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A epistemologia “negativa” de Michel de Certeau

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A epistemologia "negativa"

de Michel de Certeau

jihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Vir g ín ia A. C a s tr o B u a r q u e

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Professora da Universidade Federal de Ouro Preto

RESUMO: Michel de Certeau, ao longo de trinta anos, refletiu sobre a crença

reli-giosa - destacadamenre acerca da experiência mística católica -, numa perspectiva que

priorizava o sujeito como produror de significados, sobretudo através de sua prática

discursiva. Neste ensaio, buscamos sistematizar algumas das concepções epistemológicas

desenvolvidas por Certeau em sua interpretação da espiritualidade,

inter-relacionando-as a matrizes teóricinter-relacionando-as e a procedimentos metodológicos dialogantes com o saber

histo-riográfico.

PALAVRAS-CHAVE: Michel de Certeau, epistemologia, historiografia religiosa.

RÉSUMÉ: Durant une trentaine d' années, Michel de Certeau a réfléchi sur Ia

croyan-ce religieuse - notamment sur l'exprérience mystique catholique -, en une perspective

qui accorde Ia priorité au sujet en tant que producteur de signifiés, en particulier par

l'intermédiaire de sa pratique discursive. Dans cet essai, nous cherchons à systématiser

quelques-unes des conceptions épistémologiques développées par Certeau concernant son

inrerprétation de Ia spiritualité, tout en Ia reliant à des matrices théoriques et à des

procé-dures méthodologiques qui établissent un dialogue avec le savoir historiographique.

MOTS-CLÉS: Michel de Certeau, épistémologie, historiographie religieuse.

1. "NÁ

UTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

O S E M T I "

Em 9 de janeiro de 1986 - portanto, há aproximadamente vinte e

um anos - falecia Michel de Certeau, atingido por um câncer no pâncreas.

Logo após sua morte, foram lançadas várias coletâneas sobre este autor, a

maioria das quais o descrevia como um "viajante" ou "andarilho": jesuíta de

formação interdisciplinar (historiador, antropólogo, semiólogo, filósofo,

te-ólogo, além de fundador da Escola Freudiana de Paris, embora não fosse

psi-canalista), este autor viveria em uma incessante transposição das fronteiras

do conhecimento e das instituições, entremeando distintas interrogações.

(2)

A ompreen ão de ert au a r a da int .rdi iplinaridad não

atinha, contudo, ao sentidos recorrente do termo, empregado tanto no

entido de "empréstimos conceituais" sem sisternaticidade teórica, quanto

na perspectiva de uma aglutinaçâo de campos de saber, mediante a qual

superar-se-ia a fragmentação do conhecimento científico contemporâneo.

Daí a crítica feita por Certeau a determinadas concepções das "ciências da

religião", pois, "à Ia différence des sciences [humaines], elles n' avaient pas

[... ] une formalité propre. Elles forment des mixtex, Elles ont pour

caracté-ris tique une sorte de mollesse épistémologique".'

Justamente por sua ousadia, crítica e criativa, no entrecruzamento

de questões e de registros (teológicos, jurídicos, médicos ... ), mas sem

ja-mais deixar de reconhecer-se como historiador, Certeau tornou-se alvo não

somente da indiferença, mas também das suspeitas quanto à legitimidade

de sua reflexão, provindas tanto da academia francesa quanto do instituto

religioso ao qual pertencia." Face a tal isolamento, delineou-se, em suas

bio-grafias póstumas, a imagem de um intelectual infatigável, que a despeito dos

golpes recebidos, continou em seu percurso até o desfecho trágico da morte

prematura - um

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m a r c h e u r b le s s é . Considero, todavia, que Certeau jamais

se reconheceria como "mártir", símbolo de uma vitimização do

pensamen-to em uma pós-modernidade que exalta o novo, desde que previamente

inscritos nos circuitos da informação e do mercado, isto é, palatável como

consumo. Em meu entender, o desgaste intelectual e reflexivo de Certeau

mostra-se indissociável de seu entendimento acerca da condição humana

e da história, continuamente ressignificadas por ele a partir de seus limites

intrínsecos, ou seja, da impossibilidade (salutar) de uma absolutizaçâo da

cultura e do poder em sistemas "universais":

"[ ... ) leva a história a se tornar um trabalho sobre o limite: a se situar

com relação a outros discursos, a colocar a discursividade na sua relação

com um eliminado, a medir os resultados em função dos objetos que lhe

escapam [... ). De agora em diante, 'o problema não é mais da tradição e

do vestígio, mas do recorte e do limite'."!

Foi este reconhecimento do limite como premissa de

inrelígibilida-de da realidainrelígibilida-de histórica que conduziu Michel de Cerreau a considerar, de

forma concornitante, a experiência vivida como uma p r a xis relacional e o

conhecimento científico, sobre ela constituído, como um diálogo com a

al-reridade." Assim, para Certeau, a historiografia se constitui numa "heterolo-gia" ( fo g o ssobre o outro): um saber que, " p o r ta d o r d e u m o lh a r e tn o g r á fic o " 5 ,

lançado na temporalidade, volta-se para o que destoa dos modelos

estabele-232

UTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

T R A J E T O S - R e v i s t a d e H i s t ó r i a d a U F C , v . 5 , n . 9 / 1 0 , 2 0 0 7

it s ,. q lii I qll r ar a atrav ~~d ( ) ~qu . u lI ()~i n s i iI I I. i o n a i s ,S '111 Ill't '~~,l·

riam erue r mpê-]

Tal premi a aplica- e, de man ira ingular, à hi t ri grahu r 'ligio

a, tão cara a Michel de erteau, que empenhou- e em elu idar s r u i d o

do cri tianismo como "religião da Alteridade". Não ca ualm nt, rt \1\1

retoma da obra de Heidegger a expressão "Nicht Ohne", a qual traduziu

como "Não sem Ti"6, associando-a àpassagem de uma antiga pre e ri.ta

"Que eu não seja separado de Ti".7 A partir desses elementos, erteau ns

tituiu um modelo de interpretação histórica do cristianismo, pautado num.

dupla negação ("não sem"): assim, o Outro não está alhures, e sim in erid

no mundo, estando em contínuo afloramento nas muitas singularidade,

estabelecendo uma ligação entre todas as coisas.

Tomando-se como fundamento esta dimensão relacional do

hu-mano e do religioso, é possível delinear uma segunda assertiva de Michel

de Certeau acerca da história do cristianismo: sem negar a especificídad

da experiência de fé (pelo contrário, endossando-a), este autor destacava a

crucial articulação entre crença e poder (este não entendido apenas como

dominação, mas também como promoção de novas realidades e resistência

a elas). Assim, sobre Certeau, afirma Luce Giard:

Pariam du christianisme, il revenait souvent Sut le sens etymologique d '

deux mots clés: 'religio', 'ce qui relie, rassemble' et 'absolu', 'Ie délié, sépa

ré'. Sa maniêre de penser et de croire dépendait des deux: d'un coté, I

rapport aux autres, ou je reconnais 'le politique'; de l'autre, Ia rélation à

qui, de plus autre, reste hors d'atteinte du désir, ou je vois 'Ie rnystique'."

A relação tensional entre o crer e o poder, entre a fé e a política,

perpassou toda a vida de Michel de Certeau. Nascido em 17 de maio de

1925, na cidade de Chambéry, região francesa da Savóia, foi educado em

ambiente de expressiva religiosidade católica. Quando adolescente, três

per-cursos bastante distintos o haviam atraído: a espiritual idade (sob o viés do

radicalismo conternplativo da Cartuxa),? o embate político (interesse

poste-riormente retomado através dos cursos de Roland Mousnier) e os estudos da

ciência física. Tendo optado pela carreira eclesiástica, ingressou no

seminá-rio de Issy-les-Moulineaux, em 1944, mas, atraído pela "nova teologia" do

pós-guerra (a qual embasaria as mudanças suscitadas pelo Concílio Vaticano

11, quase duas décadas depois), Certeau pediu transferência para o seminário

de Lyon, onde conheceu o jesuíta Henri de Lubac. Este encontro suscitou

uma alteração decisiva em sua trajetória biográfica, que, em 1950, ingres ou

na Companhia de Jesus, passando, em paralelo, a expressar o desejo de ser

missionário na China.

(3)

Tal opção exigiu de Michel de Certeau o recomeço de seu

pro-e so dpro-e formação religiosa, só concluído com sua formação em teologia,

em Fourviêre, em 1956. Uma vez ordenado, Certeau integrou a equipe da

n va revista

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C h r is to s , editada pelos jesuítas, vindo também a participar do

projeto de reconstituiçâo historiográfica da espiritualidade inaciana,

promo-vido pela Companhia. Neste mesmo período, Certeau ingressou no curso

de doutorado em Ciências da Religião na Universidade de Paris V, cuja

con-lusão, em 1960, foi acompanhada pela publicação de seu primeiro livro,

relativo à temática de sua tese, uma introdução comentada ao L e M é m o r ia l

d e P ie r r e F a vr e , companheiro de Inácio de Loyola. Mas a grande e inacabada

obra da vida de Certeau foi dedicada a um outro jesuíta do século XVII, o

mí tico jean-joseph Surin, exorcista de Joana dos Anjos, cujos textos foram

interpretados em G u id e S p ir itu e l d e J e a n - J o s e p h S u r in , editado em 1966,

bem como no importante capítulo introdutório de C o r r e s p o n d a n c e ,

tam-bém publicado neste ano. O domínio de Certeau sobre a temática mística,

experiência que despontou no catolicismo entre os séculos XIII e XVII, foi

novamente expresso na obra L a P o s s e s s io n d e L o u d u n , de 1970.

Devido à sofisticação da análise textual empreendida por Certeau,

cntrecruzando textos em diferentes idiomas, redigidos em distintos reg' tros

de saber (discursos teológicos, medicos, jurídicos ... ), este primeiro c o r p u s

de produção historiográfica é geralmente caracterizado, em suas coletâneas

e biografias póstumas, como um primado da erudição. Entretanto, é

impor-tante realçar que já nestes textos emerge a dimensão política do pensamento

de erteau, pois, para ele, a mística deveria ser entendida como expressão de

uma realidade histórico-cultural (ao invés de um fenômeno antropológico

concernente ao humano), mostrando-se indissociável da constituição de

subjetividades e poderes - afinal, a mística, ao mesmo tempo e

paradoxal-mente, reiterava e subvertia a ordem sócio-religiosa.

Todavia, antes mesmo da edição deL a P o s s e s s io n d e L o u d u n , Certeau

promovera uma guinada na temática de suas reflexões, em decorrência dos

movimentos que eclodiram em Paris em maio de 1968. Face às inquietudes

do tempo presente, as quais permitiam vislumbrar o pontencial irruptivo do

a ontecimento, deslanchador de transformações sociais (ótica contraposta

ao formalismo estruturalista), Certeau escreveu alguns artigos publicados na

r 'vi taÉ tu d e s , editados no livro L a P r is e d e p a r o le , ainda em 1968. Para

Cer-t.au, o evento emergia como uma "ruptura instauradora", que autorizava o

novo: ''A cet égard, elle n'apparait qu'aliénné dans ce qu'elle permet, mais

par e qu' en en elle-rnême elle reste autre, irréductible à un savoir. Elle est Ia

ondition et non l'objet des operations qui en découlent"."

A partir de então, Certeau editou algumas obras consideradas

polê-micas, inclusive por muitos jesuítas: L ' É tr a n g e r ( o u I ' U n io n d a n s I a D i/fé r e n

-c e ) ,em 1969; L ' Ab s e n t d e l' H is to ir e , em 1973; L e C h r is tia n is m e Éclaté, escrito

em colaboração com Jean-Marie Domenach, em 1974; P o litic a e m ís tic a .

Q u e s tio n i d i s to r ia r e lig io s a , editado em Milão, no ano de 1975. Além desses

livros, Certeau dedicou-se intensamente à publicação de artigos,

principal-mente nas revistas E s p r it, R e c h e r c h e s d e s s c ie n c e s r e lig ie u s e s eR e vu e d ' a s c é tiq u e

e t d e m ys tiq u e , atividade que exerceu em conjunto com sua função de

co-diretor da coleção Biblioteca das Ciências Religiosas. Assim, sem deixar de

reconhecer seu pertencimento à tradição católica, Certeau distanciava-se de

um discurso teológico que se considerava monolítico e detentor de uma

va-lidade universal. Em dinâmica complementar, Certeau também afastou-se

de interpretações globalizantes do fenômeno religioso teci das pelo ambiente

universitário, expressas seja pela antropologia simbólica de Alphonse

Du-pront, seja pela noção weberiana de secularização, seja ainda pela oposição

individualismo/holismo formulada por Louis Dumont, preferindo destacar

as particularidades ("os desvios") das experiências surgidas no bojo do cris-tianismo.

A partir de meados da década de 70, os artigos de Certeau sobre a

fé e o cristianismo começaram a escassear, sem que, com isso, cessassem suas

indagações acerca do ato de crer, não redutíveis a um sistema de crenças nem

ao espaço das igrejas instituídas. Na especiíicidade de sua nova dinâmica

in-vestigativa, Certeau então configurou uma "antropologia do crer", pautada

no estudo das práticas e das enunciações: "[ ... ] entendo por crença não o

objeto do crer (um dogma, um programa etc.), mas o investimento das

pes-soas em uma proposição, o a to de enunciá-Ia considerando-a verdadeira

-noutros termos, uma "modalidade" da afirmação e não o seu conteúdo".

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1 1

O deslocamento do objeto de investigação do religioso para o

só-ciocultural pode ser parcialmente atribuído à relevância assumida pela

ques-tão política, com diferentes setores da in te llig e n ts ia francesa contestando

de forma mais explícita os totalitarismos vigentes em regimes de direita e

esquerda nos diferentes continentes. O poder passa então a ser abordado

por Certeau a partir da instituição, então conceituada como um "lugar",

isto é, um espaço temporalizado, suscitador de práticas a serem promovidas

ou, contrariamente, interditas, as quais, por suas vez, não deixavam de er

incessantemente deslocadas e refeitas na vivência cotidiana. Por

conseguin-te, entre 1973 e 1975, Certeau promoveu uma inquirição sobre diferente

lugares de saber-poder, conferindo especial atenção às operações

produto-ras do conhecimento histórico, esforço que culminou no famoso text " A

(4)

operação hísroriogrãfica", publicado de forma parcial na obra coletiva

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F a ir e I a H is to ir e , em 1974, e de maneira integral, no livro A e s c r ita d a H is tó r ia ,

em 1975. Neste mesmo ano, Certeau editou U n e P o litiq u e d e I a la n g u e . L a

R é vo lu tio n F r a n ç a is e e t le s p a to is , em colaboração com Dominique Julia e

Jacques Revel, que fora antecedido pela edição de L a C u ltu r e a u P lu r ie l, em

1974. Verifica-se, portanto, uma paulatina penetração de Certeau no meio

universitário francês, inclusive no grupo dos Annales que buscava associar

sua identidade àemergência de uma "nova história" (Jacques Le Goff, Pierre

Nora ... ), embora entre a cúpula da revista (especialmente nos artigos de

Fernand Braudel e Emmanuel Le Roy Ladurie) perdurasse o silenciamento

acerca das contribuições de Certeau ao pensamento hístoriográfico.

Desde meados da década de 70, Certeau deslocou-se para o

estran-geiro, dedicando-se ao ensino: Genebra, 1977-78; Califórnia, 1978-84.

Dessa ~aneira, embora nunca tenha ido à China, como almejara um dia,

nem a Mrica, onde a Companhia havia cogitado enviá-Io, Certeau não só

conhecia bem a Europa, como também percorreu o continente americano,

em estadas iniciadas em 1966. No decorrer dos anos 70, mesclando viagens,

ensino e pesquisa, Michel de Certeau desenvolveu duas reflexões

considera-das basilares ao pensamento historiográfico contemporâneo: uma

interpre-tação sobre a mística (culminando na edição de L a F a b le m ys tiq u e , primeiro volume, 1982) e outra acerca dos fazeres cotidianos ( L 1 n ve n tio n d o Q u o

ti-d ie n , primeiro tomo, 1980); um derradeiro livro foi publicado por Certeau

em 1983, L ' O r d in n a ir e d e I a C o m m u n ic a tio n , em parceria com Luce Giard.

Em 1985, Cerreau retornou à França, pois fora convidado pela EHESS a

assumir o cargo de professor e "diretor de estudos" - um reconhecimento

finalmente obtido -, mas, neste mesmo ano, foi atingido pela enfermidade,

vindo a falecer em seguida. Um ano após sua morte, em 1987, foram publi-cadas importantes coletâneas de seus textos, como H is to ir e e t P s yc h a n a lis e , e n tr e s c ie n c e e t jic c io n , eL a F a ib le s s e d e C r o ir e .

O conjunto da obra de Michel de Certeau, portanto, não se atérn

a uma ternática única, sequer a uma temporal idade específica (pois as áreas

de interesse deste autor iam desde os "espirituais" do século XVI até a crise

do cristianismo contemporâneo), e tampouco formam um corpo teórico

istematizado. A despeito disto, selecionei algumas das mais importantes

concepções e as noções operatórias teci das por ele, buscando articulá-Ias

num quadro epistemológico que viabilizasse a interpretação historiográfica

da religiosidade cristã. A síntese aqui apresentada é um primeiro esboço

desta tentativa.

2."EPISTEMOLOGIA NEGATIVA"

Para Certeau, o discurso historiográfico, inclusive aquele de

temári-ca religiosa, é constituído sobre uma ausência: a perda de uma realidade

o-bre a qual se fala. Assim, vinculado àrelação entre a temporal idade presente

e uma outra, distinta daquela vivida pelo historiador (mas que pode ser-lhe

concomitante na cronologia), o saber histórico nasce da morte de um real :

Quelque chose s'est perdu qui ne reviendra pas. Lhistoriographie est une

maniêre conternporaine de pratiquer le deuil. Elle s'écrit àpartir d'une

ab-sence etelle ne produit que des simulacres, si scientifiques soient-ils. Elle

met une représentation à Ia place d'une séparation. (... ) Certes il

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y a une

évidente continuité de Ia religion (ou de Ia mystique) àI'historiographie

puisque tour àtour elles ont pris en charge Ia relation qu'une société

en-tretient avec ses rnorts (...)" .1 2

Retomando então do "país dos mortos", o historiador assume como

tarefa falar do sentido tornado possível pela própria ausência,

sucedanea-mente ocupada por um discurso.

Outrossim, para Certeau, quanto mais a ciência histórica sofistica

suas teorias e desenvolve seus métodos, mais crescem as zonas silenciosas

que ela não atinge - há uma relação indissolúvel entre a razão científica e

as inteligibilidades que ela ignora ou exclui. E o religioso é um dos campos

mais envoltos por essa estranheza, o que torna a historiografia religosa um

discurso de fronteira, um trabalho sobre o limite do que é possível apreender

e interpretar.

Devido àênfase conferida por Certeau ao aspecto lacunar da

inteli-gibilidade do real, Dominique Bertrand qualificou a obra de Certeau como

uma "teologia negativa", 1 3 Ora, a partir da proposição de Bertrand,

consi-dero que a obra de Certeau porte uma fundamentação epistemológica

cor-respondente, que denomino "epistemologia negativa". Desta maneira, em

suas interpretações sobre a escrita mística, Certeau configurava a realidade

como o sentido religioso constituído pelos diferentes grupos sociais, numa

determinada temporalidade histórica e, paralelamente, ele reconhecia esse

sentido como uma "ausência", "lacuna" ou "falha" no imaginário religioso - "récusée l'idée de systêrne, Ia nostalgie du concept englobant (... ) (est) un

vide essenciel, interne à Ia pensée même; celle-ci n' est plus ni le réceptacle,

ni le miroir du monde ou du temps; elle n' en pas davantage Ia forme interne

C .. )

ces cohérences régionales (sont) brisées par de brusques passagens non

rransirionnels"."

(5)

Tal ausência, porém, interior à crença religiosa, pode, por vezes, revestir-se do aspecto inverso e, aparecendo como um "excesso" ou

"trans-bordamento", vir a revelar a carência de uma estrutura de significação

in-suficientemente ampla para contê-lo: "Il est plurôt de I'ordre de I'excess et

de I'ouverture. C' est une pure dépense. Elle est déraison, parce qu' elle n' esr

pas rentabilisable. Départ et surcroir, geste poétique de ouvrir I'espace, de

passer Ia fronriêre, de jeter par Ia fenêtre, de risquer plus (...)".15 E é

justa-mente esta ausência (ou excesso) que, sem negar ou romper com a

religiosi-dade existente, permite a constituição de "brechas" em seu interior, de onde

emergem o novo e as diferenças - "n'est pas là passivité, mais combat pour

faire place à d' autres, dans le discours, dans Ia collaboration collective (... )

Il ne se produit que partiellernent; il rest relatif à Ia place particuliêre qu' on

occupe. Il n'est jamis fini. Il est perdu, heureusemet noyé dans l'immensité

de l'histoire".

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1 6

Tive grande dificuldade para, saindo de um estilo metafórico,

pro-mover uma conceitualizaçâo mais rigorosa desse sentido enquanto

ausên-cia, pois, ao ser teoricamente delimitado numa categoria, ele adquire um

estatuto de positividade que contrapõe-se às suas principais características,

a da mutabilidade e da transposição incessante. A alternativa que encontrei

para superar esse impasse, ainda seguindo os passos de Certeau, foi a de

associar o sentido religioso a uma tríade sígníficanre, articuladora da

expe-riência vivida (entendida enquanto "falta"), do discurso sobre tal realidade

(uma "enunciaçâo", mais do que um enunciado/doutrina), e de um lugar de

saber-poder (consubstanciado em uma "tradição"). No encadeamento desta

tríade, encontra-se a ação significante do sujeito, que não existe de forma

apriorística as suas práticas de perceber a ausência, significá-Ia em um relato,

situá-Ia em relação a um sistema/instituição - o sujeito, portanto, é

entendi-do na performatividade histórica de seu existir.

Esta tríade, por sua vez, encontra-se em continua dinâmica

atra-vés de rnodalizaçôes - como o dever, o crer, o querer. .. Os verbos modais

são considerados por Certeau um complemento lingüístico de fundamental

importância, pois eles alteram, em grau, o objeto ou o predicativo da

ora-ção, maximizando a atuação desempenhada pelo sujeito.'? Desta maneira,

aproximo-me da hipótese formulada por Eduardo Gusmão, para quem

Cer-teau:

[... ) propõe um modelo interprerativo/explicativo, que incorpora

pers-pectivas estruturais no ato de conhecer e problematiza de maneira distinta as relações do sujeito com o real. [... ) Na herrnenêutica certeauniana, o real vem antes, envolvendo o sujeito. Não é simbolizável, porém

consti-238 T R A J E T O S - R e v i s t a d e H i s t ó r i a d a U F C , v . 5 , n . 9 / 1 0 , 2 0 0 7

tuinte daquilo que podemos denominar modos de produção do aber. () sujeito é atravessado pela linguagem, é cindido pelas ausências q~.e geram a ordem simbólica. Então, através do nível simbólico, ele constrói Imag.ns do objeto que pertence ao real. Os espaços vazios entre eles devem er pre

enchi dos para que hajaenunciaçâo do saber. Isso significa que ausên iasc

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c d ' . d i 18

presenças irão formatar orererente as praticas e iscursos.

Em relação à configuração epistêrnica proposta por Gusmão,

ape-nas destaco a dinâmica de reciprocidade tensional que perpassa a tríade p r

mim delineada: se o sujeito, em suas práticas, é historicamente

perforrnati-vo, significando o real (e seus limites) em um relato, e situando tais

repre-sentações em um sistema de sentido (um imaginário social), ele também é

afetado por tais produções, uma vez que, ao serem formuladas, elas passam

a constituir-se em um real simbolizado. Logo, a importância portada

pe-los discursos e pelas tradições, e não apenas pela experiência diretamen te

vivenciada, na constituição das subjetividades e no exercício dos podere,

institucionais e cotidianos. Daí, mais ainda, a relevância de uma produção

historiográfica sobre tais discursos e tradições, a qual disponibiliza ao sujeito

maiores condições de reflexão, escolha, apropriação e transformação de te

real simbolizado.

A interpretação da experiência religiosa, da forma como foi de

senvolvida por Michel de Certeau, assumiu, portanto, contornos da razão

herrnenêutica e do enfoque existencialista, uma vez que estas duas verteu

tes realçam as especificidades, para as plural idades e para as articulaçôe

ti'

sentido, ao invés de promoverem uma leitura nomológica do real, mais for

malisra e universalizante.19 Neste sentido, Certeau relativiza, sem romper d '

todo, com o pensamento estruturalista (foi grande seu interesse pela lingü

ística de Greimas) e pela ótica marxista, ambos hegemônicos nas décadas de

60 e 70. Desta maneira, a leitura de alguns autores mostrou-se importante à

formulação do pensamento de Certeau, tanto no campo da filosofia (com

Merleau-Ponry, Levinas), da linguagem (sobretudo Wittgenstein) e da p

i-canálise (com destaque a Freud e Lacan).

Na busca de deslindar as matrizes de tal "epistemologia negativa",

pude identificar, com base na bibliografia disponível, dois autores

fui

rais

ao pensamento de Certeau. O primeiro deles é Hegel, de quem ertcau

teria retirado, segundo Dominique Bertrand, a expressão "trabalho d nc

gativo" (Hegel a emprega sob a terminologia "históri~ efetiv~").2(: A ICil,lIl'a

dos textos hegelianos teve um lugar central na formaçao do Je uuas apos ,\

li Guerra Mundial e, embora entre o pensamento hegeliano e o de .crt \\11

haja muitas discrepâncias - Hegel endossava uma visão rotalizanre • icl ' 0 1 0

(6)

gica da história, enquando Certeau afirmava a imponderabilidade _ ambos

destacavam o que existe enquanto ausência, além é claro, da marca da

hisro-ricidade inerente ao hegelianismo. Nesse sentido, G. Petitemange considera

que a filosofia de Hegel também apontará a necessidade da reflexão encarar

a negatividade da história (as contradições, os conflitos, os sofrimentos, em

suma, o aparentemente absurdo e a ausência de sentido) a partir de dentro,

a fim de que o real se torne inteligível. Assim, segundo ele,

A segunda matriz teórica a embasar a epistemologia negativa de

Certeau é Pseudo-Dionísio (ou Dionísio Aeropagita), pseudônimo de um

teólogo desconhecido, que viveu no final do século V. Para Berrrand, existe

uma verdadeira continuidade cultural entre Certeau e este autor de quatro

t~atados, entre os quais

A

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T e o lO g ia M ís tic a e

A

H ie r a r q u ia E c le s iá s tic a , que

tiveram grande influência na vida e no pensamento da Igreja. Assim,

en-quanto nas sociedades laicizadas, o termo "hierarquia" passou a significar

um processo de distinção e sobreposição de valores (e poderes) em luta

con-correncial, na obra dionisiana o vocábulo remetia a um evento fundador ( a r

-c ~ ê ,c~meço; h ie r ô s , santo), o qual possibilitava a integração de um conjunto

diversificado de elementos - expressão da relação unitiva entre as pessoas

humanas e as três Pessoas divinas -, sem que, com isso, fosse instituída uma

u~icidade, diluidora das diferenças. Se Dionísio adota uma linha

neoplatô-Ol~a, c~mpletamente distinta da perspective certeauniana, nem por isso os

dois de~~ ~e esclarecer-se mutuamente; Certeau aproxima-se do

pensa-mento dionisiaco ao destacar a transposição incessante de sentido no c o r p u s

textual, a qual promoveria uma desestabilização útil (porque renovadora).

nominada como um "método enigmático": o fazer do historiador pautar

se-ia numa busca dos "inter-ditos", dos sentidos que, não evidenciado na

fontes, escapam à consciência observante. Mas, paradoxalmente, ao a im

proceder o historiador somente em parte elucidaria o discurso, vindo

tam-bém a produzir outras tantas opacidades no texto, as quais seriam remetida

ao leitor. Desta maneira, o método enigmático concebia a reconstiruiçâo da

experiência religiosa como uma prática interpretativa perpassada por um

duplo agenciamento: de linguagem, por empregar palavras (e interdito )

que lhe são alheias, e social, por vincular-se a um sistema de crenças, de

práticas sociais e de poder.

Tais postulados foram formulados por Certeau a partir de sua

formação acadêmica, pois a história da espiritual idade, sob o enfoque da

crítica textual, foi um dos eixos da formação. Certeau foi leitor atento d

Jean Baruzi, tendo freqüentado o seminário por ele dirigido no

Collêge

de

France entre 1946-47. Em sua tese, S a in t [ e a n d e I a C r o ix e t le P r o b lê m e d e

l'E xp é r ie n c e M ys tiq u e , Baruzi procedeu uma análise rigorosa do vocabulário

da obra sanjoanista, para daí desdobrar as implicações filosóficas da

lin-guagem mística. Contestando Jacques Maritain, Henri Brémond e Mauric

Blondel, Baruzi afirmava que são João da Cruz formulara seu pensament

com os meios intelectuais que dispunha - o tomismo -, mas estes seriam

limitados para traduzir sua experiência religiosa; daí seu recurso a uma lin

guagem poética, nomeada como "cantiga", e encadeada aos comentários em

prosa. A mística remeteria, assim, para uma prática de escrita, cristaliza ão

momentânea de um significado; longe de designar uma "essência" ou urna

"mentalidade coletiva", essa escrita, esforço dinâmico e criador, abrangeria

a totalidade do vivido e culminaria no silêncio inexprimível, constituind a

mais alta forma de inteligência.

Certeau, por sua vez, durante seu doutorado na École Pratique d

Hautes Études (EPHE), foi orientado por Jean Orcibal, professor que

ha-via redirecionado sua especialização das Letras Clássicas para a História d

Catolicismo, tendo como objetos privilegiados de pesquisa a mística reno

f1amenga, o jansenismo e os textos de Fénelon. Uma das principais

coruri-buições de Orcibal foi a de romper com a idéia de "origem", afastando- c,

portanto, da premissa de uma tradição religiosa unívoca - assertiva com não

poucas repercussões no âmbito teológico-eclesiástico. Os estudos de r ibal

requeriam grande erudição, pois, segundo ele, a análise de um texto na d

veria pautar-se em sua compreensão como "obra" e sim como uma mbinu

tória de leituras e traduções, perpassadas por comprometimentos ulturais '

institucionais; assim, ele privilegiou a noção de "contexto" em d rrim 'lHO .1

"( ... ) Hegel n'ignocait pas, par euphorie conceptuelle, Ia cruauté de

I'his-toire ..E lle est le négarif Au philosophe d'y faire face, àhauteur de Ia

pro-vocanon, Assumée Ia lucidiré, une compréhension s'avêre possible, une

raison malgré tout emerge (... ) Pour Certeau, iecreur artentif et distam de

Hegel, l'insondable résiste dans le négarif Réel et racionei s' arrachem à

une circularité idemificatoire".21

3.

UM "MÉTODO ENIGMÁTICO"

. Um dos maiores desafios oriundos da epistemologia negativa de

Miche] de. Certeau .é o da constituição de uma metodologia de pesquisa.

~~ste sentido, ao visar compreender a experiência religiosa em sua

histo-ricidade, Certeau delineou uma operação historiográfica que pode ser

de-TOA ICTI""\C 0•.•.•• :.•..••..• ...,1•..•. U: .•.+A •.: •..• A",

UTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

I l e r - • • s : •.• 0/1(\ "'"n7

(7)

de "influência", até então amplamente recorrente nos trabalhos de história

das idéias. De forma concornitante, Orcibal indicava a validade da

opera-ção regressiva do historiador, que partindo das configurações modernas de

um texto, deparar-se-ia com as transformações a ele imputadas ao longo da

ternporalidade."

Com base em Baruzi e Orcibal, e ao mesmo tempo promovendo

uma releitura de seus mestres, Certeau efetuou uma renovação

rnerodológí-ca, pautada na transposição da filologia para a lingüística. Assim, ele

aborda-va os textos místicos sob o prisma da enunciaçâo, uma "maneira de falar" ou

jihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

m o d u s lo q u e n d i, e não como representação ou alegoria do real. Neste

senti-do, Certeau explicitou o recurso, promovido pelos autores místicos, à figura

retórica do "oxyrnoron" (ou c o in c id a tio o p p o s ito r u m ) , a qual, articulando dois antônimos (como, por exemplo, "noite luminosa" ou "música

silencio-sa"), remetiz à existência possível de um terceiro elemento, que transparecia

na escrita como falta:

[... ] ce n'esr ni un lexique nouveau, ni Ia constitution, comme le fait Ia

rhéologie, d'un ensemble particulier et cohérent d'énoncés organisés selon

des cri teres de 'vérité', mais un modus loquendi, dont Ia strutucture

sin-guliêre, scindée (... ), (expressa por) un sytle particulier (... ) qui renvoient

àune faille de l'indicible: des rapports internes au langage (entre termes

contraíres) se substituent à Ia relation tradicionelle qui unissait un mot à

une chose."

Segundo Certeau, os textos místicos podem, então, ser entendidos

como um discurso, por seu caráter ilocutório, portador de uma dinâmica

de constiutição do sujeito na e pela escrita, bem como instaurado r de uma

plural idade de recepções possíveis, pois cada leitura promove uma triagem,

uma reorganização e um "controle" do texto recebido.

Certeau também afirmou que a escrita mística não era passível de

ser "explicada" sob o viés da epistemologia científica hegemônica até a

dé-cada de 1970, propondo a substituição de suas premissas de

inteligibilida-de pelo postulado de uma "ficção" - produções de sentido instauram um

"efeito de real" e acobertam seu próprio lugar de fala. Já quanto às práticas

de linguagem não formalizadas em um texto (como a oralidade), Certeau

elaborou a noção de "fábula", um enunciado desprovido de "autoridade"

(isto é, de um lugar de poder, ou ao menos de um mínimo reconhecimento

insritucional), mas a partir do qual outras tantas ações e lugares tornam-se

possíveis ("autorizados"). 24 E ao afirmar a indissociabilidade entre a palavra

e a escrita, entre a fábula e a ficção, na trajetória dos "espirituais", Certeau

242

UTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

T R A J E T O S - R e v i s t a d e H i s t ó r i a d a U F C .v.5 ,n .9 / 1 0 . 2 0 0 7

afirma er este o elo que possibilita a prática histórica, em sua signifi a âo .

mutabilidade incessantes.

Além disso, Certeau atentou para os ruídos que se imi cuíam no

discur o místico (como gemidos, sussurros e até gritos), introduzind . lima

linguagem de códigos marginais, geralmente associados à mulher,.à cn~n

:l,

ao iletrados e mesmo aos loucos. Em paralelo, a mística também lm~hcarta

em toda uma afetação corporal, com mortificações, controle de pulsoe .lI,

inversamente, acirrada vivência das mesmas, em intenso~ momentos ~e

~x-ta e Por sua vez a escri~x-ta de ~x-tais experiências, numa teSsltura do semanti

e d~ semiótico, 'possibilitava que outros deslocamentos de sentido fos em

promovidos a cada releitura. .

Mas como interpretar, historiograficamente, tais "desvios"

discur-sivos e corporais? Penso ser preciso recorrer a uma outra importante

con-sideração de Certeau sobre o discurso religioso, con.cebendo-o. segundo a

IoglCa, . de uma "formalidade das práticas", pelas quals o enunCiado. d ferênun.a

é isolado nele mesmo, e sim entrecruzado com um sistema e re erencia

sócio-culturais e de relações históricas de poder social, que lhes for~~cem

coerência e especificidade. Assim, as escolhas feitas pelos agen~es religiosos

para composição de suas categorias discursivas e correlat.as at1tud~~ pod :

riam ser intendidas como uma inter-relação, sempre rensional, de estrat

gias" e "táticas", pelas quais os

[ ... ] crentes [ ... ] reempregam um sistema que, muito longe de Ihes H ' I

próprio, foi construido e propagado por outros, e marcam es:e reem~r~~o

por 'super-ações', excrescencias do miraculoso que as aut~ndades C I V I ~

religiosas sempre olharam com suspeita [ ... ] Uma maneira de falar · ~ ~ . I

linguagem recebida a transforma em um canto de resistência, sem que cs~.\

metamorfoso interna comptometa a sinceridade com a qual pode ser a r'

ditada, nem a lucidez com a qual, aliás, se vêem as lutas e as desigualdad 'S

que se ocultam sob a ordem estabelecida?5

Dessa maneira, o delineamento do sentido religioso pela hi rori

-grafia pode, então, viabilizar a reconstituiçã~ das. identida~es sociai , m .

diante o encaminhamento da análise para a q u e s tto n d u s u je t e t ve r s le sC O /l

.' . l " 2 6

d itio n s d e l' in te r s u b je c tivité d a n s ia c o m m u n tc a tto n s o c ia e .

T R A J E T O S _ R e v i s t a d e H I s t 6 r l d U C ,v 5 , n 9 / 1 0 , 2 0 0 7

(8)

4.INT RPRETAÇÕ S DO CRI TlANI MO ONTEMPORÂN O ulrural). Mais uma vez, parte-se de uma perda, de uma vazio ant ri r qu ,

contudo, adquire conotaçôes completamente distintas:

Il s'agit ainsi pour les chrétiens de travailler à des causes q~i ne o~t~, les leur, puisqu'ils n'ont plus de sol propre. Ainsi une mu~atl~nqualitativ

s'inscrit dans ce passage d'un faire-Ia-charité à un faire-la-JuStlce. [...) ~an

leu r transit hors du corps ecclésial défait vers Iacité ~oliti~ue "se~uher~, bien des militans sesont inspirés de Ia"rhéologie de Ialíbération ,a la.sUl-te de Gustavo Gutierrez, [oseph Comblin, etc, c'est-à-dire, d'une p~atl~u

rhéologique ernboitée en d'autres pratiques, indissociables de sohdamé

UTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

d ' 1 h ' . 29

tactiques, soumises aux aléas et aux besoins une urte istonque.

A ampliação do interesse pela "epistemologia negativa" de Michel

de Certeau está diretamente vinculada à experiência sócio-cultural das

socie-dades ocidentais contemporâneas, marcadas pela perda de um referencial

in-tegrador da vida social, anteriornente situado no campo religioso, e a seguir

secularizado nas ideologias políticas de viés iluminista, de contornos liberais

ou socialistas. Mas, a despeito de toda globalização econômica e

ideológi-ca dessa racionalidade hegemônica, a pós-modernidade depara-se com suas

fissuras e vazios interiores: são inúmeras as denúncias acerca da "loucura da

razão" que, posta a serviço da lógica do capital, acaba por negar-se a si

mes-ma, impingindo exclusões e violências à grande parcela da humanidade."

Nesse processo, duas experiências cristãs apresentam-se como

al-ternativas ao imaginário social ocidental. A primeira delas, atualmente em

expansão, aprofunda a dispersão de um sentido integrado r, sendo expressa

pelos movimentos carismáticos e pentecostais: neles verifica-se uma erosão

da mensagem, substituída pela enunciaçâo - o falar em línguas descreve o

esvaziamento dos conteúdos e dos referentes, junto à individualizaçâo e à

subjetivaçâo do crer. Logo, o vazio de significação é a pré-condiçâo para uma

experiência de fé e para a constituição de uma nova identidade (lugar) social,

a qual, contudo, não o preenche, mas o intensifica:

A leur rnaniêre, les groupes charismatiques qui se sont rnulripliés ces

der-niêres années exemplifient le même rype de transport, tout en s'alignant

sur les formes contemporaines de Ia'socíété du spectacle'. Un besoin de

croire, exacerbé par le vide decerte société, se conjugue au besoin d'une appartenance dont lecontenu est lui aussi devenu un vide. (...)Cerre

spí-ritualiré de 'l'homme ordinaire' rejoint une conscience commune de ne

plus pouvoir transformer l'ordre des choses, mais elle I'affecte d'une valeur

innommable, I'Esprit, et du pouvoir miraculeux de se retrouver dans le

presque rien - une quotídienneté privée de légitimation, des mots privés

de sens."

Face ao desafio historiográfico de interpretação dessas ~uas

mod~-!idades de vivência do cristianismo na contemporaneidade, a episternologia

negativa de Michel de Certeau, produção indissociáv~l (como toda

produ-ção humana) das condições histórico-sociais de sua ~po~a, p~de

apresen-tar-se como uma contribuição importante para a ressigniíicaçâo da perda/

mudança do sentido do religioso como referencial cultural. M~s tal

apro-priação não pode estar dissociada de uma explicitaçâo do lugar (m~:le~tual,

ideológico, institucional) de sua promoção, a fim de que a expenen~la da

fé (e o conhecimento histórico que a investiga) possam ser problemanzado

de forma crítica. .

Uma vez atendida esta exigência, considero que a epistemolog~a

ne-gativa de Michel de Certeau dote a hísroríografia religiosa de uma valld~d .

teórica e política. Afinal, ela proclama o caráter comp~exo, plural e mutav I

da realidade social, afirmando que é justamente a partir dos espaços abe.rt

aos significados que ainda hão de ser produzidos (se~pre, é.c~aro, remetld~

e vinculados a um conjunto de referências culturais e SOClalS.que lhe~ sao

anteriores), que o ato de crer, expresso em um discurso, pode v~r.a s~scltar a

transformação dos indivíduos e da sociedade, bem como permltl~ o

Impon-derave' Idah'IStona.". "[...] Elle ménage une polysémie, une pluralité de sens,

un espace d'hypotheses (fondees sur le po~tulat qu'.il doit

!

.avoir du. sens).

[... ] Ainsi [...] les croyances épellent une mstaur~no~ poe~lque (le Je'~3~u

sens et da sa productivité) et un a priori éthique (li doit avoir du sens) .

Já a segunda alternativa, em aparente processo de esvazimento, ao

invés de dispersar o sentido, promove sua transposição e sua concentração

ern um

jihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Lo c u s específico. Ela remete-se às militâncias sociais e políticas do

cri tianismo, as quais procuram nas pequenas comunidades ou sob a forma

d engajamentos populares, uma maneira específica de viver a fé. Desta

fei-ra, o sentido religioso é reencontrado no mundo do trabalho, corporificado

n "pobres", expressão de uma expropriação econômico-social (e também

(9)

NOTAS

~ CERTEAU, !"fichel ~e ..

jihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

L a fo ib le ; s e d e c r o ir e . Paris: Seuil, 198~. p. 247. Id ..A tn ve n ç ~ o d o c o tid ia n o , Petrópolís: Vozes, 1994. p. 10: "E censurado por

rela-nvizar a.noçao de verdade, por suspeitar da objetividade das instituições do saber,

por sublinha: ~ peso das dependências e das conivências hierárquicas e, enfim, por

colocar em duvida modelos recebidos que fazem a fama da escola francesa de história.

[... ] Não ~e interessa demais pela leitura serniórica e psicanalítica das situações e dos

textos, C:Olsa estr~nha ao b~m método histórico e que danificam o ideal (sagrado)

de fix~çao"a partir do arquivo, de acumulação de uma (impossível) documentação

exaustiva?

UTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

3 CERTEAU, Michel de. A e s c r ita d a H is tó r ia . Rio de Janeiro: Forense Universitária,

1982. p. 51.

4 Neste}en~ido, e?dosso o argumento desenvolvido por Eduardo Gusmão de

Qua-dros: Sena poss~vel encontrar um problema básico perpassando suas reflexões [de

Certeau]? Assumindo o risco da simplificação, propomos que suas pesquisas giravam

sempre em tor~o da alteridade. O outro que nos escapa, como Deus, impossível de

ser compreendido plenamente, é o princípio básico dos escritos cerreaunianos". A

viviência religiosa como objeto da história das religiões: uma leitura de Michel de

Certeau. J m p ~ ~ o , Piraciba,? 15, v. 37,101-109,2004. p. 104

J~LIA, I?omlmque. Une hl~toire en acres, In: GIARD, Luce (Org.). L e vo ya g e m ys

-tzq u e , M ic h e l d e C e r te a u . Pans: Recherches de Science Religieuse, 1988. p. 114.

~~s palavrasde Certea~, :'ce~te c~~égorie heideggerienne m'avair pour perrnertre une

remrerprerannn du christianisme . In: CERTEAU, Michel de. La rupture

instaura-trice. E s p r it. juin. 1971. p. 1177-1214.

7 Essa passagem pode ser remetida, segundo Luce Giard, a várias fontes: a) derivação

de um te~a de S. Paulo (~ 8, 35; 38), em seu desejo de não separar-se do Cristo;

b) exortaçao central de Inácio de Antioquia (encontrado, por exemplo, emÉ p itr e a u x

T r a L lze m , 7, 1); c) parte da prece An im a C h r is ti que, retomada por Inácio de Loyola

c~mo forma de devoção e difundida pelos jesuítas, data pelo menos do século XIV

Ainda segundo a autora, pouco importa como Cerreau chegou a esse extrato da

~rec~ (e, .par~ ela, prov~ve!mente o fez numa superposição das três fontes); o mais

sl~mfic:tlvo e su.a associaçao a uma expressão de Heidegger, o que lhe conferiu uma

dimensão conceírual. In: GIARD, Luce. Cherchant Díeu, In: CERTEAU, Michel

de. L a fo ib L e s s e d e c r o ir e . Op. Cir.XI.

8 Ibid. p. XII.

9 A Cart~a é uma ord~m monástica católica fundada por são Bruno em 1084, sendo

caracterizada pela radical idade de seu carisma contemplativo: solidão e silêncio

ex-tremados, ausência de aparelhos eletrônicos bem como de visitas externas erc.h ttp : //

www.chartreux.org/

1 0 CERTEAU, Michel de. L a fo ib L e s s e d e c r o ir e . O p , C i r , p. 212-213. 1 1 Id.A in ve n ç ã o d o c o tid ia n o . Op. Cito p. 278. Grifos do autor. 1 2 Id.L a F a b L e M ys tiq u e , 1 . O p , cir.p .21.

1 3 BERTRAND, Dominique. La théologie négative de Michel de Certeau, In:

CEN-TRE THOMAS-MORE. M ic b e l d e C e r te a u o u I a D ziffié r e n c e C h r é tie n n e Op CI't P

227-252. . . . .

14 P.ETITEMANGE, Guy. Voir est dévorant. In: GIARD, Luce (Org.). L e vo ya g e m ys

-tzq u e : M zc h e L d e C e r te a u . O p ,Cit. p. 134.

15 C~RTEAU, Michel de. La rnísêre de Ia théologie. In: CERTEAU, Michel de. L a

fo /b L e s s e d e c r o ir e . Op. cir. p. 262.

1 6 Ibid. p. 262.

1 7 Id. L a fo b L e m ys tiq u e . Op. ir. p. 231: "La modaliié rnaxirnali c l'instan c du suj-t.

émiotiquement, elle repêre l'investissernent du locuteur dans on énon : par 'x -m

pie, je nec r o ispas qu'il viendra, jeve u x qu'il vienne."

1 8 QUADROS, Eduardo Gusmão de. O triunfo da diferença: Michel de erre.L I ' 0 \

estudos da religião. Mimeo. Artigo apresentado no mini-curso "A religião e a opera

ção historiográfia em Michel de Certeau", integrante do Simpósio Nacional d chi

Ia Brasil, ser. 2006. Ressalto a contribuição deste mini-curso no aprofundamenro d '

minhas reflexões sobre a obra de Michel de Certeau.

1 9 CERTEAU, Michel de.A E s c r ita d a H is tó r ia . Op. Cit.p. 101-102: "Implica também

num funcionamento particular, epistemológico e literário, destes textos c1ivados. Por

um lado, com referência às categorias de Karl Popper, trata-se antes de interpretação

do que de explicação." . .

20 BERTRAND, Dominique. La théologie négative de Michel de Certeau. Op. Ir. p.

106 e PETITEMANGE, Guy. Op. Cir. p. 132, de onde retirei a seguinte passagem

da P h é n o m é n o L o g ie d e l'E s p r it. Paris: Aubier, s.d. p. 29: "Lesprit conquiert sa verité

seulernent à condition de se retrouver soi-même dans l'absolu déchiremenr. Lesprit

est cerre puissance en n'étant pas semblable au positif qui détourne du negatif (... )

mais I'esprit est cerre puissance seulernent en sachant regarder le négatif en face, et en sachant séjouner prês de lui. Ce séjour esr le pouvoir magique que convertit le négarif

en être."

2 1 BERTRAND, Dominique. Op. Cito p. 131-132.

22 BARUZI, Jean. L 'in te llig e n c e m ys tiq u e . Paris: Berg International, 1985. p. 30-2.; Id.

Sa in t J e a n d e ia C r o ix e t le p r o b le m e d e l'e xp é r ie n c e m ys tiq u e . 3a. ed. Paris: Salvador,

1999. p. 14; LE BRUN, Jacques. Michel de Certeau: historien de Ia spiritualité.

R e c h e r c h e s d e Sc ie n c e R e lig ie u s e , t. 9 1 /4 . our.-dec. 2003. p. 538. Para a relação entre Certeau e Orcibal, ver DOSSE, François. M ic b e l d e C e r te a u : lem a r c b e u r b le s s é .Paris:

La Découverre, 2002. Op. Cit, p. 92-93; LE BRUN, 1988. p. 109-12.

23 JULIA, Dominique. Op. Cit. p. 107.

24 CERTEAU, Michel de.A e s c r ita d a H is tó r ia . Op, Cit. p. 301; LE BRUN, jacques,

Op, Cit, p. 551, RABAND, Claude. Michel de Cerreau, lecreur de Freud et de L I

canoE s p a c e s T e m p s . L e s C a h ie r s , n. 80-112002. p. 23-25.

25 Id.A in ve n ç ã o d o c o tid ia n o . Op. Cito p. 78-9.

2 6 PANIER, Louis. Pour une antrophologie du croire. In: CENTRE THOMAS-MO

RE.M ic h e l d e C e r te a u o u I a D iffé r e n c e C h r é tie n n e . Op. cit. p.41-42.

27 PETITEMANGE, G. Op. cir. p. 130, onde o autor afirma que " B ie n a p r ê s d 'Ad o r n o

e t d e H o r kh e im e r , C e r te a u iu i a u s s i g lis s e ic i e t là d e s p a g e s a c e r b e s s u r l'o p tim is m e te c h

-n ic is te is s u d e s L u m iê r e s , q u i r a ilia ta n t d 'e s p r its d a n s I a c r o is a d e la tc o - p o s itiu is te d u XI Xe

s iê c le . "

2 8 CERTEAU, M. de. L a F a ib le s s e d e c r o ir e . Op. cit. p. 312. Ver também GEFFRÉ,

Claude. Le non-lieu de Ia théologie. In: CENTRE THOMAS-MORE. M ic h e l d (

C e r te a u o u I a d iffé r e n c e c h r é tie n n e . Paris: Du Cerf, 1991. p. 164.

29 CERTEAU, M. de. L a F a ib le s s e d e c r o ir e . Op. cit. p. 309.

30 Ibid. P:50-51.

246

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