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POLÍTICAS DE MEMÓRIA SOBRE A DITADURA MILITAR: MARCO JURÍDICO INSTITUCIONAL E PROCESSO POLÍTICO NO RIO DE JANEIRO Fernanda Ferreira Pradal 1

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POLÍTICAS DE MEMÓRIA SOBRE A DITADURA MILITAR: MARCO JURÍDICO INSTITUCIONAL E PROCESSO POLÍTICO NO RIO DE JANEIRO

Fernanda Ferreira Pradal1

RESUMO

O trabalho apresenta e analisa as iniciativas e as ausências de políticas de memória sobre a ditadura militar no Rio de Janeiro, com base no marco jurídico-institucional de promoção da memória, da verdade e da justiça no Brasil. Nesse sentido, são abordadas as iniciativas sociais e institucionais, assim como a luta social pela institucionalização de políticas de memória.

Palavras chave: ditadura militar - políticas de memória - Rio de Janeiro

ABSTRACT

The article presents and analysis the existing and the missing memory initiatives in Rio de Janeiro, regarding the military dictatorship. It draws upon the legal framework for the promotion of memory, truth and justice in Brazil. For this purpose, social and official measures as well as the social struggles for memory policies are approched.

Key words: military dictatorship - memory policies - Rio de Janeiro

1Mestre e doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação do Dpto. de Direito da PUC-Rio; pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio, contato: fernandapradal@gmail.com.

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INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta e analisa o marco jurídico-institucional sobre memória, verdade e justiça no Brasil no que se refere às políticas de memória sobre a ditadura militar, assim como aborda as iniciativas e a luta social pela institucionalização dessas políticas no Rio de Janeiro. Ele consiste em um resultado parcial de pesquisa que, por um lado, se alimenta do trabalho e reflexões coletivos desenvolvidos no projeto de pesquisa sobre políticas públicas de memória no âmbito do Núcleo de Direitos Humanos do Dpto. de Direito da PUC-Rio2; e, de outro lado, faz parte do terreno em que se situa o objeto de tese de doutorado em desenvolvimento.

No debate sobre como lidar no presente com a violência de Estado do passado, no que se refere às experiências de ditaduras vividas nos países da América do Sul, o Brasil segue em seu lugar singular. Ou seja, como aponta José María Gómez, frente às experiências de Argentina, Chile e Uruguai, o processo político em torno das reivindicações de ‘memória, verdade e justiça’ sobre a violência ditatorial (1964 e 1985) vem se dando de forma tardia, lenta e contraditória, e permanece insipiente e inconcluso.3 Nesta mesma frequência segue o processo a construção de sua paisagem memorial sobre os conflitos e a violência ditatorial, a despeito das lutas sociais.

Uma análise sobre a dimensão institucional que comporte o marco jurídico e de políticas públicas e que parta das lutas sociais afirma uma certa perspectiva de interpretação do processo político. Não se trata, no entanto, de uma livre escolha pela valorização de um ou outro ator social, mas sim de explicitar as forças sociais em disputa e atores que, de fato, foram protagonistas em diferentes conjunturas, e outros que foram apoiadores e propulsores, por meio de diferentes estratégias políticas e com resultados variados em forma e qualidade. Assim, a análise toma como ponto de partida a atuação dos movimentos de ex-presas e presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos para dar conta do processo político em que certo marco jurídico foi construído e iniciativas de políticas

2Projeto FAPERJ em parceria com a CEV-Rio, coordenado pelo Prof. José María Gómez e intitulado “Políticas públicas de memória para o Estado do Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não repetição”. Iniciado em março de 2014 e, em parte, ainda em processo de conclusão.

3 GOMEZ, José María. A justiça transicional e o possível jogo entre a política, a memória e a

justiça. In: ANSARI, WESTHROP, PRADAL. 50 anos da ditadura no Brasil: memórias e reflexões. Comunicações do ISER. Rio de Janeiro: ISER, 2014. pp. 71-80.

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públicas foram ou não desenvolvidas. Em um segundo momento, aponta-se os componentes relevantes à questão das políticas de memória presentes no marco jurídico. Em terceiro lugar aborda-se as disputas em tornos das políticas de memorialização sobre a ditadura no Rio de Janeiro. Por fim, são apresentadas algumas observações finais.

I - AS LUTAS SOCIAIS PELO ACERTO DE CONTAS COM A VIOLÊNCIA DE ESTADO DA DITADURA

Para se compreender esse processo político a partir da luta dos movimentos sociais é necessária uma compreensão mínima do percurso dessas lutas. Para isso, uma síntese sobre as pautas desses movimentos e uma periodização serão brevemente apresentadas.

No que se refere às pautas dessas lutas, como ressaltam militantes ainda hoje, sem dúvida, a sua luta tinha como primeiro alvo a própria ditadura e, para maior parte dos militantes, objetivava a revolução. Já frente à violência organizada da ditadura, objeto central das atuais pautas por “memória, verdade e justiça”, tratava-se também de denunciar a barbárie que a constituía. Assim, ainda durante seu funcionamento, ganham centralidade as denúncias sobre os desaparecimentos, as execuções e as torturas, assim como as batalhas pela legalização das prisões, por melhores condições carcerárias e pela liberdade.

A partir de 1975, as reivindicações pela anistia de todos os presos políticos e a volta dos exilados ganham vulto e culminam com a lei de anistia de 1979 - concedida e imposta pelas forças políticas do comando da ditadura - e com a efetiva volta de todos da prisão e do exílio. Com a derrota parcial da proposta de anistia, que não incluía anistia a torturadores e membros do aparato repressivo, a ausência de reconhecimento das violações de direitos humanos pela cúpula das forças armadas com a conivência do executivo e do poder judiciário, durante mais de trinta anos as pautas dos movimentos seguem sendo a denúncia de torturadores e a reivindicação de sua punição, o paradeiro dos desaparecidos e o acesso à documentação.

Em termos gerais, as lutas dos movimentos são também pelo conhecimento sobre o projeto político (econômico, cultural e social) e a violência torturadora, mortífera e desaparecedora, em uma disputa de sentido sobre o que foi a ditadura. Além disso, lutam pela memória dos que atuaram na resistência, como homenagem e como referência, assim

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como pela memória do que foi a ditadura, como nexo com o presente: no sentido da denúncia das permanências e da luta, que continua, pelo utópico emblema do nunca mais. Mais recentemente, essas lutas passaram a ser representadas nas reivindicações por memória, verdade e justiça – que também contém as pautas contra a tortura e pela reparação integral.

Trata-se de uma longa dinâmica de lutas políticas que se relaciona com o sentido fundamental e mais amplo da luta de classes e projetos políticos no Brasil, mas que guarda certa especificidade e pertinência. Além disso, só pode ser compreendida a partir do entendimento mínimo sobre as diferentes fases do regime político ditatorial. A ditadura tem como marco inicial o golpe militar de 1964, quando tem início a construção do aparato repressivo específico da ditadura, englobando a fase de intensificação da repressão para eliminar a resistência, a partir de 1969, até 1974, quando Geisel assume a presidência (1964-1974). O período seguinte corresponde àquele da distensão política, em que por um lado concessões em termos de liberdades foram combinadas com a aniquilação cirúrgica do que restava dos grupos organizados comunistas e, por outro, houve a revogação dos atos institucionais e complementares e de penas como o banimento, a prisão, a pena de morte e a aprovação da lei de anistia, em 1979 (1974 – 1985). Por fim, tem-se o período da transição política (1985-1989), a partir da eleição indireta de um presidente civil, passando pelo processo constituinte e a aprovação da Constituição Federal de 1988 e pelas eleições presidenciais diretas de 1989. E o período de normalização democrática institucional (após 1989), no qual essas lutas se desenvolvem em conexão a outras lutas de denúncia e resistência à violência de estado.4

No que se refere às lutas desses movimentos no Estado do Rio de Janeiro, ainda no início da década de 1970, começam a ser feitas denúncias de torturas e execuções e, em seguida, de desaparecimentos, dimensão das lutas que se prolonga até os dias atuais. A partir de 1975, a luta pela anistia aos presos e exilados em que as mulheres, principalmente as mães, tiveram um papel crucial; Após eleições estaduais de 1982, destacam-se iniciativas pontuais de memorialização em logradouros públicos no Estado do Rio de Janeiro, assim como as denúncias sobre membros do aparato repressivo e torturadores que ocupavam

4Ver: GOMEZ, José María. Op. Cit.; NETO e LEMOS, Renato Luís do Couto. Regime político pós-64 no Brasil: uma proposta de periodização. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011

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cargos públicos no estado e de médicos legistas colaboradores da ditadura pelo Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM/RJ), formado em 1985. As batalhas para que membros da repressão não ocupem cargos públicos seguem como pauta até hoje; Em 1991, o acesso à documentação do Instituto Médio Legal e do Instituto Félix Pacheco possibilitam o encontro do paradeiro de quatorze desaparecidos pelo GTNM/RJ e, em 1993, é possibilitado o acesso a documentação do DOPS e são desenvolvidas iniciativas de memorialização em logradouros públicos pelo GTNM/RJ; No período entre 2000 e 2002, há a experiência de transferência e de uso do edifício do antigo DOPS pelo Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro; Exemplos de frentes e atividades desses movimentos ao longo da primeira década dos anos 2000 são as batalhas por reparação em nível estadual, a internacionalização do caso sobre a Guerrilha do Araguaia, as exigências por investigações sobre desaparecidos, a reivindicação de uma comissão da verdade e da justiça, a exigência pela abertura dos arquivo, a atuação em crítica e em articulação com atores nos governos Lula e Dilma, atividades de homenagens, como a Medalha Chico Mendes d GTNM, além de debates, exposições etc.; O período seguinte refere-se a uma etapa de lutas pela implementação da sentença do caso Araguaia, de críticas e interações com as comissões de verdade, até conclusão de seus trabalhos, uma nova fase de luta pelo construção de um memorial no prédio do antigo DOPS, até os dias atuais. Neste período organizam-se os movimentos Coletivo RJ Memória Verdade e Justiça, em 2011 e, posteriormente, a Articulação Estadual por Memória Verdade e Justiça5 e a Campanha

Ocupa DOPS, em 2013.

Essas lutas permanecem ativas – como ressalta Gómez, são aqueles únicos que se negam a esquecer - tiveram algumas conquistas, e persistem, com baixas, novos componentes, passando por contextos de maior ou menor intensidade, expressão, visibilidade e recepção ou acolhimento de outros atores desse “cenário das memórias”6.

5Nesta articulação participou, por exemplo, o Levante Popular da Juventude, que organizou alguns escrachos a militares membros do aparato repressivo.

6JELIN, Elizabeth. Quiénes? Cuándo? Para qué?: Actores y escenarios de las memorias. In: Vinyes, Ricard.

El Estado y la Memoria: gobiernos y ciudadanos frente a los traumas de la historia. RBA: Barcelona, 2009.

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II - MARCO JURÍDICO RELEVANTE PARA POLÍTICAS DE MEMÓRIA SOBRE A VIOLÊNCIA DA DITADURA

Compreendendo-se as medidas oficiais de justiça de transição a partir da trajetória das lutas sociais protagonistas neste campo, é possível uma melhor compreensão destas enquanto resultados sempre parciais e insuficientes, porém fundamentais no processo político de acerto de contas com o passado e atuação política frente às pautas do presente. Também considerados como marcos da justiça de transição brasileira, essas referências são relevantes para uma análise sobre políticas de memória, mesmo quando tratam de outras pautas porque há uma relação de interdependência entre as pautas de memória, verdade e justiça7.

A primeira iniciativa oficial do governo federal, após a transição política em 1985, aprovada na gestão de Fernando Henrique Cardoso, foi a Lei 9.140/1995 (com emendas de 2002 e 2004) que reconheceu como mortas as pessoas desparecidas ou mortas pela ação estatal, em razão de atividade política ou acusação dela e institui a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos para i) reconhecer oficialmente as mortes; ii) envidar esforços para a localização de corpos de desaparecidos, no caso da existência de indícios; e iii) deliberar sobre requerimentos de indenização a familiares (art. 4º da lei). Sem menção à dimensão memorial, a lei, oficializou as figuras políticas dos mortos e desaparecidos (inicialmente até o ano de 1979 e, a partir de 2004, sem limite temporal), deixando todo o ônus da comprovação aos familiares; institucionalizou a investigação em uma comissão em que, inicialmente e até 2004, houve a presença de um integrante das Forças Armadas e, posteriormente, do Ministério da Defesa; e previu como reparação oficial por execuções e desaparecimento de pessoas a indenização, ou seja, modalidade de reparação material. Se considerado o histórico das lutas de familiares, ex-presos políticos e seus aliados, a importância simbólica deste reconhecimento e da abertura para ações oficiais, assim como os grandes limites desses avanços são perceptíveis. No que se refere à dimensão memorial e seu propósito pedagógico, não houve avanços diretos. Além do já mencionado, a lei também faz menção aos “princípios da reconciliação e pacificação nacional” previstos da

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lei de anistia (Lei 6.683/79), o que ilustra seus propósitos no plano político e simbólico mais gerais nos embates sobre o significado da ditadura, da anistia e da transição política.

Em 2002, como segunda medida oficial, já no mandato de Luís Inácio Lula da Silva foi aprovada a lei 10.559/2002 institui o regime do anistiado político e a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em regulamentação do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e convertendo em lei as Medidas Provisórias nº 2151-3 de agosto 2001 que criara a Comissão de Anistia e nº 68 de agosto de 2002 que a reeditara. Esta lei foi um avanço em relação a iniciativas anteriores que consideravam apenas questões trabalhistas para avaliação da reparação material. No entanto, não há menção alguma à dimensão coletiva e memorial sobre a ditadura. A gestão da Comissão de Anistia por Paulo Abrão, iniciada em 2007, no mandato de Tarso Genro no Ministério da Justiça, agrega as dimensões simbólica e memorial coletiva a seu mandato oficial e gera grande impacto no sentido político da noção de anistia.8 O Regimento Interno da comissão (Portaria nº 1.797 de 30 de outubro de 2007) passou a mencionar a “preservação da memória do país” como parte das atribuições da comissão (art. 17). Como resultado disso, em junho de 2013 foram ampliadas as competências da Comissão de Anistia, incluindo desde então, a implementação e manutenção do Memorial da Anistia Política do Brasil e seu acervo, assim como a formulação e a promoção de ações e projetos sobre reparação e memória (Decreto nº 8.031/2013).

Em termos de práticas e políticas desenvolvidas por esta gestão da comissão devem ser destacadas as Caravanas da Anistia e o projeto Marcas da Memória. Com início em abril de 2008, as Caravanas da Anistia consistiram em audiências itinerantes da comissão em diversas regiões e abrangendo diversos grupos sociais para a análise de requerimentos de anistia política e foram instituídas no marco do projeto educativo “Anistia Política: cidadania, democracia e educação para os direitos humanos”. Essa prática, além de sair dos prédios da burocracia estatal, também foi relevante por ocupar, simbolicamente, espaços

8ABRÃO, Paulo; TORELLI, Marcelo. Mutações do conceito anistia na justiça de transição brasileira. A Terceira fase da luta pela anistia. In: Revista de Direito Brasileira, RD bras 3, 2012. pp. 357-379. Em 2007, no contexto da nova gestão administrativa da Comissão de Anistia, por Paulo Abrão, teve início o núcleo educativo, posterior Coordenação de Ações Educativas voltada para políticas públicas de memória, verdade e reparação, que em 2013 tomou o formato de Políticas de Memória e Reparação da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, instituídas como nova atribuição pelo Decreto n. 8.031/2013 (Relatório de Gestão 2007 – 2010, p. 9).

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relevantes nas memórias sobre a perseguição e repressão na ditadura. Alguns exemplos foram audiências de anistia: a camponeses a região do Araguaia, a professores e funcionários de universidades invadidas, a operários demitidos e reprimidos em greves, artistas perseguidos pelas peças teatrais que faziam etc.

Outras iniciativas de preservação e difusão da memória sobre o período da ditadura militar foram produções de documentários, publicações de livros, realizações de exposições, seminários, conferências em parceria com universidades e outras instituições e movimentos sociais, por meio do projeto Marcas da Memória, desde 2008. Além disso, o projeto do Memorial da Anistia Política compõe as iniciativas da comissão. O Memorial guardará o acervo produzido pela Comissão de Anistia, principalmente os processos de anistia política e todo o material produzido pelas iniciativas de memória. O primeiro lugar proposto pela comissão foi o prédio do antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) no Rio de Janeiro. No entanto, o governador à época, Sergio Cabral, não concedeu o edifício. Nos planos do governo, apesar de diversas reivindicações e projetos de memoriais para o espaço, ele pertence à Policia Civil, para que lá, um dia, volte a existir o Museu da Polícia Civil.

A partir de 2008, então, são colocadas em prática iniciativas que promovem as memórias sobre a violência da ditadura, como apontado acima, pela Comissão de Anistia. Práticas estas que resultam na ampliação das competências legais da comissão em 2013, e que são desenvolvidas dentro dos limites institucionais do órgão.

Em termos reconhecimento do direito à verdade e à memória pela legislação e outros instrumentos jurídicos nacionais, há o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH III (Decreto nº 7037/2009, atualizado pelo Decreto nº 7.177/2010) e a Lei nº 12.528/2011 que instituiu a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Formulado ao longo de um complexo processo de conferências locais, regionais e nacional, o PNDH III contemplou o direito à memória e à verdade em seu Eixo VI.9 Este eixo passou a fazer parte do programa e foi elaborado sob forte pressão dos movimentos de familiares de mortos e desaparecidos e de ex-presas e presos políticos. Além disso, foi motivo do imbróglio instaurado entre as três Forças Armadas e o Ministro da Defesa Nelson Jobim, de um lado,

9 Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) / Secretaria Especial dos Direitos Humanos da

Presidência da República. Brasília: SEDH/PR, 2010. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/direito-para-todos/programas/pdfs/programa-nacional-de-direitos-humanos-pndh-3.

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e a presidência da República, de outro, em virtude, principalmente, do conteúdo das propostas sobre uma comissão nacional da verdade e da justiça trazida pelo texto construído na Conferência Nacional de Direitos Humanos. No que se refere à dimensão memorial, o texto apresentou as seguintes ações para o objetivo estratégico I da Diretriz 24:

Ação (a): disponibilizar financiamento para a criação de centros de memória sobre a repressão política em todos os estados.

Ação (c): identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade bem como promover, com base no acesso às informações, os meios e recursos necessários para a localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos. (Redação dada pelo Decreto no 7.177, de 12.05.2010).

Ação (d): Criar e manter museus, memoriais e centros de documentação sobre a resistência à ditadura.

E para o uma das ações do objetivo estratégico I da Diretriz 25:

c) Fomentar debates e divulgar informações no sentido de que logradouros, atos e próprios nacionais ou prédios públicos não recebam nomes de pessoas identificadas reconhecidamente como torturadores. (Redação dada pelo Decreto nº 7.177, de 12.05.2010).

O PNDH III que foi publicado, com as mudanças introduzidas pelo Decreto nº 7.177/2010, é um exemplo simbólico sobre os embates entre forças políticas e entre movimentos sociais e o Estado neste campo de lutas por memória, verdade e justiça. O embate entre forças políticas era mais esperado pelos movimentos sociais do que a conciliação feita pela Presidência da República. O PNDH III é um programa em que, ao mesmo tempo, os movimentos de familiares de mortos e desaparecidos e ex-presas e presos políticos fizeram constar, pela participação no processo de conferência, pela primeira vez no ordenamento jurídico nacional (decreto presidencial), o reconhecimento do direito à

memória e à verdade10, e o governo Lula interveio para fazer valer o discurso da

reconciliação nacional, com o sentido de preservação da anistia a crimes de agentes do

Estado e à menor intervenção na paisagem memorialística relativa aos lugares utilizados pela repressão, locais de ocultação de corpos e restos mortais de mortos e desaparecidos, e de logradouros públicos que homenageiam agentes do regime que praticaram crimes contra

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a humanidade de Lula no sentido de que a fosse preservada, o tom das políticas oficiais fosse da reconciliação e que pouco se mexesse no debate pedagógico e na topografia memorial sobre a violência de estado da ditadura.

O embate travado em torno do PNDH III sofreu impacto da publicação da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Gomes Lund e outro (“Guerrilha do Araguaia”) em novembro de 2010 responsabilizando o Estado brasileiro pelo desaparecimento de mais de setenta pessoas, pela violação do direito de acesso à justiça representada pela anistia aos agentes do Estado e pela violação da integridade física de familiares devido às décadas de ausência de investigação e justiça, além da violação ao direito de acesso à informação.11 Neste contexto, e já no governo de Dilma Rousseff, ex-presa política, construiu-se o projeto de lei que instituiria a Comissão Nacional da Verdade (CNV), em um processo político que deixou muito a desejar em termos de participação social dos movimentos.12

A CNV foi instituída em 18 de novembro de 2011, pela Lei nº 12.528/2011. Esta lei é a primeira a reconhecer o direito à verdade e à memória no ordenamento jurídico brasileiro. O art. 1º determina como suas finalidades: examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período entre 1946 a 1988, efetivar o direito à memória e à verdade histórica, e promover a reconciliação nacional, em consonância com o PNDH III que atendeu às exigências das forças armadas e do Ministro da Defesa Nelson Jobim menos de dois anos antes.

Em termos de sua atuação, a CNV emitiu recomendações sobre a destinação dos espaços de dois centros de detenção e tortura na cidade do Rio de Janeiro durante seus trabalhos e emitiu recomendações finais mais gerais sobre políticas de memória.

No que se refere às primeiras, em 10 de outubro de 2012, a CNV recomendou ao então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, a mudança da atual destinação do prédio do Dops/RJ, no momento sede do Museu da Polícia Civil (Oficio nº 304/2012) e ao então prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, a transformação da antiga sede do

11 Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro

de 2010. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf.

12 Ver: ISER. Um Ano de Comissão da Verdade: Contribuições Críticas para o Debate Público. 2º Relatório de Monitoramento da Comissão Nacional da Verdade (maio de 2012 a maio de 2013). Versão impressa. Rio

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CODI em um centro de memória (Ofício nº 307/2012).13 Porém, estas determinações não

foram acompanhadas e tampouco reeditadas quanto recomendações do Relatório Final da CNV. Estas foram reunidas de forma genérica na Recomendação 28:

[28] Preservação da memória das graves violações de direitos humanos

48. Devem ser adotadas medidas para preservação da memória das graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV e, principalmente, da memória de todas as pessoas que foram vítimas dessas violações. Essas medidas devem ter por objetivo, entre outros: a) preservar, restaurar e promover o tombamento ou a criação de marcas de memória em imóveis urbanos ou rurais onde ocorreram graves violações de direitos humanos;

b) instituir e instalar, em Brasília, um Museu da Memória.

49. Com a mesma finalidade de preservação da memória, a CNV propõe a revogação de medidas que, durante o período da ditadura militar, objetivaram homenagear autores das graves violações de direitos humanos. Entre outras, devem ser adotadas medidas visando:

a) cassar as honrarias que tenham sido concedidas a agentes públicos ou particulares asso- ciados a esse quadro de graves violações, como ocorreu com muitos dos agraciados com a Medalha do Pacificador;

b) promover a alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios e instituições públicas de qualquer natureza, sejam federais, estaduais ou municipais, que se refiram a agentes públicos ou a particulares que notoriamente tenham tido comprometimento com a prática de graves violações.

As recomendações finais em caráter genérico, por um lado, são válidas para todos os contextos nos diferentes estados e municípios, o que é fundamental. No entanto, por outro lado, não contemplaram reivindicações concretas e históricas, como é, por exemplo, a luta pela transformação do prédio do antigo DOPS em um centro de memória, no Rio de Janeiro, e outras em outras cidades pelo país.

A Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio) foi instituída pela Lei 6335/12 e iniciou seus trabalhos em março de 2013. Nos que se refere à questão das políticas de memória, esta comissão teve uma atuação mais intensa. Desde o início de seu funcionamento, foi instituído Grupo de Trabalho DOPS, com a participação dos movimentos e de pesquisadores. Trabalho este que resultou na elaboração da concepção deste futuro centro de memória. Além disso, um dos sete projetos de pesquisa selecionados

13ISER. Instituto de Estudos da Religião. I Relatório Semestral de Acompanhamento da Comissão Nacional

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para subsidiar seu trabalho tomou esta questão como tema, propondo recomendações específicas em termos de marcas e sinalizações, centros de memória, e datas comemorativas.14

As recomendações finais da CEV-Rio ao Governo do Estado, em matéria de políticas de memória, foram:

27) Criar Espaços de Memória e memoriais em locais que serviram, no período da ditadura militar, como centro de prisão e tortura no estado do Rio de Janeiro, levando em consideração a diversidade social, racial, de gênero e dos segmentos LGBT.

I. Destinar, por meio de lei específica, orçamento público para o processo de construção, implementação e manutenção de um Centro de Memória sobre a violência de Estado, a resistência e os direitos humanos no edifício sede do antigo DOPS/GB.

II. Garantir a conclusão da desapropriação do imóvel onde funcionou o centro clandestino de prisão, tortura e morte, conhecido como Casa da Morte de Petrópolis, para a criação de um centro de memória no local;

III. Criar espaços de memória em diferentes municípios do Estado, como, por exemplo, no prédio do 1o Batalhão de Infantaria Blindada do Exército, em Barra Mansa.

IV. Construir memoriais para preservar a história de luta dos militantes presos, torturados e mortos pela ditadura, no DOI-CODI (Rio de Janeiro), no Ginásio Caio Martins (Niterói), no Ginásio Ypiranga Futebol Clube (Macaé), na Base Naval da Ilha das Flores (Niterói) e na antiga sede do Supremo Tribunal Militar (Rio de Janeiro), entre outros locais.

• Órgãos e instâncias competentes: Governo do Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, Prefeituras, Câmaras Municipais.

(28) Mapear e alterar a denominação de logradouros (ruas, pontes, viadutos e praças) e instituições públicas estaduais e municipais (escolas, hospitais e outros prédios públicos) que homenageiam agentes estatais ou privados vinculados à prática de graves violações de direitos humanos, garantindo a participação e deliberação da população local, bem como um processo de renomeação que leve em consideração expressões de diversidade cultural, racial, social e de gênero.

• Órgãos e instâncias competentes: Governo do Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, Prefeituras e Câmaras Municipais.

(29) Revogar o dispositivo da lei ordinária estadual no4.762/2008 que impede a mudança da denominação de logradouros, cujos nomes tenham sido oficialmente reconhecidos por um período de tempo superior a 20 anos, posto que tal determinação legal permite a perpetuação de homenagens a torturadores do regime militar.

• Órgãos e instâncias competentes: Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.

14 O projeto “Políticas públicas de memória para o Estado do Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a

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(30) Sinalizar, por meio de placas com material de alta durabilidade, lugares que evoquem a memória da resistência ou da repressão exercida nos anos da ditadura militar, apontando, por exemplo, ruas em que militantes foram sequestrados e mortos, bem como espaços onde foram realizados manifestações políticas e artísticas.

• Órgãos e instâncias competentes: Governo do Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, Prefeituras e Câmaras Municipais.

(31) Instituir o dia 28 de março – dia da morte do estudante secundarista Edson Luís no ano de 1968 – como data simbólica para a realização de atividades voltadas para a promoção da democracia e dos direitos humanos nas redes estadual e municipais de ensino do Rio de Janeiro, fomentando o debate sobre a repressão contra os estudantes e as formas de resistência criadas pelos jovens durante o período ditatorial.

• Órgãos e instâncias competentes: Governo do Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, Prefeituras e Câmaras Municipais.

Algumas das recomendações da CEV-Rio tiveram o desdobramento de serem transformadas em projetos de lei estadual, pelos mandatos de Flavio Serafini, Robson Leite e Marcelo Freixo, sendo que há havia projeto anterior sobre uma das questões de autoria do mandato de Gilberto Palmares. Este trabalho foi realizado em uma articulação desses mandatos com pesquisadores da CEV-Rio e da Coordenação por Memória e Verdade, órgão de seguimento da comissão que passou a existir após terminados os trabalhos em 2015, no âmbito da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos.

Os projetos de lei ainda não foram votados e, no cenário político atual, não se pode ter muitas esperanças. Mas são iniciativas importantes, que contribuem para as lutas sociais. As propostas têm como um de seus objetivos o tombamento e a criação de centros de memória e memoriais nas instalações onde funcionaram o DOPS, o DOI-CODI e a Casa da Morte de Petrópolis. Há também o projeto que institui o dia 28 de março como dia estadual da memória, verdade e justiça na rede ensino, em homenagem ao estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, assassinado em uma manifestação pela polícia em 1968. Outra proposta de lei é uma emenda constitucional estadual que reconhece o direito coletivo à memória e à verdade. Esta emenda à constituição estadual além de reconhecer este direito prevê a garantia de políticas públicas de memória e reparação, incluindo a criação de espaços de memória, a mudança de nomes de logradouros públicos, a proteção à documentação, a assistência psicossocial permanente no sistema de saúde pública, a retificação das certidões de óbito dos que morreram, a revisão das cassações dos mandatos

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de parlamentares, a inclusão de data comemorativa do enfrentamento e erradicação da tortura, a incorporação do tema ao currículo mínimo e ao material didático de ensino da rede pública, a criação de linhas de pesquisa no ensino superior, e a eliminação dos autos de resistência e outros mecanismos inibitórios da investigação policial.

É certo que, mais recentemente, houve maior inserção e desenvolvimento da questão sobre políticas de memorialização no debate sobre memoria, verdade e justiça ou justiça de transição no Brasil, o que inclui o Rio de Janeiro, com muitas limitações. Mais especificamente, entre 2008, quando tem início uma gestão da Comissão de Anistia mais sensível e ativa em apoiar ou impulsionar iniciativas de memorialização e reparação como medidas públicas e oficiais, e 2015, marco e finalização dos trabalhos das comissões de verdade pertinentes ao estado que promoveram reconhecimento oficial de históricas denúncias e reivindicações dos movimentos sociais por memoria, verdade e justiça, frente às medidas oficiais e ao marco jurídico até então existente, além de alguns avanços concretos em termos de informações.

III – INICIATIVAS E POLÍTICAS DE MEMORIALIZAÇÃO NO RIO DE JANEIRO

Conforme apontado por Elizabeth Jelin, políticas e práticas de memorialização estão em jogo em contextos de transição e pós transição política que sucedem regimes ditatoriais. São parte de um campo mais amplo, também composto por reivindicações por “verdade” e “justiça”, sendo todas interdependentes. Além disso, o processo político em que estão em jogo essas políticas e práticas públicas se desenvolvem em nível institucional, mas também social e simbólico (coletivo) e subjetivo (individual). São políticas e práticas que representam a centralidade do passado ditatorial no debate e nos conflitos sobre o conteúdo das democracias e dos regimes políticos do presente.15 Para Loreto Lopez, são exemplos de políticas de memória tanto a construção de lugares de memória (sítios de memoria) quando outras iniciativas que incidam no espaço público, práticas pedagógicas formais e informais, o acesso e a difusão de informação desenvolvidos criativamente a partir de diferentes suportes como uma forma de lembrar o passado traumático e fazer frente à história oficial

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portadora da perspectiva dos vencedores e que sejam de homenagem aos que resistiram, de reafirmação das lutas do presente e de construção e aproximação ao nunca mais.16

No Brasil, desde a redemocratização, iniciativas pontuais e dispersas de memorialização por meio de marcas e sinalizações, sem a materialidade institucional de maior porte, se expressou na nomeação das novas ruas e na construção de monumentos em homenagem aos mortos (executados ou desaparecidos), sempre por reivindicação e por meio do “trabalho de memória”17 dos movimentos sociais de familiares de mortos e desaparecidos e de ex-presos. Como já mencionado, esse processo se intensifica a partir de 2008, também quando ocorre a instituição do Memorial da Resistência em São Paulo,18 e ganha certa ênfase entre os anos de 2011 e 2014, quando são implantados monumentos de homenagem a mortos e desaparecidos, às figuras da resistência e à simbolização da afirmação “Tortura Nunca Mais” ou do “Nunca Mais”.

No Estado do Rio de Janeiro, as iniciativas públicas de memorialização implementadas desde o fim ditadura militar foram realizadas pontualmente durante a década de 1980 e, posteriormente, durante o período entre 2008 e 2015, sempre a partir de reivindicações de familiares de mortos e desaparecidos e ex-presos políticos ou por iniciativas oficiais pouco articuladas às práticas sociais memorialísticas. Nesse sentido, pode-se dizer que essas iniciativas tem um caráter frágil, fragmentado e disperso. E para compreender este “cenário de memórias”19, devem ser consideradas as iniciativas

existentes, os atores que as impulsionaram, e os conflitos em que estão inseridas.

No que se refere a logradouros públicos, houve a nomeação ruas e praças como homenagens aos mortos e desaparecidos da ditadura militar, entre 1985 e 1987, em áreas periféricas da cidade do Rio de Janeiro e de expansão de fronteira imobiliária, localizadas nos bairros da Barra da Tijuca, Recreio, Santa Cruz, Paciência e Bangu. Iniciativas impulsionadas pelo GTNM e alguns mandatos de vereadores.

16 LOPEZ, Loreto. La construcción de lugares de memoria de terrorismo de estado en Chile: trayectoria y

desafios. In: Núcleo de Direitos Humanos. Anais Workshop. Relatório de Pesquisa: Políticas públicas de memória para o Estado do Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não-repetição. 2015. pp. 399-413. p.

17 JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memória. Siglo XXI de España: Madrid, 2002.156p. 18 Ver: http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/default.aspx?mn=9&c=136&s=0.

19 JELIN, Elizabeth. Quiénes? Cuándo? Para qué?: Actores y escenarios de las memorias. In: Vinyes, Ricard. El Estado y la Memoria: gobiernos y ciudadanos frente a los traumas de la historia. RBA: Barcelona, 2009.

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Mais recentemente, em um cenário mais amplo de mobilização em decorrência do marco de 50 anos do golpe, a Comissão da Verdade do Rio, em conjunto com as secretarias estaduais de Assistência Social e Direitos Humanos e de Educação, promoveram a renomeação da Escola Presidente Costa e Silva, em Nova Iguaçu, para o nome Abdias Nascimento no dia 13 de dezembro de 2013. Foram também instaladas placas pela prefeitura do Rio de Janeiro em um projeto denominado “Circuito da Liberdade” – Impulsionado pela Comissão de Anistia em 2014, sem articulação concreta com os movimentos sociais e atividades públicas e coletivas existentes.

No que se refere a monumentos, deve-se ressaltar que o GTNM tem um projeto de monumento feito por Oscar Niemeyer que nunca encontrou acolhimento para ser realizado.20Há, na cidade, no entanto, quatro monumentos instalados mais recentemente. Dois deles foram patrocinados diretamente pelo governo federal. O Monumento Edson Luis, inaugurado em 2008, 40 anos depois do assassinato do estudante no centro do Rio de Janeiro, por iniciativa da União Nacional dos Estudantes, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, do governo Lula, e da Prefeitura da cidade. E o “Monumento ao Nunca Mais”, instalado na Cinelândia em homenagem aos militares cassados no aniversário de 50 anos do golpe de 1964, pela campanha “Trilhas da Anistia” da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. No entanto, essas intervenções carecem de grande visibilidade e de articulações com atividades que lhes deem sentido público.21

Já iniciativas que partiram de movimentos ou organizações sociais foram o Memorial do Cemitério de Ricardo de Albuquerque, no qual constam os nomes dos 14 militantes assassinados pelos agentes da repressão, inaugurado em dezembro de 2011, fruto de anos reivindicações dos familiares de mortos e desaparecidos e ex-presos políticos. Este memorial homenageia os 14 desaparecidos políticos cujos paradeiros foram descobertos por investigações do GTNM do início da década de 1990.22 E o busto em homenagem a Rubens

20 Um exemplo em situação diversa é o monumento “Tortura Nunca Mais” de Recife, inaugurado em 1993.

Também com questões relativas à sua manutenção enquanto ponto de referência e quanto a possibilidade de ressonância.

21 Uma exceção é um encontro mensal realizado por ex-militares cassados pela ditadura que, até os dias

atuais, lutam por anistia e reparação pela perseguição e violência a que foram submetidos e seus efeitos. Esses ex-militares organizam-se em geral em associações, mas muitos seguem receosos de se identificar publicamente.

22 Na década de 1990, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ conseguiu identificar três cemitérios que receberam

mortos enterrados como indigentes durante os anos 1960 e 1970, os cemitérios Ricardo de Albuquerque, Cacuia e Santa Cruz.

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Paiva, que foi construído pelo Sindicato dos Engenheiros em uma praça em frente ao batalhão onde funcionou o Doi-Codi, e inaugurado também em 2014.

Em termos de centros de memória, não há nenhuma experiência sobre o período da ditadura no Rio de Janeiro, a despeito outras em andamento em outros estados e cidades. Em São Paulo, o Memorial da Resistência, na sede do antigo DEOPS/SP foi inaugurado em 2008 e está em andamento a construção do Memorial da Justiça, no edifício da auditoria militar a cidade. Mais recentemente, em 2016, uma iniciativa do Ministério Público Federal de Volta Redonda, determinou a construção de um centro de memória no antigo 1º Batalhão de Infantaria Blindada, cujo projeto encontra-se em desenvolvimento. Por outro lado, no Rio de Janeiro, as lutas se concentram em torno do prédio do antigo DOPS, em um conflito de memorias e projetos entre os movimentos sociais por memória, verdade e justiça e a Polícia Civil.23

Se, de um lado, as iniciativas de memorialização por memória, verdade e justiça em relação ao período da ditadura militar são pontuais, em geral impulsionadas e reivindicadas durante muito tempo pelos movimentos sociais, de outro lado, a maioria dos símbolos da ditadura permanecem onde foram instalados, na forma também de logradouros públicos e monumentos que homenageiam ditadores. As marcas dos vencedores estão nas áreas centrais da cidade do Rio de Janeiro, como o próprio centro da cidade e os bairros do Leme e Maracanã, por exemplo, nomeando grandes obras públicas como viadutos e pontes que cortam a cidade, além dos nomes de muitas escolas públicas. Os bustos de militares ditadores, os quarteis e as bases, com seus museus militares, e as delegacias de polícia, assim como os museus das polícias, seguem onde e como sempre estiveram, desde os períodos imperial, republicanos anteriores ou desde as ditaduras Vargas ou militar.24

Mesmo aqueles em que se torturou e matou (executados e desaparecidos) durante a ditadura. Lembram e perpetuam as memórias militar e policial, cada qual com suas

23 No caso dos centros de memória, é interessante notar a existência de um marco jurídico e de política

pública (legislativo e programático) interessante, em que a política de museus volta-se para temas de memória social, cidadania e o caráter pedagógico dos museus, o que abriga propostas de memorialização de espaços simbólicos ou emblemáticos da repressão e das resistências. Esses instrumentos são: Plano Nacional de Cultura (Lei 12.343/10), Estatuto dos Museus (Lei 11.904/2009), Regulamentação do Estatuto dos Museus (Lei nº 11.904/ 2009), Regime do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) (Lei nº 11.906/2009), o Plano Nacional Setorial de Museus adotado pelo IBRAM, o Plano Estadual de Cultura (Lei Estadual nº 7035/2015).

24 Com duas exceções: O busto do general ditador Arthur da Costa e Silva da cidade de Taquiri no estado do

Rio Grande do Sul, derrubado em 17 de dezembro de 2014, e a estátua do Ministro da Educação do ditador Castello Branco, derrubada por estudantes do Levante Popular da Juventude, em 4 de abril de 2014.

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especificidades, conflitos e seleções internos, mesmo que não muito distintas em termos de valores institucionais, discursos, treinamentos, armamentos e práticas.

Como ressalta Elizabeth Jelin, “o Estado sempre elabora e executa políticas de memória, seja de maneira implícita ou explícita, como política ativa ou como omissão”25, ou mesmo pela hierarquização de memórias ou pelo silenciamento de alguma delas. Perceber isto, ilumina a compreensão da disputa materializada nas intervenções memorialísticas na cidade do Rio de Janeiro. Perceber isto, ajuda a compreender como as iniciativas públicas de memória desenvolvidas pelo governo estadual e municipal se revelam ainda mais frágeis quando comparadas com a permanência de homenagens aos fatos históricos e aos ditadores. Simbolizam a promoção de certas memórias, da amnésia sobre a história da violência de estado organizada e constituem a negação de medidas de reparação simbólica e de repúdio à continuidade da violência de Estado no presente. Isto, em uma das cidades em que as polícias, extremamente militarizadas, mais matam no mundo.

Não há reconhecimento oficial das Forças Armadas sobre os desaparecimentos, as execuções e as torturas. Tampouco há o reconhecimento das Polícias (Federal, Civil e Militar) sobre sua atuação, o papel de sua expertise e práticas anteriores, e menos ainda sobre o nexo, as marcas e permanências daquele dispositivo repressivo que operam no presente. Da parte dos governos federal e estaduais, tampouco se viu até então uma transformação das relações com esses órgãos de segurança, as quais mantêm as condições para a ausência desse reconhecimento público. Este silenciamento e esta tentativa de afirmar o esquecimento falam, por meio da memória que hegemonicamente ocupa a cidade.

III – OBSERVAÇÕES FINAIS

Este trabalho se propôs à reflexão sobre políticas de memória no Rio de Janeiro, a partir do levantamento tanto do marco jurídico institucional quanto das iniciativas concretas de memorialização em contextos sempre condicionados pelas lutas sociais de familiares de mortos e desaparecidos e ex-presas e presos políticos. Percorrer a formação desde marco

25JELIN, Elizabeth. Quiénes? Cuándo? Para qué?: Actores y escenarios de las memorias. In: Vinyes, Ricard.

El Estado y la Memoria: gobiernos y ciudadanos frente a los traumas de la historia. RBA: Barcelona, 2009.

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legal e das práticas de reparação e memória existentes, assim como as iniciativas de memória existentes no Rio de Janeiro, com suas características e os contextos específicos de sua adoção, e identificando os atores sociais protagonistas e nos dá a dimensão da luta sociais empreendida mor estes movimentos.

Deste processo, percebe-se a que na cidade do Rio de Janeiro, capital até 1960 e sede dos centros de informações das três forças armadas durante a ditadura militar, assim como a sede de origem da polícia federal e da experiência fundadora das polícias políticas brasileiras, o cenário memorialístico é de ainda maior esquecimento sobre a violência organizada do Estado ditatorial militar que em outras cidades. Nas curvas da cidade maravilhosa, as camadas de memórias da violência do aparato estatal e das resistências empreendidas parecem ainda não ter o seu lugar ao sol, são escondidas, soterradas e podem se perder. No entanto, paradoxalmente, lampejos de memória irrompem e se atualizam nas diferentes formas de manifestação e denúncia públicas e a cada corpo – majoritariamente negro - torturado, executado ou desaparecido nos dias atuais. Se nas décadas de 1980 e 1990 foram nomeadas novas ruas, outras iniciativas se resumiram à instalação de dois monumentos patrocinados pelo governo federal26 nos períodos referidos acima e que carecem, entretanto, de grande visibilidade e de articulações com atividades que lhes deem sentido público.27

Não há, portanto, na cidade espaços permanentes e institucionalizados como suporte de memórias para a reflexão coletiva e pública sobre a violência e outras dimensões do que foi a ditadura brasileira. De outro lado, há muitos trabalhos de memória de resistência que se exercem do lado dos vencidos, aqueles que continuam na guerra das memórias sobre as lutas passadas hoje.28 São memórias resistentes em diferentes tempos e conjunturas

26 São eles: o monumento em homenagem ao estudante Edson Luís de Lima Souto e o Monumento ao Nunca

Mais instalado como homenagem aos militares resistentes e cassados em 1964.

27 Duas outras iniciativas muito importantes do ponto de vista das mobilizações de movimentos por memória,

verdade e justiça são o Memorial Ricardo de Albuquerque e o Busto de Rubens Paiva em frente ao quartel do Exército onde funcionou o DOI-CODI, centro de tortura onde o deputado federal foi torturado e assassinado por agentes da ditadura. O primeiro foi instalado em 2011 no cemitério de mesmo nome por iniciativa do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e apoio material da prefeitura, para homenagear os desaparecidos cujos restos mortais foram encontrados em uma vala comum deste cemitério. No entanto, esse memorial encontra-se muito distante dos lugares de circulação. O Segundo, foi construído em 2014 pelo sindicato e pela federação de engenheiros e no último ano foi disparador de manifestações simbólicas.

28 JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memória. Siglo XXI de España: Madrid, 2002. p.6; FILHO, João Roberto Martins. A guerra da memória: a ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares. Artigo apresentado no Congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos. 27-29 de Março: Dallas, 2003. 19p.

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políticas e sociais, são aqueles que se negam ao esquecimento como forma de lembrar o que foi a ditadura.29

As memórias produzidas pelos que resistiram, como lembra Elizabeth Jelin, são também um conjunto de memórias com seus conflitos, seleções e especificidades.30 No entanto, é certo que concentram em algumas questões centrais e objetivos comuns em torno dos quais se organizam, em sua dinâmica viva, as lutas que travam. Esse percurso vai da resistência à ditadura até os dias atuais e se constrói com estes atores sociais em seu centro, apoiados ou não por diversos outros movimentos, instituições, figuras públicas e atores sociais. Lutam afirmando a memória do vivido, por sua oficialização como verdade dos fatos, por justiça em relação aos responsáveis pela violência e pelas chamadas medidas de não-repetição, dentre elas políticas de memorialização. É fundamental também compreender que essas lutas de memórias sobre o passado se inscrevem e se voltam para o presente. Nele reside o estatuto político das memórias, e é a partir de sua articulação com as relações de poder e as lutas políticas atuais que essas memórias sobre o passado ganham sentido, projetando-se em certa medida para o futuro.31 É nas cotidianas manifestações ou projeções da repetição que se atualiza a luta pelo Nunca Mais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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ISER. Instituto de Estudos da Religião. I Relatório Semestral de Acompanhamento da

Comissão Nacional da Verdade (maio de 2012 a novembro de 2012). Rio de Janeiro: ISER,

29 GOMEZ, José María. A justiça transicional e o possível jogo entre a política, a memória e a justiça. In: ANSARI, WESTHROP, PRADAL. 50 anos da ditadura no Brasil: memórias e reflexões. Comunicações do ISER. Rio de Janeiro: ISER, 2014. pp. 71-80.

30JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memória. Op. Cit.

31 CALVEIRO, Pilar. Memórias políticas: distintas articulaciones entre ética y violência. In: Lucha Armada

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2012.

____. Um Ano de Comissão da Verdade: Contribuições Críticas para o Debate Público. 2º

Relatório de Monitoramento da Comissão Nacional da Verdade (maio de 2012 a maio de 2013). Versão impressa. Rio de Janeiro: ISER, 2013.

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