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Ensino de Ciências e estudantes surdos: discussões e reflexões

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Academic year: 2020

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289 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 10.26843/rencima.v11i6.2614 eISSN 2179-426X

Recebido em 20/02/2020 / Aceito em 26/09/2020 / Publicado em 01/10/2020

Ensino de Ciências e estudantes surdos: discussões e reflexões

1 Teaching Science and deaf students: discussions and reflections

Nelson Dias

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Instituto de Física/Programa de Doutorado em Ensino de Ciências, nelsonufms@hotmail.com

https://orcid.org/0000-0002-1256-8088

Alexandra Ayach Anache

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/CCHS/Programa de Pós-Graduação em Psicologia, alexandra.anache@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-7937-4448

Ruberval Franco Maciel

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/Programa de Pós-Graduação em Letras, ruberval.maciel@gmail.com

http://orcid.org/0000-0003-3867-9621

Resumo

Este artigo é uma revisão de literatura sobre ensino de ciências e estudantes surdos, faz parte de uma pesquisa de doutorado ainda em andamento. O objetivo é compreender como são as aulas de ciências com estudantes surdos, discutir e problematizar estratégias, metodologias e processos avaliativos em turmas com esse público por meio de publicações realizadas em teses, dissertações e periódicos. Foram realizados buscas em três bancos de dados diferentes, teses e dissertações Capes, periódicos Capes e Google Acadêmico, com os seguintes descritores: “ensino de ciências”, “surdo”, “inclusão”. Após o levantamento de dados, foram criados cinco eixos para serem

1 Pesquisa vinculada ao projeto: ” Desenvolvimento de tecnologias de ensino acessíveis para a formação de conceitos

na Educação Básica” Edital Chamada FUNDECT/CAPES N° 11/2015 – EDUCA-MS – CIÊNCIA E EDUCAÇÃO BÁSICA O presente trabalho foi realizado com apoio da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS/ MEC – Brasil.

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290 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 discutidos. As discussões relacionam-se às linguagens utilizadas no contexto da sala de aula, formas de planejamentos, interação entre intérprete e professor de Ciências, aquisição de conhecimento científico e elaboração de materiais. Conclui-se que a Libras precisa ganhar protagonismo na sala de aula, bem como ser inserida nas estratégias de ensino, atividades e avaliação para de fato o estudante surdo ser incluído e sentir-se pertencente ao ambiente escolar.

Palavras-chave: Educação; Libras; Escola; Metodologias; Inclusão. Abstract

This article is a literature review on science education and deaf students, is part of an ongoing doctoral research. The goal is to understand how science classes are with deaf students, discuss and problematize strategies, methodologies and evaluation processes in classes with this audience through publications made in theses, dissertations and journals. Searches were performed in three different databases, Capes theses and dissertations, Capes journals and Google Scholar, with the following descriptors: “science education”, “deaf”, “inclusion”. After data collection, five axes were created to be discussed. The discussions relate to the languages used in the classroom context, forms of planning, interaction between interpreter and science teacher, acquisition of scientific knowledge and preparation of materials. It is concluded that Libras needs to gain prominence in the classroom, as well as be included in teaching strategies, activities and assessment in order for the deaf student to be included and to feel belonging to the school environment. Keywords: Education; Libras; School; Methodologies; Inclusion.

Introdução

Ser professor de Ciências na educação básica é uma tarefa desafiadora. Coloco essa questão, pois, existe uma expectativa por parte dos estudantes de como o professor conduzirá suas aulas, afinal, esta é uma área que chama a atenção e aguça a curiosidade de todos os alunos. A primeira impressão que eles têm sobre a disciplina, são as experiências em laboratório, manipulação de tubos de ensaio, utilização de microscópios, aulas de campo, observação da fauna e flora de determinados lugares. E, de fato, esses tipos de atividades são usadas “nas aulas práticas de Ciências para o melhor aprendizado dos conteúdos teóricos trabalhados em sala de aula, estabelecendo o diálogo entre teoria e prática” (BARTZIK; ZANDER, 2016, p.33).

Essas impressões e expectativas dos estudantes ficam evidentes quando são questionados sobre o desenvolvimento da disciplina. Para Maldaner (2010, p.107) o senso comum dos alunos remetem às experimentações fantasiosas que muitas vezes “são reforçadas pela mídia, pelos filmes de ficção, pela divulgação de certas práticas alquimistas, jogadas na imaginação das pessoas fora do contexto em que elas se deram”. Desse modo, o contato que possuem sobre Ciências da Natureza vistas em programas de televisão, desenhos animados, vídeos do Youtube e entre outras, ampliam ainda mais a

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291 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 curiosidade de explorarem das mais variadas formas o conhecimento discutido por essa área.

De fato, é possível utilizar várias modalidades de ensino nas aulas de ciências, mesmo que na escola não tenha um laboratório com suas vidrarias, microscópios e espécimes de plantas e animais. Existem outras possibilidades na forma de explorar os conteúdos dessa disciplina, afinal “o papel do professor é desenvolver técnicas de ministrar aula que propiciem um melhor aproveitamento da disciplina bem como a diversificação de material para os estudos” (REZENDE, GOMES; ALMEIDA, 2016, p.117).

Entretanto, quando nos deparamos com a realidade, esta tende ser muito diferente, as modalidades de aulas ficam restritas a quadro, giz, voz e escrita, como na maioria das disciplinas na educação básica. É claro que não podemos fazer generalizações, mas na maioria das vezes, as linguagens que mais são privilegiadas nas escolas são a escrita e a oralidade. Nessa perspectiva, Santos et. al (2011, p. 218) chamam a atenção que alguns “professores ainda usam somente o livro didático como recurso metodológico tornando a disciplina cansativa e monótona não despertando o interesse dos estudantes”.

Aprender termos técnicos, nomenclaturas, conceitos específicos da área acabam se tornando uma atividade maçante para qualquer estudante. Como Santos et al (2011, p. 218) explicam, ainda existem “grandes deficiências no processo de ensino e aprendizagem dos conteúdos de Ciências Naturais” e um dos fatores para que isso aconteça é a dificuldade em associar os conteúdos com o dia a dia desses estudantes.

Seguindo essa lógica, e, inserindo os estudantes surdos nesse contexto, verificaremos que esses, apesar de possuírem as mesmas expectativas que mencionamos nos primeiros parágrafos, acabam por ser desprivilegiados tanto na forma quanto no conteúdo dessa disciplina. Na forma, pois, as metodologias deveriam abarcar diversas outras linguagens, principalmente as visuais. E, no conteúdo, pois como as linguagens oral e escrita são predominantes, estes estudantes dificilmente terão um acesso satisfatório para compreender os conceitos que serão ministrados.

Mas por que este formato de aula exclui o estudante surdo de ter pleno acesso à disciplina? Primeiro, precisamos compreender que o estudante surdo possui uma língua diferente da maioria. Esta é de modalidade visual-espacial (QUADROS, 2007), então, toda sua experiência com o mundo está vinculada a essa modalidade. Nesse sentido, aulas ministradas exclusivamente por meio da oralidade e escrita, mesmo com a presença do intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais), dificultam o que chamamos de input (QUADROS, 1997) comunicativo para o surdo.

Nesse sentido, objetivando compreender como são as aulas de ciências com estudantes surdos, realizamos uma revisão de literatura para discutir e problematizar estratégias, metodologias e processos avaliativos em turmas com esse público por meio de publicações realizadas em teses, dissertações e periódicos.

Materiais e método

Esse artigo é fruto de uma investigação de doutorado ainda em andamento sobre práticas translíngues com estudantes surdos do ensino fundamental, entretanto, o foco atribuído para este texto é a revisão de literatura que realizamos para dar suporte a nossa investigação. O levantamento das produções acadêmicas foi realizado em três ambientes diferentes de banco de dados. Utilizamos o banco de dados de Teses e dissertações do

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292 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 portal Capes com os seguintes descritores: “ensino de ciências”, “surdo”, “inclusão”. Filtramos a busca por área de conhecimento “Ensino de Ciências”, ferramenta disponível no próprio sistema. O filtro selecionou 249 trabalhos, entretanto, observamos que as pesquisas selecionadas não eram apenas relacionadas com estudantes surdos e nem com ensino de ciências, as temáticas eram variadas, como: ensino de matemática com estudantes cegos, baixa visão, ensino de química, física, ensino de matemática com estudantes surdos. Então, realizamos uma segunda filtragem, manual, por títulos de cada trabalho encontrado. Desses 249, quatro dissertações relacionavam o ensino de ciências com estudantes surdos.

O segundo levantamento de dados foi realizado no portal “periódicos Capes”, o objetivo foi buscar artigos em revistas que tratavam da temática. Utilizamos os mesmos descritos no portal de teses e dissertações. A busca nos forneceu 24 resultados sendo apenas dois relacionados à temática que procuramos, desses, um era recorte da dissertação que encontramos no portal da Capes. O terceiro levantamento visava buscar artigos publicados em anais de eventos, utilizamos não um banco de dados, mas sim uma ferramenta de busca, o Google acadêmico. Nessa ferramenta, inserimos os mesmos descritores nas buscas anteriores. Encontramos 6 artigos relacionados ao tema.

Para orientar nossa leitura, elaboramos um roteiro de questionamentos e problematizações com objetivo de selecionar as obras:

 Quais metodologias que foram trabalhadas no processo de ensino de ciências com estudantes surdos?

 Como a Libras se insere no contexto da sala de aula com alunos ouvintes?

 Como o professor elabora a aula pensando na diferença linguística de seus estudantes?

 Quais materiais/recursos que são utilizados pensando na acessibilidade linguística do estudante?

 A inserção do intérprete tanto no planejamento quanto no atendimento durante as aulas de ciências?

 O processo avaliativo dos estudantes surdos nas aulas de ciências?

 Como é participação desses estudantes durante as aulas?

Após leituras desses textos, sistematizamos e criamos 5 eixos de discussão: Linguagem, surdo e ensino de ciências; Intérprete e o professor de ciências; Planejamento no ensino de ciências e estudantes surdos; Conhecimento científico e estudantes surdos; Elaboração de materiais em aulas de ciências e Libras; Organizamos esses eixos por regra de pertinência, a partir da análise de conteúdo de Bardin (2011). Para a referida autora, essa abordagem organiza os procedimentos de análises e categoriza os documentos que “devem ser adequados enquanto fonte de informação, de modo a corresponderem ao objetivo que suscita a análise” (BARDIN, 2011, p. 128). Dessa forma, os textos analisados foram agrupadas conforme a proximidade nas discussões em seus referidos objetos de pesquisa.

Procuramos nessas discussões encontrar pontos que contribuíram no desenvolvimento da nossa pesquisa, mas, sobretudo, pontos que entendemos precisar de maior reflexão no ensino de ciências com estudantes surdos, e, é nessa reflexão que desenvolvemos nossa problemática de pesquisa, quanto aos objetivos do nosso trabalho.

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293 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 O que dizem as produções acadêmicas sobre ensino de ciências e estudantes

surdos

Antes de adentrar nas discussões sobre os textos selecionados quero discutir o envolvimento entre ensino de ciências, língua e linguagem, pois, foram esses questionamento que me foram feitos em eventos científicos em comunicações orais, e, penso ser pertinente primeiro esclarecer qual é o nosso ponto de diálogo ao “tecer a trama” entre surdo, língua, linguagem e ensino de ciências. Nesse sentido, questiono: Por que discutir sobre surdez, língua e linguagem na área de estudos das Ciências da Natureza? A princípio pode-se pensar que nessa área, por se tratar de física, química ou biologia, não se discutem aspectos da língua ou questões relacionadas à surdez, se fossemos analisar apenas dessa forma, de fato estaríamos corretos e não caberia discuti-las. Entretanto se pensarmos em educação básica, os estudantes surdos e ouvintes têm contato com várias áreas do conhecimento, e, esses conhecimentos são abordados utilizando duas línguas: Libras e Língua Portuguesa.

Nesse sentido podemos fazer um elo entre surdez, língua, linguagem e ensino de ciências, afinal, existem muitos surdos matriculados no ensino comum. Podemos ampliar os conceitos a serem apresentados com outros elos, como: inclusão, acessibilidade, direito linguístico, política linguística, planejamento, adaptações metodológicas, avaliações, justiça social e dentre outras que podemos citar. Pois, estamos falando não só de ensino de ciências, mas sim, de Educação.

Outro fator que destaco é a pouca produção científica entre ensino de ciências e estudantes surdos. Vários questionamentos ficam abertos para debates quando tocamos nessa temática, por exemplo: Como ensinamos conceitos técnicos da Biologia, nomes científicos que envolvem afixos e sufixos das línguas gregas e latinas? Como explicamos, para esses estudantes, o ciclo reprodutivo das briófitas e pteridóficas que apesar de terem proximidades evolutivas possuem ciclos e nomenclaturas totalmente diferentes? Ainda mais, como avaliamos se de fato esses conteúdos foram compreendidos pelo estudante, se na maioria das vezes as avaliações são em sua segunda língua? Como esses estudantes podem participar de apresentações de trabalho em grupo? De que forma minhas adaptações metodológicas o incluem no processo ou o excluem mais ainda?

Esses são questionamentos que eu, enquanto professor de Biologia e Ciências, fiz e ainda os faço quando me deparo com situações de ensino de ciências (minha formação inicial) e estudantes surdos. Não pretendo realizar com este trabalho nenhuma fórmula mágica do tipo “Seus Problemas Acabaram!”, mas quero propor uma reflexão nas interconexões entre os conceitos que elenquei nos parágrafos iniciais e o processo de ensino-aprendizagem com os estudantes surdos e ouvintes.

Linguagens e o ensino de ciências com estudantes surdos

O que vale aqui é refletir a possibilidade de envolvê-los para que possamos de fato promover inclusão, acessibilidade e garantir o direito que muitas vezes são negligenciados pelo próprio sistema educacional, fato esse relatado por Silva e Gomes (2016) em sua pesquisa sobre “O ensino de ciências para surdos através das publicações do INES” para os autores

observa-se que poucos são os estudos da área de ensino de ciências voltados para a educação que contemple os estudantes surdos, sendo ainda

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294 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 hoje devido a diversos fatores, negligenciado o acesso dos surdos ao conhecimento científico. Um reflexo deste panorama é a ausência de teses e dissertações sobre as temáticas [...] (SILVA; GOMES, 2016, p.5427). Vale ressaltar que o trabalho discutido por Silva e Gomes (2016) é sobre as publicações realizadas pelas revistas da editora INES (Instituto Nacional dos Surdos) a maior referência de educação de estudantes surdos no Brasil. Os autores fizeram uma triagem de 3 revistas da editora em um período de 2009 a 2015 e encontraram cinco artigos que possuíam descritores SURDO e ENSINO DE CIÊNCIAS. Esses autores indicam uma escassez em

metodologias, glossários e materiais para o ensino de Ciências e nos convida a investir esforços para o desenvolvimento de novos estudos que se reflitam em estratégias e metodologias que viabilizem melhorias no cenário da educação de surdos (SILVA; GOMES, 2016, p.5430).

Nessa pesquisa os autores discutem que a datilologia, leitura labial, oralidade, são ineficazes no ensino de ciências com estudantes surdos, a afirmação que os autores utilizam é a falta domínio no uso da Libras no contexto de sala de aula, e, por isso os conceitos da área não são absorvidos pelos surdos. Nesse ponto, questionamos: Será que esses recursos não são eficazes por não conhecermos nosso público? Afinal, para um surdo oralizado, a leitura labial pode contribuir no processo. Já para um surdo com proficiência na Língua Portuguesa, a datilologia também pode ajudar a compreender os conceitos e explicações do conteúdo. O uso desses recursos pode aumentar o domínio/fluência na Língua Brasileira de Sinais e na Língua Portuguesa, pois, fomentará a busca pela escrita e pelo sinal relacionado a cada conceito apresentado.

Nesse elo entre Ensino de Ciências e estudante surdo, aproveitando a discussão sobre os recursos de outras linguagens citada anteriormente, um ponto que chama atenção é a exploração dos recursos visuais que a disciplina de Ciências pode oferecer, afinal, a forma de linguagem que é mais explorada nos livros didáticos nessa disciplina é a visual. Modalidade que é usada pela Libras, por esse motivo, ciências da natureza, linguagem e surdez estão intimamente ligadas. Estudantes surdos possuem língua, linguagem e cultura diferente dos estudantes ouvintes, e, mesmo tendo o direito a uma educação bilíngue, estas e outras disciplinas são ministradas exclusivamente na língua majoritária, principalmente em linguagem oral e escrita, excluindo o surdo nesse processo.

Se observarmos qualquer livro didático de Ciências ou de Biologia em quase todas as páginas há ilustrações relacionadas para cada conteúdo explorado. A imagem pode ser usada como suporte na aprendizagem não só dos conteúdos, mas também dos sinais específicos da Libras e na ampliação do vocabulário da própria Língua Portuguesa. O fato de terem muitas imagens no material didático não isenta o professor explorar outras imagens relacionadas ao conteúdo que está lecionando, pois, “cabe ao professor direcionar o estudo, contextualizando e conduzindo o aluno à aprendizagem” (CORRÊA; MEGGIOLARO; REIS, 2019, p.37). Tomando como exemplo frutas, este poderá levar imagens de frutas da região em que os alunos estão inseridos, quais têm mais incidência naquela localidade em determinada época do ano. Isso poderá despertar a curiosidade dos sinais das frutas da região.

De fato, existe uma dificuldade dos professores em procurar metodologias que possam usar em sala de aula com surdos e ouvintes. Apesar de usarmos como exemplo

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295 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 um conteúdo como as frutas, que podem ser utilizadas pelas imagens do livro didático ou imagens das frutas da região, algumas questões na elaboração de um planejamento devem ser consideradas, como: acesso à tecnologia/recursos na escola (internet, computadores, câmera digital, impressora, projetor, sala com iluminação adequada para a projeção), quantidade de turmas que o professor possui, quantidade de alunos por turma; hora atividade para planejamento.

Esses pontos citados podem ser considerados como um fator que dificulta a dinâmico laboral, mas a questão central ainda é a metodologia. Afinal, as metodologias vão além de utilização de recursos. Questão essa que foi discutida por Reis e Silva (2012) em que a motivação da pesquisa fora exatamente as dificuldades dos professores nas aulas com estudantes surdos.

O motivo da pesquisa se deu pelo fato de os professores da área das ciências naturais encontrarem bastantes dificuldades para desenvolverem seus trabalhos com alunas portadoras de necessidades auditivas [...] Tais dificuldades também perpassam o trabalho da intérprete que atua juntamente com os professores [...] (REIS; SILVA, 2012 p. 244).

O trabalho intitulado ”O ensino das ciências naturais para alunos surdos: concepções e dificuldades dos professores da escola Aloysio Chaves – Concórdia/PA” traz muitas questões e discussões relacionadas com a dificuldade dos professores com os estudantes surdos. Um dos pontos que chama a atenção, na entrevista que os pesquisadores realizam com o professor de biologia, é a dificuldade na explicação dos conteúdos mesmo com o uso da imagem.

Professor Biologia: Dificuldade de comunicação, como não tenho domínio e nem conhecimento algum sobre Libras, fica difícil agente dar uma aula e até gesticular os símbolos da biologia, porque tem muito desenhos em

biologia, então tu vai trabalhar célula, fica difícil, a não ser por meio da escrita mesmo, não tenho uma outra forma de trabalhar com ela, sinto uma

dificuldade imensa, porque a gente não sabe se elas estão entendendo ou não. Eu não consigo entender nada do que elas dizem (REIS; SILVA, 2012 p. 246) (Grifos nossos).

Nesse fragmento o professor cita a dificuldade de utilizar a imagem, pois não sabe “gesticular os símbolos da biologia”, nesse caso, os sinais (da Libras) que ele pretende ensinar. Entretanto, ele mesmo nos dá indícios de como trabalhar a imagem com os estudantes surdos com a seguinte frase: “a não ser por meio da escrita”. Ou seja, a imagem por si só não é o suficiente para dar a compreensão dos conteúdos, mas sim, seguidas de explicações com escrita e traduções em Libras pelo intérprete. O uso dessas diferentes linguagens possibilita que o estudante compreenda a explicação dos conteúdos.

As pesquisadoras Reis e Silva (2012) fornecem pistas para que possamos avançar na questão que envolve o ensino de ciência e a utilização de várias linguagens no processo ensino-aprendizagem dos estudantes surdos, uma vez que em suas considerações finais apontam que

Há uma necessidade de se repensar o ensino de ciências para diversidade, é preciso que se considere a necessária adaptação das

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296 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 uma educação igualitária, com metodologias e estratégias adequadas que

favoreça a aprendizagem no ensino de ciências para alunos com

necessidades auditivas (REIS; SILVA, 2012 p. 249) (grifos nossos).

As autoras questionam a forma como a educação bilíngue do surdo está ocorrendo, pois, apesar de se apresentar de acordo com o decreto 5626/05, que garante a educação do surdo com o intérprete em sala de aula, fica claro que só adicioná-lo nesse contexto não é o suficiente. Afinal, as estratégias e metodologias vão ser elaboradas pelo professor de ciências e para isso ele precisará conhecer como seu aluno aprende, e, quais linguagens são mais adequadas para serem utilizadas. Quando as autoras citam “adaptações das atividades desenvolvidas numa perspectiva bilíngue” questiono se isso já não acontece, pois percebemos que o professor de biologia utilizou um modelo que utiliza sinais, imagens e escrita, entretanto ficou resistente com a ideia de utilizá-los. O que percebemos é que as línguas e suas respectivas linguagens estão sendo utilizadas de formas isoladas. Nesse sentido, para nós, “adaptação de atividades desenvolvidas numa perspectiva bilíngue” é utilizar as duas línguas concomitantemente com suas diversas linguagens, conhecendo a realidade dos estudantes, sua cultura e sua inserção social.

Partindo dessa discussão, e, lendo a pesquisa de Queiroz e seus colaboradores (2010) percebemos que estes avançam na ideia de utilização de outras linguagens no processo de ensino-aprendizagem com estudantes surdos. Para estes autores apenas a utilização da língua portuguesa ”o aprendizado não ocorre ou, incide de forma precária, sobretudo quando os professores recorrem somente à língua portuguesa para intermediar a apresentação da cultura científica” (QUEIROZ et al, 2010, p.3).

Estes autores consideram e defendem que a principal via de acesso ao conhecimento para os estudantes surdos seja pela língua de sinais associados com recursos visuais para dar apoio na compreensão dos conteúdos, conforme citado no trecho a seguir:

A utilização da Libras demonstrou ter conseguido maior acesso ao processo de significação conceitual nas aulas de Ciências/Química já que permitiu aos surdos exposição mais detalhada e estruturada dos conceitos apreendidos, principalmente por recorrer a associação desta língua à recursos visuais (QUEIROZ et al, 2010, p.6).

Analisando a metodologia da pesquisa de Queiroz e seus colaboradores (2010) estes utilizaram uma intervenção pedagógica em um ambiente onde a língua majoritária era a Libras e não a Língua Portuguesa, invertendo a lógica que comumente ocorre em classes de ensino regular. Outro ponto a salientar, é que a professora que ministrou as aulas de ciências era bilíngue, com apoio de mais duas professoras com formação inicial em Libras, e, mais os intérpretes para as traduções e interpretações das aulas. Nesse sentido, essa prática pode ser considerada como uma prática monolíngue, pois, a língua portuguesa passou a ser usada como um recurso de apoio “como ferramenta na ação mediada” (QUEIROZ et al, 2010, p. 6) para a Língua de Sinais, conforme os próprios autores da pesquisa afirmam.

Salientamos a contribuição da pesquisa no reconhecimento de usar diferentes linguagens no apoio para aprendizagem. E, nesse sentido, os autores concluíram que o

desenvolvimento da aprendizagem parece ser alcançado se a linguagem escrita for utilizada em conjunto com outras ferramentas de apelo visual

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297 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 (como vídeos, cartazes, experimentos, jogos, apresentação de figuras) funcionando como instruções, pistas para uma melhor compreensão do conteúdo, estabelecendo relações entre o senso comum e o conhecimento científico (QUEIROZ et al, 2010, p.6).

O desafio que precisamos avançar é a que haja uma profunda reflexão quando pensarmos no contexto da educação em classe de ensino regular. Afinal, a língua portuguesa é a língua majoritária, ou seja, todas as estratégias estão de alguma forma relacionadas com a reprodução da modalidade oral-auditiva, por esse motivo precisamos pensar em estratégias onde, tanto Língua Portuguesa e Libras ganhem o mesmo destaque nas aulas de ciências, em que uma língua não fique de recursos para a outra, caso contrário estaríamos reafirmando o processo monolíngue na educação.

Intérprete e o professor de ciências

Esse é um grande desafio, haja visto que ainda são comuns a atribuição das estratégias metodológicas para os intérpretes de Libras nas escolas. Fato evidenciado por Ramos, Cardoso e Monteiro (2011) em sua pesquisa intitulada “Ensino de Ciências & Educação de Surdos: Primeiras aproximações de um estudo em escolas públicas através dos intérpretes de Língua Portuguesa e Língua Brasileira de Sinais” apresentada no evento da ENPEC em 2011. Os autores entrevistaram os intérpretes de Libras sobre as questões metodológicas em sala de aula:

O professor prepara sua aula voltado para seu público ouvinte, mesmo tendo alunos surdos, não faz propositalmente, mas automático e não são preparados para receber esse novo público. Cabendo ao intérprete fazer a adaptação para o aluno surdo. Lembrando que o intérprete não é professor essa adaptação é falha na maioria das vezes. A matéria fica um tanto abstrata pro surdo, tornando o entendimento mais lento e fazendo cair seu desempenho. (RAMOS; CARDOSO; MONTEIRO, 2011, p. 6).

Essa é ainda uma realidade existente em muitas escolas com estudantes surdos. O problema maior é que os intérpretes acabam assumindo essa função constantemente. Lacerda (2015) corrobora essa informação em um de seus trabalhos, a autora ao realizar entrevistas com intérpretes estes relatam que suas funções ultrapassam àquelas relacionadas a traduzir e interpretar, e por conta disso, o surdo ao invés de tirar dúvidas com o professor procura o intérprete para saná-las. Lacerda (2015) ainda menciona que os intérpretes das séries iniciais buscam outros recursos como cartazes e desenhos para poder contribuir no processo de aprendizagem.

Nessa perspectiva, encontramos outro problema relacionado ao planejamento didático do professor. Se a aula é preparada para um público ouvinte então é perceptível que a participação dos estudantes nas aulas serão participações apenas de ouvintes. Dúvidas, questionamentos, comentários, leituras, todo o feedback não envolverá todo o conjunto de estudantes surdos, ouvinte, intérprete e professor, mas contemplam participações isoladas ou inexistentes. Isoladas, pois, o surdo questionará o intérprete e este assumirá o processo de ensino. Podemos dizer, segundo o relato desses autores, que o surdo não faz parte desse ambiente ou pouco participa. Em entrevista com o intérprete, Ramos, Cardoso e Monteiro (2011) destacam o seguinte trecho: “Eu noto diferença na participação do surdo em relação aos ouvintes, o surdo não participa tanto quanto os outros” (RAMOS; CARDOSO; MONTEIRO, 2011, p. 6).

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298 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 Apesar do trabalho analisado problematizar questões de atuação dos profissionais intérprete e professores, um ponto que chama a atenção é a proposta que os autores discutem em suas considerações finais: trabalho em conjunto – Intérpretes e professores. Essa relação entre os dois profissionais precisa acontecer, afinal, um tem o conhecimento da área em Libras o outro o conhecimento da disciplina. O planejamento em conjunto é fundamental, pois propicia a criação de estratégias que possam contribuir no processo ensino-aprendizagem tanto de surdos quanto dos ouvintes. Para os autores

No caso do espaço escolar, uma formação voltada para a prática pedagógica torna-se pertinente, pois além da tradução do conteúdo das aulas ministradas, estes intérpretes também estão envolvidos no trabalho pedagógico junto aos professores das turmas. Essa formação não pode se limitar à formação inicial, através dos cursos em andamento para a formação desses profissionais, mas também nos espaços escolares com formação continuada para aqueles que já atuam como intérpretes de LP/LIBRAS. (RAMOS; CARDOSO; MONTEIRO, 2011, p. 8).

Essa é uma questão que precisamos discutir, problematizar e sistematizar, pois, é a partir do trabalho em conjunto que teremos possibilidades da inserção da Libras e Língua Portuguesa estarem no mesmo espaço com o mesmo valor comunicacional. Discutir para que os profissionais (intérpretes e professores) conheçam os limites de cada área, problematizar, pois, é preciso compreender quais processos/estratégias/metodologias/recursos e linguagens podem ser utilizadas de forma que garanta o acesso para surdos e ouvintes e sistematizar, já que, isso pode tornar-se um sistema didático que pode superar limites da educação bilíngue que até então não foram superados.

Esse é um trabalho que deveria acontecer nas escolas de ensino comum, uma vez que acreditamos realizar essa proximidade oportuniza, por um lado, o professor de ciências a conhecer aspectos conceituais sobre o surdo, a língua e sua modalidade Por outro lado, o intérprete, compreender que os conceitos da disciplina de ciências são da mesma forma complexos e o processo de ensino não pode ser assumido inteiramente por ele na sala de aula, pois corre o risco de conceitos da disciplina serem reduzidos nesse processo, conforme Ramos, Cardoso e Monteiro (2011) contribuem:

Os intérpretes vivenciem o desafio de interpretar e ensinar simultaneamente, sem terem competência e a responsabilidade para tal. Os surdos têm muito mais dificuldade de entendimento, então temos que simplificar e explicar em alguns casos várias vezes. ( RAMOS; CARDOSO; MONTEIRO, 2011, p. 6-7).

Planejamentos no ensino de ciências e estudantes surdos

Sobre a questão de planejamentos, realizando a leitura da pesquisa de Vizza, Cubero e Dominguez (2017) sobre formação de professores e ensino de ciências com surdos, percebo que essa aproximação de fato é essencial, logo que, segundo os pesquisadores o fato do professor desenvolver um planejamento pensando em todo o seu público (ouvinte e surdo), faz com que este procure por formas mais adequadas para utilizar método/recursos no processo de ensino, e, para isso precisa compreender vários conceitos sobre surdez.

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299 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 Para estes pesquisadores, compreender os conceitos sobre surdez faz com que o espaço, como disposição de carteiras e iluminação, seja pensado de uma forma a dar acesso para quem utiliza uma língua na modalidade visual-espacial.

Em geral, os participantes tiveram preocupação com: o espaço físico, a disposição das carteiras, a presença do intérprete como mediador. Em relação as adaptações de recursos didáticos para atender as necessidades dos surdos, enfatizaram que fossem explorados aspectos visuais. Tais adaptações podem favorecer tanto a aprendizagem de surdos como de ouvintes (VIZZA; CUBERO; DOMINGUEZ, 2017, p.7).

Percebemos que a relação intérprete e professor é fundamental para o planejamento de uma aula, Segundo os pesquisadores Vizza, Cubero e Dominguez (2017), essa proximidade pôde trazer aos participantes do estudo uma compreensão

de que Libras não é uma linguagem e sim uma língua [...] puderam entender também o papel do intérprete como mediador na comunicação entre ouvintes e surdos, e não mais como alguém, cuja ausência implique necessariamente na impossibilidade do surdo comunicar-se (VIZZA; CUBERO; DOMINGUEZ, 2017, p.9).

Dessa forma, recorrer à utilização de vários tipos de linguagens pode contribuir de forma significativa na comunicação direta entre o professor e o estudante surdo. Isso evitaria, por exemplo, que o surdo sempre recorresse apenas ao intérprete para sanar suas dúvidas. Pois, eles teriam recursos a mais para uma comunicação direta, usando Libras, escrita, imagem, vídeo, desenhos, esquemas, datilologias, dentre outras diversas linguagens a serem utilizadas. Claro que a presença do intérprete é fundamental nesse processo, mas estamos falando aqui de desconstruir funções que não são desse profissional, mas sim do professor da disciplina. O que defendemos é que o professor assuma a responsabilidade do ensino que está inteiramente atribuída ao intérprete de Libras.

O intérprete não pode ser responsabilizado pela aquisição de conhecimento do aluno. É preciso que a atuação do interprete se constitua em parceria com o professor, propiciando que cada um cumpra efetivamente com seu papel, em uma atitude colaborativa, em que um possa sugerir coisas ao outro, promovendo a melhor condição possível de aprendizagem para a criança surda (LACERDA, 2015, p. 127).

Nesse sentido, estamos pensando na colaboração entre esses dois profissionais, encontramos em Quadros (2007) a descrição das funções do profissional intérprete destacando os seguintes itens: Confiabilidade, imparcialidade, discrição; distância profissional e fidelidade. Em nenhum desses itens é mencionado a função desse profissional no processo de ensino, mas sim, na intermediação da comunicação entre professor e estudantes, cabe ressaltar que essa intermediação só é possível com o trabalho colaborativo entre professor e intérprete. Outra questão que reforça nossa argumentação é a própria lei que institui a profissão do intérprete, esta menciona em seu texto “art. 2º O tradutor e intérprete terá competência para realizar interpretação das 2 (duas) línguas de maneira simultânea ou consecutiva e proficiência em tradução e interpretação da Libras e da Língua Portuguesa” (BRASIL, 2010, Art.2º). Dessa forma, entendemos que a função desse profissional estende-se ao conhecimento das diferenças

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300 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 culturais entre os ouvintes e surdos, e, este pode sugerir diversas estratégias no processo de ensino com os estudantes surdos.

Retomando a análise da pesquisa de Vizza, Cubero e Dominguez (2017) estes realizamos um modelo de planejamento, um fator que chama a atenção (na figura 1) são dois itens que aparecem: “Interação entre professor e intérprete” e “interação surdos/ouvintes”. Estes planejamentos são frutos de um curso de formação desenvolvido na pesquisa, não foram aplicados, mas pensados e elaborados como uma proposta de reflexão e de proximidades entre os profissionais envolvidos na sala de aula com estudantes surdos. Entretanto, vale salientar que este trabalho nos fornece pistas de como pensar nas línguas e nos atores envolvidos no processo de planejamento didático. Afinal, essas interações precisam ser pensadas e organizadas para depois serem executadas. Planejar quais são os momentos de cada língua nas aulas é ideal para iniciarmos de fato, uma proposta bilíngue em classes de ensino regular. Claro que muitas intervenções poderão ocorrer durante a aula, entretanto, situar um momento em que as línguas ganhem destaque é promover a língua que até então ficava como coadjuvante na sala de aula.

Figura 1. Planejamento de Ciências em uma perspectiva inclusiva

Fonte: VIZZA; CUBERO; DOMINGUEZ, 2017.

Conhecimentos científicos e Estudantes surdos

Outro ponto a ser discutido que envolve ensino de ciências, são os conceitos espontâneos dos estudantes. Esses conceitos foram discutidos por Oliveira e Benite (2015) em sua pesquisa sobre “Aulas de ciências para surdos: estudos sobre a produção do discurso de intérpretes de Libras e professores de ciências”. A pesquisa investiga barreiras da aprendizagem de conceitos científicos pelos estudantes surdos. Para isso, os pesquisadores buscaram compreender como são formados os conceitos espontâneos

desses estudantes. Esses são conceitos construídos no cotidiano, no convívio social e no

seio familiar. Quando uma criança ouvinte chega à escola vários conceitos espontâneos já estão formados. Oliveira e Benite (2015) utilizam o seguinte exemplo:

Na escola, quando os alunos estudam o conceito da palavra “bactéria”, por exemplo, os ouvintes provavelmente já têm algum conceito espontâneo sobre essa palavra: situações cotidianas de quando a mãe fala que o filho tem de lavar as mãos para não se contaminar, não entrar em contato com germes, por exemplo, podem levar esse aluno a remeter o conceito de bactérias às doenças. A palavra “bactéria” já terá algum significado para

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301 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020

essa criança, e é a partir desse significado que ele irá compreender o conceito científico de bactéria, tal como um micro-organismo, sem núcleo delimitado e DNA não organizado, com suas formas de reprodução e disseminação (OLIVEIRA; BENITE, 2015, p. 461).

Analisando esse exemplo, percebemos que na maioria das vezes os surdos chegam à escola sem o conceito espontâneo e passa a ter acesso direto aos conceitos científicos por meio das aulas de ciências. Tomando por base a obra de Vigotsky (2005) “Pensamento e Linguagem”, no capítulo 6 que aborda sobre “O desenvolvimento dos conceitos científicos na infância”, o referido autor menciona que tanto o conceito espontâneo quanto o conceito científico estão relacionados a um único processo na produção do conhecimento, eles não são concorrentes e nem excludentes, mas sim complementares.

Estamos em crer que estes dois processos – o desenvolvimento dos conceitos espontâneos e dos conceitos não espontâneos – se encontram relacionados e influenciam-se um ao outro permanentemente. Fazem parte de um único processo: o desenvolvimento da gênese do conceito, que é afetado por condições externas e internas variáveis mas é essencialmente um processo unitário e não um conflito de formas de intelecção antagônicas e mutuamente exclusivas (VIGOTSKY, 2005, p.74).

Nessa perspectiva levantamos questionamentos sobre esses conceitos em relação à criança surda. Afinal, de acordo com Fernandes e Moreira (2014) cerca de 95% dos surdos são filhos de pais ouvintes, na maioria das vezes constituem modelos monolíngues e tardiamente terão acesso a Língua de Sinais. Seguindo nesse mesmo raciocínio, se a criança surda não tiver acesso a esses conceitos espontâneas, que ocorrem no cotidiano, a relação da construção e sedimentação do conceito científico pode ficar prejudicada. Nesse sentido, para Oliveira e Benite (2015) “este fator dificulta o

acesso do aluno surdo ao conhecimento científico, pois é por intermédio dos conceitos espontâneos que o aluno terá condições de se apropriar e formar os conceitos científicos” (OLIVEIRA; BENITE, 2015, p. 459).

Durante essa pesquisa, a abordagem metodológica buscou por meio das narrativas discursivas (diários de aula) dos participantes (professores e intérpretes), compreender como eram desenvolvidas as aulas de ciências. Todos os relatos apontam como dificuldade a falta de domínio da Libras pelos estudantes surdos.

Relato do intérprete - O grande problema, talvez o maior de todos, é que o

aluno não é alfabetizado, sabe poucas palavras. Relato do professor [...] Observei que o aluno não é bem assistido pela família, que ninguém em casa se comunica com ele em LIBRAS e que nem a medicação da qual ele necessita, lhe é dada corretamente. A intérprete diz que ele sabe muito pouco de LIBRAS (OLIVEIRA; BENITE, 2015, p.463) (grifos nossos).

Percebemos que a Libras pouco ganha espaço na sala de aula, e, diretamente é apontada, na sua falta de domínio, como um dos principais problemas na base da aprendizagem. Não negamos a importância da proficiência da Libras no processo de aprendizagem dos conteúdos de uma disciplina, entretanto, como já é sabido pelos intérpretes, professores, coordenadores e diretores, a Libras muitas vezes é apresentada ao surdo no contexto de sala de aula. Então, as metodologias precisam e devem ser

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302 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 elaboradas em uma forma que o aluno possa utilizar de várias linguagens para dar apoio no processo de aquisição à Língua.

Em outro trecho da pesquisa, em uma aula de sistema solar temos o depoimento do intérprete com a seguinte afirmação: “Quando a professora entrou na sala com o

sistema solar concreto, ele encheu os olhos” (OLIVEIRA; BENITE, 2015, p.464). Essa

afirmação nos possibilita compreender que o estudante reconheceu os planetas a partir de outras imagens, se não os reconheceu ao menos aguçou sua curiosidade sobre o tema. A questão é: será que ele não aprenderia os sinais dos planetas do sistema solar? Nesse aspecto, essa pesquisa nos traz importantes informações sobre a construção dos conceitos espontâneos e dos conceitos científicos, pois, acredito que muitos conceitos espontâneos, são sim, formados na criança surda no seu contexto social. A questão que fica é: Como reconhecemos esses conceitos? A utilização de diversas linguagens faz com que esses conceitos sejam reconhecidos e explorados? Nesse sentido Sena e Rocha (2018) salientam que um ponto a ser considerado é o professor estar envolvido na atividade, afinal “as intervenções docente ao longo de cada atividade, tanto na elaboração do planejamento didático, quanto em suas estratégias em sala de aula, auxiliaram os estudantes na utilização de signos” (SENA; ROCHA, 2018, P.213).

Elaboração de materiais em aulas de ciências e a Libras

Em outro estudo relacionado com ensino de ciências e estudantes surdos, desenvolvido por Santiago (2014), traz a percepção tanto dos intérpretes quanto dos professores nas aulas de Ciências. Santiago (2014) ao analisar o questionário realizado na pesquisa se deparou com um ponto em comum citados por vários professores: a falta de materiais didáticos para os estudantes surdos.

Partindo do agrupamento das respostas conferidas, foi possível constatar que à maior dificuldade encontrada pelas docentes para trabalhar com alunos surdos se concentra na comunicação [...] a falta de capacitação e material de apoio na elaboração de aulas também prejudica o ensino e aprendizagem de ciências (SANTIAGO, 2014, p.20).

São três elementos citados pelas professoras que participaram da pesquisa: Capacitação; Comunicação e Material de apoio. Concordamos que a falta de capacitação de professores para trabalhar com estudantes surdos pode ser uma questão que dificulte na elaboração de seu planejamento. Por isso, defendemos que o planejamento deva ocorrer em conjunto com o intérprete, como mencionamos anteriormente. A dificuldade na comunicação pode ser minimizada quando ampliamos as linguagens utilizadas no contexto da sala de aula (imagens, vídeos, esquemas, etc). Um ponto que chama a atenção para avançarmos e adicionarmos em nossa discussão são os “materiais de apoio”, como foram chamados pelas professoras.

Esses são materiais podem ser confeccionados pelos próprios alunos na forma de trabalhos escolares. Eles podem produzir explicações em Libras sobre determinado assunto e hospedá-los em sites, blogs, vlogs, ou em redes social da própria escola, e, poderá servir para aulas futuras, criando assim um banco de dados de conceitos explicados na própria Libras. Penso nas produções em vídeos por que é a forma de registro da língua de sinais. Se pensarmos em maquete e cartazes, estes ajudam no momento da aula, não negamos a importâncias desses materiais, mas teremos dificuldades em armazenamentos e espaço para guardá-los na escola. As tecnologias

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303 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 digitais podem ser partícipes desse processo de co-construção de conhecimento em conjunto com seus pares.

No processo de produção desses estudantes várias ferramentas podem ser usadas. Em sua pesquisa sobre “educação em ciências naturais para surdos: uma análise de experiências pedagógicas” Destro (2017) nos fornece informações sobre o uso da fotografia na observação em espaços naturais com estudantes surdos

A fotografia foi bacana também. Por que eles têm um olhar, uma sensibilidade do ambiente que a gente não tem. Então eu não preciso falar para ele... olha, tem um passarinho ali, porque eu estou escutando ele cantar [...]. Eles conseguem ver e fotografar o passarinho verdinho numa árvore verde, porque a visão deles é mais aguçada que a nossa (DESTRO, 2017, p. 93).

Nessa pesquisam Destro (2017) relata sobre experiências pedagógicas como aulas de campo. Esta é uma ferramenta essencial no ensino de ciências, pois contempla a observação realizada por parte dos estudantes surdos e ouvinte. Apesar da autora realizar sua pesquisa apenas com estudantes surdos, essa é uma metodologia que poderia ser utilizada em classes de ensino regular. Com a utilização de smartphones, o uso da técnica de fotografia ajudaria a produzir registro das imagens da localidade escolhida para aula de campo, que pode ser no pátio da escola ou no seu entorno. A gravação de vídeos pode capturar os movimentos dos pássaros, polinização de flores, alimentação de pequenos animais, identificação de espécie da fauna e flora nos arredores da escola.

Considerações finais

Trouxemos até aqui, por meio de pesquisas relacionadas com ensino de ciências e estudantes surdos, importantes discussões e reflexões que servem de base para podermos avançar nos limites que encontramos no processo de ensino-aprendizagem em escolas regulares. Limites esses que inferem na utilização de outros tipos de linguagens, como por exemplo, imagens, vídeos, outros recursos de mídias pensando realidade local do estudante.

Uma questão bem marcante é a falta de inserção da Libras nas aulas de Ciências, os trabalhos nos ajudaram a pensar que a Língua Brasileira de Sinais precisa urgentemente ganhar espaço nas aulas, não só com a presença do intérprete, mas sim, inseri-las nos planejamentos, atividades e processos avaliativos, promovendo participação ativo desses estudantes nas aulas, respeitando assim sua língua e sua cultura.

Outro ponto que as pesquisas nos ajudam em investigações futuras, é a aquisição da Libras pelos estudantes surdos, estes geralmente aprendem a língua quando entram na escola. Isso nos possibilita pensar em oficinas de estudos das línguas nas classes com esses estudantes, invertendo a lógica de utilizar só a Língua Portuguesa durante as aulas, podendo inclusive produzir materiais em Libras tanto para estudantes surdos quanto para os ouvintes.

Por fim, a revisão de literatura nos permitiu refletir sobre a participação dos estudantes surdos como co-produtores de conhecimento, afinal, a Libras é a sua língua materna, nesse sentido, inserir e fomentar que ela ganhe de fato o espaço no ambiente

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304 REnCiMa, São Paulo, v. 11, n. 6, p. 289-305, out./dez. 2020 escolar é permitir que esses estudantes produzam conhecimento por meio de sua primeira língua e sintam-se parte desse processo.

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Figura 1. Planejamento de Ciências em uma perspectiva inclusiva

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