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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS REGIONAL GOIÂNIA FACULDADE DE LETRAS ESPECIALIZAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS E ENSINO DE LITERATURA ARIANA NUNES LOBO

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS REGIONAL GOIÂNIA

FACULDADE DE LETRAS

ESPECIALIZAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS E ENSINO DE LITERATURA

ARIANA NUNES LOBO

A FUNÇÃO DA LOUCURA EM MORRA, AMOR: NEGAÇÃO DA CONDIÇÃO IMPOSTA À MULHER NA SOCIEDADE

Goiânia/GO 2020

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ARIANA NUNES LOBO

A FUNÇÃO DA LOUCURA EM MORRA, AMOR: NEGAÇÃO DA CONDIÇÃO IMPOSTA À MULHER NA SOCIEDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Especialização em Estudos Literários e Ensino de Literatura, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Estudos Literários e Ensino de Literatura.

Orientadora: Profª. Drª. Tarsilla Couto de Britto

GOIÂNIA-GO 2020

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A FUNÇÃO DA LOUCURA EM MORRA, AMOR: NEGAÇÃO DA CONDIÇÃO IMPOSTA À MULHER NA SOCIEDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Especialização em Estudos Literários e Ensino de Literatura, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Estudos Literários e Ensino de Literatura, avaliado pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:

____________________________________________________________ Prof(a). Titulação. Nome completo – UFG

Presidente da banca

____________________________________________________________ Prof(a). Titulação. Nome completo – Instituição

Membro

__________________________________________________ Prof(a). Titulação. Nome completo – Instituição

Membro

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SUMÁRIO

A FUNÇÃO DA LOUCURA EM MORRA, AMOR: NEGAÇÃO DA CONDIÇÃO

IMPOSTA À MULHER NA SOCIEDADE ... 5 REFERÊNCIAS ... 19

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A FUNÇÃO DA LOUCURA EM MORRA, AMOR: NEGAÇÃO DA CONDIÇÃO IMPOSTA À MULHER NA SOCIEDADE

Resumo: o presente estudo visa analisar a loucura – estado ligado ao feminino desde a Grécia Antiga – como instrumento de ruptura dos padrões impostos social e culturalmente por meio das relações de poder no romance Morra, amor, de Ariana Harwicz, padrões esses comumente considerados inatos e naturais. O objetivo é, portanto, observar os conflitos vividos pela personagem em relação à questão da loucura de modo a comprovar que há na literatura de autoria feminina do século XXI a tendência à subversão do modo de lidar com padrões de comportamentos considerados distantes do protocolo feminino, de modo a transformá-los, de meio de invalidação comunicativa e ofensa, em instrumentos capazes de romper com estruturas sociais fixadas e de afirmar a própria voz.

Palavras-chave: Morra, amor, Ariana Harwicz, mulher, loucura, relações de poder.

Morra, amor é o romance de estreia da escritora argentina Ariana Harwicz. Publicado no Brasil em 2019, o romance foi lançado originalmente em 2012, sendo sucedido por “La débil mental” (A débil mental), de 2015, e “Precoz” (Precoce), de 2016, os quais formam uma espécie de trilogia sobre a maternidade, denominada por Harwicz de “trilogia da paixão”. Em 2018, a versão em inglês da obra foi indicada ao Man Booker Prize, um dos maiores prêmios literários do Reino Unido. O romance, que carrega a morte no título, indica desde a capa da edição brasileira, além da existência de um processo de ruptura, a crueza da linguagem, despida de eufemismos, forte, gutural. Trazendo para o foco da narrativa, sob uma permanente ótica de tensão, temas como maternidade, casamento, a condição feminina e o desejo sexual, o romance apresenta uma narradora em primeira pessoa que, perdida em seus devaneios, desvenda-se ao leitor por meio de um fluxo intenso de consciência, mesclando, constantemente, realidade e fantasia.

O cenário da narrativa é o interior da França e o enredo tem como núcleo o conflituoso cotidiano de uma família composta por marido, esposa e bebê. A narradora expõe o dia-a-dia de sua casa, as festas, os passeios, o relacionamento com os sogros, os constantes desentendimentos com o marido e seu caso extraconjugal com um vizinho, ressaltando os intensos conflitos internos provenientes de seu modo de lidar com a realidade. A cena inicial do romance confirma o clima de morbidez que a capa da edição brasileira prenuncia, senão vejamos: com uma faca na mão e escondida entre folhagens no quintal de sua casa, a protagonista considera se matar. Para além dessa cena inicial, que explicita o desejo de

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morrer da protagonista, a ideia da morte, ou seria mais exato dizer, o sentimento dela impregna todo o cenário do romance, o que se pode comprovar neste trecho:

A morte está presente no fogo, no tapete, nas cortinas, no ar viciado dos móveis do campo e na louça metalizada. No vaso sem flores. A morte transpira dos guarda-chuvas empilhados perto da porta. (HARWICZ, 2019, p. 25).

Além de desejar a morte para si, ela também acaba desejando-a para o próprio filho, cujo carrinho ela imagina deixar descer ladeira abaixo. Em outro momento, esse desejo de morte se transforma em ânsia de matar, e então ela se vê sufocando o bebê com um travesseiro. Em relação ao marido, o desejo de sua morte aparece de modo mais conflituoso, envolto num misto de vontade e impossibilidade:

Eu queria que tudo terminasse rápido ou que fosse em uma situação de legítima defesa. Não que pensasse seriamente em matá-lo, mas, naquele momento, com aquela luz, estava tentada. [...] Não estou assumindo que queria lhe cortar a garganta. Digo apenas que a submissão me irrita. (HARWICZ, 2019, p. 82-83).

O desejo da morte do marido indica uma ânsia da personagem pela libertação da realidade na qual ela se vê prisioneira. Isso porque, como ela mesma confessa, a submissão a irrita. E sua realidade a coloca diante de uma permanente contradição: de um lado a submissão, ou seja, as expectativas e obrigações que sua condição de mãe e esposa lhe impõem; de outro, a aspiração e o desejo profundo de desvencilhar-se das amarras sociais que a mantêm prisioneira de sua condição de mulher.

Durante a narrativa, a personagem, apesar de quase sempre agir dentro do que é socialmente esperado, sente dificuldade em assumir o papel social que sua condição de mulher lhe impõe, o que faz com que ela acabe agindo de modo automático. Isso acarreta um conflito constante no modo de ser da personagem, que age de modo “normal”, respondendo àquilo que dela esperam, mas contrariando o que ela verdadeiramente pensa e sente. Por mais que tente manter seu constante conflito no âmbito da mente, essa oscilação acaba se refletindo em seu comportamento. Tal oscilação pode ser flagrada já na cena inicial do romance, quando ela, após se esconder entre os arbustos para devanear sobre sua morte, deixa o esconderijo para cumprir suas tarefas domésticas como se nada do que há pouco pensava e planejava tivesse de fato acontecido:

Era um domingo véspera de feriado. Estava a poucos passos deles, escondida entre as ervas daninhas. Eu os espiava. Como é que eu, uma mulher fraca e malsã que sonha com uma faca na mão, era mãe e esposa desses dois

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indivíduos? O que fazer? Escondi o corpo afundando na terra. [...]. Fui pendurar a roupa como se nada. Prendi bem as meias do meu bebê e do meu homem. As cuecas e as camisas. Eu me vi como uma caipira ignorante que pendura a roupa e seca as mãos na saia antes de entrar na cozinha. Não notaram. Essa pendurada de roupa foi um sucesso. (HARWICZ, 2019, p.5). Nesse trecho, pode-se notar o desconforto existencial da personagem, que não consegue se ajustar organicamente em suas condições aparentemente naturais de esposa, mãe e dona de casa. Suas ações correspondem ao que dela esperam, porém internamente vive em conflito, o qual se reflete em seu comportamento, como no fato de ela se esconder em meio aos arbustos para fugir momentaneamente de suas obrigações sociais e sonhar com a morte como meio de libertação do desafio que é para ela corresponder às expectativas impostas por sua condição de mulher e mãe. Esse embate interno vai se intensificando e tomando corpo no decorrer da narrativa. À medida que as páginas avançam, maior se torna a carga de tensão agregada ao movimento mental da personagem, até culminar em uma situação extrema: após uma discussão na qual o marido demonstra desconfiança em relação à fidelidade dela (cena na qual ele utiliza de adjetivos como “louca” e “histérica” para classificá-la), a protagonista comete uma tentativa de suicídio, lançando-se contra o vidro de um janelão da sala de sua casa. O desejo de morte, antes vivido apenas na imaginação, materializa-se numa ação que se lhe apresenta como possibilidade de escapar à hostil realidade que a cerca.

O romance expõe, dessa forma, um intenso conflito entre o que as forças sociais externas determinam sobre os papéis a serem desempenhados pela figura feminina e os anseios da mulher, que não se adaptam às expectativas impostas ao gênero feminino como se dele fossem partes inatas e naturais. Essa inadaptação gera angústia existencial e conflitos internos que acabam refletindo em seu modo de agir. Relevante salientar que, por seu comportamento atípico, a protagonista é constantemente encarada como louca pelos demais personagens, principalmente pelo marido, o que resulta no descrédito de seus conflitos e aspirações. Sobre isso Virgínia Carvalho de Assis Costa (2016), destaca que, na fala hegemônica, a insensatez/loucura foi e permanece sendo um poderoso instrumento para invalidar a voz da mulher. Diz Costa:

A representação literária da mulher é historicamente pautada pela dualidade mocinha passiva e submissa X vilã histérica e ameaçadora. Penélopes e Helenas vão sendo delineadas por traços masculinos e configurando o discurso hegemônico sobre o feminino na literatura. Ao se conformar à ordem estabelecida, é anjo; ao rompê-la, torna-se monstro. (COSTA, 2016, p. 6034).

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Nessa perspectiva, a protagonista do romance de Harwicz se torna um monstro ao questionar a ordem estabelecida em relação à condição feminina e se opor a ela, e por isso tem sua voz desacreditada e, em alguns momentos, ridicularizada, pelos demais personagens, como se pode observar neste trecho:

Aquela vez que meus sogros vieram passar o dia e eu preparei o almoço. O menu: bolinho de arroz com arroz. E todo mundo riu de mim. Não todos, o bebê, não. Mas antes de o bebê existir, todos. Morriam de rir. (HARWICZ, 2019, p. 16).

E também neste outro:

Você nunca está cool, nunca está zen. O caminho inteiro as mesmas palavras. Você nunca está cool, nunca está zen. Cruzo e descruzo as pernas. Do peito eu nem te conto. [...] Seja normal, se acalme, diz e desce, entra na padaria. [...] Você nunca relaxa. Nunca vejo você cool. Você destrói tudo. (HARWICZ, 2019, p. 91).

Os trechos transcritos ilustram o modo como a protagonista é vista pelos demais personagens: atrapalhada, desorientada, tensa, insensata. É baseado nessa visão e apoiado no discurso de autoridade médica psiquiatra, classificador da loucura como doença mental grave, que o marido acaba sugerindo a internação da esposa em uma espécie de casa de repouso. Nesse contexto, cabe aqui lembrar a tese do filósofo francês Michel Foucault (2017), segundo a qual a loucura é uma experiência essencialmente social, tendo em vista as diferentes concepções que lhe foram atribuídas por variados grupos sociais, em diferentes períodos históricos. Senão assim, vejamos: na Grécia Antiga, o louco era visto como um profeta, um mensageiro divino, por falar coisas que as demais pessoas não entendiam; Na Era Medieval, era considerado um herético, tendo em vista que toda a sociedade se organizava em submissão à igreja e o louco era associado ao demoníaco; no período do Renascimento, aqueles que se recusavam a se submeter à ordem social e a participar do mercado de trabalho eram banidos, excluídos, dando origem à “Nau dos loucos”.

Seguindo cronologicamente a história das sociedades percebe-se, portanto, que não há um consenso quanto ao conceito de loucura, justamente pelo fato de que a atribuição de conceitos depende de elementos sociais, o que faz com que a ideia de loucura seja, para Foucault, uma construção social. Ainda de acordo com o pensamento desse filósofo, a concepção de loucura que prevalece até os dias atuais é a que nasceu junto com Freud e a psicanálise: a loucura como doença mental. É essa a concepção que fundamenta a visão dos

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demais personagens do romance de Harwicz sobre a protagonista, o que se pode comprovar neste trecho:

As folhas se rasgavam no ar, a decoração se sacudia como se alguém nos dirigisse. Até que escutei, tratamento. Isso era o que via em mim. Uma mulher que tinha que se acalmar. Tornar-se uma ameba. Ir para um lugar com paredes e lençóis brancos, debaixo da língua pastilhinhas, pilulinhas, comprimidos. Conhecer a vizinha de quarto, tomar suco com outros desgraçados, fazer oficinas de artes manuais, ler livros com capa dura e ilustrações. Até que um dia os outros internos enchem balões e pintam com lápis cartazes de despedida e recebo alta e volto à sociedade. (HARWICZ, 2019, p. 103-104).

A autoridade do discurso médico é empregada pelo marido como meio de exercer poder e controle em relação à esposa, utilizando seu comportamento inusual como argumento para convencê-la de sua loucura. Esse movimento remete à teoria de relações de poder, também do filósofo Foucault (2003). Para ele, essas relações encontram-se majoritariamente atreladas a algum tipo de saber, ou seja, exercer o poder se torna possível por meio de conhecimentos que servem de justificativa e explicação – autoridade. “Em nome da verdade legitimam-se e viabilizam-se práticas autoritárias de segregação, monitoramento, gestão dos corpos e do desejo”. (FURTADO, CAMILO, 2016). De acordo com a perspectiva foucaultiana, o poder não se exerce de modo vertical, sendo uma instituição (como o Estado) detentora absoluta de poder sobre os indivíduos, o poder é exercido, em contrapartida, de modo horizontal, espalhando-se por meio de diferentes instituições como a escola, a igreja, a prisão, as fábricas, os hospitais e, como acontece no romance em análise, a família. As relações de força são, desse modo, móveis e variáveis, não apresentando um centro determinado. Assim, por meio das relações horizontais de poder, os corpos são docilizados e padronizados, de modo que a subjetividade seja produzida e construída como um saber, uma verdade.

Sob a perspectiva foucaultiana, portanto, os corpos são adestrados, acostumados a seguirem padrões determinados de comportamento, de modo que esses padrões se tornem instintivos e naturais. Aplicando tal teoria ao romance em análise, pode-se observar na personagem um intenso conflito em relação àquilo que se pretende natural na mulher como indivíduo social, como o instinto materno, o cuidado, a sensibilidade, o domínio dos afazeres domésticos, etc. A protagonista, apesar de assumir os papeis de mãe e esposa, apresenta uma extrema inabilidade em atuar dentro dos padrões determinados como naturais desses papéis. Imersa nessa situação, ela se vê diante de uma dualidade que acaba tornando seu

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comportamento atípico para a sua condição social, o que serve de argumento para que o discurso médico de autoridade seja utilizado – por meio da relação de poder que o marido exerce sobre ela dentro da instituição familiar – para inferiorizá-la e desacreditá-la.

Dessa forma, como mulher incomodada e de senso crítico extremamente aguçado, a protagonista de Morra, amor percebe, mesmo que inicialmente de modo inconsciente, a existência de estruturas de poder que visam docilizá-la, acostumá-la, adestrá-la, e contra elas trava uma luta pessoal. No trecho abaixo é possível notar sua visão crítica em relação ao comportamento costumeiro das mulheres:

“Pronto, ligou. Fiz a voz que devia. Perguntei as mesmas coisas de sempre, o que você comeu? Por que nós, mulheres, sempre perguntamos aos nossos maridos o que comeram? Que merda a gente quer saber quando perguntamos “o que você comeu?”, se eles treparam? Se são infelizes conosco? Se pensam em nos abandonar com a desculpa de sair para tomar um sorvete?” (HARWICZ, 2019, p.15).

No trecho, ela se questiona sobre um padrão de comportamento que foi cristalizado nela como se fora intrínseco à sua condição de mulher. Ela se enxerga como ser adestrado e demonstra ter consciência de que segue um costume imposto para um grupo específico, o que a incomoda. Por isso se questiona a respeito da validade e utilidade desses comportamentos. Tais padrões de comportamento são reforçados por meio das relações de poder dentro da instituição familiar. Em diversos momentos do romance é possível notar a fala do marido como autoridade no ambiente doméstico, cobrando que a personagem cumpra os deveres que cabem à sua condição de mulher, como, por exemplo, no trecho abaixo:

Você poderia começar a cuidar melhor da casa! Sabe o que eu encontrei na cozinha atrás da garrafa? Uma ratazana carcomida e minhocas, há quanto tempo nosso bebê come ali? E você, retruco. Para de bater cinzas nas xícaras, nos pires, por exemplo, há quanto tempo nosso bebê come ali? Compra uns cinzeiros então! (HARWICZ, 2019, p. 39).

A protagonista não se conforma com o que lhe é imposto como seu papel e questiona a validade do argumento do marido atacando-o verbalmente com a mesma lógica argumentativa utilizada por ele. Entretanto, é possível notar na fala do marido o discurso de poder que pretende moldar a subjetividade da esposa, conforme preconiza a estrutura social já instalada e tomada como verdade. Pierre Bourdieu (2012), sociólogo francês, discute a hierarquia de gêneros em seu A dominação masculina. Para ele:

A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está

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presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação. (BOURDIEU, 2012, p. 17).

É possível observar, pois, a instituição familiar como propagadora de discursos impositores por meio da relação de poder vertical e hierárquica existente entre marido e esposa. Considerações semelhantes podem ser feitas a partir deste outro trecho:

Estou sentada no sofá, a poucos metros do seu quarto, vendo um programa de troca de casais, babás perfeitas, ou pintando as unhas, quando meu querido aparece com o calção meio arriado e me diz: por que ele não para de chorar?, o que ele quer?, a mãe é você, você tem que saber. Não sei o que ele quer, digo, não faço a menor ideia. (HARWICZ, 2019, p. 10).

A atribuição da obrigação de entender o bebê para a figura feminina é um exemplo claro de como as relações de poder atribuem comportamentos e criam subjetividades. A ideia acostumada de que o instinto materno é parte integrante e indissociável da natureza da mulher pode ser notada na fala do marido, que, por meio da relação de poder estabelecida com a esposa, atribui a ela a tarefa de resolver o problema que causa o choro do filho. A protagonista, entretanto, novamente desestabiliza as estruturas sociais familiares ao retrucar dizendo que, igualmente ao homem, ela não sabe o que o bebê quer. Bourdieu também discute a ideia de adestramento androcêntrico. Para o autor, existem lugares e atividades considerados apropriados para homens e mulheres e essa imposição social acaba sendo naturalizada. Nas palavras de Bourdieu:

Cabe aos homens, situados do lado exterior, do oficial, do público, do direito, do seco, do alto, do descontínuo, realizar todos os atos ao mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares, como matar boi, a lavoura ou a colheita, sem falar do homicídio e da guerra, que marcam rupturas no curso ordinário da vida. As mulheres, pelo contrário, estando situadas do lado do úmido, do baixo, do curvo e do contínuo, veem ser-lhes atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou seja, privados e escondidos, ou até mesmo invisíveis e vergonhosos, como o cuidado das crianças e dos animais, bem como os trabalhos exteriores que lhes são destinados pela razão mítica, isto é, os que levam a lidar com água, a erva, o verde (como arrancar ervas daninhas e fazer jardinagem), com o leite, com a mamadeira, e, sobretudo, os mais sujos, os mais monótonos e os mais humildes. (Bourdieu, 2012, p. 41). Desse modo, o romance expõe os padrões comportamentais atribuídos socialmente à figura feminina por meio de discursos aos quais a narradora-personagem reage como quem reage a uma falsa subjetividade, herança de um processo civilizatório patriarcal e colonial. Entretanto, a sucessão de situações como as destacadas, nas quais a protagonista desafia as

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estruturas sociais dadas como verdade, acabam acarretando sua internação em uma espécie de casa de repouso:

Chegamos!, diz. Um bloco de pedras irregulares com chaminé será meu lar. No café da manhã vou comer torradinhas com geleia caseira de ameixa feita por um bando de malucos. Como eu. Vou trabalhar na horta e nas oficinas de artes manuais e vou dormir em um colchão estreito, meus vizinhos de leito vão ter pesadelos. Como eu. Vou caminhar entre bitucas não terminadas. Em pleno auge da minha vida, queda livre. Vou reviver mortos, com isso ocuparei minha mente, farei com que pulem a cerca como carneirinhos. Adeus a doentia ansiedade sexual. Descemos do carro, os três com ar de turistas bocós, foto, foto. [...]. E vejo como meu filho e meu marido, até agora mesmo do meu lado, dizem tchau tchau linda, tchau tchau mamãe, com a mão. E tudo passa tão rápido, ouço o motor, já rodam pelas colinas, já cantam outra canção. Eu me viro. Um corredor de portas fechadas, alguém me faz avançar e me interna. (HARWICZ, 2019, p.112-113).

É possível perceber, no trecho, que a própria protagonista acaba por considerar comprometida sua saúde mental, quando se equipara aos demais internos. O discurso médico – autoridade legitimada socialmente – assim a classifica, e a voz do marido, autoridade na instituição familiar, confirma, logo ela se vê presa em uma armadilha, tendo em vista que as estruturas sociais determinam diversas regras de conduta, testando os limites de sua sanidade, e, quando ela se posiciona em lugar de desafiar ou questionar tais estruturas, é considerada como insana, tendo como respaldo vozes de autoridade pertencentes à própria estrutura social. Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão (1989) tratam da questão da loucura feminina em um capítulo intitulado “A Loucura Feminina na Letra do Texto”. Nesse capítulo as autoras sinalizam, a partir da noção de feminino presente em um artigo de Shoshana Felman (1978), para o fato de que “noções como normalidade ou sanidade estão estreitamente vinculadas ao modelo ideal masculino” (BRANCO, BRANDÃO, 1989, p. 57), isso assim levando em consideração o fato de o feminino tradicionalmente ser visto como um negativo do masculino, uma falha ou falta, De modo a comprovar tal assertiva, as autoras analisam três obras literárias brasileiras, concluindo que à mulher é comumente imposta a condição de espelho do homem, sendo que nesse jogo de espelhos cabe à personagem feminina duas soluções: “ou refletir a imagem masculina, metonímia e metáfora de uma ideologia opressora, ou perder-se no vazio da loucura e da marginalização. O discurso feminino é, então, ou pura repetição ou uma falha, produtora da desordem e da desrazão” (BRANCO, BRANDÃO, 1989, p. 62-63). Assim, ao alicerçar o comportamento social feminino aceito a partir do modelo masculino, cabe à mulher refletir-se nele de modo a se constituir como um ser feito “a partir de”, à semelhança do discurso bíblico no qual a mulher

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surge da costela do homem, sendo dele um desdobramento. Nesse cenário observa-se, portanto, a anulação da possibilidade de um legítimo processo de subjetivação, um processo regido por relações sociais sem opressão de gênero, em função de um “encaixe” obrigatório naquilo que se espera da mulher como mero desdobramento do homem.

Seguindo esse raciocínio, percebe-se que a protagonista de Morra, amor apresenta um olhar crítico em relação à visão do feminino como um reflexo do masculino. Esse estranhamento frente à possibilidade de “encaixe” da figura feminina ao que se espera socialmente dela pode ser notado quando a personagem tece considerações a respeito de seus sogros:

Como pode minha sogra falar tão baixinho, andar com passos tão curtos, ser tão comportadinha e oferecer um Prozac a uma futura mãe. Como podem meu sogro e minha sogra dormirem entre os mesmos lençóis, cobertor e colcha, entre as mesmas paredes forradas de papel por cinquenta anos. (HARWICZ, 2019, p. 22).

Nesse trecho é possível notar o incômodo da personagem frente ao relacionamento dos sogros e a possibilidade de se ajustarem aos padrões impostos, o que a leva a atribuir juízo de valor negativo à vida levada pelo casal, como se ambos fossem seres humanos medíocres. Observa-se aqui a inversão de valores sociais pela ótica da protagonista, ou seja, o autorizado socialmente e considerado como certo é, na visão dela, vulgar, medíocre, o que justifica, na visão dos que com ela convivem, sua desrazão. Em outras palavras, sua inabilidade em apresentar-se socialmente de modo orgânico, como um desdobramento do homem, faz com que ela seja vista como rebelde e louca pelos demais, que acabam marginalizando-a.

A certa altura do romance, o sogro dela falece. Esse acontecimento coloca protagonista e sogra em uma oposição ainda mais evidente, tendo em vista que a viúva perde nitidamente a capacidade de pertencer ao contexto no qual se insere, o que reforça sua condição de algo desdobrado de outrem, como se pode ler neste trecho:

Ela continuava cozinhando para dois, trocando a fronha dos travesseiros, consertando as cuecas rasgadas na entreperna. Pela manhã, ainda acordada desde a noite, eu passava com o carrinho e a via sentada, aturdida, feito cego em tiroteio. Vivia no seu corpo como quem vivia em uma casa invadida e tentasse atravessá-la sem tocar o chão. O único momento de paz, dizia ela, era o sono. (HARWICZ, 2019, p.31).

Ao contrário da protagonista, permanentemente incomodada pela necessidade de se ajustar às posições sociais que lhe eram impostas, a sogra, ao perder a condição de esposa,

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parece ser incapaz de agir como mulher, ou mesmo como ser humano. Fica sem lugar, sem referência e sem norte, porque isso era o que a figura masculina representava para ela. Logo o romance expõe duas concepções de mulheres, que são opostas e que reverberam a classificação defendida por Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão: uma mulher que se assume como desdobramento do homem, e outra, que produz desordem e se reveste de desrazão, por se negar a assumir tal condição.

Susana Bornéo Funck (2016), no artigo “„Falar a raiva‟ e a (des)construção do feminino” defende a criação de “uma nova noção do feminino como ruptura, de um feminino dissociado de adjetivos como bondosa e compassiva” (FUNCK, 2016, p. 86), noção que encontrou seus primeiros grandes expoentes em Sylvia Plath (1932-1963) e Ane Sexton (1928-1974). Para essas autoras, segundo Funck, o falar por meio da raiva representa um verdadeiro ato de sobrevivência, “um processo purgativo, como um passo para a libertação da imaginação criadora” (FUNCK, 2016, p. 87). Observa-se, desse modo, uma tentativa da literatura escrita por mulheres a partir do século XXde desvincular a imagem feminina do que se tem como expectativa construída a partir de moldes masculinos. As autoras literárias fazem com que suas personagens assumam a desrazão como negação da expectativa de serem um mero reflexo do masculino. Isso acontece por meio do destaque e valorização de características consideradas inapropriadas para o modelo de feminino autorizado socialmente, tais como a raiva assinalada por Funck e a loucura, presente no romance de Ariana Harwicz. Em Morra, amor, é possível observar a auto repressão da raiva da personagem, insatisfeita pela obrigatoriedade social de encaixar-se em um contexto do qual não se sente parte. Essa raiva, à custo contida, é sentida pelo leitor ao longo da narrativa, e explicitada pela protagonista em alguns momentos, como este:

No fim da noite é tanta raiva que tenho acumulada que poderia beber até ter uma parada cardíaca. Isso é o que eu me digo, mas não é verdade. Não conseguiria enxugar nem meia garrafa. Isso são meus dias, um aperto contínuo. Uma lenta perdição. (HARWICZ, 2019, p.24).

Apesar de conter a raiva, em nome do desempenho dos papéis que lhe cabe desempenhar, a personagem constantemente quebra a expectativa social em relação a ela com seus comportamentos, distanciando-se da imagem feminina normatizada por meio de atitudes consideradas inapropriadas, como a negação da maternidade, evidenciada neste trecho:

Passei o dia xingando o bebê. Disse tudo o que há de mais feio. Ao bebê. Disse tudo quanto é coisa, xinguei de tudo que é nome. Uma mãe boca-suja. Enchi o coitado de impropérios. Espero que não reconheça nenhuma palavra,

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que mais tarde não repita, na frente de todos, pau no cu. Ficou me olhando e dizendo; mamãe, xixi, e eu o mandei fazer xixi sozinho, comer por seus próprios meios. Esse domingo de inverno começou mal. Foi de mal a pior e ainda não eram nem duas horas ainda. Estou cansada de não ser correto andar por aí dando tiros de espingarda ou ofendendo o bebê. (HARWICZ, 2019, p. 78).

Nesse trecho, a intensa raiva que a protagonista sente em relação à sua própria existência é extravasada no seu filho. Seu sentimento de não-pertencimento ao meio no qual se insere e no qual deveria caber naturalmente faz com que ela tenha o ímpeto de cometer atos considerados não civilizados e muito distantes do que se espera de uma mulher, como proferir injúrias contra seu próprio filho e sair atirando à revelia com uma arma de fogo. Além da raiva e da negação da maternidade, a loucura é outro aspecto comportamental que vai ganhando força durante a narrativa, contribuindo para dissociar a imagem autorizada da mulher como ser social da imagem da protagonista.

Chegamos em casa, o que a gente vai jantar?, pergunta. Ponho o avental e corto cebolas, corto cebolas, corto cebolas bem fininhas até fatiar o dedo. E rio. Quanto mais sério é, mais vontade de rir me dá. Eu me jogo no chão, cheio de gotinhas terrosas. [...] Tapa a boca quando tossir, me escuto dizer. Eu vivo tapando. Sou tão suja, sou tão cretina, tão sem pai nem mãe que chega a dar cãibra. A casa tresanda a cebola. (HARWICZ, 2019, p. 95). Nesse trecho é possível notar no marido a expectativa de que os papeis sociais sejam cumpridos, pois ele atribui a ela a tarefa de preparar o jantar. Ela acata a atribuição em uma sequência de atitudes automáticas, o que a leva a “fatiar” o próprio dedo, começar a gargalhar e se jogar no chão em intenso conflito interno, no qual há a frustração por não conseguir atender às expectativas sociais, levando-a a se rebaixar moralmente. Essa cena evidencia a extrema dificuldade da protagonista em lidar com a realidade. É tanta a aversão ao modelo feminino em que a pretendem aprisionar, que a simples tarefa de cortar cebolas desencadeia-lhe uma crise interna de grande intensidade.

Veronica Stigger (2016) discute a relação criada desde a Grécia antiga entre a mulher e a histeria, e sua aproximação com a animalização. A própria palavra histeria é derivada de útero, tendo em vista a crença de que, quando inativo de sua função, ou seja, quando não utilizado para gerar vidas, o útero punha-se a vagar pelo corpo da mulher, provocando diversas reações, como sufocamento e espasmos, levando o corpo a entrar em colapso. A partir dessa crença criou-se a relação, hoje inscrita no imaginário, entre o feminino e o indomável, incontrolável e irrefreável. Stigger aponta para o fato de que escritoras de relevância mundial, como Clarice Lispector, abordam em sua obra a questão da histeria como

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elogio, por meio do grito ancestral, o grito que aproxima a mulher do animal, afastando-a de sua condição humana. “O grito ancestral sugere uma primeira saída de si por meio de uma primeira metamorfose do corpo: a animalização” (STIGGER, 2016, p. 6). Fugir da condição humana é, nessa perspectiva, uma forma de negar o protocolo social de relacionamento e comportamento humano. No romance em análise, a protagonista evidencia a relação da histeria com a animalização, conforme pode-se notar no trecho abaixo:

Caminho desviando das urtigas e desço até o bosque. A certa altura aparece um cervo que fica me olhando de forma selvagem, como ninguém nunca me olhou. Gostaria de abraçá-lo se fosse possível. (HARWICZ, 2019, p.15). Explicita-se, nesse trecho, a atração que a protagonista sente pelo selvagem e a vontade que ela tem de fazer parte dele. O selvagem aqui remete ao desconhecido, algo a ser desbravado, que precisa ser descoberto ou construído, ou seja, uma possibilidade de vida que foge dos protocolos estabelecidos socialmente, que castram e enlouquecem a protagonista. A identificação dela com esse elemento não se dá, portanto, à revelia. Sherry B. Ortner (2017) em seu “Está a mulher para o homem assim como está a natureza para a cultura?” discute a questão do determinismo biológico como fator de desvalorização universal da mulher, tendo em vista que a mantém associada de forma intrínseca à natureza, enquanto o homem, por estar menos próximo às questões naturais, é identificado com a cultura. Isso contribui para que a visão patriarcal seja reafirmada, pois estabelece uma relação hierárquica entre os gêneros. Com as palavras de Ortner:

Voltando agora ao problema das mulheres, seu status pancultural secundário poderia ser considerado, simplesmente, postulando-se que as mulheres são identificadas ou simbolicamente associadas com a natureza, em oposição aos homens, que são identificados com a cultura. Uma vez que o plano da cultura sempre é submeter e transcender a natureza, se as mulheres são consideradas parte dela, então a cultura achará “natural” subordiná-las, para não dizer oprimi-las. (ORTNER, 2017, p.100).

O romance em análise, portanto, expõe a questão do determinismo biológico ao construir as personagens: enquanto a protagonista é rebelde, arredia e literalmente ligada à natureza, o marido é sensato, compreensivo. É ele quem detém a voz de autoridade dentro do ambiente familiar, confirmando a hierarquia de gênero proveniente das questões biológicas e a teoria de Orter. Entretanto, o elemento natural apresenta uma função no romance Morra, amor: a negação da cultura. Isso porque o selvagem não se encaixa em padrões sociais, pois sua lógica de sobrevivência é outra, tendo em vista que os dogmas civilizatórios lhes são desconhecidos. Assim, ao assumir uma vertente identitária selvagem, a protagonista está se

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desligando da obrigatoriedade de cumprir papéis estabelecidos por contratos sociais que a prendem às condições de mãe e esposa, pois, por sentir-se muito mais à vontade na natureza do que no ambiente familiar, ela acaba estabelecendo vínculos e relações com os animais, os quais a afastam de sua condição humana, e, consequentemente, dos papeis a ela atribuídos. Essa simbiose entre mulher e natureza selvagem acaba por apresentar reverberações em sua mente e em seu comportamento, reforçando o olhar suspeito do marido sobre sua sanidade mental. Desse modo, a loucura e a natureza selvagem convergem, no ponto de vista da personagem, como instrumentos de anulação dos compromissos estabelecidos por contratos sociais.

Assim, há a existência de duas forças opostas que exercem permanente pressão sobre a personagem, levando- a ao conflito interno. A narrativa expõe o intenso “cabo de guerra” entre o que é imposto de fora para dentro, por meio das relações de poder que estabelecem padrões de comportamentos, e o que é natural e se manifesta de dentro para fora, por meio de reações instintivas da protagonista do romance em análise. Isso é o que faz com que ela busque refúgio na natureza e, por desejar fazer parte dela, comece a ter atitudes que a afastam dos dogmas, não apenas em relação ao que se espera da mulher, mas também ao que se espera do próprio ser humano. Nesse contexto, assumir a loucura, por meio de uma atitude selvagem torna-se uma atitude de combate utilizada pela protagonista para negar as condições a ela impostas externamente pela sociedade, conforme se pode notar no trecho final do romance de Harwicz:

Entramos no bosque deixando na terra marcas de rodas. Havia poucos animais acordados. O cervo não aparecia e, por outro lado, ali estava eu. Desligou o motor, relaxou, soltou um ar retido por tempo demais. Bom, o que você quer fazer? Esperava qualquer coisa menos uma pergunta. [...]. Mas eu não pude dizer nada, coitado. E fez uma pausa durante a qual minha vida toda foi um assobio agudo. O bosque eram árvores como tigres erguidos. Não vou conseguir esquecer, disse, e pela primeira vez foi solene. Silêncio, mais sufocado que o de antes. Um zumbido grudado em meus ouvidos caiu com a velocidade de um pássaro morto. Não era possível fazer nada depois desse olhar, o que me toca acrescentar agora. [...]. Desci sem abrir a porta, era um modelo prático para separações. Ele deu meia-volta e me viu me perder entre o matagal. O primeiro momento foi de pura dor. Esse tipo de dor que não se divide nem consigo mesma. Fiquei de luto por muito tempo, mas passado um tempo tive, como a viúva quando põe a chave na porta de casa pela primeira vez, como a viúva quando se deita sozinha pela primeira vez, uma tristeza excitante, selvagem. (HARWICZ, 2019, p.139-140).

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Sair do carro – objeto de um mundo civilizado, urbano – e entrar em um bosque como um bicho que pertence a esse ambiente é um ato simbólico de quebra de padrão. A protagonista se lança no mundo desconhecido, selvagem, fugindo definitivamente dos dogmas sociais, ou seja, retira de cima de si todo o peso das estruturas sociais que determinam quem ela é e como deve agir. Liberta-se do outro como referência e, mesmo que isso lhe cause tristeza, soa-lhe excitante, selvagem. A cena final retrata a ânsia da personagem por descobrir-se por si mesma, mas, para que essa descoberta descobrir-se torne possível, é preciso quebrar padrões, matar, ainda que simbolicamente, como o título do romance já prenuncia, aquilo que impede tal descobrimento. Os papeis de mãe e esposa, ajustados àquela versão socialmente autorizada do feminino, devem morrer, portanto, para dar lugar a outra mulher, des-ajustada, liberta das amarras que a constrangem, passível, enfim, de se construir a partir de suas próprias referências.

As representações da mulher na literatura, de acordo com Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão, explicitam a existência de uma vertente literária cuja tendência é a de fazer com que as personagens femininas apareçam como reflexo, desdobramento do masculino. Entretanto, a partir de meados do século XX, conforme aponta Susana Bornéo Funck, nota-se o início do processo de ruptura dessa tendência, por meio do elogio a características e comportamentos que afastam a imagem feminina do autorizado socialmente, como é o caso da raiva e da loucura. A loucura, para Verônica Stigger, como característica relacionada desde a Grécia Antiga à figura feminina e tomada como elogio pela literatura contemporânea de autoria feminina, remete ao processo de animalização do feminino na literatura. O romance Morra amor, de Ariana Harwicz se inscreve, portanto, nessa tendência, levando em consideração que a loucura da personagem é o que lhe possibilita, ao final, a libertação das condições a ela impostas. Ou seja, a loucura, no romance em questão, apresenta uma função, logo, é elogiada. Essa característica está, em Harwicz, intrinsecamente ligada à natureza selvagem, pois é pelo relacionamento com o elemento selvagem que a loucura se instala na personagem. Além disso, pode-se observar no romance o modo de funcionamento das relações de poder dentro da instituição familiar, o qual reforça comportamentos e padrões de pensamento sobre a mulher que se pretendem subjetivos, mas não são, como evidencia a rebeldia da protagonista.

Após a leitura do romance de Ariana Harwicz, percebe-se que a autora se interessa em libertar a figura da mulher dos moldes socialmente autorizados. A “monstruosidade” de sua protagonista tem o objetivo de romper, por meio do estranhamento, com a lógica

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patriarcal/colonial estabelecida, atuando, assim, como instrumento direto de intervenção social. Virgínia Carvalho de Assis Costa (2016) destaca que a literatura de autoria feminina, ao fazer uso da loucura, elemento comumente pejorativo, esvazia o significante ofertando-lhe novos significados, ligados à ideia de resistência. Há, desse modo, em se tratando de literatura de autoria feminina, um movimento de subversão do modo de lidar com a loucura: ela passa de meio de invalidação comunicativa, dado como ofensa, para elogio, pois se torna instrumento de ruptura de estruturas sociais fixadas e de afirmação da própria voz.

REFERÊNCIAS

BRANCO, Lúcia Castello, BRANDÃO, Ruth Silviano. A Loucura Feminina na Letra do Texto. In: A mulher escrita. Rio de Janeiro: Casa Maria Editorial, 1989.

BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. 11° Ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2012.

CAMILO, Juliana Aparecida de Oliveira, FURTADO, Rafael Nogueira. O conceito de biopoder no pensamento de Michel Foucault. Revista Subjetividades, vol.16 no.3 Fortaleza dez. 2016.

COSTA, Virgínia Carvalho de Assis. A loucura como espaço de fala: insubordinação e resistência na literatura de autoria feminina. XV Abralic, 2016. Disponível em: http://www.abralic.org.br/anais/arquivos/2016_1491524973.pdf. Acesso em març. 2020. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2003.

_________________. A história da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2017.

FUNCK, Susana Bornéo. „Falar a raiva‟ e a (des)construção do feminino, in: Crítica literária feminista: uma trajetória. Série Estudos culturais. Florianópolis: Editora Insular, 2006.

HARWICZ, Ariana. Morra, amor. São Paulo: Editora Instante, 2019.

ORTNER, Serry B. Está a mulher para o homem assim como está a natureza para a cultura? In: BRANDÃO, Izabel; CAVALCANTI, Ildney; et al. Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas. Florianópolis: EDUFAL; Editora da UFSC, 2017.

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STIGGER, Verônica. O útero do mundo. Ministério da Cultura e Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2016.

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