• Nenhum resultado encontrado

Os profissionais de reconhecimento e validação de competências : análise crítica de um processo de profissionalização

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "Os profissionais de reconhecimento e validação de competências : análise crítica de um processo de profissionalização"

Copied!
161
0
0

Texto

(1)

Outubro de 2012

Joaquim Miguel Mendes Martins

UMinho|20

12

Joaq

uim Miguel Mendes Mar

tins

Universidade do Minho

Instituto de Educação

Os profissionais de R econhecimento e V alidação de Compe

tências: análise crítica

de um processo de profissionalização

Os profissionais de Reconhecimento e

Validação de Competências: análise crítica

de um processo de profissionalização

(2)

Dissertação de Mestrado

Mestrado em Ciências da Educação

Área de Especialização em Educação de Adultos

Trabalho realizado sob a orientação do

Doutor Manuel António Ferreira da Silva

Universidade do Minho

Instituto de Educação

Outubro de 2012

Joaquim Miguel Mendes Martins

Os profissionais de Reconhecimento e

Validação de Competências: análise crítica

de um processo de profissionalização

(3)

ii

Declaração

Nome: Joaquim Miguel Mendes Martins

Endereço eletrónico: miguelxlmartins@gmail.com Telefone: 966807384

Número do Cartão do Cidadão: 11401295

Título da tese: Os profissionais de Reconhecimento e Validação de Competências: análise

crítica de um processo de profissionalização.

Orientador: Doutor Manuel António Ferreira Silva Ano de conclusão: 2012

Designação do Mestrado: Ciências da Educação. Área de especialização em Educação de

Adultos

É AUTORIZADA A REPRODUÇÃO INTEGRAL DESTA DISSERTAÇÃO APENAS PARA EFEITOS DE INVESTIGAÇÃO, MEDIANTE DECLARAÇÃO ESCRITA DO INTERESSADO, QUE A TAL SE COMPROMETE.

Universidade do Minho, ___/10/2012

(4)

iii

Os profissionais de Reconhecimento e Validação de Competências: análise crítica de um processo de profissionalização

Resumo

Nesta dissertação examinou-se o processo de profissionalização dos profissionais de Reconhecimento e Validação de Competências (RVC), uma das ocupações enquadradas no

Aconselhamento e Orientação

, uma área de crescente relevância no campo da Educação e

Formação de Adultos (EFA). Essa ocupação profissional surge com a implementação do Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) em 2001. Considerou-se este processo de profissionalização como a obtenção e desenvolvimento de saberes e competências específicos com dois propósitos: o incremento do profissionalismo, valor normativo referido ao desempenho profissional, e a construção de identidades profissionais, ou seja, modos particulares de identificação e de apresentação.

Na análise desse processo consideraram-se as práticas dos profissionais de RVC nas articulações entre: a) as transformações no mundo de trabalho e os contextos de aprendizagem dos indivíduos; b) as especificidades institucionais do campo da EFA e os discursos institucionais relativos ao desenvolvimento profissional dos trabalhadores desse campo; c) a valorização social e económica das aprendizagens experienciais, a emergência dos sistemas de RVCC e o

desenvolvimento de atividades profissionais relacionadas com o

Aconselhamento e Orientação

.

No desenvolvimento destas práticas profissionais específicas foram determinantes as aprendizagens realizadas por «ajustamentos sucessivos» no âmbito do contexto de trabalho e em função de atributos, estratégias e conveniências individuais. Os saberes específicos assim desenvolvidos complexificam a sua sistematização e condicionam a distintividade e reprodutibilidade dos mesmos. Outros espaços de aprendizagem foram considerados na sua complementaridade com as aprendizagens obtidas em contexto de trabalho.

Também se verificou que as identidades profissionais são plurais. Existe uma diversidade de matrizes identitárias com múltiplas referências resultantes dos processos de socialização (como assimilação de hábitos e procedimentos comuns a grupos, organizações ou instituições específicas) e das estruturas de oportunidade, ou seja, as formas como cada indivíduo perceciona o seu «horizonte de expectativas» face à avaliação do seu «espaço de experiência».

(5)

iv

Counsellors of Recognition and Validation of Competences: critical analysis of a professionalization process

Abstract

This dissertation examined the professionalization process in Counselors of Recognition and

Validation of Competences (RVC), one occupation inscribed in

Counseling and Guidance

, a

practice of growing significance in the field of Adult Education. This practitioner emerged with the implementation of the National System of Recognition, Validation and Certification of Competences (RVCC) in 2001.

We approached this process of professionalization as a procedure to obtain and increase specific skills and knowledge with two main purposes: the development of professionalism, a normative value referred to professional performance, and of professional identities, i.e., particular modes of identification and presentation.

In the analysis of that process we considered the Counselors of RVC practices in the relation between: a) the changes in the world of work and personal learning environments, b) the institutional specificities of the field of Adult Education and the institutional discourses related to professional development within that field, c) the social and economic value of experiential learning, the emergence of systems of RVC and the expansion of professional activities related to

Counseling and Guidance

.

In the improvement of counseling practices it was influential a mode of learning by «successive adjustments» considering the individual attributes and strategies as well the plurality of personal conveniences within the workplace. The specific knowledge thus developed implicates a complex systematization affecting its own distinctiveness and reproducibility. We also considered other learning spaces in its complementarity with workplace learning.

It was also demonstrated the plurality of professional identities. There is a diversity of identities with multiple references resulting from the socialization processes (as assimilation practices and procedures common to groups, organizations or institutions) and from the structures of opportunity, i.e., the ways in which each individual perceive the «horizon of expectations» in relation with his own assessment of their «space of experience».

(6)

v

Índice

Índice de Figuras ... vi

Índice de Quadros ... vi

Lista de Abreviaturas ... vii

Pontos de partida: do que se pretende dar conta ...1

Do estado da coisa: configurações da mudança ...4

Definindo o tema: um processo de profissionalização ...6

I. Opções e estratégias de investigação ... 12

A entrevista biográfica semiestruturada: possibilidades e constrangimentos ... 17

O distanciamento crítico: especificidades e obstáculos

... 19

Apontamento: as entrevistas e os entrevistados

... 23

II. Desenvolvimento profissional dos agentes EFA ... 25

Agentes e profissionais no campo da EFA: uma resenha ... 32

Articulação com outros agentes sociais e sectores da sociedade

... 36

Condições laborais, de remuneração e estatuto profissional

... 38

Formação inicial e contínua – a sua valorização

... 39

Aprendizagem ao Longo da Vida e o discurso da Qualidade

... 43

Processos de profissionalização e o profissionalismo

... 54

III. Os profissionais de RVC: um processo de profissionalização ... 62

O Sistema Nacional de RVCC ... 63

Da ANEFA à DGFV: um pouco de história…

... 65

A Iniciativa Novas Oportunidades e a ANQ

... 70

Apontamento: a ANQEP

... 79

Profissionais de RVC: emergência e centralidade ... 82

Aconselhamento e Orientação: um campo de práticas emergentes

... 85

Práticas profissionais e práticas reflexivas

... 91

Configurações e definições das práticas

... 94

Tecnicização da prática: administração, monitorização e auditabilidade

... 104

Identidades profissionais

... 108

Espaços e processos de aprendizagem: o contexto da profissionalização

... 113

Formação inicial e contínua

... 114

Conclusões: do que se deu conta ... 124

(7)

vi

Índice de Figuras

Figura 1 - Evolução da Rede de Centros (RVCC e Novas Oportunidades) ... 73 Figura 2 - Fluxograma das Etapas de Intervenção dos Centros Novas Oportunidades ... 79

Índice de Quadros

(8)

vii

Lista de Abreviaturas

AEA – Aprendizagem e Educação de Adultos

ANEFA – Agência Nacional para a Educação e Formação Profissional ANQ – Agência Nacional para as Qualificações

ANQEP – Agência Nacional para as Qualificações e Ensino Profissional CNE – Conselho Nacional de Educação

CNO – Centro Novas Oportunidades

CONFINTEA – Conferência Internacional de Educação de Adultos CQEP – Centro de Qualificação e Ensino Profissional

CRVCC – Centro de Reconhecimento, Validação e certificação de Competências DGFV – Direção Geral de Formação Vocacional

EFA – Educação e Formação de Adultos INO – Iniciativa Novas Oportunidades

OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico POPH – Programa Operacional Potencial Humano

RVC – Reconhecimento e Validação de Competências

RVCC – Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências SIGO – Sistema Integrado de Informação e Gestão de Oferta

SNRVCC – Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências TDE – Técnico de Diagnóstico e Encaminhamento

(9)

1

Pontos de partida: do que se pretende dar conta

A importância de os trabalhadores desenvolverem os seus saberes de forma contínua e adaptarem-se, em termos pessoais e profissionais, às constantes mudanças que ocorrem nas sociedades e economias, tornou-se um truísmo amplamente consensualizado.

Ainda que aprender e ensinar seja um predicado dos seres humanos (Illeris, 2003; Freire P., 2007), frequentemente, encaram-se essas capacidades na sua vertente mais instrumental e adaptativa. Neste sentido particular, aprender «ao longo e ao largo» da vida é percecionado, mais do que uma possibilidade, como um imperativo (Lima, 2010). Porventura os trabalhadores mais expeditos consigam reagir diligentemente e enfrentar estrategicamente o conjunto de mudanças que ocorrem nos diversos campos do social (na economia, na política, na cultura, na educação, etc.) e que se repercutem, claro está, no seu quotidiano e contexto de trabalho. Como refere Robert Lindley,

“no cenário actual, existe um crescente número de áreas do mapa das ocupações em que se pede às pessoas que assumam responsabilidades cada vez maiores pelas respectivas situações de trabalho: pede-se que obtenham os conhecimentos e as competências necessários ao seu trabalho, em primeiro lugar, e que os actualizam de maneira adequada, que se assegurem de que possuem a informação necessária à execução das tarefas próprias do seu emprego, que reajam com criatividade às exigências da mudança e que tomem a iniciativa sempre que identificarem oportunidades de desenvolvimento que beneficiem a organização. Por sua vez, a organização deve facilitar este processo, ou seja, “capacitar” cada pessoa e grupo de trabalho para desempenharem este papel (Lindley, 2000, p. 50).

No reforço da «empregabilidade», os processos de aprendizagem e a aquisição de melhores padrões de qualificação são assumidos como a obtenção de «vantagens competitivas» por parte dos indivíduos e passam pelo desenvolvimento de “condições de controlo de vulnerabilidade do próprio mercado de trabalho” (Ferreira & Costa, 1998, p. 159).

Nem que seja discursivamente, sustenta-se que através das atividades de educação, formação e aprendizagem, ao longo da vida, numa lógica de «pedagogização» da sociedade e dos problemas sociais e económicos (Correia, 2001, p. 26; Silva, 2006, p. 242; Lima, 2010, p. 51), além de se desenvolverem diferentes saberes e de se facilitar a integração no mercado de trabalho também se permitiria uma maior segurança e adaptação a contextos sociais e económicos de grande imprevisibilidade e turbulência (Edwards, 1997, pp. 26-27; Kovács, 2002, pp. 13-41).

Articulam-se, portanto, posturas de antecipação, preventividade e reatividade: os indivíduos gerem o desenvolvimento da sua trajetória profissional - «não-linear», «turbulenta» e

(10)

2

«disruptiva» (Pais, 2003, pp. 9, 87, 105) - através da ponderação e reflexividade individuais, relativamente às mudanças e necessidades futuras.

Como refere Jean-Pierre Boutinet (1996, pp. 104-113), o projeto vocacional do adulto, um processo racionalmente elaborado e referido a objetivos e aspirações individuais, considerado enquanto uma «realização de si», assentaria em três dimensões da vida de trabalho: a possibilidade de emprego, as condições de exercício da atividade e a mobilidade profissional.

Notamos, tal como Boutinet, que ter ou não ter emprego faz toda a diferença! Considere-se a limitação de ofertas de emprego, a precariedade laboral e as taxas de deConsidere-semprego crescentes e pondere-se nas suas consequências, tanto em termos individuais como em termos sociais. Além desta possibilidade objetiva, associe-se também o que pode ser designado por “desemprego subjetivo” (ou «subemprego»), ou seja, a tendência para que, aumentando o nível de qualificação escolar, aumente o desconforto em relação a labores percecionados como repetitivos e desqualificantes (Boutinet, 1996, p. 110).

Similarmente, as condições de exercício da atividade profissional, numa dimensão individual e particular, a aplicação de saberes específicos no cumprimento de um ofício ou de uma profissão, influem no referido projeto vocacional. Este torna-se possível na articulação da vivência e experiência de uma identidade profissional específica e envolve, sempre que possível, a mobilização de capacidades de escolha e decisão e a expressão da sua autonomia.

Ao mesmo tempo, numa lógica de desenvolvimento profissional que contribua para a definição da sua identidade profissional - aqui entendida como o reconhecimento de si (por si mesmo e pelos outros) - o indivíduo, ao possuir a “impressão de se realizar, ao defrontar-se

[

com

] tarefas, ou responsabilidades, cada vez mais complexas” (Boutinet, 1996, p. 111),

procurará o aumento dos seus saberes e competências técnicas que o tornem, gradualmente, um «perito» na sua atividade profissional.

Porém, impõe-se a questão de saber se esse processo de evolução (de responsabilidades e competências) é considerado como um processo contínuo em termos cognitivos e temporais.

Nesta época de hegemonia da «melhoria contínua» (o sistema

Kaizen

), quais serão as condições

ou fatores para que o trabalhador considere que existe uma possibilidade de progressão ou, por outro lado, um «ponto de saturação» relativamente aos saberes e competências necessários para o desempenho das suas funções?

A terceira dimensão com influência na definição de um projeto de carreira relaciona-se com a possibilidade de dispor de uma relativa mobilidade profissional. Nessa mobilidade

(11)

3

implicar-se-ão distintos atributos e condicionantes que poderão coibir ou impulsionar esse desejo de mudança. Entre outros possíveis, destacamos, por exemplo, a cultura de referência, a família e idade de cada indivíduo e até a sua rede de relações.

Nos seus quotidianos, os indivíduos confrontam-se, frequentemente, com uma complexa e tensa relação entre riscos e oportunidades que os impele a diferenciar as contingências individuais (e sociais) e a decidir concordantemente. Ponderar as mudanças parece implicar um questionamento permanente das prioridades a estabelecer, mediante a perceção que se tem do valor e sentido das próprias mudanças, bem como das suas características, das suas possibilidades e das implicações previstas e não previstas (Giddens, 2000b; Beck, 2001).

No entanto, acrescendo a essa suposta possibilidade de controlo e de direcionamento, numa espécie de «determinação racionalizante», suscitadas por essa reflexividade, Boutinet refere uma outra possibilidade, a que confronta desejo de mudança e a redução da capacidade decisória e controlo da ação, advinda de sobredeterminações: “o adulto deseja operar rupturas, muitas vezes por intermédio de crises que não permitem uma restruturação e planificação de uma nova etapa” (Boutinet, 1996, p. 112).

Por isso, do ponto de vista dessa capacidade reflexiva resulta que, para os indivíduos, os contextos (pessoais, económicos e políticos, por exemplo) possam não ser propícios e, assim, em determinados momentos das suas vidas, senão na maior parte, o grande objetivo do projeto de carreira passe por conservar o próprio posto de trabalho pelo maior tempo possível.

José Machado Pais revela as duas éticas que se «entrelaçam» no quotidiano profissional, em função de diversas circunstâncias de vida, e que resultam em diferentes e ambivalentes

dilemas e confrontos: a

ética tradicional do trabalho

, marcada pelo desejo de segurança e pelo

desejo de correspondência e a

ética de aventura

, marcada pelo desejo de novas experiências e

pelo desejo de reconhecimento (Pais, 2003, p. 21).

No rescaldo dos confrontos, muitas vezes, adia-se, indefinidamente, a possibilidade de mobilidade vertical, ou seja, a obtenção de ‘melhores’ empregos, e ponderam-se possibilidades de mobilidade lateral que implicam reconversões profissionais forçadas, face ao risco de desemprego ou desejadas, como forma de concretizar a mudança. Pretende-se, acima de tudo, evitar as situações percecionadas como de retrocesso: o desemprego ou o emprego encarado como de menor qualidade.

(12)

4

Do estado da coisa: configurações da mudança

As circunstâncias de vida são compostas por nós e configuradas no mundo em que nos

situamos1, um mundo que, de acordo com Zygmunt Bauman, é caracterizado pela

«

fragmentação

», pela «

descontinuidade

» e pela «

inconsequência

». Numa observação que sugere

como se constituem as diversas trajetórias individuais e que, nas suas diversas implicações, poderia ser tomada por pessimista ou fatalista, o sociólogo alerta:

“Num mundo assim é avisado e prudente não fazermos planos a longo prazo ou investirmos no futuro distante (nunca podemos saber de antemão em que se vão tornar amanhã a atracção dos fins hoje sedutores ou o valor dos trunfos presentes); não nos agarrarmos demasiado a um lugar, grupo de pessoas, causa ou sequer auto-imagem particular, deixarmo-nos ir não só sem lançarmos âncora e à deriva, mas sem âncora sequer; guiarmo-nos nas escolhas presentes não pelo desejo de controlar o futuro, mas pela relutância que sentimos em hipotecá-lo. Por outras palavras, «sermos previdentes» significa hoje na maior dos casos evitarmos o empenhamento. Estarmos livres de movimentos quando uma ocasião bate à porta. Estarmos livres de partir quando deixa de bater” (Bauman, 2007, p. 269).

Neste tal mundo onde nos achamos, os espaços e contextos laborais resultam, entre outros possíveis, da combinação de três fenómenos que originaram múltiplas implicações nas maneiras como as identidades, trajetórias e possibilidades profissionais são definidas e experienciadas. São eles: 1) as reestruturações setoriais e ocupacionais; 2) a emergência e consolidação de formas atípicas de trabalho; e 3) o desenvolvimento de lógicas de flexibilização laboral.

Num processo de décadas, mais notoriamente a partir da década de 1970, verificaram-se

diferentes

reestruturações sectoriais e ocupacionais

que passaram principalmente pela

terciarização da economia, com a verificação da predominância de emprego no sector dos

serviços2 e com a concomitante diminuição de emprego nos primeiros e segundos sectores

1 Nas palavras de Karl Marx: "Os homens fazem a sua própria história mas não a fazem arbitrariamente, nas condições

escolhidas por eles, mas antes sob as condições directamente herdadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações passadas pesa inexoravelmente sobre a consciência dos vivos. E mesmo quando parecem ocupados em transformar-se, a eles e às coisas, em criar algo de absolutamente novo, é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que se evocam respeitosamente os espíritos do passado, tomando-lhes de empréstimo os nomes, as palavras de ordem, as roupagens, para surgir no novo palco da história sob esse respeitável disfarce e com essa linguagem emprestada" (Marx, 1975, p. 13).

2 Crescem as ocupações profissionais em cinco grupos principais: 1) atividades relacionadas com a prestação de serviços

principalmente no sector da alimentação e das tarefas domésticas (empregados de limpeza, pessoal doméstico, pessoal de manutenção e reparação, etc.); 2) atividades de gestão administrativa alta e intermédia (executivos, assessores legais, rececionistas); 3) atividades relacionadas com o cuidado e a atenção física pessoal (enfermeiros, fisioterapeutas, etc.); 4) atividades relacionadas com as ocupações no sector eletrónico (engenheiros, programadores e especialistas de apoio, etc.) e 5) as tarefas relacionadas com as novas necessidades sociais e o entretenimento - trabalhadores sociais, peritos em educação especial, professores, assistentes educativos e de apoio escolar, etc. (Tezanos, 2001, pp. 100-101).

(13)

5

(Castells, 2005, pp. 266-290). A crescente feminização3 do mercado de trabalho, concebida

enquanto a participação de mulheres empregadas no sector terciário, foi um outro aspeto dessas reestruturações (Casaca, 2005, pp. 56-60).

Paralelamente, constatou-se a

emergência e consolidação de formas atípicas de trabalho

e

a consequente diversificação de modelos laborais e vínculos contratuais (alguns dos quais precários ou precarizantes). Atualmente, coexistem diferentes modalidades (laborais e contratuais) que revelam uma diversificação do entendimento jurídico e social da relação de trabalho e que afetam os relacionamentos laborais a vários níveis: trabalho a tempo inteiro e parcial; trabalho por turnos; contratos de duração determinada; trabalho temporário;

subcontratação/

outsourcing

; empregos de inserção (contratos de emprego-formação, estágios,

formações em alternância, contratos de emprego/solidariedade); e até teletrabalho (Cerdeira, 2000, pp. 35-40; Kovács, 2005, pp. 22-46).

Também o

desenvolvimento de lógicas de flexibilização laboral

, a nível individual e

organizacional, concorreu para a configuração do mercado de trabalho atual. A flexibilidade e a

flexibilização

são encaradas como soluções preferenciais para a crescente competitividade

global. Tornou-se conceito, política e discurso determinantes na problemática das

mudanças

organizacionais

, da

gestão do processo produtivo

e na

configuração do relacionamento laboral

(sobretudo em termos de tempos de trabalho; de estabilidade no emprego; da localização física da organização e na dissolução do «contrato social» entre empregador e empregado (Castells, 2005, p. 348).

Há uma certa ambiguidade na abordagem da flexibilização. Se, num certo sentido, remete para algo desejável concebendo-se enquanto a «eliminação da rigidez», num outro sentido mais «material», traduz-se em algo adverso que passa sobretudo pela desregulação legislativa e laboral, pelo aligeiramento do peso fiscal sobre empresas e indivíduos e pelo enfraquecimento dos relacionamentos que, tradicionalmente, se estabeleciam no mercado de trabalho e que implicavam noções de segurança laboral. Percebida no seu sentido mais prejudicial, seja em termos pessoais ou em termos sociais, a flexibilidade traduz-se em

“uma maior facilidade na aceitação do despedimento, possibilidade de aumentar e diminuir os salários, expansão dos empregos a tempo parcial e a prazo, mudança mais frequente de trabalho, de empresas e de lugar” (Dahrendorf, 1996, pp. 23-24).

3Devido ao desenvolvimento de atividades tidas como femininas, ou seja, que “requerem atributos socialmente reconhecidos às

mulheres, designadamente competências emotivas e relacionais”, que dependendo da perspetiva poderá corresponder a uma integração e participação no mercado de trabalho e/ou a fenómenos de “diferenciação e segregação” de género (Casaca, 2005, p. 57).

(14)

6

São as alterações na subordinação económica e jurídica e nas suas implicações (a precarização laboral e a insegurança no emprego, a retração da retribuição salarial, a intensificação e transformação dos tempos de trabalho, a perda de diversos benefícios sociais, etc.) suscitadas pelas referidas reestruturações sectoriais e ocupacionais, pelas transformações no relacionamento e na regulação laboral e pelo lema da flexibilidade, que parecem justificar cada vez mais o desenvolvimento de lógicas ideologicamente específicas para a aprendizagem ao longo da vida (Kovács, 2002, pp. 14-25; Griffin, 1999a).

Neste contexto sociopolítico e económico, é essa subordinação e instrumentalização dos diversos saberes e competências técnicas, profissionais e sociais resultantes dos processos de aprendizagem, em múltiplos espaços e contextos, que se valoriza (Lima, 2004). Parece ser através da amplificação dos espaços e processos de aprendizagem e da própria constituição da experiência no «mundo da vida» como fonte de aprendizagem que se permitirá a adaptação às diversas mudanças socioculturais, tecnológicas e organizativas. É nessas articulações e interdependências que se devem contextualizar a análise das relações da educação, formação e o trabalho. Como convenientemente sintetiza João Freire:

“A mensagem que se procura fazer passar, nomeadamente para as novas gerações, associa o aprender e o trabalhar como duas dimensões de um mesmo problema, cuja responsabilidade principal repousa nas mãos de cada indivíduo. A ele cabe adquirir e pôr em prática competências próprias, seja como assalariado, como independente ou como responsável de uma iniciativa empresarial. Devendo a sociedade (e os poderes públicos) compreender e apoiar estas dinâmicas, do próprio dependerá contudo o seu melhor ou pior sucesso.

Neste sentido, tal discurso não deixa de legitimar a economia de mercado concorrencial actual, bem como o processo de individualização em curso – uma das características fundamentais, de resto, da modernização social. Resta saber se, nesta individualização, a competição exacerbada não tolherá o passo às vertentes da autonomia e da responsabilidade que também estão presentes no exercício da Profissionalidade” (Freire, 2002, p. 318).

Definindo o tema: um processo de profissionalização

Como temos examinado, construiu-se todo um discurso que sugere que a aquisição permanente de qualificações e competências, considerando os constrangimentos e características dos mercados de trabalho em transformação, é relevante para a construção das identidades individuais e para a definição das diversas trajetórias profissionais.

São inúmeras e multidimensionais as possibilidades de análise e discussão relativas, por

(15)

7

metamorfoses na natureza do trabalho e na estrutura de emprego

(Kovács, 2002, pp. 63-79);

aos fenómenos de

polarização da estrutura ocupacional

(Castells, 2005, pp. 287-289); aos

múltiplos fenómenos de precarização, tais como a pluriatividade, a intensificação de trabalho, a retração salarial e horários antissociais, etc. (Hespanha,

et al

., 2001, pp. 29-36).

Nessa complexidade também se pode considerar os diversos relacionamentos entre educação, formação e trabalho (Santos B. S., 1999, pp. 168-178; Kovács, 2002, pp. 63-94; Correia, 2003, pp. 13-41), designadamente, a relação entre educação e desenvolvimento económico (Lopes, 2010, pp. 70-92), a relação entre a escola e o mercado de trabalho (Saúde, 2010, pp. 103-132), as desigualdades escolares e a seletividade económica (Mendes, 2011, pp. 81-91), entre outros.

Referindo o ponto de vista da nossa análise, inevitavelmente fragmentário, pretendemos direcionar a nossa atenção para dois aspetos que conceberemos nas suas articulações: como são produzidas e contrastadas “racionalidades e oportunidades alternativas para a acção dentro de campos profissionais e periciais específicos” (Beck, 2001, p. 48); e os modos como os diversos saberes e os seus processos de desenvolvimento são compreendidos na configuração de uma profissionalidade específica, ou seja, pretendemos perspetivar como se procede à “articulação de saberes heterogéneos e a sua transformação em competências operatórias” (Correia, 2003, p. 31).

Considerando a amplitude do campo da Educação e Formação de Adultos (EFA), direcionamos a nossa investigação para a emergência e configuração de uma ocupação e atividade profissional específica: os profissionais de Reconhecimento e Validação de Competências (RVC).

Pretendemos abordar as condições de desenvolvimento profissional dessa ocupação, considerando as suas especificidades, através da análise das condições, espaços e tempos em que se ampliam os diversos saberes que configuram esse novo perfil profissional.

Designaremos por processo de profissionalização a obtenção e desenvolvimento de habilidades, competências e conhecimentos e, em alguns casos, qualificações ou credenciais específicas, visando dois grandes propósitos: o desenvolvimento do profissionalismo, valor normativo que fundamenta disposições e noções particulares relativas a um desempenho profissional que se pretende «eficiente e de qualidade» (Evetts, 2011), e a construção de identidades profissionais mutuamente identificáveis pela partilha de uma linguagem específica,

(16)

8

de um referencial comum de conduta e de um corpo de conhecimentos coletivos (Santos, 2011).

Como sustenta António Nóvoa, deve-se analisar o processo de profissionalização em torno dos dois eixos em que este se manifesta: na definição do «corpo de saberes e saberes-fazer» e no «conjunto de normas e de valores» (Nóvoa, 1995, p. 9).

Nos processos de profissionalização implicam-se outros fatores que enquadram a configuração das identidades profissionais, do desenvolvimento do profissionalismo e dos diferentes processos de aprendizagem. Um desses aspetos é relativo às condições de trabalho que influem diferentemente nos processos de aquisição de saberes e competências.

Os diversos trabalhadores do campo da Educação e Formação de Adultos são confrontados na sua prática profissional com as diversas alterações que vão ocorrendo no

mundo de trabalho. Devido às especificidades desse campo (

capítulo II

), essas alterações

afetam, de formas distintas, as atividades e ocupações profissionais do campo da Educação e Formação de Adultos, sobretudo em função das diferentes condições de trabalho. Constatam-se diferentes lógicas de precaridade laboral (Research voor Beleid; PLATO, 2008), que suscitam diferentes contradições, dilemas e perturbações que derivam dos contextos e características específicas do campo de práticas profissionais e influenciam os seus trabalhadores, profissionais de RVC incluídos, a diversos níveis pessoais, familiares e sociais.

Além de serem agentes difusores da relevância da aprendizagem no mundo contemporâneo, uma mensagem com reconhecida importância simbólica na forma como o seu discurso profissional é constituído, também recai sobre eles essa mesma «imperatividade». Também parece ser o agente de EFA condicionado a crer em discursos específicos da aprendizagem - tomados como «operadores ideológicos de legitimação» (Correia, 2001) - como possibilidade e necessidade adaptativa para o enfrentamento de um mundo em mudança. Também a ele é solicitado o desenvolvimento contínuo dos seus saberes e competências, não só para aumentar a qualidade do seu desempenho profissional mas também para aumentar a sua empregabilidade.

No entanto, pelas lições da própria prática, verifica-se que as relações entre os processos de qualificação e o desenvolvimento de competências nem sempre são harmoniosas. A qualidade dessa relação dependerá também da situação de emprego em termos de estabilidade e da configuração do próprio trabalho. Como Ilona Kóvacs, também consideramos que

“quando os indivíduos se encontram em condições de insegurança existencial, de falta de perspectivas e de confiança quanto à melhoria da sua situação profissional, não estão reunidas as condições mínimas

(17)

9 para poder responsabilizá-los pela renovação das suas competências. Esta responsabilização apenas é possível quando o indivíduo se encontra numa situação de trabalho e de vida em geral, numa posição no mercado de trabalho interno e externo, que lhe confere confiança, o estimula a pensar em projectos de futuro e, ao mesmo tempo, lhe confere a possibilidade, o interesse e a capacidade de auto-aprendizagem. Propor a responsabilização individual pela renovação constante das suas competências nas actuais condições de desemprego, de emprego periférico e precário, revela tanta ignorância quanto às condições sociais mínimas dessa responsabilização, como insensibilidade social e irresponsabilidade política” (Kovács, 2002, p. 74).

A estas particularidades associa-se a crescente articulação entre a configuração específica do campo da Educação e Formação de Adultos e o assomar em termos de visibilidade social de determinados subcampos específicos, por exemplo, o Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, e a invisibilidade crescente de outros subcampos da Educação e Formação de Adultos (Lima, 2008; Cavaco, 2009; Guimarães, 2010a; CNE, 2011). Neste sentido, e por inferência, as ocupações e atividades contextualizadas nesse campo profissional específico possuem interesse analítico, pois apresentam algumas particularidades que têm vindo

gradualmente a ser estudadas (

capítulo II

): é uma ocupação de emergência e relevância

recentes; a sua configuração funcional é concomitante com a crescente valorização em termos educativos, sociais e económicos dos saberes experienciais; essa valorização concretiza-se no apoio e incentivo, em termos de definição de políticas, orientações e financiamento, por parte de diferentes instituições, tanto em termos nacionais como por intermédio de organizações

internacionais como, por exemplo, a União Europeia, a UNESCO e a OCDE (

capítulo II

).

Desde o início da década de 2000, mas sobretudo a partir de 2006, foi crescendo em relevância o número de pessoas a trabalhar enquanto profissionais de RVC. Paula Guimarães (2010a) refere seis aspetos associados a uma «entrada massiva» de agentes de EFA a trabalhar nos Centros Novas Oportunidades, que revelou um “forte cariz extensionista” e que apresentaram diferentes implicações no campo das práticas profissionais: 1) a variedade de formações iniciais (sobretudo no domínio das ciências sociais); 2) uma maior exigência em termos de formação contínua; 3) o rejuvenescimento e a feminização dos agentes de EFA; 4) a orientação e regulação normativa por parte da tutela institucional (ANQ) em relação às tarefas a desempenhar e ao trabalho a desenvolver; 5) a alteração das tarefas práticas pedagógicas; 6) a re-inclusão dos professores do ensino regular no grupo dos profissionais de Educação e Formação de Adultos.

Sustenta a referida investigadora:

“Os profissionais que implementavam a política de educação e formação de adultos sugeriam a existência de um novo profissionalismo atravessado por tendências políticas e perfis profissionais

(18)

10 diferenciados. Ainda, como resultado destes cruzamentos, emergiam identidades em mudança, atravessadas por tensões muito distintas, entre a tradição escolar e uma abordagem educativa mais inovadora, atribuíveis a dimensões de políticas de educação para a conformidade e para a competitividade” (Guimarães, 2010a, p. 787).

No entanto, se esta profissionalidade, concebida enquanto a configuração e combinação específica de saberes, desempenhos e identidades profissionais (Evans, 2008) é de emergência recente, e mesmo que atualmente se vivam períodos conturbados e de indefinição, resultado das reorientações político-partidárias, saliente-se que as temáticas relacionadas com o desenvolvimento profissional daqueles que trabalham, de forma assalariada ou voluntariamente, a tempo total ou parcial, no campo da EFA, não o são.

Como desenvolveremos no capítulo II, pelo menos desde a segunda Conferência Internacional de Educação de Adultos (UNESCO, 1960) se vem destacando a relevância do desenvolvimento profissional dos agentes de educação de adultos. No entanto, na atualidade vem-se utilizando de forma mais gradual e recorrente o conceito de profissionalização para

sumariar essa necessidade. Tem-se considerado esse processo de

profissionalização/desenvolvimento profissional dos agentes de EFA como determinante no crescimento da qualidade do campo da EFA e da participação e aprendizagem dos adultos envolvidos. De facto, em múltiplos documentos institucionais refere-se a “falta de oportunidade de profissionalização e de formação […] e o impacto negativo na qualidade da oferta de aprendizagem e educação de adultos” (UNESCO, 2010b, p. 21) e o desenvolvimento profissional como “uma das medidas vitais para melhorar a qualidade da aprendizagem” (Buiskool, Brook, van Lakerveldal, Zarifis, & Osborne, 2010, p. 9).

O nosso interesse aumenta na medida em que, aprofundando-se esta problemática, se reconhece que o conceito de profissionalização, e o que ele representa, possui uma pluralidade de conotações e suscita diversas conflitualidades e tensões teóricas, políticas e ideológicas nos debates que se desenvolvem no contexto do campo da EFA.

Essas diferentes características implicam que a operacionalização e a investigação de problemáticas associadas à profissionalização dos agentes de Educação e Formação de Adultos seja um desafio. Como refere Bernard Charlot numa entrevista concedida em 2010: “o trabalho específico do pesquisador em ciências humanas é identificar e pensar sobre contradições” (Charlot, 2010, p. 155), latentes e/ou manifestas.

Consideramos também que a investigação dos diferentes processos de profissionalização possibilitará a perspetivação das alterações que estão a influenciar o campo da Educação e

(19)

11

Formação de Adultos, nomeadamente, nas suas tradições e ontologias. Ian Martin refere, por exemplo, que a profissionalização, em termos de discurso e de processo, é um dos grandes desafios que «desradicalizam» a Educação de Adultos (Martin, 2008).

De acordo com as diferentes abordagens do processo de profissionalização permitir-se-á

perspetivar como são enfatizadas e articuladas diferentes dimensões: as regras de orientação

da

e

para

a ação; os debates sobre a capacitação ou credencialização da atividade profissional; a

definição de perfis de competências; a configuração do treino e preparação dos agentes de EFA; a reflexão sobre o corpo especializado de conhecimento que lhe estão subjacentes; os diferentes e divergentes quadros institucionais, organizacionais e legislativos que implicam a definição e alterações das condições laborais, em termos de condições de trabalho e remuneração, incentivo ou desincentivo da formação e atualização dos conhecimentos.

Julgamos ser necessário desenvolver reflexões, investigações, «mapas cognitivos» e grelhas interpretativas que permitam a compreensão empírica dos processos de profissionalização dos Educadores e Formadores de Adultos, em contextos organizacionais diferenciados, nas suas motivações e na configuração das suas identidades profissionais específicas:

“O que pode ajudar é o desenvolvimento da compreensão empírica dos processos de profissionalização em situações onde estes não são formalmente dirigidos. É evidente que as pessoas agem com valores e propósitos e desenvolvem conhecimento do que fazem quando ensinam adultos. No entanto, sabemos pouco sobre essas motivações e processos. O profissionalismo pode não depender da obtenção de qualificações formais. Diferentes formas, completas, incompletas ou semi-, podem emergir muito diferentemente em diferentes contextos; os indivíduos são influenciados no desenvolvimento dos seus sentidos de profissionalismo pelos contextos sociais e institucionais em que estão situados. Existem, portanto, questões sobre o que aquelas possam ser. Quais as formas para uma identidade profissional surgir e ser expressada?” (Jütte, Nicoll, & Olesen, 2011, p. 14).

(20)

12

I. Opções e estratégias de investigação

Quando se desenvolve uma atividade de investigação é curial revelar como se procedeu à sua sistematização e também quais os «hábitos intelectuais» do investigador. Cumpre especificar como foi desenvolvida a pesquisa nas suas diversas vertentes: desde as

considerações metodológicas e epistemológicas4 aos métodos e técnicas utilizadas.

De uma forma geral, na prática científica, sustenta-se que ao longo das atividades de investigação devem-se desenvolver mecanismos de controlo e de «vigilância epistemológica» sobre as diversas condutas implicadas (Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 1999, pp. 11-22). Devemos, portanto, abordar e refletir sobre as condições, formas e momentos da análise e, igualmente, sobre as determinações exteriores ao processo de produção de conhecimentos que se implicam nas práticas de investigação.

Não menos importante é especificar as lógicas internas («reconstruídas, normativas e críticas») do processo de investigação, isto é, avaliando a metodologia utilizada, referir como se procedeu à “organização crítica das práticas de investigação” (Almeida & Pinto, 1995, p. 92). Para isso, expõem-se as razões para a escolha dos diversos métodos e técnicas de investigação e abordam-se as formas como elas se relacionam, ou seja, explicita-se como se formalizou o raciocínio de investigação.

As nossas opções no desenho e desenvolvimento da investigação passaram por analisar, primordialmente, a articulação entre o desenvolvimento e a reconstrução de saberes contextuais no exercício de uma prática profissional particular.

Importou-nos compreender como se formam e (re)configuram as disposições (estruturas cognitivas que guiam os indivíduos ou determinam as suas ações num determinado contexto), considerando quais as condições e modalidades de formação (Lahire, 2005). Num momento inicial, serviram-nos algumas questões que Bernard Lahire já germinara:

“Será que essas disposições se podem ir apagando progressivamente, ou podem mesmo desaparecer completamente, por falta de actualização? […] Poderemos avaliar os graus de constituição e de reforço das disposições, segundo, nomeadamente, a frequência e a intensidade do treino seguido, distinguindo assim as disposições fracas (crenças passageiras e friáveis, hábitos efémeros ou desajeitados) das disposições fortes? Como é que as múltiplas disposições incorporadas, que não formam

4Para João Ferreira de Almeida e José Madureira Pinto, “tanto a epistemologia como a metodologia abordam criticamente as

práticas concretas de investigação à medida que estas se desenrolam, mas fazem-no a níveis diversos. A metodologia não pode, por um lado, ceder à tentação de iludir a relação de interioridade que mantém com essas práticas, nem furtar-se, por outro lado, aos controlos que sobre ela própria exerce a epistemologia. O que nem uma nem outra podem ser é um conjunto de receitas normativas e a-históricas destinado a promover garantias de cientificidade” (Almeida & Pinto, 1995, p. 98).

(21)

13 necessariamente um “sistema” coerente e harmonioso, se organizam ou se articulam?” (Lahire, 2005, p. 17).

Considerando estas questões, incidimos a nossa análise nas trajetórias profissionais dos profissionais de RVC, considerando a sua relação com a trajetória das aprendizagens individuais e que na ótica do sujeito, e da nossa própria, apresentem significado no contexto da sua prática profissional5.

Considerar este nível de análise – o das práticas profissionais – apresenta algumas potencialidades que permite desafios de análise a um investigador que se posicione no âmbito

de uma estratégia de investigação qualitativa (Albarello,

et al.

, 1997 , pp. 235-244).

Neste trilho de investigação, distintamente pluridisciplinar, investigar as práticas profissionais possibilita analisar a forma como se aplicam os diversos conhecimentos e saberes - os «saberes teóricos», os «saberes processuais», os «saberes práticos» e os «saberes-fazer» (Malglaive, 1995, pp. 69-83), mobilizados no exercício de uma função e permitindo verificar como é que os sujeitos, na pluralidade das suas disposições e experiências, orientam e organizam a sua ação e se envolvem na resolução de problemas práticos (Lahire, 2005; Walmsley, 2004).

Importou-nos refletir sobre como se relacionam as escolhas educativas e formativas e as formas como se organiza e orienta o trabalho e a ação profissional. Pretendeu-se examinar como os indivíduos processam as suas escolhas em termos de educação e formação e também como estruturam os seus discursos, relativamente aos seus processos de aprendizagem.

Para captarmos essas diversas subjetividades e vivências educativas, passadas e presentes, e considerarmos os projetos dos sujeitos, desenvolvemos uma abordagem compreensiva que privilegiou o aprofundamento da análise, preocupando-nos em analisar, nos discursos particulares dos sujeitos, as «gramáticas» que os organizam (Harvey, 1996, pp. 83-84). Na linha deste autor consideramos que

“os discursos expressam o pensamento humano, fantasias e desejos. Eles também são alicerçados institucionalmente, materialmente constrangidos, manifestações das relações sociais e de poder experiencialmente fundamentados” (Harvey, 1996, p. 80).

5Considerando o conteúdo, organização e estruturação do trabalho e também, por exemplo, as dimensões relacionais – com os

(22)

14

Dessa citação decorre que os discursos não podem ser perspetivados isoladamente e abstraídos dos contextos em que são configurados. Enquanto manifestações da articulação de diversos momentos do processo social, devem ser compreendidos nas suas diversas relações.

Portanto, nessa análise, orientamo-nos por uma “grelha analítica básica” desenvolvida por David Harvey (1996, p. 78) e que se presta a funcionar como um “mapa cognitivo”. Esse «mapa» estrutura a análise dos processos sociais nas suas diferentes relações, em torno de seis

momentos: a

linguagem/discurso

; o

poder

; as

crenças/valores/desejos

; a

construção de

instituições

; as

práticas materiais

e as

relações sociais

.

As relações internas estabelecidas entre os diversos momentos são constituídas de uma forma dialética, isto é, através das suas relações internas, envolvendo atividades de «tradução» entre os vários momentos. No entanto, essas diversas atividades de tradução são mais do que uma réplica ou «internalização» imediata. Como refere Harvey, cada momento internaliza de forma heterogénea os «fluxos» advindos dos outros momentos. Por exemplo, apesar de na análise do discurso pessoal se poder verificar a defesa da ‘aprendizagem ao longo da vida’ relacionando-a com a «vocação ontológica» da humanidade para o «ser mais», ao mesmo tempo pode-se verificar que essa opinião ou crença pessoal pode ser sustentada e referida a um conjunto de valores heterogéneos (ou mesmo divergentes) em relação, por exemplo, à conceção da «natureza» humana, às formas de organização da produção económica e de divisão do trabalho mais propícias ao papel do Estado, na definição e financiamento das políticas públicas e mesmo às diversas «finalidades» que se concebem para a educação dos seres humanos. Parece-nos, tal como a David Harvey, que uma “heterogeneidade de crenças e formas incoerentes de desejar e valorizar podem ser encontradas em qualquer um de nós” (Harvey, 1996, p. 81).

Enunciemos agora o que significa cada um dos referidos momentos, visando a

perspetivação das formas como se procedem às citadas articulações (as

«traduções»

).

O momento da

linguagem/discurso

é revelador dos códigos e formas de como falamos,

escrevemos e representamos o mundo. É através do ato comunicativo subjacente à linguagem/discurso que se possibilita a compreensão das diversas formas de conhecimento, de classificação e de categorização do mundo. Também por isso, como refere o autor, “os discursos são manifestações de poder” (Harvey, 1996, p. 78).

O

poder

, por sua vez, apesar da sua complexidade e heterogeneidade internas, incorpora

(23)

15

distintos: o político, o económico, o simbólico, o militar, etc. Torna-se necessário compreender como se concretizam essas formas de poder e como ajudam a configurar os processos sociais (Harvey, 1996, p. 78).

Relevante para o desenvolvimento desta análise é a implicação de um outro momento: o

«imaginário», ou seja, o nosso sistema de

crenças, fantasias, valores e desejos

que nos ajuda a

enquadrar e a explicar a nossa ação e presença no mundo. Como escreve David Harvey:

“todos nós possuímos crenças, fantasias, valores e desejos relativamente a como o mundo é (ontologias), que melhores entendimentos do mundo podem ser alcançados (as epistemologias) e de como Eu/Nós queremos ‘Ser’ no mundo” (Harvey, 1996, p. 79).

Um dos outros momentos relaciona-se com a

construção de instituições

. Refere-se à

organização de relações sociais e políticas entre os indivíduos de uma forma mais ou menos durável. Estas podem ser os pensamentos e desejos humanos reificados como ritos culturais (por exemplo, a religião, a autoridade e a deferência) ou as instituições sociais relativamente permanentes: o

Estado

, o

Mercado

, a

Ciência

, a

Educação

, a

Lei

, as

Profissões

, entre outras (Harvey, 1996, p. 79).

Não menos importantes são as

práticas materiais

, isto é, a forma como experienciamos o

mundo e como se definem e se alteram as nossas perceções e impressões através do nosso corpo e das tecnologias e das formas espaciais/ambientais a que estamos condicionados (Harvey, 1996, p. 79).

O sexto momento é relativo às

relações sociais

, ou seja, ao modo como os seres humanos

se relacionam. Há que considerar, por exemplo, a forma como se vive, como se produz, como se educa e como se comunica. Para isso dever-se-ão perspetivar as formas de divisão do trabalho, as hierarquias sociais de classe, de idade, de género, o acesso individual ou de grupo ao poder social ou às atividades simbólicas e materiais (Harvey, 1996, p. 79).

Nas nossas opções e estratégias de investigação, evidenciaremos o discurso explicitado pelos entrevistados mas, na sua análise, não os consideraremos por si só “suficiente para entender a totalidade do processo social” (Harvey, 1996, p. 80). Tentaremos, simultaneamente, perspetivar as relações internas entre os diversos momentos de que os discursos dão conta, tanto na sua «fluidez» (as relações de tradução entre os diversos momentos) como nas suas «permanências» (ou seja, a reificação dessa «fluidez» entre os processos). Portanto, observaremos como essas articulações e relações fluídas entre os diversos momentos (tanto em

(24)

16

permanências que se revelam, por exemplo, nas formas de organizar o trabalho, nos discursos institucionalmente construídos, nas identidades profissionais e até nas disposições individuais (Harvey, 1996, pp. 80-81).

Neste sentido, optou-se por uma abordagem biográfica que foi desenvolvida com recurso a uma entrevista biográfica. O recurso a este método de recolha de informação (a entrevista biográfica) permite, como referem Cornelia Maier-Gutheil e Christiane Hof, que dessa forma o educador de adultos seja

“capaz de falar acerca das suas condições e requisitos de trabalho, dos seus problemas pessoais, das suas expectativas e esperanças. Tal como a aprendizagem é concebida como um processo individual que envolve interação e comunicação com os outros, está ligado com o conceito de aprendizagem biográfica […] Numa perspetiva biográfica é possível analisar as oportunidades sociais (instituições, movimentos societais, discursos pedagógicos) em que processos de aprendizagem individual estão inseridos e também da mudança dessas oportunidades ao longo do tempo” (Maier-Gutheil & Hof, 2011, pp. 77-78).

Encaramos a «história de vida» como ilustrativa das mudanças que se vão verificando no mundo do trabalho e nas diferentes perceções dos atores sociais. Ao mesmo tempo, consideramos que a relação entre o indivíduo e a sociedade se torna visível na biografia do indivíduo (Albarello,

et al.

, 1997, pp. 207-209).

Através dessa abordagem, podemos “reconstruir as decisões e as estratégias do indivíduo e as oportunidades sociais específicas que as governam”, nomeadamente, em termos de como estes desenvolvem o seu profissionalismo, através do seu discurso sobre

aquilo que sabem

e

como o sabem

(Maier-Gutheil & Hof, 2011, p. 77).

A abordagem biográfica permite-nos verificar, com gradual detalhe, as formas como as trajetórias (profissionais e de aprendizagem) são configuradas e reconfiguradas. Permite

também, e de forma mais relevante, que cada sujeito explicite os principais

momentos

que

determinaram o seu percurso, fornecendo informações sobre a forma como conduzem o trabalho e as formas como desenvolveram, desenvolvem e pensam desenvolver as suas aprendizagens. Como refere Françoise Digneffe, o método biográfico “permite captar as «subjectividades», compreender de que modo a conduta é continuamente remodelada, de modo

a ter em conta as expectativas dos outros” (Albarello,

et al.

, 1997, p. 208).

No nosso caso, como referimos, focou-se exclusivamente na realidade profissional dos entrevistados, procurando nesse fragmento da sua «história de vida», selecionado e relatado pelo próprio agente social, as suas disposições particulares. No recurso à abordagem biográfica não se tem de incidir sobre

toda

a história de vida, e podemos direcionar o «olhar» para

(25)

17

dimensões específicas da vida, nomeadamente, a profissional (Giddens, 1996a, pp. 696-697; Bogdan & Biklen, 2000, p. 93).

Ressalve-se, no entanto, o seguinte: consideramos as noções de «história de vida» e de «trajetória profissional» como construções e representações abstratas que se ordenam analiticamente em torno de um eixo temporal, mas que, simultaneamente, não se devem conceber como percursos contínuos ou lineares, constituídas por sucessivas etapas de sentido ascendente. Para nós, as trajetórias de vida podem assumir variadas continuidades e descontinuidades, progressões e retrocessos, tanto na dimensão profissional como nas dimensões educativas e formativas. Consideramos a configuração das trajetórias como «construções» retrospetivas, coletâneas de momentos e episódios, que devem ser analisadas com referência ao momento e às disposições presentes. Recorrendo às palavras de José Machado Pais:

"O uso tradicional do método biográfico tem valorizado, sobretudo, a linearidade. Essa busca é facilitada pelo facto de a biografia corresponder a um processo de transformação retrospectiva. Na biografia, os acontecimentos de vida são procurados e avaliados com um olhar do presente dirigido ao passado. Este olhar, por sua natureza retrospectiva, transforma o biografado. Os acontecimentos enfileiram-se numa sequência de linearidade, na busca de uma história que só ganha sentido pelos factos que ela consegue enfileirar. É certo que os biografados partem da inevitabilidade do que aconteceu. Mas os relatos biográficos são criativos, na medida em que, partindo de uma multiplicidade de factos conservados pela memória, acabam por construir uma linha de sucessão que se dirige para um “ponto de chegada. Este ponto de chegada é ponto de conexão linear de nexos de causa e efeito pseudo-convincentes que orientam a vida para uma meta que, na realidade, lhe pode escapar” (Pais, 2003, pp. 86-87).

A entrevista biográfica semiestruturada: possibilidades e constrangimentos

Pelos motivos atrás aludidos e por considerarmos que, no nosso caso específico, a unidade de observação e análise mais pertinente se revelar o sujeito, achamos apropriado, heurística e metodologicamente, o recurso à entrevista biográfica de forma a possibilitar o aprofundamento das temáticas em questão.

Tomou-se a

entrevista semiestruturada

como o tipo de inquérito mais apropriado, tendo em conta o problema colocado. Com esse tipo de entrevista, organizada em torno de um guião

temático (

em anexo

), podemos articular uma perspetivação longitudinal e uma perspetiva

transversal.

Delineamos alguns tópicos orientadores, de acordo com os nossos conhecimentos e referências prévias, que gostaríamos de ver abordados e aprofundados e ao mesmo tempo

(26)

18

foram elaboradas algumas perguntas prévias que facilitariam a recolha de informação (Ghiglione & Matalon, 2005). No entanto, mesmo que houvesse uma preparação prévia das perguntas a colocar, abriu-se espaço a que outras perguntas surgissem por intermédio da constituição dessa relação dialógica entre entrevistador e entrevistado.

Por um lado, com a entrevista procurava-se suscitar a organização temporal dos

«momentos determinantes» e dos

turning points

, ou seja, dos “pontos de inflexão que dão novos

rumos à vida” (Pais, 2003, p. 104). Destacava-se o início da atividade enquanto profissional de RVC (ou como «educador ou formador de adultos») e procurava-se elucidar a trajetória profissional de cada um dos entrevistados.

Por outro lado, também se tentou desencadear, durante a entrevista, a abordagem e o aprofundamento dos referidos tópicos de análise que, por exemplo, se relacionavam com os mecanismos de socialização profissional, com a definição de identidades específicas e com as noções de profissionalismo ‘embutidas’ no exercício da função.

Nessa interação social que a situação de entrevista proporciona, as características individuais do entrevistador e entrevistado, o contexto em que são realizadas e as problemáticas que implicam, nomeadamente as influências múltiplas na produção do discurso, marcam também o ritmo e a configuração da entrevista. Caberá ao entrevistador direcionar a atenção e conversa para temáticas específicas já que neste caso possui um quadro de referência específico. Saliente-se que no caso das entrevistas semiestruturas,

“o indivíduo é convidado a responder de forma exaustiva, pelas suas próprias palavras e com o seu próprio quadro de referência, a uma questão geral (tema) caracterizada pela sua ambiguidade. Mas se não abordar espontaneamente um dos subtemas que o entrevistador conhece, este coloca uma nova questão (o subtema), cuja característica já não é a ambiguidade, para que o indivíduo possa produzir um discurso sobre esta parte do quadro de referência do investigador” (Ghiglione & Matalon, 2005, p. 88).

No nosso caso particular, o referido «quadro de referência específico» não derivou somente das questões iniciais, das atividades de exploração (leituras dos diferentes livros e artigos que abordavam direta e indiretamente o nosso tema e da triangulação das diversas informações recolhidas), da elaboração do estado da questão e da problemática e da construção do plano de investigação (Quivy & Campenhoudt, 2008). De facto, uma das especificidades desta investigação relaciona-se com a própria biografia do investigador. Esta influenciou, obviamente, o desenvolvimento do seu «olhar» e conceção da problemática específica: também ele é profissional de RVC.

(27)

19

Esta particularidade implicou cuidados específicos no desenrolar de toda a investigação. O processo de investigação e a entrevista apresentaram algumas especificidades e também a superação de outros obstáculos que, mesmo que se coloquem genericamente a todos aqueles que se envolvem em atividades de investigação, se colocaram com particularidades nesta. De uma forma geral, tentou-se implicar um exigente e cauteloso processo de distanciamento crítico “em relação ao tipo de conhecimento anteriormente construído sobre o objecto, sujeito à irrupção fácil de preconceitos e de falsas evidências” (Azevedo, 2000, p. 17).

O distanciamento crítico: especificidades e obstáculos

Robert Bogdan e Sari Biklen, no famoso manual para a investigação qualitativa em Educação, avisam para que, ao desenhar-se o plano de investigação e escolher um tema específico, não se escolha um assunto em que se estivesse pessoalmente envolvido (Bogdan & Biklen, 2000, pp. 86-87). Para eles, a proximidade individual e cognitiva com pessoas e assuntos poderia derivar numa redução da objetividade e em outros constrangimentos (coibição e/ou controlo das informações prestadas e dos comentários efetuados), mas principalmente, na familiaridade excessiva com o tema em questão:

“as pessoas intimamente envolvidas num ambiente têm dificuldade em distanciar-se, quer de preocupações pessoais, quer do conhecimento prévio que possuem das situações. Para estas, muito frequentemente, as suas opiniões são mais do «definições da situação», constituem a verdade” (Bogdan & Biklen, 2000, p. 86).

De facto, partilhar-se o mesmo espaço de práticas profissionais (ser profissional de RVC) e desenvolver uma investigação sobre essa mesma ocupação implica a possibilidade de algumas das problemáticas associadas aparecerem com uma certa «ilusão de transparência» (Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 1999, p. 25) ou com a «ilusão do saber imediato» (Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 1999, p. 23) ou implicar outras condicionantes interpretativas.

Muitas vezes, a respeito da atividade de pesquisa científica, fala-se da necessidade de «rutura epistemológica» (nestes ou noutros termos) como a necessidade de desconstrução das pressuposições espontâneas que, por vezes, se impõem como evidências, visando uma distanciação do código de leitura do real derivado do senso comum. Sem debatermos as minudências destes aspetos, tentaremos refletir sobre como no quadro de uma investigação

(28)

20

particular se tentou articular a crítica do «enraizamento cultural» (neste caso profissional) do investigador e a necessidade de um maior rigor analítico e interpretativo.

Considere-se a seguinte reflexão:

“Estamos de acordo em que todos os estudiosos, sem excepção, se acham enraizados num meio social concreto, e que por isso é inevitável que utilizem pressupostos e preconceitos que interferem nas suas percepções e interpretações da realidade social. Neste sentido, é-lhes impossível ser neutros. Estamos também de acordo quanto à impossibilidade de uma representação quase-fotográfica da realidade social. Os dados da investigação são sempre selecções da realidade, baseadas em mundividências ou nos modelos teóricos do seu tempo e filtradas pelas perspetivas de certos grupos específicos de cada época. Neste sentido, as bases em que a selecção é feita são historicamente construídas, sendo inevitável que se vão alterando à medida que o próprio mundo se for transformando. Se o que se entende por objectividade é termos estudiosos perfeitamente distanciados, entregues à tarefa de reproduzir um mundo social que lhes é de todo exterior e alheio, então não acreditamos que um tal fenómeno possa existir” (Comissão Gulbenkian, 2002, pp. 127-128).

Na linha da

Comissão Gulbenkian sobre a Reestruturação das Ciências Sociais

,

consideramos a impossibilidade da «neutralidade axiológica» ou de uma representação «objetivista», mas consideramos também que se podem e devem fazer esforços em termos da procura de uma maior objetividade. Esta deve ser entendida como uma meta desejável pela investigação sistemática e que se relaciona intrinsecamente com a crescente validade do conhecimento (Comissão Gulbenkian, 2002, p. 128).

Os prolegómenos epistemológicos e metodológicos podem ser entendidos como uma tentativa de direcionar o olhar dos leitores e, ao revelar os pressupostos, convencer relativamente às interpretações individuais do investigador. Uma das formas de proceder a esse ‘convencimento’ passa por demonstrar a crescente objetividade: ao revelar os métodos e a forma de recolha dos dados e diferentes informações; no realçar sistematicamente a «coerência e utilidade» da investigação; e sujeitar o seu olhar específico aos «juízos intersubjetivos» de todos aqueles que investigam ou refletem sistematicamente os temas e problemáticas em questão (Comissão Gulbenkian, 2002, p. 128 e ss). É possível conciliar as exigências de pertinência e de demonstração da validade dos conhecimentos sem ‘amputar’ as vivências e convicções próprias (Wieviorka, 2010, pp. 83-94).

No entanto, mais do que fazer genéricas declarações em relação à objetividade e ao distanciamento crítico, é necessário observar e considerar como por vezes se articulam diversas situações de enviesamento interpretativo que implicam uma grande vigilância crítica.

Imagem

Figura 1 - Evolução da Rede de Centros (RVCC e Novas Oportunidades)
Figura 2 - Fluxograma das Etapas de Intervenção dos Centros Novas Oportunidades

Referências

Documentos relacionados

10.639/03 sobre a obrigatoriedade do ensino da História e da cultura africana e afro-brasileira nas escolas, o projeto Ginga promove a compreensão das manifestações culturais

Este medicamento não deve ser utilizado por mulheres grávidas sem orientação médica ou do cirurgião-dentista?. Este medicamento é contraindicado para menores de

Partimos do pressuposto que o ambiente conjugal dos pais também pode ser compreendido como parte integrante do ambiente facilitador do filho, e que a conjugalidade

Resultado: Ranking de Educação conforme pesquisa do Observatório Social do Brasil.. Ranking- EDUCAÇÃO

Conforme o resultado obtido pelo estudo em relação a dor e a incapacidade apresentou maior índice de melhora para o grupo de tratamento com Mobilização Articular

Contudo, se o legislador optou por remeter sobre outros aspetos desta matéria para o regime do CA, consideramos que a omissão foi propositada e que, tal como

O objetivo deste trabalho foi de avaliar o efeito do treinamento de força sobre o desempenho e a velocidade no nado de Crawl em atletas juvenis, assim como comparar

Se é certo que as comunidades emigradas contribuem significativamente para o enriquecimento do Poder Nacional em tempos de normalidade insti- tucional não sujeita