Supremo Tribunal de Justiça Processo nº 96A335
Relator: CARDONA FERREIRA Sessão: 24 Setembro 1996 Número: SJ199609240003351 Votação: UNANIMIDADE Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
REGIME DE BENS DO CASAMENTO
REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS BENS PRÓPRIOS
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
Sumário
I - O regime de comunhão de adquiridos parte da clara diferença entre bens próprios e bens comuns, procurando evitar que um casamento se transforme em negócio (artigo 1717 do Código Civil de 1966).
II - É a esta luz que o respectivo regime deve ser entendido e aplicado.
III - Como assim e atento, designadamente, o disposto nos artigos 9 e 350 n. 2 do Código Civil de 1966, estando em causa, meramente, interesses dos
cônjuges, nada impõe a inilidibilidade da 2. parte da alínea c) do artigo 1723 do Código Civil de 1966, sendo lícito que o cônjuge adquirente cumpra o seu ónus de prova de utilização de dinheiro ou valores próprios por outros meios que não, apenas, os aí referidos.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. A, peticionou esta acção declarativa ordinária, pelo Tribunal de Círculo de Penafiel, contra B.
Invocando, basicamente, que tal fora adquirido com dinheiro próprio, o autor pediu a declaração de que o estabelecimento denominado "Restaurante ...", em Marco de Canaveses, é bem próprio do autor, não fazendo parte dos bens comuns do casal que existiu entre o autor e a ré (folhas 2 e seguintes).
A ré contestou (folhas 16 e seguintes).
A folhas 76 e seguintes, foi proferida sentença, julgando a acção procedente.
A ré apelou (folhas 84).
A Relação do Porto emitiu o Acórdão de folhas 113 e seguintes, revogando a sentença e julgando a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.
Foi a vez de o autor ficar inconformado, recorrendo, de revista, para este Supremo (folhas 121). E, alegando, concluiu (folhas 133 e seguintes):
1) Não estando em causa interesse de terceiros mas, apenas dos cônjuges, nada impede que a subrogação seja provada por qualquer meio;
2) O preço do trespasse do estabelecimento foi, totalmente, pago pelo autor, com dinheiro próprio dele, ainda no estado de solteiro;
3) A aquisição do referido estabelecimento, pelo autor, já no estado de casado, resultou de direito próprio anterior, decorrente do acordo de trespasse e do respectivo pagamento;
4) O douto Acórdão em recurso violou os artigos 1722 n. 1 alínea c) e 1723 n.
1 alínea c) do Código Civil, pelo que deve ser revogado, julgando-se a acção procedente.
A recorrida contra-alegou, defendendo o não provimento do acórdão recorrido (folhas 135 e seguintes).
Foram colhidos os vistos legais (folhas 137/137 v.).
II. O Acórdão recorrido descreveu o que se assentara na 1. instância (folhas 113 v.):
A) Autor e ré contrairam, entre si, casamento em 15 de Agosto de 1981, sob o regime supletivo de comunhão de adquiridos;
B) O casamento foi dissolvido, por divórcio, por sentença do T.J. de Vila Verde de 23 de Maio de 1989, já tansitada em julgado;
C) Por escritura pública exarada a folhas 74 do livro 114-B do Cartório
Notarial de Marco de Canaveses, em 10 de Novembro de 1981, já no estado de casado, o autor declarou tomar de trespasse, a C e, marido, D, um
estabelecimento comercial de casa de pasto-confeitaria instalado no prédio urbano sito na Rua ..., da freguesia de Fornos, Marco de Canaveses, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 384, com todo o seu activo, mas livre de qualquer passivo e que, tendo já antes recebido, os trespassantes, do
comprador, o seu preço, dão como efectuado o trespasse do estabelecimento, considerado como universalidade ou unidade económica, com as suas
instalações, local, demais direitos e licenças, móveis, utensílios e outros elementos que o integram;
D) O estabelecimento referido foi adquirido com dinheiro próprio que o autor tinha já antes do casamento e que angariou como imigrante na Austrália;
E) O preço de trespasse foi, totalmente, pago pelo autor, em Julho de 1981.
Ao entrar no exame jurídico-crítico da causa, o Acórdão recorrido disse, ainda
(folhas 114 v.):
"Por documentado nos autos, está irrefutavelmente assente e ter-se-à de considerar provado que
- o autor A casou com a ré B, em 15 de Agosto de 1981, tinham eles, respectivamente, 29 e 16 anos de idade;
- o seu casamento foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença de 23 de Maio de 1989; transitada em julgado em 5 de Junho de 1989, do Tribunal de Vila Verde;
- em 10 de Novembro de 1981, no Cartório Notarial de Marco de Canaveses, o Autor A, casado no regime de comunhão de adquiridos com a ré B, adquiriu, em escritura pública e por trespasse o estabelecimento comercial de casa de pasto e confeitaria, instalado no prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o n. 384 da freguesia de Fornos, Marco de Canaveses, com todo o seu activo, mas livre de qualquer passivo, tendo, no acto, os trespassantes C e marido D dito que tinham já recebido do comprador o preço convencionado de 300000 escudos, abrangendo o trespasse do estabelecimento ou
universalidade ou unidade económica, com as suas instalações, local, demais direitos e licenças, móveis, utensílios e outros elementos que o integram".
Do contexto do Acórdão recorrido resulta, muito claramente, que não se considerou, facticamente, não evidenciado que a aquisição fora feita com dinheiro próprio que o autor angariara, fora de Portugal, antes do casamento.
O que se considerou foi que esse circunstancialismo era irrelevante por não ter reflexo na escritura de trespasse, tendo inclusive extrapolado, a partir das idades dos esposados, que o autor bem poderia ter querido beneficiar a sua jovem esposa.
Ou seja e no que mais interessa, o Acórdão recorrido acabou por colocar a questão, num plano jurídico de interpretação da normatividade aplicável, maxime a partir do que consta e do que não consta da escritura de trespasse, já que, ainda que o dinheiro da aquisição fosse, como se provou, só do autor, a tal não reportava a aludida escritura. Daí que, entendeu a 2. instância, o autor agiu de forma a atribuir-se, ao seu comportamento, a inserção do
estabelecimento, juridicamente, no acervo de bens comuns.
Será assim?
III. Este é dos tais casos em que mais gritantemente se põem em confronto dois tipos possíveis de orientação jurídica, mormente ao nível do concreto, do jurisprudencial: uma orientação mais formalista, literalista, conceptualista; e outra, virada para os interesses e valores, para as realidades, perspectiva mais difícil mas mais aliciante, mais verdadeira e que reflecte um Tribunal não servo da letra da lei e, sim, vivenciador da conexão da lei com a vida.
Ninguém mais do que nós, Juízes, é respeitador da lei.
Mas respeitar a lei é algo que não pode confundir-se com simples leitura. Ler é uma coisa; interpretar e, mais do isso, aplicar é outra.
Outrossim, o pensamento do legislador é respeitável e importante. Mas pensamento do legislador é uma coisa, pensamento legislativo é outra;
mormente quando é a própria lei a determinar-nos que não nos cinjamos à sua letra, ponderado um mínimo de correspondência verbal; que compaginemos a unidade do sistema jurídico, que revelemos aquilo a que os Profs. P. Lima e A.
Varela chamaram a "nota vincadamente actualista do artigo 9 do Código Civil"
("Anotado" - I, 4. edição, 58); e, acima de tudo, presumindo que a lei
consagrou soluções adequadas, e não o seriam se fossem contrárias à verdade - que cumpre respeitar, para que os Tribunais sejam respeitados (tudo isto decorre do referido artigo 9 do Código Civil).
Por outro lado e com todo o respeito, é hábito salutar conhecer a Doutrina, ponderá-la e citá-la. Mas pensamos que a Jurisprudência, como acontece noutros Países, mormente dos Tribunais superiores, deve ser também ela própria motor de análise e de extracção das potencialidades das leis, até porque o que mais vem ao caso não é o estudo académico mas, sim, a consideração de situações concretas para as quais consta a análise da vida como ela é e não tanto a abstracção doutrinal.
IV. O que está em causa é uma situação concreta de um regime de bens próprios de um casamento que já nem existe, e que era o da comunhão de adquiridos.
Ainda que tal aconteça um pouco pela generalidade dos regimes de bens, este é, assumidamente, virado para a distinção entre bens próprios e bens comuns, em homenagem
à verdade das suas origens, para que o casamento não seja negócio. Daí que, hoje, desde o Código Civil de 1996, seja o regime desejado pela lei constituída (v.g. Prof.
Pereira Coelho, "Direito Matrimonial", tomo 2, páginas 119 e seguintes, ano de 1969).
É esta a linha de força que deve orientar o intérprete-aplicador da lei. Tal tem especial reflexo nos artigos 1722 e 1723 do Código Civil, contrastando com a limitação residual dos bens comuns reflectida, designadamente, no artigo 1724 do mesmo código.
V. Entre os princípios nucleares, está a potencialidade do que, entre o mais, se sintetiza no artigo 1722 n. 1 alínea c) do Código Civil:
"1. São considerados próprios dos cônjuges: a) ... b) ... c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior.
2. ... a) ... b) ... c) ... d) ...".
E, como é patente, o n. 2, na sua extensão, é meramente exemplificativo de
situações derivadas de direito próprio anterior.
A "ratio legis" torna-se clara: aquilo que era próprio antes do casamento, deve continuar a sê-lo.
E, para que tal desiderato não seja uma simples "boa intenção" subvertida pelas realidades da vida, o que já era próprio deve tansmitir essa qualidade ao que aparecer em seu lugar. Este é um resultado da verdade substancial, em desfavor das simples sombras ou aparências.
E é assim que o artigo 1723 do Código Civil tem de ser aplicado em sintonia, tanto quanto possível, com os princípios básicos deste instituto.
Daí resulta que, harmónica e razoavelmente, a subrogação real directa ou indirecta, relativamente a bens que eram próprios, deve ter como resultado os bens substitutos dos próprios, próprios devem ser.
Ou, então, a lógica, de lógica só tem o nome.
VI. Mas, diz-se, e há quem o diga com o peso da sabedoria, para a alínea c) do artigo 1723 do Código Civil, nem sempre assim é:
"Conservam a qualidade de bens próprios: a) ... b) ... c) Os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente
mencionado no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges".
Claro que, literalmente, como este condicionalismo formal não foi cumprido, é simples e tem base literal a conclusão de que o bem adquirido, na
circunstância um estabelecimento, três meses após o casamento (que já não existe) passou a ser comum.
Mas, não tem de ser sempre assim.
Ainda se pode encontrar uma justificação que explique o literalismo daquela norma quando o interesse em causa seja de terceira pessoa e não o do cônjuge não titular do bem subrogado em ficar titular do subrogante, apesar de o
regime de bens não ser o de comunhão geral. É que não pode fazer-se entrar pela janela o que não pode entrar pela porta, indo, em verdade, subverter o regime de bens
- curiosamente tese admitida, o que se respeita, por ilustres jurista defensores da imutabilidade dos regimes de bens.
Em homenagem à verdade, continua a ser mais razoável a tese do tratadista Cunha Gonçalves ("Tratado de Direito Civil", VI, 520), perante textos legais não literalmente iguais aos actuais, mas levantando idênticos problemas v.g.
(artigo 1131 - único do Código Civil de 1867).
VII. Em rigor, há uma regra de base na alínea c) do artigo 1723 do Código Civil vigente. Mas essa tem de ser aplicada à luz dos princípios nucleares em que se integra e, decisivamente, do que são presunções legais.
Lê-se no artigo 350 n. 2 do mesmo Código Civil:
"1. ...
2. As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova do contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir".
Ora, sendo praticamente pacífico o entendimento segundo o qual a alínea c) daquele artigo 1723 significa uma presunção legal, trata-se de presunção
"juris et de jure" ou "tantum juris"?
Designadamente estando em discussão interesse exclusivamente de cônjuge não adquirente, não se antolha proibição legal sobre prova do contrário a efectuar pelo outro cônjuge, naturalmente abrangendo "a origem, o emprego ou reemprego de fundos próprios", conforme já propugnou Cunha Gonçalves (local citado).
E esse ónus de prova foi cumprido pelo autor. Este logrou que ficasse provado que havia adquirido o questionado estabelecimento com dinheiro próprio que, antes do casamento, adquirira na longínqua Austrália.
Repete-se, aliás, que a 2. instância nem alterou esse factor emergente da prova. Toda a sua tese arranca, sim, juridicamente, da considerada inocuidade desse elemento, perante o silêncio documental.
Mas, pelo que já deixámos dito se infere que, embora podendo remar contra a maré douta, não alinhamos nesse entendimento.
Antes concordamos com a tese reflectida em sumário de Acórdão da Relação de Lisboa de 1 de Fevereiro de 1974, em B.M.J. 234, 336.
Depois e conquanto o estabelecimento não lhe pertencesse, pode ter acontecido - embora isso não esteja provado - que a recorrida tenha
concorrido para o respectivo melhoramento. Se tal tiver acontecido, isso não está, aqui e agora, em causa; e, eventualmente, poderá conferir-lhe algum direito, mas nunca o de propriedade nos termos e para efeitos do actual
"thema decidendum".
VIII. Resumindo, para concluir:
1. O regime de comunhão de adquiridos parte da clara diferença entre bens próprios e bens comuns, procurando evitar que um casamento se transforme em negócio (artigo 1717 do Código Civil; Prof. A. Varela, "Direito da Família", 2. edição, 432).
2. É a esta luz que o respectivo regime deve ser entendido e aplicado.
3. Como assim e atento, designadamente, o disposto nos artigos 9 e 350 n. 2 do Código Civil, estando em causa, meramente, interesses dos cônjuges, nada impõe a inilidibilidade da 2. parte da alínea c) do artigo 1723 do Código Civil, sendo lícito que o cônjuge adquirente cumpra o seu ónus de prova de
utilização de dinheiro ou valores próprios por outros meios que não, apenas, os aí referidos.
IX. Donde, concluindo:
Ressalvando o devido respeito pelo entendimento em contrário, concede-se a revista, revogando-se o Acórdão recorrido, para que subsista a sentença de procedência da acção.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 24 de Setembro de 1996.
Cardona Ferreira.
Herculano Lima.
Oliveira Branquinho.