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Embates discursivos em torno de dois crimes: sedução e rapto consensual (1940 e 1970)

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Anais do I Simpósio sobre Estudos de Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 24 e 25 de junho de 2010 GT 3. Gênero, famílias e sexualidades – Coord. Martha Ramírez-Gálvez

Embates discursivos em torno de

dois crimes: sedução e rapto consensual

(1940 e 1970)

Clodoaldo Oliveira Silva∗∗∗∗

Considerando como referencial temporal meados do século XIX, pensando ainda no sistema econômico que fundamentalmente balizava as relações entre os países, qual seja o capitalismo, a busca pelo lucro e a acumulação de capital era a “expressão de ordem”.

Nesse contexto econômico, o governo brasileiro preocupa-se em ocupar os denominados “vazios demográficos”, inserindo-se nesse pensamento a gênese de Londrina.

Registros historiográficos demonstram que a região era uma formação de árvores na qual habitavam grupos indígenas, caboclos e posseiros. Considerada nos mapas como “sertões do Guayrá”, a expulsão desses grupos e a reocupação por parte dos “colonizadores” ocorreu com a chegada da Companhia de Terras Norte do Paraná, britânica, subsidiária da Paraná Plantations Syndicate, sediada em Londres.

Um projeto racional, a empresa tinha uma lógica de colonização baseada na ideia de civilização e progresso (ADUM, 1991), mantido até 1944, quando em decorrência da Segunda Guerra Mundial, a Companhia é nacionalizada. Com idéias urbanísticas importadas da Europa, o traçado das ruas e quadras de Londrina assemelhavam-se a um tabuleiro de xadrez.

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Na efervescência econômica provocada pelo chamado “Ouro Verde”, aliada à fertilidade da terra roxa, o local conhecido como Patrimônio Três Bocas, onde se situa o Marco Zero da cidade de Londrina, passa a ser explorado pela Companhia de Terras Norte do Paraná, que a partir de 1929 inicia os loteamentos, oportunizando a instalação de imigrantes e indivíduos de outros estados brasileiros na região onde se fundaria a “Pequena Londres”, ou Londrina.

Em meados de 1940, observa-se um padrão se desenvolvendo, estabelecendo a presença, sobretudo, de paulistas e mineiros na região.

A propaganda da CTNP alcançava todo o país e uma parcela do exterior, através de panfletos, rádio, filmes. Grandes eram os atrativos, tais como facilidade no pagamento, uma terra onde “em se plantando tudo dá”, a “Terra da Promissão”, “Nova Canaã”, “Eldorado”, “terra onde não há saúvas”, dentre outros, terra do trabalho e do progresso, onde se enriquecia, com ordem, da noite para o dia.

Londrina é fundada, enquanto município, em 10 de dezembro de 1934. A ideia de Eldorado, explorada pelo historiador José Miguel Arias Neto, (ARIAS NETO, 1993) denota o caráter político do governo em povoar e desenvolver a região.

O desenvolvimento regional traz consigo querelas jurídicas, costumes adversos a serem padronizados, e os problemas sociais da nação se fazem presentes também na região recém loteada.

Essas querelas e costumes adversos são mascarados pela CTNP, mas o que se pode considerar como fortalecimento das vendas, ou seja, o marketing agressivo, também alimenta o desejo de outros grupos em chegar e fixar residência na região.

O que atraía na região era o excelente crescimento da produção de café, pelos fatores climáticos, pelo solo propício a essa cultura e demais fatores. Dessa forma, o chamado “ouro verde” prometia enriquecimento rápido e seguro. Mas nem todos enriqueciam, e a mendicância, marginalidade e malandragem cresciam na região na mesma proporção que o café.

Já em 1939, segundo Edson Holtz Leme (LEME, 2005), grupos organizam-se em comissões para preparar o natal das crianças pobres. Com a contínua chegada de migrantes, aumenta a mendicância, a violência, os malandros, prostitutas, desocupados, estelionatários, jogadores. Neste cenário, o ideal de civilização e higienização da CTNP foi ruindo.

Desta forma, estabelecem-se conflitos jurídicos, venda de terras inexistentes, prostituição, vadiagem e outros crimes, configurando-se na

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“Pequena Londres” a dicotomia entre trabalhadores e vagabundos, entre mulheres honestas e meretrizes.

Refletindo sobre a origem da idéia mulher honesta ou meretriz, categorias culturalmente produzidas e internalizadas pela sociedade, chega-se à gênese e desenvolvimento do Brasil enquanto espaço a ser colonizado, inventado, civilizado ou higienizado.(DEL PRIORE, 1993)

Mary Del Priore afirma:

“É importante destacar que parte do contingente feminino, a quem tanto o Estado quanto a Igreja ultramarina se dirigiram, recomendando que se casasse e constituísse famílias, chegara aos homens pelo caminho da exploração ou da escravização, acentuando, assim, nas suas desigualdades, as relações de gênero. Tais diferenças foram importantes na constituição dos papéis femininos e serviram para a fabricação de estereótipos bastante utilizados pela sociedade colonial e mais tarde incorporados pela historiografia.” (DEL PRIORE, 1993)

A ideia de mulher dona de casa, que deve ser preparada para o casamento, para ser mãe, cuidando de seu corpo e preservando sua castidade, assim como do homem possuidor de desejos, instintos e necessidades fisiológicas, parece ter origem, quando se pensa espacialmente em Brasil, na época colonial, como uma reprodução importada do continente europeu. Ora, a manutenção e a cristalização dessa cultura dicotômica perpassa o período imperial e alcança a República fortalecida pela doutrina positivista e pela medicina

Ainda, “o discurso foi penetrando os costumes, como um processo civilizatório. A reorganização das funções do corpo, dos gestos e dos hábitos proposta nesse discurso deveria traduzir-se nas condutas individuais.”(DEL PRIORE, 1993)

Houve um projeto de controle eugênico, proveniente da atuação médica, visando definir progressivamente os códigos de conduta sexual, que deveriam ser adotados por homens, mulheres e crianças, em escala nacional. (RAGO, 1987) O lócus doméstico é o espaço da mulher considerada honesta, é o ambiente da moral e bons costumes, do lar, e o locus público é relacionado ao espaço da prostituição, do vício moral, ambiente da luxúria e marginalidade. O Direito Civil e a sociedade desenvolvem leis que procuram inibir e coagir práticas consideradas imorais, destinando a prática da prostituição a espaços delimitados e previamente determinados, controlando o comportamento das moças honestas e destinadas ao casamento e à procriação, conforme ideal eugênico. Entre a lei e a conduta social se tem uma diversidade de querelas jurídicas, processos e discussões sobre o tema.

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Propõe-se uma reflexão histórica acerca das querelas jurídicas, em Londrina, envolvendo especificamente duas categorias de crimes sociais: os crimes de sedução e os crimes de rapto consensual.

A historiografia sobre o tema sedução, no Brasil Republicano do século XX, atrela a discussão ao ideal do desenvolvimento de costumes sociais rígidos, com papéis bem definidos: o masculino tem sua função distinta da feminina. A historiadora Martha de Abreu Esteves discute a conduta social exigida a partir dos estereótipos aplicados pela justiça: mulher-honesta ou prostituta e homem trabalhador ou marginal (ESTEVES, 2005).

Analisa a questão da higienização, moral e física, enfatizando os símbolos e sinais paradigmáticos de uma moça recatada e honesta, sobretudo denotando as tentativas femininas de ludibriar a justiça, ou seja, estratégias de resistência, ainda que nesse período sutis e quase imperceptíveis.

Ao homem, cabe o triângulo referencial honesto, trabalhador e moral. No entanto, Esteves percebe um vácuo nessa estrutura social: o amasiamento. Afinal, como classificar essa família formada a partir do amasiamento, ou seja, marginal ao costume e à necessidade jurídica de se casar?

O amasiamento era considerado comportamento desviante e, portanto, a ser aniquilado. A mulher amasiada não se enquadrava mais no perfil mulher honesta, em decorrência de ter se entregado ao homem antes do casamento, ou mesmo sem pensar em sua situação perante a sociedade. Ademais, às vezes, a amasiada não aceitava seu papel passivo, seja sexual ou econômico, dificilmente visto com bons olhos ao padrão social de conduta desejável.

Esteves trabalha ainda essa ideia econômica, caracterizando as fases entre o flerte, namoro, noivado e casamento.Seria o tempo necessário e suficiente para estabelecerem condições financeiras possibilitadoras da manutenção do matrimônio. Mas isso não funcionava, quando se tratava de pessoas pobres, principalmente mulheres, que tinham necessidade de trabalhar e de homens que gastavam todo ou quase a totalidade do salário em sua própria manutenção.

Salienta-se ainda o trabalho da historiadora Edméia Ribeiro, pesquisando acerca do tema sedução na cidade de Maringá – Paraná, entre os anos 1950 e 1980. (RIBEIRO, 2004) Embora o contexto social seja distinto, aqui o movimento feminista e sua ascensão, a mesma explora a segregação sexual feminina, discutindo a série de discursos legitimadores da dupla moral sexual, provenientes da Igreja Católica, do Judiciário e reproduzido pelas classes populares.

Observando o desenvolvimento de sua dissertação, evidencia-se uma trajetória análoga à de Esteves, análise da estrutura dos autos, testemunhos e análise dos discursos, como as classes populares recebiam essas ideias, e a fundamentação dos juristas.

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Compreende-se, através da leitura e análise dos processos criminais, as formas de reparação da honra e as motivações que levavam a essa necessidade.Também chama a atenção o fato de cada processo aberto mergulhar na vida privada tanto da ofendida quanto do ofensor, extraindo conclusões a partir de um depoimento mal formulado, uma palavra mal dita, um discurso eloquente de um advogado.

Tem-se ainda a contribuição da historiadora da Universidade de Michigan, Sueann Caulfield, discutindo a vida cotidiana da família no Brasil do início do século XX, mais especificamente Rio de Janeiro (CAULFIELD, 2000).

Caulfield realiza sua pesquisa através da ótica das relações de poder e sociais latentes nos espaços privados do lar, valorizando em sua abordagem de pesquisa os conceitos honra e as práticas morais e sexuais, bem como o antagonismo ou o conflito entre o arcaico e o moderno. Preocupa-se com o discurso, ou a narrativa dos advogados de defesa dos réus, para perceber aspectos morais valorizados no período em questão: passividade feminina face à relação sexual, aspectos do defloramento que indicam moça honesta tais como dor e sangue ao extremo, eram elementos essenciais, a posição da moça no momento do coito, sempre a moça devendo estar por baixo do homem, indicando submissão, a mesma sendo possuída pelo sedutor dominador.

Outra característica fundamental é a himenolatria, ou cultura do hímen. Por vezes dava-se maior destaque à membrana e sua condição após a conjunção carnal, ou os vestígios após o coito, do que a sedução enquanto crime contra os costumes. Entretanto, a sexologia forense ainda não tinha condições suficientes, e ainda não as tem, para afirmar com veracidade e precisão uma conjunção carnal, haja vista a existência do hímen complacente em casos não muito raros, possibilitadores de uma conjunção carnal sem ruptura da membrana, além de termos que levar em consideração o calibre do órgão sexual do sedutor.

Através da leitura dos relatos das partes envolvidas, a descrição das posturas morais denota antagonismos entre práticas dos diversos movimentos sociais.

A veracidade dos relatos não está em questão, mas sim sua verossimilhança, isto é, o fato de se poder, em determinado contexto histórico, fazer possíveis afirmações e descrições sobre papéis sociais de gênero. Especificamente em sua análise de defloramentos, a inversão de papéis da ofendida passando à condição de ré, quando analisados os pormenores jurídicos tais como honestidade, recato, comportamento, enriquecem ainda mais a pesquisa sugerida.

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Considerando este contexto social, realiza-se uma pesquisa histórica da região de Londrina, entre os anos 1940-1970, através da analítica do discurso jurídico sobre sedução e rapto consensual na região, bem como os cruzamentos do mesmo com o discurso literário, religioso, científico e social.

O discurso jurídico do período funda-se na opinião de legisladores, dentre os quais se destacando Nelson Hungria.

O Código Penal de 1940 define, em seu artigo 217, o crime de sedução como: “Seduzir mulher virgem, menor de 18 anos e maior de 14, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança.” HUNGRIA, 1981.

Salienta-se que as dificuldades em relação à perícia forense também refletem a influência positivista supressora de toda ideologia católica dominante até o início da República. Aqui não há preocupação religiosa, mas com uma moralidade social e um ideal cientificista herdado do evolucionismo de Darwin e Spencer.

O artigo 220 do mesmo Código Penal traz, em sua redação, a definição da lei acerca do crime de Rapto Consensual: “Raptar mulher honesta, maior de 14 anos e menor de 21, com seu consentimento.”

Nestes termos, a discussão se torna um tanto acirrada, por dificultar a definição do consentimento da mulher ou da prática de fraude e/ou violência. Geralmente, o rapto consensual era uma prática para acelerar ou forçar um casamento, por isso o consentimento da moça. Entretanto, se a moça é menor de dezoito anos, não emancipada, ainda não possui a tutela de si mesma e, conforme salienta Nelson Hungria, o consentimento da vítima é nulo.

Como a vítima foi tirada do próprio lar, extraída da proteção dos pais, ou pátrio poder, o crime é considerado contra a família, e não somente contra a moça, ludibriada por um lovelace, na linguagem jurídica.

A questão que se dá nos casos de rapto consensual diz respeito à existência ou não de cópula carnal, ou de ato libidinoso, pois dependendo da situação, a polícia ou o Ministério Público entrariam com representação de forma qualificada do crime, agravando a pena.

A base teórico-metodológica da pesquisa está alicerçada no pensamento de Michel Foucault. A proposta é evidenciar como os domínios de saber, ou os costumes sociais, são constituídos a partir das práticas discursivas, considerando as relações de poder, fundadas em conflitos, de acordo com Foucault, promotores de um distanciamento entre o sujeito e o objeto.

Foucault investiga de que forma o poder conduz a produção de discursos “de verdade”, cuja materialização discursiva se dá através das práticas

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sociais, possibilitando a esse poder uma circularidade, com efeitos normalizadores. (FOUCAULT, 1999)

Ora, produzir “verdades”, portanto, converte-se em necessidade criada pelo próprio poder. O poder reflete uma espécie de jogo de forças, evidente quando do ponto de vista discursivo. Afinal, o discurso é dinâmico, circular, variável, efêmero, dando ao poder estatuto de anonimato, dispersão.

Parte-se de discursos jurídicos sobre sedução e rapto consensual, materializados em autos criminais, considerando a genealogia da “produção desses objetos”, na tentativa de compreender a aceitação desses discursos e a circularidade do poder por meio dos mesmos.

A perspectiva foucaultiana questiona o historiador em seus próprios instrumentos de trabalho e modos de operação, fazendo com que o mesmo parta do problema, e não do objeto. Quer dizer, o monumento (fonte histórica) deve ser problematizado/discutido, não pode ser tomado como ponto de partida para a explicação das práticas sociais, mas explicado pelas mesmas.

O pensamento e o horizonte teórico foucaultiano, a partir das práticas discursivas, desconstrói os monumentos, desnaturalizando os eventos, através da genealogia e da analítica do discurso, da linguagem. Contudo, não é uma digressão linear que Foucault propõe enquanto método de análise discursiva, mas a genealogia propõe uma relação desconstrucionista da História ou da fonte em questão, procurando o que chama microfísicas, epistemes. Tem-se aqui um:

“sistema de poder que funciona no interior...assegurado por uma multiplicidade, por uma dispersão, por um sistema de diferenças e de hierarquias e, mais precisamente, pelo que poderíamos chamar de uma disposição tática na qual os diferentes indivíduos ocupam um lugar determinado e cumprem um certo número de funções precisas...é essa disposição tática que permite que o poder se exerça.” (FOUCAULT, 2006)

Entretanto, vale destacar também que Foucault distingue o poder disciplinar do poder de soberania, este último perceptível, acredita-se, a partir da medievalidade e hegemônico até, provavelmente, fins do século XVI. O poder de soberania é materializado na figura do rei, ou do bispo, papa, enfim, vem de uma tradição feudal, aumentando sua ação no período Absolutista. O poder de soberania é visível, porque parte de uma pessoa, ou indivíduo, dirigindo-se a uma coletividade, ou sociedade. Uma forma de poder uniforme, central.

Em contrapartida, o poder disciplinar “nunca é aquilo que alguém detém...” porque parte do centro para a periferia, mas envolvendo uma série de táticas, mecanismos, sistemas.

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O Panóptico de Bentham é o modelo do poder disciplinar, um poder imaterial, invisível, controlador mas não controlado, que todos são, simultaneamente, controladores e controlados dele e por ele. O poder disciplinar se dá a partir de uma microfísica do poder, na qual várias instituições se aglutinam para formar uma totalidade. Envolve escolas, exército, fábricas, hospitais e outras instituições, controlando o tempo e os corpos.No entanto, o poder disciplinar não controla a família.

“O pai, enquanto portador do nome e na medida em que exerce o poder sob seu nome, é o pólo mais intenso da individualização, muito mais intenso do que a mulher e os filhos. Logo, temos aí uma individualização pelo topo, que lembra e que é o tipo mesmo do poder de soberania, absolutamente inverso do poder disciplinar.”(FOUCAULT, 2006)

É importante, embora pareça anacrônica, a existência dessa vinculação entre família e poder de soberania, pois não se pode pensar que o poder disciplinar não atinja a família. A família é parte essencial no jogo de poderes. Ela vincula os indivíduos ao aparelho disciplinar.

Pela discussão acerca de rapto consensual e sedução, tem-se dois desajustes sociais, dois hiatos dentro da família, a sofrerem a intervenção do poder disciplinar através da denúncia do poder soberano, neste caso, o pai ou o responsável. Não se pode deixar de salientar que o poder disciplinar aparece na situação através dos olhos dos vizinhos, dos comentários e das testemunhas. Há uma relação de ajustamento entre os poderes para remediar o hiato provocado pela conduta desonrosa de alguém.

“A família, célula de soberania, no curso do século XIX, nessa empreitada de refamiliarização, secretada de novo pelo tecido disciplinar porque ela de fato é – por mais exterior que seja ao sistema disciplinar, por mais heterogênea que seja e por ser heterogênea ao sistema disciplinar -, é um elemento de solidez do sistema disciplinar” (FOUCAULT, 2006)

Quando há uma deterioração da família, ou dos costumes sociais envolvendo a família, o sistema disciplinar usa de diversas táticas para recomposição dessa célula de soberania. Foucault chama a essas táticas de função psi, cujo referencial é a família.

“É aí, nessa organização dos substitutos disciplinares da família, com referência familiar, que vocês vêem surgir o que chamarei de função psi...um dispositivo disciplinar que vai se ligar, se precipitar onde se produz um hiato na soberania familiar.”(FOUCAULT, 2006)

São cabíveis algumas considerações acerca da percepção foucaultiana do tema sexualidade. Sobretudo na História da Sexualidade (FOUCAULT, 1984), há o questionamento das práticas sociais que, sobretudo a partir do século XVIII, período inicial da análise, maltrata-se por hipocrisia. O sexo reduzido a uma função reprodutora, cujo casal é modelo.

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Foucault chama a repressão sexual de hipótese repressiva, mas não podem ser aceitas como únicas verídicas, ainda que funcionem essas explicações discursivas. Evidentemente, se a hipótese repressiva é um discurso, está relacionado a um poder, e o simples falar sobre sexo ultrapassa os limites desse poder.

O poder que circula a partir da hipótese repressiva incita discussões sobre sexo, entre psicólogos, médicos, religiosos, psiquiatras, pedagogos, juristas. Consequentemente, a sexualidade e suas discussões são construções sociais, e portanto, não são naturais. É necessário desnaturalizar o discurso sobre sexualidade para apreender seus mecanismos, suas táticas de funcionamento e compreender, a partir de então, as práticas sociais.

Refletindo sobre o auto criminal, de forma peculiar, considera-se o laudo de conjunção carnal e a evocação de um discurso moral e de uma prática pericial invasiva, haja visto o detalhamento com que aparecem as conclusões do médico perito, esboçando detalhes físicos do corpo da requerente, ou ofendida. Ao que, se deduz, o corpo da implicante não mais a pertence, nem a seus pais, mas ao Estado, à mercê das práticas do poder disciplinar. Nesse momento, fica evidente a transição do poder de soberania exercido pelo pai para o poder disciplinar, através da tutela do Estado.

A relação saber e poder, em Foucault, é a tônica dessa investigação. O poder produtor de conhecimento, delimitado por regras jurídicas. Porque o direito propõe ou impõe uma localidade ao poder, estabelece normas para julgar e decidir o certo e o errado, culpado e inocente. Faz-se urgente ir além das regras de direito, que organizam e delimitam o poder, percebendo sua circularidade, produtora de saber.

O poder se exerce em uma espécie de rede, na qual os indivíduos estão circulando incessantemente e não se fixando o mesmo nas mãos de ninguém. O poder parte de seus mecanismos moleculares, segundo Foucault, infinitesimais, até chegar àqueles gerais, globais.

O poder é o responsável por institucionalizar a verdade jurídica. Do poder e de sua circularidade provém o direito, e deste, a suposta verdade. Ou do direito provém uma forma de verdade. O poder é:

“...a multiplicidade correlações de força imanentes ao domínio onde se exerce...jogo que através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si.” (FOUCAULT, 1997).

Através do direito, os indivíduos exercem uma forma manifesta de poder, ou são subjugados pelo mesmo, e sua contravenção é uma forma

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sociais produzindo saberes que vão além do juridicamente permitido. Portanto, a infração se torna uma conduta que ofende não ao indivíduo, mas ao Estado.

Por conseguinte, as práticas discursivas, materializadas em autos criminais, romances e revistas femininas, em legislações das escolas e fábricas, em condutas sociais e suas manifestações tanto favoráveis quanto de resistência presentes em notícias de jornais, possibilitam um material farto para pesquisa histórica e embates discursivos acerca dos denominados crimes contra os costumes, ou crimes sexuais, bem como seus possíveis desdobramentos.

Bibliografia

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ARIAS NETO, José Miguel. O Eldorado: Londrina e o norte do Paraná (1930-1975). USP (Dissertação de mestrado): São Paulo, 1993.

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DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Brasília, UnB, 1993.

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Referências

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