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Vozes que interpretam: depressão, suicídio e sociedade

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Academic year: 2018

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VOZES QUE INTERPRETAM: DEPRESSÃO,

Revista de Psicologia

RESUMO

,

SUICIDIO E SOCIEDADE

VOICES WHICH EXPLAIN: DEPRESSION, SUICIDE ANO SOCIETY

Modesto Leite J\oli111 Nero Vem Maria da RoLlw セ@

Observações clínicas efetuadas através do acompanhamento psicologico indicam que ッセ@ ャオァ」Qイ・セ@ do sofrimento e da dor psíquica no paciente deprimido revelariam o repertório dns lingungens ・ウエ。「・ャ・」ゥ、Lセウ@

às representações da vidn psíquica, mostrando os espaços das experiêncins da comunicação e do -;entidP na relação com a doença. Este estudo teve como objetivo compreender como as pessoas interpret, mO!:> significados associados à depressão e provaveis conseqüências de desejos suicidas. foram pesqui-;ado-. 150 sujeitos, incluindo adolescentes e adultos de nmbos ッセ@ sexos. A ・ョエイ・カゥセ@ ta narrativa e a escut,l foram os instrumentos adotados para a compreensão da problemática. tイ。エ。Mセ・@ de uma pesqUisa qu,llitc1tJ\'t1

Além dos pacientes, fornm analisados depoimentos de familiares e da equipe médica. O públiCo-alvo foi constituído por todas as pessoas relacionadas a estados de depress<1o, idéias suicidas ou históri..:n dL• tentativn de suicídio. Depois dn classificação dos dndos, houve um trabalho de análise em vista da reda ção de um relatório final, trazendo todo tipo de informação.

Palavras-chave: depressão, suicídio, sociedade.

ABSTRACT

Climcal observations through psychological monitoring indicate that the -;ite of suffering nnd psvchi pnin in the depressed patient reveals the repertory of lnnguages established for the representntions ot psychic life, showing the spaces of the experiences of communication and meaning in rebtion to thc discase. The objective of this qualitative study is to understand how people interpret the mcanmg-. associated with depression and probnble consequences of suicida! tendencies. 150 people, including adolescents and adults of both sexes, were investigated. Narrntive interview and listenmg wcre thc instruments adopted to understand the problem. Besides the patients, statements from fnmily member.., nnd the medicai team were analyzed. The tMget populntion consisted of all ind1vidunls in st<ltcs of depression, with suicida! manifestations, or with <1 history of attempted suicide. After cbssifying thc data, an analysis was performed to bring all types of information to the final report.

Key words: depression, suicide, society.

'Psicólogo Clínico, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal do R1o Grande do Norte - UFRN. E-mail: modestoleiterolim@bol.com.br

2 Professora do Departamento de Fisioterapia e do Programa de Pos-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte- UFRN. E-mail: rvera@digi.com.br

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Revista de Psicologia

1 INTRODUÇÃO

Escutar as narrativas do outro, no percurso de queixas e sintomas, envolve uma série de cami-nhos teóricos e práticos que confluem para os mais diversos e diferentes meios de procurar compreen-der palavras, vozes, imagens, pedidos, dores e so-frimentos psíquicos, além da perspectiva daquilo que se reconhece como doença. Neste contexto, gradativamente, o outro ganha o status de tradu-ção do humano, no movimento de sua históna e de seu discurso.

Desse modo, procuramos, ao longo da nos-sa viL!a profissional, particularmente enquanto psicólogo clínico, entender a comumcação que emerge das marcas profundas daqueles que soli-citam uma proximidade daquilo que os fa?ia desabitar em si nwsmos, c1balando seus ..;istcm.:-s de referência ao próprio se'1tido que <1 \ ida poJe oferecer à con'precnsão do processo de um エイ」セエ。ᆳ mento psicoter,1pico.

Nessa direção, dcpMamo-nos com os movi-mentos 、・セ@ construç,1o de mensagt'ns que 「オウセN。ュ@

tradu?Ir as agruras dos セオァ。イ・ウ@ secretos, espc1ços de ョ・」・ウウゥ、」セ・ウL@ recorrências, na possibdidade de demarcar a nc1tureza da empreitada de falas L1Ul' clamam por outras palavras, procur.1ndo

sistem,1-tizar aquilo que toma forma de doença, ・クQセゥョ、ッ@

das criaturas, port,1doras das palavras, uma escuta comprometida. aセウQュ@ sendo, escutM essa palavra é que permite, simultaneamerte, ao paCiente, tra-Ler, ou, desespL•radamente reter c>s suas ーイ￳ーイゥ\セウ@

palavras (FOUCAULT, 1 971).

Isto nos ajuda a pensar sobre as marcas que mobilizam o discurso do depressivo. Sobre esta questão, as palavras são colocadas no centro das reflexões, como condutoras de sentido, o que im-plica percebe-las na referenda envolvida entre os sujeitos, no intercâmbio das conversações e reações, bem como na forma como a narrativa é estabelecida. Segundo Todorov (2003, p.21):

A narrativa constitui a tensão de duas forças. Uma é a mudança, o inexorável curso dos acontecimen-tos, a interminável narrativa da\ ida (a história), em que cada instante apresenta-se pela primeira e última vez. É o caos que a segunda força ten ta organizar; ela procura dar-lhe o sentido, introduzir uma ordem. Essa ordem traduz-se pela repetição (ou pela semelhança) dos

aconteci-8CH-PER/ODICO

mentos: o momento presente não é original, mas repete ou anuncia ins-tantes passados e futuros .

Nessa perspectiva, buscando uma proximi-dade com as dificulproximi-dades vivenciadas pelo outro, ao decodificar reminiscências de falas, conflitos, queixas e sintomas em meio à busca de tratamen-tos, verificamos a necessidade de se questionar a doença, os movimentos empregados, ao seu tem-po, e o portador desta doença, principalmente quan-do este passa despercebiquan-do na leitura daquilo que coloca em nsco sua própna palavra, o que nos faz entender o interdito Neste prisma o discurso エゥセオᆳ

ra como espaço de extenondade (FOUCAULI,

セYXVIL@ em que '>e desenvolvem narrativas distintas, dispersas, descontínuas tecidas através dos luga-res que ocupam os SUJeitos frente aos sc1beluga-res vcJ-.::ulados a sua dor e/ ou sofrimento psíqUJco.

A trav( s dec,t,' rct1exiviJ,Kie, compreendemos que a n,'rrativa pode fornecer c,ubs:dJOs de ínter-prt't,,çao dc1s cxpe .. il:·nc. ;cl.., c.oid1vas, not,1damcnte

por meio daqUJ.o que o depressi\'O guarda de mdi'> secreto, sagrado, introspecto -a sua produçao sim bólicc1, ・ョオョ」ゥ」セ、。@ em forma de palavras. Colour sentido nestas dimensoes nao e tarefa fácil, mas na( podemos perder de vista a emergência do apelo de

alguém em considerar-se como demasiadamente

humano. Concordando com Kanaan (2002, p. 48) [ ... ] são justamente as lacunas que conferem 'ver dade' à história, que abriria, inclusive, espaço para

c1 entrada de um outro/Outro; conseqüentemente,

para uma escuta.

Se, como insiste Kanaan (2002), as lacunas são a percussora de sentidos, por que não resgatá las quando o padecimento psíquico permite fazer a demarcação do sujeito à sua fluência de vida? Nes-te momento, a clínica oferece-nos a chance de per-ceber o outro como o lugar das marcas que são (re)inventadas e possibilitadas na história que o próprio discurso expõe, enquanto cúmplice do que é vivido, retratado, exposto e tentado a obter res-postas do que está sendo conferido no contexto do desamparo.

Na oporhmidade em que fomos convidados para trabalhar na área de saúde mental no Posto de Saúde Auta Alves Ferreira (criado em 1971, conveniado com o SUS, com serviços de Clínica Médica, Psicológica e Odontológica), na Cidade de

Aparecida, mesorregião do Sertão Paraibano, deparamo-nos com uma realidade composta por sujeitos, incluso adolescentes e adultos de ambos

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Revista de Psicologia

os sexos, oriundos da zona urbana e rural os quais abririam espaços para se pensar o conceito de or-dem e desoror-dem, assim como a relação entre am-bos, para se (re)posicionar os significados pessoais e culturais, no contexto da própria linguagem do so-frimento psíquico, quando estes se codinominavam depressivos. Avançando um pouco mais nesses es-paços, vamos encontrar para estes codinomes o que Coser (2003, p.18), denomina de "senha[ ... ] apresen-tada pelos pacientes como um sofrimento, razão de ser de suas queixas."

Essa senha assinalou um interesse em com-preender sua condição de transcrição, principal-mente no que conceme aos contextos das falas, das imagens, de seus direcionamentos e buscas de tra-tamento. Entendendo senha como um código esta-belecido a cada sujeito, assinalamos a importância de retomá-la como algo a ser decifrado de modo a tomar familiar àquilo que atravessa o estranho, marcando e mobilizando maneiras peculiares de traduzir o trágico.

Neste tempo de reflexões, estudos, pesquisas e atendimentos, recebemos o convite para atuarmos no Hospital Municipal de Santa Cruz (com 30 leitos, funcionando com a parte ambulatorial, pequenas cirurgias e serviço de atendimento psicológico), igualmente situado no Sertão Paraibano. Com uma demanda oriunda da zona urbana e rural, reencon-tramos sujeitos que, no processo de reconstituição de seus codinomes, testemunham-se, através do dis-curso oralizado, como "doentes dos nervos".

Destaque-se aqui mudanças de senhas no ato de relacionar palavras à doença e ao próprio porta-dor da doença. Mais uma vez, inquietava-nos as formas de apropriação que delineavam a relação do sujeito consigo mesmo e com o(s) outro(s). A isto implicava perceber que as formas de represen-tação aos códigos de acesso à doença acompanha-vam a trajetória subjetiva de ser portador de uma senha, com todas as intempéries interligadas ao domínio da linguagem estabelecida entre as bre-chas deixadas pelos domínios de saberes que intercruzavam o processo de tratamento- a busca da cura, o retomo à vida. Acodinominação estipu-lada para auto-intitular-se "doente dos nervos" , ou "sou depressivo" estabelece uma aproximação entre senha e narrativa, para asseverarmos que a primeira emerge da lacuna do eu depressivo, en-quanto que a segunda é a descrição desta lacuna sob a forma semântica da palavra dita e interdita, (re)contada pelo doente.

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Com essa constatação, julgamos necessário aprofundar o debate no plano da academia, seja na ênfase de aproximação a novos pontos de análise na disciplina Psicologia Aplicada à Saúde, ou na inserção da ordem do discurso, no resgatar o ou-tro, principalmente, na tradução da rede de signifi-cados circularizados pela narrativa no comportar o real problema do conviver com a depressão.

Assim, buscando oportunizar o avanço das (re)organizações dos debates, das avaliações e dos conhecimentos gerados pela inserção acadêmica e clínica, verificamos a possibilidade de se investi-gar o discurso da depressão e de como as pessoas respondem a ele, através de palavras ditas e inter-ditas, a fim de que se pudesse traduzir como se processa seu desenvolvimento, seu percurso de dor e sofrimento psíquico. Julgamos ser demasiada-mente viável, interpor a narrativa através do dis-curso, notadamente por sua bagagem informativa, imbuída de sensações inéditas e inesperadas, traduzidas no dizer do depressivo. Neste sentido, o novo não está naquilo que é dito; tem sido influ-enciado e buscado pelo acontecimento do seu re-tomo (FOUCAULT, 1996).

Reconhecer estas experiências permite-nos, de igual modo, compreender a articulação entre os lugares ocupados pelos sujeitos, ao longo de sua existência, estabelecendo a ordem de seus apelos, dos seus contatos, de suas vozes; imprimindo e conferindo as intenções que instauram renúncia, abandono, dispersão no encontro consigo mesmo e com o outro. Epstein (1995) ressalta que o sucesso ou fracasso do relato clínico, na qualidade de uma descrição oficial da etiologia e evolução da doença, constitui um paradigma geral para as narrativas sobre o corpo humano. No entanto, estas não po-dem e nem devem ser lidas como mera descrição analítica, esquecendo do humano, ao transformar a experiência do doente num texto clínico; o médi-co também tem que interpretar essa experiência a fim de produzir uma explanação da diagnose, as-sim como persuadir seus leitores de que o diag-nóstico está correto na base não só da evidência, mas também do apelo erótico.

As narrativas, através das palavras ávidas do apelo erótico, revelam circunstâncias que ocorrem no interior do vivido, permitindo, assim

[ ... ]as pessoas lembrarem o que acon-teceu, colocando a experiência em uma seqüência, encontrando possí-veis explicações para isso, e jogando

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com a cadeia de acontecimentos que constroem a vida individual e soci-al. GOVCHELOVITCH & BAUER, 2002, p. 91).

A necessidade de ser reconhecido em sua dor e/ ou sofrimento psíquico incita o paciente a con-tar sua história (BERRY, 1991).

Assim sendo, a narrativa representa, na in-vestigação da depressão, um meio de capturar os sentidos, explicando, pelas próprias vozes de quem as possui, perspectivas particulares daqui-lo que provoca e estabelece um rastreamento às pró-prias experiências sobre o vivido, associadas aos processos de dor e de sofrimento psíquico. Pelo resgate de acontecimentos, velhas e novas res-postas são emanadas, velhos e novos sentidos são produzidos, velhas e novas interpretações são pronunciadas. De fato, uma rede de significâncias é estabelecida entre partes das histórias que são contadas e confrontadas com as circunstâncias reais do cotidiano.

Neste sentido, temos que a avaliação clínica dos sintomas da doença fez-nos entender que o fe-nômeno do suicídio, enquanto parceiro dos efeitos da depressão, emerge de confusões interiores, via de regra, não expostas a uma escuta que, natural-mente, poderia ser capaz de reverter o quadro a tempo; poderia assim, salvar, libertar o depressivo da sua dor e/ ou sofrimento psíquico, aprofundados por um estado mental elevado de desespero e con-fusão.

Nessa direção, Jamison (2002, p.18) esclare-ce que, "a brecha entre o que sabemos e o que fa-zemos é letal". Na vida do depressivo, o suicídio poderá acontecer antes, durante ou após um epi-sódio de reiteradas recidivas e reflexões existenci-ais mediante um constante questionamento sobre o conforto de sua dor que, para ele, não aparece em tempo real.

Tentar descrever o suicídio de modo terapêutico é demasiadamente viável, mas definí-lo sob a ótica do suicida cria um sem-número de informações que causam incompreensão, dúvi-da. Isto ocorre pelo caráter eminentemente par-ticular do caminho de dor percorrido pelo suicida; dor que Jamison (2002) reputa ser indivisível, insondável, a partir de um desespe-ro cumulativo. Eis o desafio maior de se estudar o suicídio: a busca por uma resposta à sua efetividade, à sua execução.

2 METODO LO GIA

Como método de geração de dados, fixamos nossa atenção na utilização da entrevista narrativa (gravada), oralizada em discurso dito que, segun-do Jovchelovitch e Bauer (2002, p.93)

[ ... ]tem em vista uma situação que encoraje e estimule o entrevistado (chamado de informante) a contar a história sobre algum acontecimen-to importante de sua vida e do con-texto social,

para então observarmos o dito e o interdito de suas palavras.l.amnek, Hatch e WISnewski, Riesman e Flick (citados por JOVCHELOVITCH & BAUER, 2002) a consideram como método de pesquisa qualitativa.

Este processo nos levou a uma relação particu-lar com a cartografia, enquanto constituída por uma ecologia social e cognitiva (MAIRESSE & FONSECA, 2002) ressignificada pelo mapeamento daquilo que é narrado nas histórias contadas e (re)contadas pelo in-formante. A cartografia, portanto, veio, através dos mapas e/ ou paisagens circularizadas à depressão, con-templar a proposição de Abel (1987, 1993) na busca de representar, gráfica e teoricamente as narrativas.

2.1 Universo e Amostra

O universo do estudo compreendeu 324 (trezentas e vinte e quatro) pessoas, na faixa etária de 10 anos ou mais, as quais procuraram os ser-viços de atendimento de saúde pública nascida-des de Aparecida e Santa Cruz, através de suas unidades assistenciais- as quais já foram discri-minados em notas anteriores. Constituímos, três critérios de inclusão da amostra, levando em con-ta os seguintes indicadores: 1) ser porcon-tador de depressão; 2) ser portador de ideação suicida; 3) ser portador de histórico de tentativas de suicí-dio. Foram escolhidos, por aproximação aos cri-térios de inclusão, uma amostra de 150 sujeitos. Concordando com Minayo (1994), buscamos, através da amostra, privilegiar os sujeitos que possuíam as informações e experiências conside-rando um número suficiente para a reincidência das informações possibilitando a apreensão de semelhanças e diferenças.

Vale ressaltar que todas as medidas, no que concerne à ética em pesquisa com seres humanos, foram efetuadas. Primeiramente, no envio do pro-jeto ao Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN, bem como sua

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aprovação através de Parecer de n° 077/03, se-gundo, na elaboração do Formulário do Consen-timento Livre e Esclarecido aos participantes da pesquisa.

3 RESULTADOS

A narrativa advinda do discurso do depressivo insiste na idéia de verdade, pautada no que o fenô-meno depressivo seqüela e transforma no seu eu. O real desejo do doente é a cura, a libertação de si mes-mo que é dita e interdita em um discurso próprio, onde tempo, espaço, vida social e suicídio se relacio-nam porque a vontade excessiva de sobreviver con-funde-se com o desejo de libertar-se da dor e do sofrimento psíquico que, para o doente, em momen-tos de desespero e insatisfação exacerbados, se expres-sam através de penexpres-samentos de morte. Fomentando nosso entendimento, Jamison (2002, p.S0-129) questi-ona a relação interior travada entre o depressivo e a depressão, para, então, assinalar "Qual dos meus eus sou eu? [ ... ]Todos nós nos movimentamos com difi-culdade dentro das nossas limitações."

Sendo a depressão, uma condição humana que se caracteriza, também, por uma interferên-cia existeninterferên-cial, o discurso, enquanto prática e ma-nejo de enunciados, traz consigo a referência retórica destes mesmos enunciados, como meca-nismo facilitador do entendimento da doença, não só como patologia que o é, mas, de igual modo, como problema de natureza social, dado abalar um número avantajado de pessoas hodiernamente. Para o depressivo, a verdade é expressa pela sua perspectiva de libertação das amarras da doença que o fazem refletir, continu-amente, acerca da sua história de vida em uma relação espaço-temporal.

Assim, considerando os aspectos peculiares a esta patologia, temos que o binômio depressão-discurso encontra-se efetivamente no corpo danar-rativa que, por seu norte, está carregada de palavras ditas e interditas, capazes de nos forne-cer subsídios consistentes no tratamento da doen-ça. Deste modo, é fácil perceber que as narrativas são o discurso verdadeiro do fenômeno depressivo, trazidos na sua mais pura e viva palavra, no tra-duzir suas reais matrizes de sentido.

Todavia, mesmo na morbidez das suas palavras, o depressivo exala o encantamento do seu discurso, encantamento este que não

sig-El

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nifica, necessariamente, beleza e harmonia, mas, sobretudo, expressão de uma verdade de vida, nar-ração de episódios, fatos e sentimentos que se exteriorizam no dito e interdito, falante e falado. Surgem, assim, a retórica, a alegoria, o enunciado em que o sujeito é personagem da sua trama con-tada, como se visualizasse a si mesmo naquilo que é dito e interdito, no esforço sobre-humano de en-tender a depressão através das palavras.

Desta forma, imprimimos à depressão um novo estabelecimento de tradução de seus porta-dores, através do valor do próprio tempo que desa-fia as incertezas e as coloca em espaços de ordem e desordem, como forma de interligar redes comple-xas entre sapiens e demens, vividos pelo discurso dos sujeitos.

Sapiens enquanto dimensão sistemá-tica do ser vivo, animal, primata, homídia, racional e Dernens, a di-mensão incerta, inconstante, híbri-da, desregulahíbri-da, descomedida. (CARVALHO, 1990, p.ll)

Neste viés, falar de depressão sob o olhar da narrativa é, sem sombra de dúvidas, resgatar o dis-curso dito e interdito, intercruzado aos aspectos pe-culiares da doença, apresentado pela palavra do doente que, ao dizer, interdizer, sorrir, chorar ou compenetrar-se, proporciona-nos a tradução do seu histórico de vida nas esferas do tempo e do espaço. Tempo que se resume em um passado longínqüo e utopicamente perpassado sem a doença, no que é considerado um tempo feliz. Um presente enrustido de dor e sofrimento psíquico, avassaladores da alma, através de um sentimento negativado pela vontade de libertar-se, ou, diante o desespero de não mais viver. Futuro que inexiste ou subjaz pela morbidez e melancolia de "passar pela vida" em um presente desarmonioso, arraigado de intempéries pessoais. Essa vontade de não mais viver, contudo, se expres-sa no suicídio, oportunidade em que é idealizado, tentado e/ ou consumado. Assim,

[ ... ] a depressão é essa experiência do desaparecimento e essa fascina-ção por um estado morto - talvez um morto- que seria então a única capacidade de permanecer vivo e inani-mado. (FEDIDA, 2002, p. 43).

Destaca-se, neste entrevem, verdadeiras vo-zes que se interpretam à medida que a palavra do depressivo, dita e interdita na sua narrativa de en-cantamento, denota o caráter subjetivo da sua

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dição de sujeito falante. Assim, o depressivo é o ator da cena que conta, é o personagem da sua própria história de vida, dita sob o olhar da depressão e in-terdita a partir dos seus efeitos psíquicos e sociais.

Dizer sobre o dizer da depressão significa buscar uma verdade que o depressivo diz e interdiz em sua narrativa que, segundo seus próprios rela-tos de desabafo, é a forma de analgezisar a dor de ser. (PERES, 2003). Neste ponto, concordando com Foucault (1986, p.l46), "o discurso não tem apenas um sentido e uma verdade, mas uma história."

Diante do exposto, considera-se que a depres-são atinge, através das histórias contadas, um (re)visitar territórios próprios a cada pessoa, a partir de comandos estabelecidos àquilo que provoca de-samparo, possibilitando um (re)dimensionamento da situação vivenciada, através do que é tecido entre os pontos cruciais na via da construção da própria his-tória de sofrimento.

Logo, a abertura provocada pela narrativa pro-picia um remanejamento de saberes nas vozes que interpretam a partir da atribuição da experiência da dor e do sofrimento psíquico que traduz os próprios sentidos a eles pertencentes. Suportar a trajetória das cenas, interligando-as ao momento circunscrito à narração, rastrear a realidade e acrescentar seu fun-do originário são exercícios continuamente realiza-dos pelo doente que, ao passo que goza da solidão, recapitula episódios vividos em face do seu presen-te sem futuro, como meio de presen-tentar ordenar uma de-sordem de sentimentos causados pela dor de ser. Todavia esta mesma abertura prolifera-se no cami-nho do terrível e do maléfico, com poderes inimagináveis, porque à depressão coube resgatar tudo isto, e à narrativa cabe traduzir.

Outro fundamento digno de considerar é que a depressão compartilha um conjunto de respostas que denunciam uma realidade carente de regene-ração, principalmente naquilo que perfaz os espa-ços de necessidades de respostas, de retomo ao apelo do outro, pressupondo uma posição diante do tempo da espera por uma melhora, assim como do lugar ocupado pela queixa no desenvolvimen-to de sua intimidade com a doença.

Esta mesma resposta, contudo, depende in-timamente da escuta. Escuta comprometida com a interpretação e com o conforto almejado pelo depressivo, porque seu imaginário, sua dor e seu desespero são carentes de acolhida que, pode ser possibilitada através da escuta. Vale ressaltar que

a escuta funciona em prol do depressivo, como um afago, um carinho no ego, no eu dolorido, na alma ferida. Ser depressivo, todavia, nesta pers-pectiva, é ser escutado. Nesse contexto, o tempo entra em cena como instrumento facilitador à medida que, através da sua perenidade, transmi-te estabilidade ao (re)contar a história do doentransmi-te.

De fato, é o tempo que irá desencadear uma espécie de desassossego na busca de conhecer e pos-suir algo que não se deseja, mas que se reflete pelo estranhamento e persistência da possibilidade de produzir uma melhora significativa na troca entre eu e o outro. Para acolher as dúvidas, as incertezas, as ordens e desordens no percurso da dor e do so-frimento psíquico, seus interlocutores, no sentido de presentificarem as reais intenções que estão sen-do desenvolvidas nas circunstâncias da sen-doença e do seu tratamento, narram aquilo que Delouya (2002, p.l3) denomina de "dúvida contínua sobre a existência do psiquismo, refletida nas reiteradas recitações em prol da contemporaneidade".

4 DISCUSSÕES

A palavra dita e interdita pelo depressivo surge para possibilitar o encontro com as marcas e as representações que compõem o sujeito na busca de outro sujeito, como forma de associar as pala-vras a outros códigos de acesso, e com isto situar dores e sofrimentos psíquicos no fundamento do retorno, da interpretação de vozes, sobretudo, no reconhecimento daquilo que transforma vida em possibilidades de morte. A característica fundamen-tal do depressivo é o apelo que fomenta a busca de tratamento e, pelo seu "esquecimento", as queixas e o histórico de vida são geralmente transforma-dos em sintomas. (COSER, 2003). Essas queixas, que retratam a angústia da dor de ser, são reveladas pelos fatos, atos e acontecimentos, pela forma do depressivo (re)contar sua história de vida, no questionamento entre seu passado/passado, pas-sado/presente, presente/presente e ínfima idéia de futuro na reflexão com o seu outro.

Nessa mesma direção, é necessário marcar a importância da queixa, como elemento indispensá-vel na tradução da travessia do que se quer conhe-cer frente àquilo que se vive. Cria-se, desta forma, uma espécie de linguagem comum, estabelecida en-tre ser portador de uma queixa "persistente, opaca, duradoura, intensa, de um sofrimento de natureza

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depressiva [ .. .]" (COSER, 2003,p.48), e o lugar ocu-pado pela fala naquilo que se veicula enquanto de-manda. Isto provoca uma relação particular na apreensão dos espaços, na territorialização da emer-gência do real, a fim de favorecer um reconhecimento do lugar da transcrição de um tempo em que se pos-sa prever

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reagir a seus infortúnios.

Esta questão abre a possibilidade de marcar a narrativa da depressão no embate de forças, na religação constante de vozes, vindas tanto do inte-rior da pessoa, como do exteinte-rior, frisando o tempo da doença na articulação com o tratamento recebi-do. É nesta articulação de palavras e graças à sua movimentação que saberes são (re)atualizados na tentativa de interpretar as circunstâncias que reti-ram as significâncias ao que é familiar, real e vivi-do, continuamente, no estabelecimento daquilo que implica em desespero, desamparo, rotina, estranhe-za, ausência e sensação de morte.

Outro aspecto a ser ressaltado refere-se à

possibilidade de se encontrar o sentido destacado pela senha no percurso da depressão, como por-tadora de redes complexas de representações, no deslocamento do que se revela como verdade. O importante a ser identificado pela senha é a sua movimentação nas vozes como um saber prático que facilitaria a criação de códigos de acesso à dor e ao sofrimento psíquico. Capturados pelas senhas, os sujeitos buscam traduzir a depressão como uma marca constituída pela intensidade do sofrimento e pelas possibilidades intercambiadas ao seu trata-mento. Para Coser (2003, p.18), as senhas "[ ... ]abri-riam caminho para uma estratégia terapêutica, cuja constante seria a pressuposição da existência de um processo patológico, subjacente ao sofrimento do paciente, do qual ele seria portador." A depres-são, portanto, passa a adquirir pontos diversos à

interpretação sobre o cotidiano da doença, reor-ganizando-a nas próprias falas da realidade vivenciada, representada como doença dos ner-vos, do medo, da alma, da morte, do coração, das coisas ruins.

Isto pressupõe, contudo, uma relação parti-cular com o equilíbrio dos interlocutores pelos ou-tros sentidos que vão surgindo através do processo da medicação, investido pelo desejo de melhora. É

neste cenário que se inscreve nosso contexto de compreensão e significação da depressão, até o tipo de tratamento dispensado aos deprimidos, trazen-do a equipe médica para a (re)configuração de legitimação à escuta do outro.

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Ao dizer "estou doente dos nervos", "sofro dos nervos", "tenho depressão", o portador da se-nha encontra-se em sua doença, daí ser sujeito de um pertencimento, daí transcrever a dor da alma em códigos que dão acesso a seus universos, à sua escritura existencial, trazendo à tona as "palavras-mala" que acompanham os itinerários de dor e so-frimento psíquico.

A fusão vida social/ doença encontra-se em-butida no entrelaçamento entre o que a doença faz imaginar e o que o contexto social autoriza pensar sobre ela, através de uma perspectiva não mais ob-jetiva, técnica, racional, mas sob um olhar particu-larizado da doença, como uma semântica social. A poética da vida social, todavia, nos é emprestada pela antropóloga goiana Nei Clara de Lima, ao re-lacionar as narrativas orais como fonte basilar de obtenção da "retórica de encantamento", que con-siste na análise da palavra através do contexto cul-tural em que está inserida. Nesse sentido, Lima (2003, p. 46) considera que "nas narrativas se pode enxergar ou ouvir as pessoas produzindo explica-ções do mundo a que pertencem".

Expressões populares manejadas nas narra-tivas como 'doença dos nervos', para se referir à depressão, ou 'pressão na cabeça', para explicar o sofrimento psíquico, demonstram a tradução inter-relacionada, globalmente, na conceituação e desmembramentos dos efeitos da depressão em suas vidas e em si mesmos. Garcia-Roza (1993, p.228), salienta que "[ ... ] é exatamente através do simbólico, da linguagem, que o desejo vai entrar numa relação de reconhecimento recíproco, na tro-ca simbólitro-ca do eu e do tu."

Nessa direção, a narrativa é essencialmente polissêmica (CARDOSO, CAMARGO JÚNIOR &

LLERENA JÚNIOR, 2002) no desvendar a ordem enunciativa do discurso, sem negar-lhes suas vozes e seus sujeitos, suas palavras ditas e interditas, tradu-zindo a dor de ser

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estar depressivo, seja na ênfase de suas senhas ou na compreensão dos seus processos de construção da dor e do sofrimento psíquico.

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