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Alice ou a última fuga: o afeto de angústia em cena

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Academic year: 2021

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12 Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, 5 (1): 12-21, Jan./Dez. 2018.

Alice ou a última fuga: o afeto de angústia em cena / Alice ou la

dernière fugue: l'angoisse mis en scène

Vladimir Porfirio Bezerra*

RESUMO

Este artigo, a partir da análise da personagem Alice, do filme francês “Alice ou a última fuga” de Claude Chabrol, pretende abordar o conceito de afeto de angústia nos primeiros escritos freudianos e na visão lacaniana. A pergunta central que norteia este trabalho é: o projeto da personagem Alice, em viver uma vida sem angústias, se configura uma empreitada possível ao sujeito contemporâneo? Na tentativa de responder tal questão, a partir de uma revisão bibliográfica, apresenta-se duas teorias freudianas acerca da angústia e a visão lacaniana sobre a falta – aquilo o que constitui o sujeito na relação com o (O)utro. Parte-se do princípio de que estas reflexões sobre Alice e suas relações com a teoria psicanalítica ajudam a pensar sobre as diversas formas de mal-estar contemporâneo, como as depressões e as compulsões, que se apresentam no cotidiano da experiência clínica.

PALAVRAS-CHAVE: Angústia; psicanálise; depressões; compulsões

ABSTRAIT

Cet article, issu de l'analyse du personnage Alice, du film français "Alice ou la dernière fugue" de Claude Chabrol, vise à aborder le concept de l'angoisse dans les premiers écrits freudiens et dans la vision lacanienne. La question centrale qui guide ce travail est la suivante: la conception du personnage Alice, en vivant une vie sans angoisse, constitue-t-elle une entreprise possible pour le sujet contemporain? Pour tenter de répondre à cette question, à partir d'une revue bibliographique, nous présentons deux théories freudiennes sur l'angoisse et la vision lacanienne sur le manque - celle qui constitue le sujet par rapport au (A)utre. On suppose que ces réflexions sur Alice et ses relations avec la théorie psychanalytique aident à penser aux diverses formes de malaise contemporain, telles que les dépressions et les compulsions, qui se présentent dans la routine quotidienne de l'expérience clinique.

MOTS-CLES: Angoisse; psychanalyse; dépressions; compulsions

* Mestrando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Rio

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13 Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, 5 (1): 12-21, Jan./Dez. 2018.

Introdução

Alice Carol é uma esposa que decide deixar o marido e a vida burguesa que não suporta mais. Ela parte de carro, sem destino, até que o para-brisa do carro quebra, forçando-a a parar em uma velha casa. Lá, é recebida pelo senhor Vergennes e seu mordomo Colas, que se encontram já à sua espera para hospedá-la. Durante a estadia, é confrontada sistematicamente por pequenos acontecimentos, o que a faz tentar sucessivas fugas da velha casa. Em vão. Não importa o caminho que Alice tome na fuga, ela sempre retorna à casa, tonta, ofegante, sonolenta. Vergennes, diante da repetição do comportamento de Alice, a convoca a falar, e diz que aquela propriedade, assim como ele e Colas, são apenas representações criadas por ela; assim como o muro que a impede de escapar, a densa floresta ao redor da casa e a chuva torrencial constante. Estas aparições, segundo Vergennes, poderiam ser transformadas de acordo com as necessidades de Alice; diz Vergennes que é naquela casa “[...] onde as almas emergem do inferno e tomam formas humanas”. Alice, exausta das fugas, recusa o convite. Finalmente, Vergennes indica que, na manhã seguinte, ela será acordada por um raio de sol e que, saindo por uma pequena e intrigante porta localizada ao fundo da sala, poderá finalmente experimentar o fim do seu tormento.

Joel Birman (2000, p.242) indica que o afeto de angústia se apresenta para o sujeito na contemporaneidade, e neste caso para a própria Alice, como uma condição aparentemente interditada. Nesse sentido, a angústia pode ser compreendida no sujeito como resultante de uma consciência sobre seu desamparo – condição que seria inerente ao sujeito, indivíduo que reluta em aceitar tal status. Soma-se a este fato, dois outros elementos que permeiam os dias atuais: a cultura do narcisismo e da sociedade do espetáculo, temas abordados por Christopher Lasch (1983) a partir de uma visão mais sociológica sobre a hegemonia de uma cultura cada vez mais voltada para o prazer, a felicidade. Trata-se então do que Lasch denominou dos primórdios da cultura do individualismo competitivo ou a busca da felicidade em um beco sem saída de uma preocupação narcisista com o eu; diz o autor que “[...] O novo narcisista é perseguido não pela culpa, mas pela ansiedade”. Para Lasch (1983, pp.15-16), o sujeito na modernidade pareceria viver sob constante urgência “[...] como forma de evitação ou encobrimento de sua angústia”. Um exemplo possível para pensar as questões trazidas por Lasch, seria a

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14 Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, 5 (1): 12-21, Jan./Dez. 2018. hegemonia do desenvolvimento de drogas a partir dos anos 1950, destinados à moderação do humor e sono nos sujeitos.

Em ocasião da apresentação dos escritos de Colette Soler (2012, p.7), Declinações da Angústia, Dominique Fingermann indica que dada a articulação dos discursos da ciência e do mercado nos últimos tempos, o próprio termo angústia parece ter se tornado obsoleto. No século XXI, o termo parece sair do discurso comum, e é utilizado pelo sujeito contemporâneo sob diversas outras denominações, tais como síndrome do pânico, distúrbio de atenção, ansiedade.

A visão de Birman, Soler e Lasch – e o entrelaçamento de suas reflexões – parecem evidenciar o que Eugène Enriquez (2005) indica como a emergência de “[...] relações entre a psicanálise e as ciências sociais”, movimento proposto por Freud (1913; 1939) em seus escritos antropológicos e sociológicos, e onde se empenhou não apenas em explorar os processos inconscientes e individuais para o tratamento das neuroses, mas principalmente quais seriam as contribuições que esta nova perspectiva científica poderia oferecer à leitura da sociedade (Enriquez, 2005, p.154).

Diante das diversas formas de mal-estar na contemporaneidade que evocam a expressão ou a ideia de “angústia” na prática clínica, e de suas imbricações com o contexto social dos sujeitos, o presente artigo tem por objetivo refletir sobre o afeto de angústia a partir de dois eixos referenciais: o primeiro, as duas teorias da angústia em Freud, desenvolvidas entre 1892 e 1926 e, o segundo eixo, a fundação do sujeito desejante em Lacan. Disse Freud ([1926] 2014, p.78-95) que “[...] o ego é a genuína sede da angústia”. O entendimento destas reflexões em Freud e Lacan se configura uma tentativa em compreender a atual relação entre o sujeito contemporâneo e o afeto da angústia no cotidiano da experiência psicoterapêutica.

Afinal, é possível Alice Carol fugir definitivamente daquilo que a atormenta? O aparente projeto contemporâneo, de vida livre de angústia, se configuraria uma empreitada possível?

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15 Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, 5 (1): 12-21, Jan./Dez. 2018.

1. O afeto de angústia nos primeiros escritos freudianos

A obra psicanalítica revela que a angústia foi um ponto nodal do pensamento freudiano. Com efeito, Freud apresenta duas teorias acerca da angústia, resultantes de diversas revisões do próprio autor, no decorrer dos anos em que se dedicou à construção do saber psicanalítico.

Partindo da ideia freudiana de que o afeto se caracteriza, e é definido, como algo que chega à consciência e provoca uma sensação, portanto, algo que se sente (FREUD, [1915] 1976, p.457-480), ou ainda reproduções de experiências antigas e eventualmente pré-individuais, é no período entre 1894 e 1900 que Freud teria apresentado uma teoria econômica sobre angústia (França, 1997, p.4). A primeira teoria da angústia teria se desenvolvido entre os anos de 1905 e 1923, centrando-se na ideia de que a angústia reconheceria uma etiologia sexual, por meio do recalque da sexualidade, que consideraria dois motivos: a) conflitos psíquicos, ou b) afecções somáticas sem conexão ou origem psíquica.

Segundo Maria Inês França (1997, p.4), indícios dessa contextualização já haviam surgido no Rascunho E, intitulado Como se origina a Angústia (1892-1894). A angústia decorreria de uma excitação sexual que teria atingido seu valor limite, levando o sujeito a uma insuficiência de elaboração psíquica traduzida na formação do sintoma. Utilizando-se de exemplos – uma série de sintomas como irritabilidade geral, expectativa angustiada, ataques de angústia ou equivalentes –, Freud caracterizaria a angústia por uma transformação direta do excesso de excitação sexual no corpo, em que a ligação psíquica não ocorre. No Rascunho E, sobre a origem da angústia, escreve Freud:

[...] nessa neurose, as coisas se desvirtuam da seguinte maneira: a tensão física aumenta, atinge o nível do limiar em que consegue despertar afeto psíquico, mas, por algum motivo, a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente: um afeto sexual não pode ser formado, porque falta algo nos fatores psíquicos. Por conseguinte, a tensão física, não sendo psiquicamente ligada, é transformada em — angústia [...] (FREUD, [1894b], 1996, p.238).

Tal reflexão se torna possível quando Freud nos diz que sua paciente Elizabeth Von N “[...] conseguiu poupar-se da dolorosa convicção de que amava o marido da irmã induzindo dores físicas em si” (FREUD [1895b]1974, p.78). Isto é, a ideia intensiva de Elisabeth em confronto com a sua moral instalou um conflito, e como forma de defesa a

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16 Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, 5 (1): 12-21, Jan./Dez. 2018. paciente colocou em ação um conjunto de sintomas. Delineia-se, portanto, o primeiro eixo teórico de Freud. A angústia seria a resultante da modificação de uma realidade primária do sujeito, a desestabilização do princípio de prazer, que desembocaria no recalque – “[...] uma tendência do aparelho psíquico em buscar o prazer, frente a satisfação vetada primeiramente” (FRANÇA, 1997, p.18). Nas palavras de Freud,

Essa força falaz do instinto resulta de um desinibido da fantasia e do represamento ocasionado pela satisfação frustrada. O fato de esse último resultado estar vinculado à repressão indica a direção em que a verdadeira importância da repressão deve ser procurada (FREUD, [1915] 1976, p.337-354).

A segunda teoria freudiana, a de que a angústia produziria o recalcamento, desenvolve-se no decorrer dos anos seguintes. A partir da nova divisão do aparelho psíquico apresentada em 1923 em O Ego e o Id, e de novas revisões em 1926 em Inibição, sintoma e angústia, Freud sinaliza que a angústia estaria instalada no seio do Ego1, e seria reproduzida como um estado afetivo capaz de produzir o recalque. No afã de satisfazer concomitantemente as exigências do Id, do Superego2 e da realidade, ao Ego caberia a busca por soluções de compromisso de modo a evitar o surgimento do sofrimento psíquico. Esta seria uma reação primitiva frente aos perigos externos oriundos destas três instâncias. Freud então propõe uma relação entre a formação de sintomas – caracterizados pelas catexias protetoras, como por exemplo, o mecanismo das fobias – e a geração de angústia. No entendimento do autor, a formação do sintoma seria, portanto, o resultado concreto de anular a situação de perigo ou ameaça sentida pelo sujeito; essa ideia fica mais clara na passagem:

A ansiedade é uma reação a uma situação de perigo. Ela é remediada pelo Ego, que faz algo a fim de evitar essa situação ou afastar-se dela. Seria mais verdadeiro dizer que se criam sintomas a fim de evitar uma situação de perigo cuja presença foi assinalada pela geração de ansiedade (FREUD, [1926] 2014, p.88).

1 Para Mijolla (2005, p.537), o Ego “[...] mostra ser, portanto, uma instância essencialmente derivada do

corpo: ligada à percepção, ao invólucro, é um ‘ser de superfície’, e ‘projeção de uma superfície’. Cf. MIJOLLA, A. Dicionário Internacional da Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2005.

2 Para Mijolla o Id é descrito como “[...] o grande reservatório’ de pulsões que, emanando do corpo, aí se

fazem presentes [...] visando a descarga sem nenhuma outra consideração além do princípio de prazer”. Já o Superego seria a “[...]instância pela qual se transmite o passado da civilização de que cada um deve reapropriar-se por conta própria” (2005, p.537). Cf. MIJOLLA, A. Dicionário Internacional da Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2005.

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17 Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, 5 (1): 12-21, Jan./Dez. 2018. Desta maneira, é possível entender a angústia como um sintoma, e que a formação deste sintoma seria realizada para a evitação de sofrimento por parte dos sujeitos. Nas palavras de Freud ([1926], 2014, p.74-95), “[...] a angústia então aparece como reação à falta do objeto, ou separação de um objeto bastante estimado [...]”. Com isso, sugere que estes momentos traumáticos, seriam aqueles em que o Ego é obrigado a enfrentar uma forte exigência libidinal, que inativa as defesas e provocaria a experiência de desamparo no sujeito, retomando em parte sua perspectiva essencialmente econômica da primeira teoria.

Segundo Fernanda Pacheco-Ferreira (2012, pp.165-184), neste ponto desvela-se uma dupla origem do afeto de angústia. A primeira, originada quando o sujeito revive situações correlatas ao trauma original, denominada angústia automática, considerada por Freud, uma forma inadequada de reação ao perigo, uma vez que a simbolização no psiquismo do sujeito é precária ou nula; a segunda, chamada de angústia sinal, seria considerada uma espécie de advertência ativadora da equação prazer-desprazer, uma antecipação do Ego à satisfação da pulsão, uma forma simbolizada e elaborada no psiquismo, que possibilitaria assim o recalque efetivo. Em ambos os casos, a explicação da autora revela que a angústia seria uma maneira de defesa arcaica, ligadas a uma constituição narcísica frágil, fruto de uma perturbação precoce na relação sujeito/objeto (Id., ibid., p.171).

Retoma-se aqui o esquema proposto por Colette Soler, em Declinações da Angústia (Soler, 2012, p.9), sobre as teorias da angústia em Freud:

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18 Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, 5 (1): 12-21, Jan./Dez. 2018.

2. O sujeito desejante em Lacan: o sujeito da falta

Em seu Seminário 10, A Angústia, Lacan afasta-se da concepção de que a angústia seria uma sensação, para introduzi-la como um afeto no sujeito (LACAN, [1962-1963] 2004, p.23); um afeto desprendido, à deriva, porém não recalcado. Brevemente, recorre-se aqui à concepção lacaniana de um sujeito fundado na incessante busca de uma parte de si mesmo, para sempre perdida (1964/2008, p.213). No Seminário 11 - Os Quatro Conceitos Fundamentais Da Psicanálise, Lacan ([1964] 2008) indica que o sujeito surge no campo do (O)utro, através da linguagem, e de duas operações distintas, porém articuladas: a alienação e a separação. Em ambos os casos, o que se observa é o privilégio que o autor confere à palavra falta.

Lacan, define a alienação como o resultado (S1) da interação de dois conjuntos – o do sujeito, representado pelo símbolo ‘$’, e o do Outro, composto pelo símbolo ‘S2’. Para o autor, o sujeito se constituiria aí, quando toma um significante do Outro, e o utiliza para se representar junto a outros significantes de S2, nomeando o vazio ou o que chama de “materialização” da ausência3 - o espaço representado por S1.

Fig. 1 (A Alienação. In: LACAN, J. 2008, p.219)

É na dinâmica entre a nomeação do que Lacan chamou de Alienação (S1) e sua interação com o Outro (S2) que se fundaria o sujeito; desta maneira, a definição do Eu, se encontraria sempre parcial, marcada pela falta (LACAN, [1964] 2008, p.219), ou dependência de um Outro. Na explicação de Maria Angélica Pisetta e Vera Besset (2011), esta lógica subverteria o cogito cartesiano, anteriormente já realizado por Freud, uma vez que não haveria coincidência entre pensar e ser (PISETTA; BESSET, 2011, p.320). Logo, é onde não pensa, que o sujeito é.

3 Cf. NASCIMENTO, M.B. Alienação, separação e a travessia do fantasma. Rev. Estud. Lacan., Belo

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19 Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, 5 (1): 12-21, Jan./Dez. 2018. A separação, por sua vez, entende-se como o processo pelo qual o sujeito reconhece que o que lhe falta, também falta ao Outro; isto é, o Outro, diante do sujeito, é um Outro também faltante. Pisetta e Besset (2011, p.321) escrevem que “[...] na alienação temos um Outro completo, infinito, portador dos significantes, enquanto na separação a condição lógica é de um Outro faltante”. No lugar de ‘S1’, o significante mediador entre o sujeito e o Outro na alienação, surge ‘a’, que representa na lógica dos conjuntos, o que é faltante no campo do sujeito ‘$’ e do Outro ‘S1-S2’.

Abaixo, o esquema proposto por Lacan sobre o que nomeia Separação.

Fig.2 (A Separação. In: Nascimento, M. 2010, p.3)

Assim, a falta do Outro – representada pelo encontro do sujeito ($), com o objeto (a) – produz no sujeito o que Lacan chama de movimento de retorno a si mesmo, à sua falta como tal. Diz Lacan: [...] o sujeito... volta, então, ao ponto inicial, de sua falta (LACAN, 1964/2008, p. 227). Não restaria ao sujeito, senão ser representado, por sua própria falta constitutiva, manifesta em seu desejo pelo Outro, como Lacan ([1962-1963] 2004, p.36), “[...] aquele que não atinjo” – algo que ele não pode escapar.

Considerações finais

A experiência clínica nos revela sujeitos que demandam urgentemente livrar-se de males que causam sofrimento. A hegemonia dos medicamentos moderadores de humor, do sono, e de drogas recreativas, servem de exemplos para pensar sujeitos na contemporaneidade. Com isso, como orienta Jacques Lacan ([1962-1963] 2005, p.13), “[...] o analista é posto à prova na condução do tratamento, em relação à percepção do quanto de angústia pode seu paciente suportar durante a experiência analítica”. Do que fogem?

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20 Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, 5 (1): 12-21, Jan./Dez. 2018. Retoma-se a pergunta inicial deste trabalho. O aparente projeto contemporâneo de vida livre de angústia se configuraria uma realidade possível? Conseguiria Alice Carol livrar-se das ameaças que lhe causavam angústia, fugindo da casa?

Os dois eixos teóricos de Freud sobre a angústia e a concepção lacaniana de fundação do sujeito desejante servem de balizadores. Tal como foi apresentada, a angústia é colocada em posição privilegiada, um afeto originário, inerente ao sujeito, do qual não se pode escapar.

As noções de Freud e Lacan sobre a angústia remetem à importância da condição originária de desamparo no sujeito trazida nas discussões filosóficas de Kierkegaard e Nietzsche. A questão é vista por ambos como consciência do nosso destino pessoal. A angústia se configura como um afeto fundamental na dinâmica de singularização da existência, e que pode abrir espaço para diversos processos de mudança no sujeito (Lalande, 1999, p.181).

Convocada, pela casa e por si, a retornar a si mesmo, rodeada pela falta de respostas dos personagens Vergennes e Colas, e frente à emblemática frase do misterioso menino dos pássaros: “Não te darei respostas Alice, não adianta perguntar...”, Alice tenta fugir sucessivas vezes da casa. Um movimento dinâmico e intermitente entre alienação e separação. Uma compulsão à repetição. Sintoma formado para evitar uma dor maior. A dor frente a realidade da separação e constatação de sua infelicidade.

Certamente porque a angústia tem “função epistêmica” – conforme pontua Colette Soler – porque retira o sujeito da captura imaginária, e com Freud, do ponto de vista da pulsão, a angústia exige trabalho psíquico, Alice entregue ao seu próprio desamparo, tenta uma última busca por uma vida livre de angústia.

Desta vez, ao final do filme, passando finalmente através da pequena porta.

REFERÊNCIAS

BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

FRANÇA, Maria Inês. Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo: Perspectiva, 1997.

FREUD, Sigmund. (1893-1895) Os casos clínicos. Caso 2, Emmy Von N. In: FREUD, S. Pequena coleção das obras de Freud. Livro V. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

_________. (1894b). Rascunho E. Como se origina a angústia. In: FREUD, S. Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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21 Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, 5 (1): 12-21, Jan./Dez. 2018. _________. (1893-1899) As neuropsicoses de defesa. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Freud. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1976, (p.53, 64-66).

_________. (1915) Conferência XIX In: Edição Standard Brasileira das Obras completas psicológicas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. XIV.

_________. (1917) Conferências Introdutórias à Psicanálise. Conferência XXV. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas Psicológicas de Sigmund Freud. Vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

_________. (1926) Inibição, Sintoma e Angústia. In: FREUD, S. Obras Completas (p.13-123). Vol.17. São Paulo: Cia das Letras, 2014.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

________. (2008) El Seminario 11. Los Cuatro Conceptos Fundamentales del Psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original pulicado em 1964).

LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo. A vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

MASSON, Jeffrey Moussaieff. A Correspondência Completa de Sigmund Freud para W. Fliess (1887-1904). Rio de Janeiro: Imago, 1986.

MIJOLLA, A. Dicionário Internacional da Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2005. NASCIMENTO, Marcos Bulcão. Alienação, separação e a travessia do fantasma. In: Rev. Estud. Lacan., Belo Horizonte, v. 3, n. 4, p. p-pp, 2010 . Disponível em

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-07692010000100009&lng=pt&nrm=iso . Acesso em 12 nov. 2016.

PACHECO-FERREIRA, Fernanda. Algumas questões sobre a angústia e sua relação com a vergonha. In: VERTZMAN, Júlio... [et al.]. Sofrimentos narcísicos – Rio de Janeiro: Cia de Freud: UFRJ, 2012.

PISETTA, Maria Angélica Mello; BESSET, Vera Lopes. Alienação e Separação: Elementos para discussão de Um caso clínico. In: Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16,

n. 2, p. 317-324, abr./jun. 2011. Disponível em

http://www.scielo.br/pdf/pe/v16n2/a15v16n2.pdf . Acesso em 12 nov. 2016. SOLER, Colette. Declinações da Angústia. São Paulo: Escuta, 2012.

FILME:

Alice ou la dernière fugue. Dir: CHABROL, Claude.1976. São Luiz: Lume Filmes. DVD (Português/Francês) e online, somente em língua francesa:

https://www.youtube.com/watch?v=MkWCsYLWxqA. Acessos em: 30 out. 2016.

Recebido em: 19 de jul. 2018 Aceito em: 21 de nov. 2018

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