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Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme de Ockham: Emergência da Liberdade

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www.lusosofia.net

Origem divina e fonte

humana do poder civil em

Guilherme de Ockham:

Emergência da Liberdade

António Rocha Martins

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Covilhã, 2011

FICHATÉCNICA

Título:Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme de Ockham: Emergência da Liberdade

Autor: António Rocha Martins Colecção: Artigos LUSOSOFIA

Design da Capa: António Rodrigues Tomé Composição & Paginação: Filomena S. Matos Universidade da Beira Interior

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Origem divina e fonte humana do

poder civil em Guilherme de

Ockham:

Emergência da Liberdade

António Rocha Martins

«If there are no new truths to be discovered, there are old truths to be rediscovered.»1

Ao filósofo não é permitido pensar passando por cima do seu mundo contemporâneo: o «presente» revela-se-lhe indeclinável exigência a e do pensar2. «O que é» entra no pensamento,

constituindo-se como tal mas também configurando o próprio pensamento. A verdade é filha do tempo. Pensar o tempo a esse nível essen-cial faz o pensamento criar raízes na história e traduz o «espírito» da filosofia medieval3. Tal dimensão histórica, imprescindível ao

∗Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 1P. F. Strawson,Individuals. An Essay

in Descriptive Metaphysics, London-New York, 1993, p. 10.

2O filósofo é filho do seu tempo, como recorda, pertinentemente, Manuel J.

Carmo FERREIRA, «O tema da revolução em Hegel», Brotéria, 102 (1076), p. 37.

3 Cf. Carlos STEEL, «La philosophie comme expression de son époque»,

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desenvolvimento da cultura, encontra naturalmente a questão do poder político (dimensão material da vida humana)4, sendo aí o

direito humano menos expressão de aspectos negativos (pecado) do que de aspectos positivos (viver bem e politicamente)5.

A filosofia política de Guilherme de Ockham é de actualidade bem exemplo, pela sua íntima ligação às vicissitudes históricas eu-ropeias da primeira metade de Trezentos; mas não é por isso um simples resultado das circunstâncias, sendo antes fruto de um in-terventor comprometido face a acontecimentos que interpreta, ora legitimando ora rejeitando. Em dois acontecimentos o filósofo me-dieval se envolveu particularmente: na questão acerca «Pobreza Evangélica e Franciscana»6e nos conflitos entre o Papado e o

Im-perador; aí chamado, constituiu o seu pensamento político – ori-ginando, entre os seus intérpretes, a discussão sobre a fractura ou continuidade do «político» e do «filósofo»7.

4 A questão que se coloca não é a de se o poder é uma categoria medieval,

mas, sim, se ele aparece mais cedo ou mais tarde: o poder constituir-se-á ainda no interior da medievalidade. Liga se com a separação entre âmbitos como o secular e o religioso-moral; explicitamente, aparece nos primeiros anos do século XIV; viera, no entanto, já desenhando-se, pela alteração de condições sociopolíticas, com reflexo nas relações entre a Igreja e o Império. Para uma perspectiva de conjunto sobre a emergência do poder na Idade Média, veja-se: D. Boutet – J. Verger (dir),Penser le pouvoir au Moyen Âge, Rue d’Ulm, Paris, 2000; Jürgen MIETHKE,Las ideas políticas de la Edad Media(trad. esp. de Francisco Bertelloni), Buenos Aires, Editorial Biblos, 1993. No mesmo sentido vai a investigação de Esteban Peña EGUREN,La filosofia política de Guillermo de Ockham, Madrid, Encuentro Editiones, 2005, pp. 19-40. (Obra que muito nos deu que pensar).

5Veremos que poder sobre os bens materiais, instituído por direito humano,

tem a função de prever (e não promover) a corrupção (onde não há governador o povo corrompe-se).

6 Sobre a controvérsia entre o Papa João XXII e a Ordem Franciscana nos

inícios do século XIV, tenha-se presente a obra de Virpi MÄKINEN,Property rights in late medieval discussion on franciscan poverty, Peeters, 2000, pp. 141-190.

7 Os aspectos de continuidade têm sido mais relevados. Entre muitos

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O nome de Ockham assumirá particular relevo no dealbar do século XIV, não só por ter reivindicado o primado do indivíduo em relação ao género e à espécie, mas também pelo equilíbrio mantido entre o poder religioso e o poder civil, conciliando as especifici-dades de ambos.

Na verdade, se a separação política entre o espiritual/religioso e o temporal é hoje inquestionável, os termos desta separação en-contram as suas primeiras determinações na Idade Média, explici-tamente nos primeiros decénios do século XIV. Historicamente fa-lando, é frequente ver-se na reacção ao religioso uma das primeiras expressões da filosofia política moderna, cujo aparecimento, as-sim, se entende determinado negativamente pelo elemento reli-gioso. A autonomia do político dar-se-ia somente com a desagre-gação do religioso, facto tardo-medievo. Importa, no entanto, dizer que há nessa perspectiva um quadro de compreensão demasiada-mente unívoco e simplista acerca da medievalidade, época em que, justamente, nada é simples e tudo é complexo8.

Il problema della povertà evangelica e franciscana nel sec. XIII e XIV. Ori-gine del pensiero politico di G. d’Ockham, vol. I, Firenze, 1978, pp, 391ss; Georges de LAGARDE, La naissance de l’esprit laïque au déclin de Moyen Âge. V. Guillaume d’Ockham: Critique des structures ecclésiales, Louvain-Paris, Nauwlaerts, 1963, pp, 281-289ss; Alessandro GHISALBERTI,Gugliemo di Ockham, Vita e Pensiero, Milano, 1972.

8A filosofia moderna, que muitas vezes se pretende originária, tem no século

XIV, ainda medieval, indeclináveis expressões. Veja-se: André de MURALT,

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poli-Pode dizer-se, com efeito, que já nos inícios do Baixo Medievo surgem esforços que manifesta e politicamente reflectem uma con-corrência e um equilíbrio entre os distintos âmbitos do humano, indo o sentido de desenvolvimento dessa experiência medieval nu-ma crescente participação de elementos naturais e não teológicos (secularização) na fundamentação da organização política ( juridi-zação)9. Mas nenhum dos termos que aí entra em questão será

encarado com significado restritivo. Guilherme de Ockham é fa-vorável a tal orientação, acentuando os factores que possibilitam, a partir do homem, a afirmação do político (em oposição à tradição curialista). É preciso, contudo, não cair em simplismos, que o próprio Venerabilis Inceptor, aliás, denunciaria10. Nem o

espir-itual se confunde com a Igreja, nem o temporal coincide com a sociedade civil: os «clérigos» e os «laicos» não são dois géneros

tique et ecclésio-politique des siècles précédents. Elle est partie intégrante, par-ticulièrement féconde, d’un mouvement foisonnant, dont les pionniers les plus importants sont Jean Duns Scot et Guillaume d’Occam». Sublinha o autor que, excepto Hegel («abandonou a modo de pensar moderno»), a filosofia moderna prolonga e complementa, respondendo de um modo novo às mesmas dificul-dades, o pensamento ockhaminiano (pp. 154ss).

9 Jürgen MIETHKE,Las ideas políticas de la Edad Media, pp. 49ss. No

dizer do autor, o século XII significa um novo momento no desenvolvimento da teoria política (tradicionalmente, uma separação efectiva do espiritual e do tem-poral parecia impossível), pois os prolongados e renascentes esforços que então vão surgindo, na Alemanha, por exemplo (Concordata de Worms, 1122), cons-tituem uma nova base de futuros desenvolvimentos. Nesses anos transforma-se a situação que actuava como ponto de partida, acrescendo que, transformações das condições gerais de vida (crescimento, mobilidade, movimentos populacionais, surgimento de novas cidades, aparecimento de novas estruturas), afectaram a ordem política e a constituição social, adquirindo as condições de vida uma pe-culiar plasticidade. Novas formas coexistirão com as antigas.

10 Ockham censurará a manifesta «ligeireza» das fórmulas de distinção,

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da espécie humana; como tal, essa oposição não pode servir como critério de demarcação entre onaturale oteológico. Evidencia-se uma direcção à suficiente autonomia do poder real, mas a fonte hu-mana (independência do poder) não rejeita a origem divina ( potes-tas a deo). O mesmo pode dizer-se de conceitos como seculariza-ção (laicidade), racionalidade, diferenciaseculariza-ção, soberania, e outros, os quais comportam indeclináveis expressões medievais11.

Efectivamente, se é verdade que a Idade Média não produz pro-priamente uma teoria política (no sentido moderno do termo)12,

é também verdade que a partir de um certo momento (especial-mente a partir do século XI), as questões crescentes relativas às relações concretas da Igreja com o mundo vão repercutindo um âmbito político (mesmo negativamente), estranho/exterior à Igreja, a partir do qual era muito difícil compreender as exigências do direito divino13. E, portanto, embora de modo negativo (i. e., a

11Só uma reflexão geral e abrangente de toda a história medieval poderá

de-terminar com rigor o alcance e limites de tais conceitos. Sobre isso, veja-se: Jürgen MIETHKE,Las ideas políticas de la Edad Media, pp. 211-212; Philippe NEMO,Histoire des idées politiques dans l’Antiquité at au Moyen Âge, Paris, Puf, 1998, pp. 974ss. P. Nemo recorda ter sido em França que primeiramente se fez sentir a necessidade de justificar a independência política do Estado nacional face ao Império universal («o rei de França é imperador do seu reino»): Ockham teria descuidado a soberania a favor da laicidade.

12Cf. João Morais BARBOSA, «Introdução», in Álvaro Pais,Estado e Pranto

da Igreja (Status et Planctus Ecclesiae), vol. 1, Lisboa, INIC, 1988, p. 25.

13O século XI não foi uma simples continuação da tradição, sem solução de

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libertação por parte da Igreja de influências estranhas/temporais), prevê-se aí uma alteração de relações entre o poder espiritual e o poder temporal. O facto de a política não integrar as artes li-berales não significa, pois, que o medieval desconheça a sua im-portância14. Recorde-se que a jurisprudência é uma das ciências

de melhor aplicação prática quotidiana15. O direito, e sobretudo

o direito canónico, deveria plasmar as relações jurídicas que, den-tro da Igreja, se verificavam entre os seus diferentes membros. Si-multaneamente, o crescendo das decretais pontifícias requeria cada vez melhores especialistas, de tal modo que o estudo do direito canónico abrira enormes possibilidades de carreira16, que a

con-frontação entre o papado e o poder temporal (representado primei-ramente pelo imperador e mais tarde pelos reis e príncipes da cris-tandade) bem salientaria, reportando uma concepção acerca da for-ma e estrutura jurídica da Igreja. Assim se impôs a doutrina se-gundo a qual o Papa constituía a cúspide e o eixo de todo o sistema da organização eclesiástica, que o conceito de plenitude de poder

(1054-1274), Paris, Desclée, 1993, pp. 25-175; Harold J. Berman, Law and Revolution. The Formation of the Western Legal Tradition, Harvard University Press, 1983, pp. 49-119.

14Concluir que a universidade medieval careceria de significação para a teoria

política, em virtude da ausência da política – como disciplina autónoma – do

triviume doquadrivium, seria, de facto, um erro muito grave. São abundantes os textos que podem ser considerados políticos. Ademais, o público e os autores também se transformaram; e com essa transformação transformou-se igualmente o lugar da teoria política. Vd. Jürgen MIETHKE,Las ideas políticas de la Edad Media, pp. 54ss.

15 O Direito – principalmente – e a Medicina são as ciências consideradas

como lucrativas (scientiae lucrativae); os juristas encontram espaço nos sistemas de domínio dos prelados da Igreja e dos governantes temporais. Vd. Jürgen MIETHKE,Las ideas políticas de la Edad Media, p. 56ss.

16 Repare-se que uma quinta parte de todas as decretais conhecidas, desde a

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(plenitudo potestatis) pretende designar, que fora difundido pelos canonistas do século XII17.

Ora, é justamente essa teoria da plenitude de poder, elaborada pelos hierocratas, a partir dos últimos decénios do século XII18,

que, acrescentando-se à questão da pobreza evangélica e francis-cana, constituem os pólos de chamada e de reposta do pensamento político de Guilherme de Ockham.

A questão acerca da pobreza franciscana reabrira-se na Prima-vera de 1322 (30 de Maio a 7 de Junho), com a declaração ( De-claratio), por parte de um grupo de Menoritas (contra João XXII), de que Cristo e os Apóstolos haviam renunciado a quaisquer di-reitos de propriedade e domínio sobre os bens materiais, recla-mando, nessa apreciação, o promulgado por Nicolau III (bulaExiit qui seminat, de 14 de Agosto de 1279), o qual confirma

(recor-17 Foi com Inocêncio III que o conceito de plenitudo potestatisse tornou

um termo técnico, servindo para designar a soberania pontifícia. As origens da fórmula remontam a Leão I (século V). Mas é apenas nos últimos decénios século XII que o papado passa a aplicá-la para indicar a legitimidade de inter-venção nas questões seculares. Em 1198 entrou decisivamente na linguagem da chancelaria pontifica. Os canonistas adoptá-la-ão também (tradicionalmente, definia-se a autoridade papal comoplena potestas, plena auctoritas, pelnaria potestas, plena et libera administratio). O sucesso da fórmula ficou assegurado pelo entusiasmo com que Bernardo de Claraval também a acolheu, e pelo apro-fundamento jurídico e doutrinal de Huguccio, cuja definição veio a tornar-se clássica: «A autoridade plena existe quando contém ordem (preceptum), vali-dade e necessivali-dade; estes três elementos encontram-se no papa, ao passo que os restantes bispos reúnem apenas o primeiro e o terceiro». Sobre os canonistas do século XII, veja-se: A. Paravicini BAGLIANI, «La suprématie pontificale (1198-1274)», in AA.VV,Histoire du Christianisme, vol. 5: Apogée de la pa-pauté et expansion de la chrétienté (1054-1274), pp. 577ss. Note-se, ainda, que foi no gozo da plenitude de poder que, no decurso do concílio de Lyon, em 13 de Julho de 1245, o papa Inocêncio IV destituiu o imperador Frederico II, bem como o rei português Sancho II.

18Entre os defensores dessa forma de absolutismo eclesiástico,

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dando os argumentos de São Boaventura) a observância da Regra

ao Evangelho19. Com efeito, tal como o Doutor Seráfico20,

Nico-lau III distinguira os conceitos de propriedade, possessão, usufruto, direito de uso e simples uso de facto, sendo o único direito a não derrogar o que diz respeito ao simples uso de facto21. Ou seja,

a esta luz seria possível e juridicamente legítimo servir-se de um dado objecto sem do mesmo reclamar algum direito legal. O uso de um bem não implicaria, pois, a sua propriedade.

Tal distinção conceptual-jurídica, que garante a possibilidade –

legal– da vida franciscana em pobreza, tornar-se-á – cerca de dois anos mais tarde – pomo de discórdia entre João XXII e Guilherme de Ockham. O sumo pontífice, que reagira de imediato ao ma-nifesto de Perugia(bulaAd conditorem canonum, de 2 de

Dezem-19 Sobre isso, pode ver-se: Marino DAMIATA, Guglielmo d’Ockham:

Poverta’ e Poter. . . , vol. I, 337ss; Virpi MÄKINEN,Property Rigths in Late Medieval. . . , p. 154ss.

20 Eis como São Boaventura interpreta a pobreza: «Ut igitur praefatis et his

similibus cavillationibus malignis et subdolis imponatur silentium, intelligen-dum est, quod cum circa res temporales quatuor sit considerare, scilicet proprie-tatem, possessionem, usumfructum et simplicem usum; et primis quidem tribus vita mortalium possit carere, ultimo vero tanquam necessario egeat: nulla pror-sus potest esse professio omnino temporalium rerum abdicansusum. Verum ei professioni, quae sponte devovit Christum in extrema paupertate sectari, conde-cens fuit universaliter rerum abdicaredominiumarctoque rerum alienarum et sibi concessarumusuesse contentam. Unde et ipsorum Regula continetur: “Fratres nihil sibi approprient, nec domum nec locum nec aliquam rem”.» (Apologia pau-perum, XI, 5; VIII 312a). Note-se que o texto bonaventuriano é de 1269, por-tanto muito anterior ao reavivar da controvérsia (daí também a sua importância).

21Non autem talem abdicationem proprietatis omnimode renuntiationem usus

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bro de 1322), afirma que o uso de um bem é inseparável da pro-priedade22; nas coisas fungíveis isso seria evidente, nas que não o

são o uso acabaria por levar a um certo direito – ousus iuris; ora, quem tem direito é proprietário23. Assim, para João XXII, dizer

que Cristo e os Apóstolos nada possuíram era o mesmo que ne-gar o seu direito a servir-se de alguma coisa; e visto tal ir contra a Escritura, deveria reprovar-se e condenar-se como heresia (bula

Cum inter nonnulos, 12 de Novembro de 1323)24. Numa terceira

intervenção oficial (bula Quia quorumdam, 10 de Novembro de 1324)25, o sumo pontífice reprova a opinião dos detractores, que

presumiram impugnar as suas duas constituições precedentes; re-cusa, sobretudo, a distinção dos frades Menores entre o que o Papa afirma per clavem scientiae in fide ac moribus (ex cathedra) e o simplesmente dito per clavem potestatis (questões administrati-vas). Para João XXII, tudo o que o Papa declara é verdade imutável (infalível). Pretendia o sumo pontífice pôr termo à controvérsia. Entretanto, as circunstâncias vão reunindo outros interlocutores, de entre os quais sobressai justamente Guilherme de Ockham.

Eis por que, não fora essa questão acerca da pobreza, legitima-mente se poderia presumir que Ockham regressaria a Oxford, findo o processo de acusação em que se vira envolvido. O filósofo me-dieval encontrava-se Avinhão desde 1324, a fim de se defender da denúncia de J. Lutterell. Impelido a tomar a pena a respeito dessa questão, «lê e estuda diligentemente» as três constituições ponti-fícias (Ad conditorem canonum; Cum inter nonnulos; Quia quo-rumdam), apelidando-as dedestitutiones haereticales(mais do que

22«Ex hoc patet quod nullum eidem ecclesiae temporalis advenerit hactenus

commodum nec speratur.» (Bullarium FranciscanumV, 236b-237a).

23 «Quod, in talibus rebus, usus iuris vel facti separatus a proprietate seu

domino possit constitui, repugnat iuri et obviat rationi.» (Bullarium Francis-canumV, 237a).

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constitutiones),26insurgindo-se explicitamente contra João XXII, e

assim principiando a sua carreira de polemista, o chamado período político da sua vida.

Tal não quer dizer, contudo, que o pensamento político do nos-so Autor se explique exclusivamente a partir da sua posição face à questão da pobreza. Sempre optimista e confiante nos valores ra-cionais, adoptará umavia media, distanciando-se tanto do radica-lismo dos espirituaiscomo das tentações joquimitas de colapso e desarticulação apocalíptica27.

Mas foi justamente a bulaQuia via reprobus, promulgada por João XXII, em 16 de Novembro de 132928, para responder aos

es-critos e apelações de Miguel de Cesena, entretanto refugiado em Munique (juntamente com Ockham e demais companheiros)29, que

26«Quia nolens leviter credere quod persona in tanto officio constituta

haere-ses definiret esse tenendas, constitutiones haereticales ipsius nec legere nec habere curavi. Postmodum vero ex occasione data, superiore mandante, tres constitutiones seu potius destitutiones haereticales, videlicet Ad conditorem, Cum interetQuia quorundam, legi et studui diligenter. In quibus quamplura haereticalia, errónea, stulta, ridiculosa, fantastica, insana et diffamatoria, fidei orthodoxae, bonis moribus, rationi naturali, experientiae certae et caritati frater-nae contraria pariter et adversa patenter inveni: de quibus nonnulla duxi prae-sentibus inserenda.» (Epistola ad fratres minores, OP III, 6).

27Pouco propício a extremismos, Ockham revela-se tão longe dos apologistas

da cúria pontifícia como do laicismo radical de um Marsílio de Pádua, e mesmo dos partidários de uma distinção rigorosa entre o espiritual e o temporal. Sobre a via media ockhaminiana, veja-se: Marino DAMIATA,Gugliemo d’Ockham: Povertà e Potere. Il Potere come servizio dal principatus dominativus al princi-patus ministativus, vol II, Firenze, 1979, pp. 149ss; Esteban Peña EGUREN,La filosofia política de Guillermo de Ockham, pp. 196 e 428-438.

28Bullarium Franciscanum, V 408-449.

29 Miguel de Cesena, Bonagrazia de Bérgamo, Francisco de Ascoli e

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per-proporcionou a ocasião imediata, não só para discutir o problema da «pobreza evangélica» mas também as suas implicações refe-rentes aos poderes espiritual e secular30.

Verdadeiramente, Ockham vai acelerar a noção de laicidade do Estado, atenuando a autoridade papal ao mesmo tempo que, na re-lação entre os seres humanos, acentua o positivismo da lei, privile-giando a convenção e o pacto31, isto é, o que a todos se deve impor

por defeito de cada um.

Assim, entre finais de 1332 e inícios de 133332, escreveu a

sua primeira obra polémica, intituladaOpus nonaginta dierum, na qual, sempre partindo deQuia vir reprobus, refuta as teses de João XXII, expressas nas suas últimas bulas. Suceder-se-ão as obras

propriamentepolíticas, já que a natureza do poder (tanto religioso como civil) permanece aí como questão decisiva, quase sempre li-gada à pergunta sobre a plenitudo potestatis, isto é, sobre a pre-tensão de poder ilimitado por parte do Papa e, por consequência, aos limites entre o poder religioso e o poder civil, poderes esses que, personificados na época nas figuras do sumo pontífice e do imperador, haviam entrado em rota de colisão, pelo que se tornara necessário averiguar quer um quer outro, bem como a relação entre ambos.

maneçam ainda algum tempo em Itália cerca de dois anos mais tarde já se en-contram na Alemanha. Sobre a vida e obra de Guilherme de Ockham, veja-se: L. BAUDRY,Guillaume d’Occam. Sa vie, ses ouvres, ses idées sociales et poli-tiques. I: L’homme et les oeuvres, Paris, Vrin, 1950; Esteban Peña EGUREN,

La filosofia política de Guillermo de Ockham, pp. 91-119.

30 Cf. José António de SOUSA, «Fundamentos éticos da teoria Ockhamista

acerca da origem do poder secular»,Revista Portuguesa de Filosofia, 41 (1985), p. 142.

31Cf. Philippe NEMO,Histoire des idées politiques. . . ., pp. 93-94.

32Já em Munique, aonde chegara há cerca de dois anos (1330), na companhia

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Na economia do presente estudo, centrar-nos-emos principal-mente no Livro III do Breviloquium33, dedicado precisamente à

origem divina mediata do poder, isto é, à fonte humana do poder civil. Vamos ver que o discurso de Ockham é cheio de consequên-cias para a filosofia política34.

Voltando, por conseguinte, de novo a João XXII (Quia vir re-probus), eis o que importa saber: fora da Igreja existe ou exis-tiu poder legítimo? Que direito introduz o direito de propriedade ou de domínio, o direito divino ou o direito civil? A resposta do pontífice reporta a palavras de Santo Agostinho, segundo as quais nada poderia possuir se de temporal senão por direito divino, di-reito pelo qual todas as coisas são dos justos35, pelo que fora da

33 Utilizaremos a edição de Baudry, L., Breviloquium de potestate papae,

Paris, 1937. Não obstante algumas dúvidas, sabe-se hoje que oBreviloquiumfoi escrito por volta de 1339-1341 (antes de 25 de Abril de 1341, data da morte de Bento XII). Nas obras que precedem oBreviloquiumOckham não havia ainda explicitado claramente uma teoria da autoridade, referira apenas a sua origem divina mediata. É então agora o momento de formular uma teoria mais elabo-rada, que justamente desenvolverá em obras posteriores (Octo questiones). So-bre isso, veja-se: Georges de LAGARDE, La naissance de l’esprit laïque au déclin de Moyen Âge. IV. . . , pp. 217ss.

34 A filosofia política ockhaminiana apresenta-se como uma história,

de-screvendo o devir político do ser humano segundo os diversos «estados», deter-minados pela ruptura radical do pecado original. É fácil pressentir coincidências na filosofia política moderna com o discurso de Ockham. Por exemplo, o estado de natureza de Hobbes é manifestamente uma laicização do estado da natureza humana após o pecado, tal como a noção dejus omnium in omnia(«direito de todos sobre todas as coisas») deriva da noção dedominium commune(«domínio comum», i.e, o mesmo é comum a todos). A ganância, inveja, ciúme, destrói o domínio comum: eis por que doravante, ainda no pecado, é necessário ao homem organizar racionalmente a divisão das coisas e a repartição dos cargos públicos, escapando assim à guerra de todos contra todos e assegurando a continuação da vida comum através de uma justa propriedade e uma justa sociedade civil. (Cf. André de MURALT,L’unité de la philosophie politique. . . , pp. 148ss).

35AGOSTINHO, «Et quamvis res quaeque terrena non recte a quoquam

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Igreja não haveria propriedade nem jurisdição36. O poder não se

estenderia aos «laicos». Identificando, desse modo, os «justos» – a

Igreja – com os «fiéis» – oEstado–, nota Ockham, facilmente se provaria que fora da Igreja não poderia existir verdadeiro domínio das coisas temporais, nem sequer algum poder «ordenado ou con-cedido», mas apenas um poder por «permissão». Tudo aí seria por direito divino, uma vez que fora do âmbito eclesiástico não restaria senão a perdição37. Mas isso é um erro que vários dos

chama-dos bispos romanos cometem, afirmando que o império romano –

poder civil– vem do Papa (plenitudo potestatis); e, de um tal erro, salienta o Autor, resultam muitos outros e intoleráveis, quer para imperadores, reis e demais príncipes, quer para todos os mortais38.

Urge pois refutá-lo, e justamente começando por provar a origem do poder político39. Dever-se-á ir às Sagradas Escrituras e a todos

os documentos não depreciáveis; vendo, pois, que já no Antigo Testamento existiu fora do Povo de Deus e fora da Igreja católica um verdadeiro domínio das coisas temporais e uma verdadeira

ju-36«Primo autem inquiram na papa ex ordinacione Christi aliquam super

im-perium habeat potestam. Et quidem sunt non nulli dicentes quod imim-perium est a papa ita ut nullus possit esse verus imperator nisi qui a papa fuerit confirmatus vel electus. Et quidam istam assercionem suam in hoc fundare nituntur quod, secundum ipsos, extra ecclesiam nullum est verum dominium quod, secundum ipsos, extra ecclesiam nullum est verum dominium temporalium rerum nec extra eam aliqua vera jurisdiccio temporalis.» (Breviloquium, III, 1).

37Breviloquium, III, 1.

38«Verum, quia in isto errore quidam vocati romani episcopi, asserentes quod

romanum imperium est a papa, se principaliter fundaverunt et ex eodem errore alii innumerati in intolerabile et nullmodo ferendum prejudicium imperatorum et regum aliorumque principium secularium, ymmo cunctorum mortalium infe-runtur, ipsum, antequam aggrediar alia, clarissime confutare conabor.» ( Brevi-loquium, III, 2).

39 Breviloquium, III, 2. A confusão da Igreja e da Cristandade impede na

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risdição temporal – não apenas permitidas mas também concedidas e ordenadas –, Ockham atribui legitimidade própria aos infiéis, os quais devem assim ser considerados como também dignos de pro-priedade, sendo mesmo um prejuízo geral (i.e., para fiéis e infiéis, o «género humano») não reconhecer essa dignidade aos laicos40.

Tudo isto significa, vinca Ockham, que as palavras de Agosti-nho foram interpretadas «irracional», «errónea» e «hereticamen-te»41. De facto, provar-se-ia facilmente que também os fiéis, não

obstante a rectidão da fé, vivem sujeitos do pecado, e assim por igual razão não teriam verdadeiro domínio sobre as coisas tem-porais: ou seja, qualquer cristão, fora rei ou imperador, perderia tudo o que até então possuíra se pecasse mortalmente. Isso seria absurdo, e prova-se abundantemente nas Escrituras42.

As palavras de Agostinho poderiam ainda ser interpretadas de outro modo, igualmente pernicioso. Entender-se-ia, neste caso, «justos» por oposição a «injustos», identificando os primeiros com os cristãos e os segundos com os que estariam fora da Igreja. As-sim, tudo é sempre por direito divino, mas apenas no que diz res-peito à «dignidade de possuir, ter e usar», não no que respeita ao «domínio e propriedade». Nenhum injusto, fiel ou infiel, é digno de domínio sobre as coisas temporais. O cristão que sem se afas-tar da fé peca mortalmente torna-se imediatamente indigno do que possuía ou possui, podendo, contudo, por bondade divina,

rece-40«Primo itaque probandum est per scripturas sacras et alias non spernandas

quod verum dominium temporalium rerum et vera jurisdiccio temporalis, non solummodo permissa sed eciam concessa et ordinata a Deo, fuit extra populum Dei et extra catholicam ecclesiam.» (Breviloquium, III, 2).

41 «Superset nunc videre irracionabiliter, erronee et hereticaliter domini, seu

proprietatis temporalium rerum fuerit locutus Jo 22us.» (Breviloquium, III, 14).

42 «(. . . ) faciliter probaretur quod apud fideles, qui cum fide recta peccato

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ber um benefício temporal, não só permitido mas verdadeiramente concedido e ordenado por Deus. E assim, embora sejam indignos, os infiéis e pecadores podem possuir um verdadeiro domínio e uma jurisdição autêntica sobre as coisas temporais43.

Guilherme de Ockham, porém, que não se conforma com a identidade entre os justos (i.e., os que estariam dentro da Igreja) e o espiritual, não aceita tal interpretação, sublinhando que ela pro-longa o erro, que já denunciara, de que fora da Igreja tudo leva à perdição – e isto não é verdade. Fora da Igreja não só não há necessária perdição como também existe uma jurisdição temporal autêntica. Como dissera Agostinho, nem a maldade de um tirano se torna louvável por tratar os seus súbditos com clemência, nem a ordem do poder real deve ser injuriada se o rei maltratar com crueldade tirânica. Uma coisa é querer usar justamente um poder injusto, outra coisa é querer usar injustamente um poder justo44.

Nem um poderilegítimoé legitimável mediante obom uso, nem o

abusode um poder legítimo anula a sualegitimidade.

O filósofo medieval, constantemente debruçado sobre o con-creto, não se predispõe, pois, a aceitar a equivalência entre fiéis e justos, por um lado, e entre infiéis e pecadores, por outro, por ela ser demasiadamente genérica e artificial. Nem os infiéis são sempre injustos (não pecam sempre), nem os justos são imunes ao pecado (também são pecadores). Pode-se, assim, copiosamente provar que os Judeus – os infiéis – possuem um verdadeiro domínio e uma verdadeira jurisdição das coisas temporais. Admitir a falsidade contrária implicaria atribuir um prejuízo ao género humano, pois, desse modo, seria impossível qualquer reivindicação de posse, ain-da por direito de hereditarieain-dade, de bens ou direitos dos

progeni-43Breviloquium, III, 12.

44 Santo AGOSTINHO,De bono conjugali, PL, 40, 384-385: «Nec

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tores infiéis, já que a propriedade, sendo ilegítima, não comportaria direitos. E como o que se não pode possuir não pode prescrever, jamais os filhos e sucessores fiéis poderiam alegar para si os bens e direitos dos seus pais e antecessores infiéis45.

Com efeito, a bondade divina dirige-se a todos os seres hu-manos, concedendo também aos infiéis a «possibilidade» de domí-nio e jurisdição sobre as coisas seculares, bem como de qualquer outro direito46.

Ou seja, em Guilherme de Ockham os factores que explicam, a partir do homem, o poder de apropriação e divisão das coisas temporais (potestas appropriandi et dividendi res) são os mesmos que explicam o poder de constituir universalmente/autonomamente uma jurisdição temporal, por meio de «governadores» (potestas instituendi rectores habentes jurisdictionem). Um e outro, isto é, a organização da propriedade privada e a instituição da sociedade civil têm origem em Deus, mas ambos se constituem historica-mente mediante fonte humana, sem interferência divina directa. E Ockham insistirá, aliás, neste ponto, pois se a causalidade divina fora igualmente a fonte do poder civil, tal significaria que Deus

45 «Sequitur nunc videre quomodo dicere apud infideles non fuisse verum

dominium temporalium rerum neque veram jurisdiccionem temporalium pre-judicet cunctis mortalibus. Et quidem tam fidelibus quam infidelibus prejudi-cium inferre enorme dinoscitur. Reges enim fideles et principes ac alii inferiores hereditario jure de bonis et juribus progenitorum suorum infidelium nichil pe-nitus vendicare valerent, si progenitores sui infideles verum dominium et veram jurisdiccionem temporalem minime habuerunt, quia filii illa vendicare non pos-sunt que patres nullo jure, sed solummodo illicite tenuerunt, presertim si sciant vel teneantur scire quod patres sui in hujusmodi nullum jus penitus habuerunt; nec possunt se prescripcione juvare quiapossessor male fidei ullo tempore non prescribit, extra de re.» (Breviloquium, III, 5).

46«(. . . ) si Deus infidelibus sensum salutis corporis super quem non est

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poderia introduzir modificações no direito humano. Mas o poder civil não é um direito do homem crente, mas, sim, um direito na-tural do ser humano47. A sociedade civil é permitida (possibilitas)

por Deus, mas é instituída pelo homem. «O poder é dos homens», ou seja, é à universitas mortalium, como imperium, que cabe o poder absoluto (summa potestas) de exercício efectivo (a «orde-nação humana») desse mesmo poder «permitido e concedido» por Deus (a «possibilidade» do poder humano).

A acção humana é, assim, determinante. Se os homens fos-sem como deveriam ser, não haveria esse problema políticostricto sensu. Mas sendo tal como é, o homem necessita de «pactos» e «convenções», modificando-se e adaptando se às condições con-cretas/históricas.

O que é, afinal, o poder em Guilherme de Ockham?

Homem do seu tempo, com o qual dialogou, ele devia, por uma lado, salvar a independência do poder secular da pressão exercida pelas tendências hierocratas (curialistas, papistas), e, por outro, de-via opor a certas soluções superficiais (imperialistas, legalistas, re-galistas), a origem divina de todo o poder, discernindo tanto o reli-gioso como o civil48.

Não é extremamente difícil pressentir a inspiração de Duns Escoto no discurso do Venerabilis Inceptor49. O Autor recorre a

47A César o que é de César: Ockham sublinha as presentes palavras de Cristo,

salientando que o Novo Testamento (Paulo, Lucas, João. . . ) as reitera explícita e abundantemente. (Cf.Breviloquium, III, 3).

48Aos que dizem que o império vem do papa, Ockham não responde que ele

vem dos romanos ou dos germanos, mas, sim, que vem imediatamente de Deus. Como é que o Autor articula esta posição com a ideia da origem puramente hu-mana dos direitos de propriedade? Afirmando queImperium a Deo per homines

(«O império vem de Deus por meio dos homens»). Cf. Georges de LAGARDE,

La naissance de l’esprit laïque au déclin de Moyen Âge. IV. . . , p. 204.

49 Isso mesmo o observa Muralt: «Pour Occam en effet, comme pour Duns

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uma concepção antiga sobre o concurso da causalidade divina e da causalidade criada, que reporta a João Damasceno, e que dis-tingue na vontade divina uma vontade antecedente e uma vontade consequente50. Deus, por meio da vontade antecedente, determina

o sentido global das coisas, e, mediante a vontade consequente, assegura a liberdade da operação humana, não influindo no seu e-xercício autónomo. Desse modo, Deus concede ao homem o poder de poder ser livre, poder este que se concretiza na instituição de dirigentes, com jurisdição temporal.

O poder civil, isto é, a «instituição do principado político», carece de fundamento humano; se não fora assim, em que se cifra-ria a liberdade?

Uma coisa é, pois, a possibilidade do poder (ainda de direito divino), outra coisa é a constituição efectiva ou uso desse mesmo poder (apropriação das coisas temporais, propriamente dita, já de direito humano). Mas nem o direito divino exclui o direito humano nem o direito humano anula o direito divino, ambos concorrem par-cialmente (como dois absolutos heterogéneos, o Absoluto divino e o absoluto finito), em recíproca independência.

Tal é o ponto de partida que permite ao Autor a analogia histó-rica entre a origem da propriedade e a origem do poder político («irmãs gémeas»51): quer o direito à propriedade privada, quer o

direito à organização política aparecemcomo pecado, mas nãopor causado pecado.Se o homem fosse como deveria ser tudo estaria bem. Há um domínio divino (sobre o qual o Autor não se detém, «por ora») e um domínio humano, que é comum a todo o género

et chacune de ceux causes dans leur concours opère de manière absolument in-dépendante l’une de l‘autre». (André de MURALT,L’unité de la philosophie politique. . . , p. 150). A presença de Escoto em Ockham, no tocante à origem da propriedade e da propriedade privada, é igualmente sublinhada por José António de SOUSA, «Fundamentos éticos da teoria Ockhamista. . . », pp. 144ss.

50Cf. André de MURALT,L’unité de la philosophie politique. . . , p. 152. 51 Cf. Georges de LAGARDE,La naissance de l’esprit laïque au déclin de

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humano, e próprio. Neste exacto contexto, Ockham estabelece a diferenciação que favorece a noção de «história» no devir político do ser humano: a natureza humana antes e depois do pecado – e que subsistirá como estrato metafísico do seu pensamento político. No estado de inocência tudo pertencia a todos, não havia avareza ou concupiscência de possuir ou usar as coisas temporais contra a razão, e assim também não era necessário nem útil o domínio sobre as coisas materiais. Entretanto, sucedeu uma transformação radical, gerando-se e proliferando esse poder de apropriação dos bens temporais52. Como poderão, nopresenteestado, viver bem e

ordenadamente os homens, sem que as suas decisões sejam condi-cionadas por factores de ordem infra-humana, senão acentuando a natureza moral/individual da formação política?53

Para Ockham, tal como para Duns Escoto, a criação de um ser finito não requer forçosamente a intervenção de um Ser infinito. Politicamente falando, por motivo de estado – não por necessi-dade de natureza –, a causalidade divina outorga absolutamente

à causalidade humana «o poder de instituir governadores com

ju-52Propter hoc enim quod in eis nulla fuisset avaricia, vel contra racionem

rec-tam cupiditas possidendi vel utendi quamcumque re temporali, nulla fuisset tunc necessitas vel utilitas habendi proprietatem cujuscumque rei temporalis. Post peccatum autem, quia in hominibus pullulavit avaricia et cupiditas possidendi et utendi non recte temporalibus rebus, utile fuit et expediens propter pravorum immoderatum appetitum habendi temporalia refrenandum et excuciendam ne-gligenciam circa debitam disposicionem et procuracionem temporalium rerum, quia res communes a malis communiter negliguntur ut res temporales appro-prianrentur et non essent omnes communes.» (Breviloquium, III, 7).

53 Política e moral estão em perfeita relação. O puramente moral obriga e

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risdição»54, razão por que esse poder vem «imediatamente» dos

homens e só «mediatamente» de Deus (a deo et tamen ab ho-minibus)55.

Com efeito, o poder de domínio próprio é o que juridicamente se designa por «propriedade» (proprietas), e não existia antes da desobediência original. Trata-se do poder político, por excelên-cia: «poder principal de dispor das coisas temporais, poder que é apropriado a uma só pessoa, a um conjunto de pessoas ou a um colégio especial»56; certamente que tal poder pode ser maior ou

menor, mas saliente-se que ele é sempre imprescindível ao género humano, a fim de bem viver politicamente nesta vida (o bem viver manifesta-se indissociável do viver político).

Quer isto dizer que o rumo da filosofia política de Guilherme de Ockham continua a ser (a exemplo do período de Oxford) a liberdadeabsolutada vontade57.

Negativamente (naturalmente privado), o poder é necessário porque o homem tem o título depecador. No estado de inocência nem a inteligência nem a vontade haviam sido corrompidas pelo mal, nem estavam respectivamente condicionadas ao engano e às paixões desregradas. Não havia, pois, qualquer razão que justi-ficasse a existência da propriedade privada e jamais esta teria e-xistido se os nossos progenitores não houvessem pecado. Após o pecado, os homens tornaram-se ambiciosos, prepotentes,

avaren-54 «(. . . ) potestas instituendi rectores habentes jurisdiccionem temporalem

(. . . ).» (Breviloquium, III, 7).

55Breviloquium, IV, 3. 56Breviloquium, III, 7.

57 Cf. André de MURALT,L’unité de la philosophie politique. . . , p. 154.

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tos58: como poderiam então viver bem e em conjunto? Foi, por

isso, necessário útil e que as coisas temporais cessassem de ser co-muns, tornando-se apropriadas, a fim de não só se refrear essa von-tade imoderada mas também atenuar a negligência da devida dis-posição e procuração dos bens materiais, habitualmente cometida pelos homens que desprezam as coisas comuns, e que egoistica-mente não zelam nem cuidam daquilo que pertence a todos59.

Po-sitivamente (racionalmente provido) o homem aparece como um ser capaz de autonomia, mediante o direito de apropriação sobre os bens temporais, valor insubstituível do poder civil, o qual deve pre-sidir à organização da propriedade e da sociedade civil. É por isso que o império é um direito, isto é, o exercício de um poder positivo humano. São os homens – naturalmente privados mas racional-mente providos – que, de acordo com as suas conveniências e ne-cessidades, instituem governadores revestidos de jurisdição tempo-ral, imprescindíveis ao bem viver e ao viver político60.

O poder civil não é, pois, uma última determinação da causa-lidade divina, pela qual seria estee não aquele. O homem possui os meios necessários ao exercício da «recta razão»61. Aos que

de-fendem que o poder vem de Deus é preciso dizer que o poder vem também de outro distinto de Deus62. O Ser divino obriga sempre,

mas não para sempre (semper sed non pro semper). Com a liber-dade na causa está garantida a liberliber-dade nos efeitos. A liberliber-dade

58 Cf. José António de SOUZA, «Fundamentos éticos da teoria

Ock-hamista. . . », p. 155.

59Breviloquium, III, 7.

60«(. . . ) dedit ei potestatem pro se et posteris suis disponendi de terrenis que

racio recta dictaverit esse necessaria, expediencia, decencia vel utilia non solum ad vivendum sed eciam ad bene vivendum.» (Breviloquium, III, 7)

61«Propter quod subjungitur: Consilium et linguam et oculos et aures et cor

dedit illis exocogitandique scilicet necessaria sunt et utilia ad bene vivere tam solitarie quam politice et in communitate perfecta. Potestas autem appropiandi res temporales tam racionales, sicut uxores et natos, quam alias est inter neces-saria et utilia humano generi ad bene vivere (. . . ).» (Breviloquium, III, 7).

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humana, por ser o que é, não obedece a determinação prévia ( con-curso praevius). O Autor abriu caminhos de irrecusáveis reper-cussões no futuro (Lutero, Suárez, Hobbes. . . )63; restará saber se a

noção de poder, tematizada por Ockham, se encontra, ou não, on-tologicamente enraizada, porque, se não estiver, os perigos de uma demasiada fixação no homem/indivíduo persistem, gerando-se, por via disso, a dificuldade/impossibilidade de se poder identificar o seu verdadeiro plano metafísico.

63 Cf. André de MURALT,L’unité de la philosophie politique. . . , p. 146:

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