VERÔNICA DANIEL KOBS
BRASIL: NAS MELHORES LOJAS DO RAMO, EM LIVRO E DVD
CURITIBA 2009
Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor.
Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Prof. Dra. Patrícia Cardoso
AGRADECIMENTOS
A Deus, por ter me feito chegar até aqui.
Ao meu marido, Leonir Kobs, por ter me incentivado, desde o princípio, por ter compreendido os momentos de ausência, pelo amor diário e por sempre ter mostrado interesse, ao me ouvir falar de livros e filmes, durante estes quatro anos.
À minha orientadora, Patrícia Cardoso, pela inestimável colaboração na realização deste trabalho, pela disponibilidade e, principalmente, por ter respeitado e apoiado minhas escolhas, quando todos duvidavam de um projeto
―pretensioso‖ e ―grande demais‖.
A Naira de Almeida Nascimento e Renata Praça de Souza Telles, que participaram da banca de qualificação deste trabalho, pela atenção e pela relevância dos comentários que ajudaram a identificar os principais problemas a serem revistos.
A Benedito Costa, pela atenção, na hora de me ouvir falar sobre o projeto e no momento de conter minha ansiedade, no dia em que foi divulgado o resultado da seleção.
A Brunilda Tempel Reichmann, Sigrid Renaux, Mail Marques de Azevedo e Anna Stegh Camati, pelo estímulo constante e pela confiança que depositam em meu trabalho.
A Cesar Bolivar Daniel e Kelly Gutseit, pela correção do resumo em língua inglesa.
A meus familiares, por terem participado, de diferentes modos, desta etapa importante de minha vida.
A Thomas Prade, que não hesitou em contribuir, na segunda parte deste estudo,
com seu ―olhar estrangeiro‖ sobre o Brasil.
Somos o que somos, somos o que somos Inclassificáveis, inclassificáveis
(Titãs)
RESUMO
Este trabalho analisa textos literários que diferentemente contribuíram na formação da identidade nacional. A tese baseia-se, fundamentalmente, nos estudos de Stuart Hall, e divide-se em três partes. A primeira enfatiza o caráter múltiplo e móvel da identidade brasileira e investe na comparação dos livros selecionados e suas respectivas adaptações cinematográficas. A segunda parte promove uma reflexão sobre a permanência e a revisão dos clichês, na expressão da brasilidade, a partir da associação de leituras feitas por brasileiros a outras, de autoria estrangeira. Para aprofundar esse assunto, algumas considerações sobre Cidade de Deus, romance de Paulo Lins e filme de Fernando Meirelles, relacionam a representação do Brasil à repercussão dessa
―imagem‖ junto aos estrangeiros. Na última parte, alguns filmes são discutidos, para demonstrar que o cinema, mesmo sem uma base literária, tem forte apelo social, concorrendo decisivamente para o destaque da pluralidade como critério básico para a (re)construção da identidade nacional.
Palavras-chave: Literatura. Cinema. Adaptação. Identidade nacional. Alteridade.
ABSTRACT
This study analyses literary texts that by different ways contributed to the formation of the national identity. This thesis is based on the conception by Stuart Hall and has three parts. The first emphasizes the multiplicity and the permanent construction of Brazilian identity and establishes comparisons between some selected novels and their respective cinematographic adaptations. The second part instigates a reflection about the support and the review of clichés, on expressions of Brazilianism, combining Brazilian and foreign readings. To deepen that subject, some considerations about City of God, novel by Paulo Lins and film by Fernando Meirelles, relate the representation of Brazil to repercussion its abroad. In the last part, some films are discussed to demonstrate that the cinema (even without a literary basis) has strong social appeal and contributes decisively to the importance of the plurality as basic criterion for the (re)construction of national identity.
Keywords: Literature. Cinema. Adaptation. National identity. Alterity.
RIASSUNTO
Questo studio analizza testi letterari che da modi diversi hanno contribuito con la formazione di identità nazionale. La tesi è basata principalmente su concezione da Stuart Hall e è organizzata in tre parti. La prima sezione enfatizza la varietà e la costruzione permanente dell‘identità brasiliana e stabilisce paragoni tra i libri selezionati ed i loro rispettivi adattamenti cinematografici. La seconda parte istiga una riflessione riguardo alla permanenza e revisione di cliché, nelle espressioni di brasilianismo, combinando letture brasiliane e straniere. Per approfondire il tema, alcune considerazioni sul romanzo e sul film La città di Dio, da Paulo Lins e Fernando Meirelles, rispettivamente, relazionano la rappresentazione del Brasile alla ripercussione di quella ―immagine‖ fuori del Paese. Nell‘ultima parte, alcuni film sono discussi, per dimostrare che il cinema, anche senza una base letteraria, ha forte appello sociale e contribuisce decisivamente all‘importanza della molteplicità come criterio fondamentale nella (ri)costruzione dell‘identità nazionale.
Parole chiavi: Letteratura. Cinema. Adattamento cinematografico. Identità
nazionale. Alterità.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ………... 13
I. PALIMPSESTO BRASIL: LITERATURA E LEITURAS DO BRASIL / CINEMA E LEITURAS DA LITERATURA ………... 22
1. O FILME QUE LÊ O TEXTO QUE LÊ… ………... 29
1.1 LITERATURA E CINEMA: UMA RELAÇÃO PERMANENTE …………... 29
1.2 DO TEXTO LITERÁRIO AO FILME ………... 30
1.3 AS LINGUAGENS E OS RECURSOS DA LITERATURA E DO CINEMA ..33
1.4 A PALAVRA É… VISUALIDADE. ………... 37
2. ACHADOS DE UMA ESCAVAÇÃO ARQUEOLÓGICA ……….. 41
2.1 IRACEMA: EM BUSCA DO ELO PERDIDO ………... 41
2.1.1 Independência: E agora?... 43
2.1.2 A Iracema original: ―Ser mãe é padecer no paraíso.‖ ... 47
2.1.3 Uma mulher fatal, em meio a uma natureza exuberante: Iracema?... 53
2.1.4 Iracema em nova versão: A índia prostituída ... 57
2.1.5 Iracema às avessas ... 61
2.2 MACUNAÍMA: D. N. A. MESTIÇO ………... 63
2.2.1 E Macunaíma virou pop. ... 69
2.2.2 Duas tribos: O país é o mesmo, mas o índio… Quanta diferença! ... 76
2.2.3 O inferno da metrópole ... 83
2.2.4 Quem come quem. ... 92
3. SE DEUS É BRASILEIRO, O DIABO É MULHER. ………... 96
3.1 O PAGADOR DE PROMESSAS E TODOS OS SANTOS DA BAHIA …... 96
3.1.1 Quem está do lado de Deus? ... 101
3.1.2 Quando a diferença é o problema. ... 108
3.2 ENGRAÇADINHA: ANTES E DEPOIS DOS TRINTA ………... 112
3.2.1 O público: Espectador e personagem ... 118
3.2.2 Erotismo: Tabu e libertação ... 120
3.2.3 A desmistificação da família ... 123
3.2.4 A mulher é a chave. ... 128
3.2.5 O mundo dos contrastes ... 133
3.2.6 O peso e a leveza do erotismo ... 139
4. “CAPITALISMO SELVAGEM” ………... 148
4.1 ELES NÃO USAM BLACK-TIE: OPERÁRIO PATRÃO ……….... 148
4.1.1 Política, mulher e cotidiano ... 153
4.1.2 Fora de lugar ... 159
4.1.3 Trabalhadores, unidos, jamais serão vencidos? ... 163
4.1.4 Isto está no texto? ... 171
4.1.5 ―A luta continua.‖ ... 175
4.1.6 O povo ganha as ruas: ―Abaixo a ditadura!‖ ... 180
4.1.7 Muito tempo depois… Ditadura? ... 185
4.2 PASSADO NEGRO EM PAI CONTRA MÃE ………...191
4.2.1 ―Cada um no seu quadrado‖ ... 198
4.2.2 ―É dando que se recebe.‖ ... 202
4.2.3 Cadeia alimentar ...211
4.2.4 ―Se correr, o bicho pega. se ficar, o bicho come.‖ ... 216
4.2.5 A história da negra que queria ser branca. ... 222
5. “POLÍCIA É POLÍCIA. BANDIDO É BANDIDO.” (SERÁ?) ………... 230
5.1 PIXOTE: O OUTRO LADO DA HISTÓRIA ………... 230
5.1.1 Para uma maior ―impressão‖ de realidade ... 238
5.1.2 Ficção.doc ... 246
5.1.3 Com a palavra, os excluídos ... 256
5.1.4 ―Que país é esse?‖ ... 263
5.1.5 Documentários S/A ... 267
5.2 MUITO ALÉM DO CRISTO REDENTOR... CIDADE DE DEUS ………... 278
5.2.1 Realidade em páginas e em cena ... 287
5.2.2 Descendo e subindo o morro. ... 293
5.2.3 No filme, a coisa muda. ... 297
5.2.4 Quem está do lado da lei? ... 301
5.2.5 ―Era no tempo da rainha…‖ ... 306
6. QUEM FOMOS, QUEM SOMOS E AONDE CHEGAMOS. ………... 310
6.1 DUAS VEZES LELEU E LISBELA ………... 310
6.1.1 Criamos, mas também copiamos sim, e daí? ... 317
6.1.2 Metalinguagem e auto-reflexo ... 321
6.1.3 Simples assim ... 325
6.2 DESMUNDO: O PARAÍSO NÃO É AQUI. ……...………... 329
6.2.1 O futuro que há de vir. ... 332
6.2.2 Romance: Dialógico por natureza... 337
6.2.3 Uma questão de gênero ... 339
6.2.4 Brasil: Terra de todos e de ninguém ... 344
6.2.5 Condição estrangeira ... 350
6.2.6 Nos idos de 1570... ... 356
6.2.7 Período de recolonização? ... 360
6.2.8 O mal da História. Principal sintoma: Crise de identidade. Tratamento: Hipnose e regressão …... 364
II. ENTREATO: O BRASIL, OS BRASILEIROS E OS OUTROS …………...370
1. IDENTIDADE E RELAÇÕES DE ALTERIDADE: O “ALTER” E O “EGO” ... 372
1.1 BRASIL-TEXTO ………... 372
1.2 CLICHÊ: MOCINHO OU BANDIDO? ………... 380
1.3 LEITURA GRINGA I: OS DOIS LADOS DO BRASIL ………...………... 386
1.4 LEITURA GRINGA II: ―NEM TANTO AO CÉU, NEM TANTO A TERRA‖ ..390
1.5 LEITURA GRINGA III: ―VOCÊ JÁ FOI AO BRASIL? ENTÃO NÃO VÁ!‖ ...401
1.6 ERA UMA VEZ, NO PAÍS DOS CONTRASTES: O BRASIL PELOS BRASILEIROS. ………... 411
1.7 UM FILME QUE DEU O QUE FALAR. ………... 420
III. FESTIVAL DE FILMES BRASILEIROS. SÓ ROTEIROS ORIGINAIS. ENTRADA FRANCA. ... 429
1. CHANCHADA EM REVISTA ………... 431
1.1 QUE TAL UM CINEMINHA? ………... 431
1.2 THE AMERICAN WAY OF FAZER CINEMA. ………... 438
1.3 AVISO AOS NAVEGANTES: PREPAREM-SE PARA MUITA AÇÃO, ROMANCE E AVENTURA. ………... 449
2. (O CINEMA NOVO DE) GLAUBER ROCHA DECLARA GUERRA. ……... 459
2.1 UM CINEMA REALMENTE NOVO ………... 459
2.2 A ARTE COMPELATIVA DA REVOLUÇÃO ………... 463
2.3 OS FUZIS NO COMBATE AO ―DRAGÃO DA MALDADE‖ ………... 475
3. CULTURA DE RAIZ ………... 485
3.1 A VOLTA DOS QUE JÁ FORAM. ………... 485
3.2 BAILE PERFUMADO: LAMPIÃO REDIVIVO ………..………... 489
3.2.1 Da lama (e da fama) ao caos: Refazendo o mito. ... 495
3.3 A CARNE, EM A MARVADA CARNE ………….………... 501
3.3.1 Nóis fumo, mais nóis vortemo! ... 508
4. PERIFERIA EM DOIS TEMPOS ………... 516
4.1 TAKE 1: O BANDIDO DA LUZ VERMELHA ………... 516
4.1.1 A luz avermelhada sobre os fatos ... 523
4.2 TAKE 2: AMARELO MANGA ………... 530
4.2.2 Vermelho-sangue e amarelo-manga ... 535
5. EU TENHO… VOCÊ NÃO TEM. ... 543
5.1 CAPITALISMO PRIMATA EM TUDO BEM ..………... 543
5.2 O ADVENTO DOS SHOPPING CENTERS EM 1,99, O SUPERMERCADO QUE VENDE PALAVRAS (OU: O MURO DE BERLIM NÃO CAIU.) .………... 551
5.3 O DILEMA DE O OUTRO LADO DA RUA: O QUE TEMOS E O QUE QUEREMOS. ..………... 560
CONCLUSÃO ………... 565
REFERÊNCIAS ………... 571
1. MATERIAIS IMPRESSOS E ELETRÔNICOS ... 571
2. FILMES ... 585
INTRODUÇÃO
Brasil: nas melhores lojas do ramo, em livro e DVD. Com este título, tentei já deixar algumas coisas claras sobre os assuntos desta tese. Relacionando duas artes, meu principal objetivo é pensar a identidade nacional, a partir de algumas representações do Brasil, no cinema e na literatura. Mas um título funciona como síntese. Sempre é necessário explicar mais, para dirimir dúvidas ou desfazer possíveis mal-entendidos que possam surgir, durante a leitura. Bem, o que o título não diz é que ao grande tema da identidade relacionam-se outros, como o vínculo interartes estabelecido pelas adaptações, a questão da alteridade e os diferentes modos de representação da brasilidade.
Imagino que o leitor deve estar surpreso, como tantos outros, que, depois de ouvirem o tema, quando a idéia era apenas um esboço de projeto, já na forma de pré-projeto, na ocasião das sucessivas etapas da seleção para o Doutorado em Estudos Literários, ou, ainda, quando já tinha sido reescrito e a tese começava, enfim, a tomar forma, diziam-se assustados com a vastidão do trabalho e perguntavam sobre a delimitação do tema (o dito ―recorte‖). Outros queriam apenas saber se eu tinha consciência do tamanho da ―empreitada‖. E havia, ainda, aqueles que me olhavam, concordando com tudo o que eu falava, afinal, quando se percebe que alguém é louco, é melhor não contrariar!
Mas aqui eu tenho linhas suficientes para explicar o que não pude, em alguns minutos de conversa, e para provar minha sanidade. De fato, meu projeto era longo, assim como a tese, que, pelo número de páginas, não me deixa mentir. Também não há um recorte usual, tipo padrão, que combina com a eleição de alguns poucos tópicos, a serem aprofundados no decorrer do estudo.
Minha opção foi pela multiplicidade e a principal vantagem disso é que o
tamanho combina com o tema, suficientemente amplo. Então, não se tratava
apenas de escolher um par livro/filme e aprofundar a análise. Minha idéia não
era muito diferente dessa, mas é preciso ressaltar que, neste estudo, os livros e
os filmes não são o tema, mas exemplos selecionados cuidadosamente, durante
mais de um ano, para aprofundar o tema da identidade nacional. Sabendo, de antemão, da variedade e da complexidade que seriam exigidas, na abordagem desse assunto, tentei fazer com que a multiplicidade de obras escolhidas pudesse representar a vastidão do conceito que me interessava.
Dessa forma, abri mão de algumas discussões, mais complexas, ou simplesmente infinitas, a fim de não perder de vista o que já tinha priorizado. Por isso, deixei de lado, por um bom tempo, a problemática da mimesis e as relações entre realidade e ficção, até que, ao fim e ao cabo, foi inevitável tocar no assunto. Esta introdução tratará disso, mas apenas porque as análises feitas, ao longo de todo o trabalho, não cansam de fazer referência ao vínculo entre arte e contexto, à influência social da arte e ao intrincamento ou à clareza que caracteriza as representações do país, que, afinal de contas, é real! Essa tentativa de fuga, então, resultou em fracasso, mas outra deu muito certo.
Refiro-me à ausência proposital de uma discussão que confrontasse os conceitos de nacional, nação e brasilidade, que, se surgisse, em qualquer capítulo, desviaria do obejtivo da análise das representações, tanto no quesito brasilidade como no quesito diálogo interartes, além de ir de encontro à opção (feita desde a elaboração do projeto) de restringir ao máximo as digressões e os aportes teóricos.
Apesar de ter plena consciência da subjetividade das escolhas e de ser
quase inevitável ao leitor perguntar por que escolhi essas obras, e não outras,
tomei a liberdade de me antecipar e, pensando sobre o que condicionou minhas
escolhas, acho que formulei uma resposta razoável (a mais completa que
consegui). Mudei a lista inúmeras vezes, revi filmes, reli livros, assim como
também acabei indo atrás de obras que ainda não conhecia, para tentar ―errar
menos‖. Entretanto, um dia minha orientadora fez com que eu me desse conta
de que era hora de parar as buscas e, finalmente, tomar as decisões, afinal, eu
mesma havia me imposto esse desafio. Além disso, mesmo que eu gastasse
todo o tempo do mundo, ainda seria pouco, já que nenhuma lista agradaria a
todos. Sendo assim, dei a lista por terminada e tratei de justificá-la.
Dos temas, tratarei mais adiante, ainda nesta introdução, mas posso adiantar que eles também orientaram minhas escolhas. Os outros critérios foram o conhecimento que eu tinha das obras e o fato de, dentre as que eu conhecia, essas, e não outras, terem sido percebidas como aquelas que mais iam ao encontro de meus interesses e de minhas leituras, pois, como acontece com qualquer pessoa, havia obras que eu terminava de ler ou ver e não conseguia desenvolver uma análise razoável sobre elas, ao passo que outras me pareciam mais fáceis e convidativas. Nesses casos, quando eu redigia o esboço do texto que corresponderia a determinado livro ou filme, a lista de tópicos era imensa, bem como as relações possíveis com outras obras. Como se vê, todas as escolhas são subjetivas. Pensei que talvez a salvação estivesse nos temas, mas esse critério também é subjetivo, já que todos eles não passam de tópicos que eu associo à identidade nacional.
Outra coisa que também não foi fácil explicar à maioria das pessoas foi o fato de eu não ter me restringido à concepção de apenas um teórico para resumir a idéia desta tese. No entanto, seria incongruente discutir um tema tão amplo com base em um único autor, ainda mais que não se trata apenas da identidade. Há também as adaptações, a alteridade… Dessa forma, para poder falar das teorias que me auxiliaram, é preciso ir por partes. Consultei vários livros, de diversos autores, mas posso dizer que: a questão da identidade baseei fundamentalmente nos estudos de Stuart Hall; a relação interartes cinema/literatura foi discutida à luz de Júlio Plaza; as representações do Brasil, tanto literárias como fílmicas, contaram com o respaldo da Estética da Recepção; na literatura, dediquei atenção especial aos textos de Antonio Cândido; e, quando o assunto era cinema, recorria freqüentemente aos estudos de Ismail Xavier.
Pela breve apresentação dos principais autores consultados, fica claro
que este trabalho, além de associar cinema e literatura, relaciona-se à História e
à disciplina que hoje é conhecida como Estudos Culturais. Chego a pensar que
esses elos que a literatura estabelece com diferentes áreas é mais um indício da
dissolução das fronteiras que a sociedade em geral tem experimentado, nesses
tempos de globalização. Porém, apesar de reunir, aqui, áreas distintas, a literatura será privilegiada. Aqui, peço licença para abrir um parêntesis não tão breve sobre a relação da literatura com a História e com o cinema. Ao contrário do que muitos podem vir a pensar, depois de ler este estudo, ele não se resume a uma historiografia. Aproveitemos essa afirmação categórica, para fazermos o tão citado ―pacto‖ que deve anteceder toda leitura. O fato de a primeira parte do trabalho elencar análises que vão da década de 60 até chegar a produções bastante recentes e de a última parte começar com o período áureo das chanchadas e terminar com o diálogo entre um filme de Arnaldo Jabor e dois filmes lançados no século XXI não significa uma preocupação em recuperar uma ordem histórica e linear da literatura e do cinema. Essa estrutura obedeceu apenas a um critério didático de organização e acabei optando pelo mais óbvio deles. Um exemplo que pode ajudar a esclarecer qual seria minha concepção de História é a organização de cada capítulo, que privilegia diálogos que muitos consideram inusitados, como, por exemplo, a comparação entre Desmundo, Lisbela e o prisioneiro e com a quase sempre incômoda Carlota Joaquina. E o que dizer da aproximação entre Eles não usam black-tie e O que é isso companheiro? Bem, vou parando por aqui, pois a parte da apresentação dos livros e filmes ainda está por vir.
Vamos ao segundo ponto: a relação com o cinema. Apesar de eu sempre ter feito breve menção ao lugar de destaque destinado à literatura, muitas pessoas que conheceram mais sobre a tese (ou de me ouvir falar sobre ela, ou porque tiveram de avaliá-la) desconfiaram desse espaço privilegiado da literatura, como se fosse mero (e vão) esforço meu de dizer: ―Olha, não me esqueci de que o meu doutorado é em Estudos Literários.‖ Nesse ponto, pedirei outra licença, mas agora para fazer minhas as palavras de Machado de Assis:
―Valha-me Deus! é preciso explicar tudo.‖
1E, para explicar, vou me repetir, acrescentar mais alguns detalhes e até usar o itálico para dar a ênfase necessária à afirmação. Esta tese não é sobre cinema. A literatura e sua efetiva e continuada presença na sétima arte é que
1 O trecho citado encerra o capítulo 138 de Memórias póstumas de Brás Cubas.