homens.

Nos Estados Unidos, onde os estudos sobre a fronteira constituem um campo importante da História, foram muitos os questionamentos sobre a presença quase exclusiva de homens. 53 Assim como as de Campinas, as mulheres das pradarias e planícies americanas, foram responsáveis por cuidar de animais, de vestir as famílias, cuidar de sua alimentação, ou seja, essenciais para a manutenção dos indivíduos que adentravam as fronteiras, portanto, salutares para a própria existência desses movimentos migratórios. E, ao ignorar o papel dessas mulheres na migração feita, seria também ignorar metade dos indivíduos que para ela se dirigiam.54

Muito deste silêncio sobre a experiência feminina na fronteira é justificado pelo tipo e quantidade de fontes disponíveis sobre esse período. Por exemplo, os jornais ou registros privados que poderiam fornecer novas informações sobre o assunto, como forneceram às historiadoras norte-americanas, são muito raros em vilas do interior e mais raros antes de

50 Veja, por exemplo, a maneira como José Martins centraliza a sua análise no conflito direto e não menciona a participação das mulheres ou mesmo da família na formação da fronteira. Cf: MARTINS, José de S. O cativeiro da terra....

51 METCALF, Alida. Family and Frontier in Colonial Brazil: Santana de Parnaíba, 1580-1822. Austin: University of Texas Press, 2005. SAMARA, Eni de. Famílias, mulheres e povoamento (São Paulo, século XVII). Bauru: Edusc; 2003

52 ALAIMO, Stacy. Undomesticated Ground: Recasting Nature as Feminist Space. Ithaca: Cornell, 2000. JANIEWSKi, Dolores. '"Confusion of Mind': Colonial and Post-Colonial Discourses about Frontier Encounters." Journal of American Studies. 32 (1998) 81-103. BERMAN, Tzeporah. “The rape of mother Nature? Women in the Language of Environmental Discourse”. Trumpeteer, 11.4, 173-178, 1994.

53 Ver os seguintes trabalhos para uma discussão geral sobre o assunto: JEFFREY, Julie Roy. Frontier Women: the trans-Mississippi West 1840-1880. Hill and Wang: New York, 1979; KOLODNEY, Annette. The Land Before Her: Fantasy and Experience of the American. Frontiers, 1630-1860. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1984. RILEY, Glenda. The female frontier: a comparative view of women on the Prairie and the plains. University Press of Kansas, 1988.

Referências

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