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UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E TRANSFORMAÇÕES URBANAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1950-1979)

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Adriana Santoleri Villa Barbeiro

UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E TRANSFORMAÇÕES URBANAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1950-1979)

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Adriana Santoleri Villa Barbeiro

UMA QUESTÃO DE OPINIÃO: ZÉ KÉTI, SAMBA E TRANSFORMAÇÕES URBANAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1950-1979)

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História Social sob orientação do Prof. Dr. Amailton Magno Azevedo.

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BANCA EXAMINADORA

___________________________________

___________________________________

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Agradecimentos

Por mais solitária que tenha sido minha caminhada durante o processo de obtenção do título de mestre, os percursos que me fizeram chegar até aqui teriam sido infinitamente mais tortuosos, nebulosos, quase intransponíveis, se não tivesse contado com a presença de uma série de pessoas que souberam sem cobranças e, com uma paciência do tamanho do mundo, ajudar na construção dos pilares que me permitiram chegar até aqui. Por isso, esses grandes seres de luz recebem agora o meu sincero

“muito obrigada”, muito embora, devam saber de antemão, que nem nos mais longos

agradecimentos possíveis chegaria, realmente, a agradecê-los pelo que representam na minha vida.

À minha mãe, Aurea, por me mostrar, há mais de 25 anos, o quão difícil é viver e sobreviver num mundo de loucos. Obrigada por ser aquela que luta, diariamente, contra moinhos e dragões.

Ao meu pai, Alexandre, por ser o maior exemplo de trabalho e perseverança que tenho na vida. Você é um vitorioso e eu espero que tenha consciência disso.

Ao meu irmão e melhor amigo André, por me mostrar, a cada dia, que a construção do conhecimento deve ser algo constante baseado, sempre, no trabalho árduo e no amor por aquilo que se faz. Só você mesmo para me fazer entender aquela frase de

Pitágoras: “A Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o Universo”.

A Eduardo Boletti, por sua companhia, suas palavras de apoio, seu olhar cúmplice e seu abraço, que mais do que abraço, transfigura-se, cada dia mais, em abrigo.

A Kaká Truppa, por sua amizade sempre alegre e sincera. Obrigada pela ajuda em relação à vida e ao Abstract.

Ao meu amigo, de longa data, André Luis Soares Valdez (Big Carlton) por ser essa minha alma gêmea no mundo das ideias. A sua Filosofia, a minha História, enfim,

as nossas discussões sobre “qualquer coisa e sobre tudo” me fazem, sem sombra de

dúvidas, um ser humano maior e melhor. Evoé!

Carlinhos Sanmartin, pelos olhos azuis, coração gigante e ouvidos sempre atentos, sempre dispostos a me ajudar. Amicuscertus in re incerta cernitur.

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Souza, Bru Marinho, Carol Sato, GiMayumi, Gi Valentim, Gui Gonzaga, Hanny e Henry (mestre) Setton, Igor Ramos, Bel Villas Bôas, JúBettim, Karol Ferrasa, Borô, Bradrie, Mari Guilhem, Mayara Santos, Maysa Berbel, Nicole Ranieri, Tami Soares, Leo Soares, Vivi Amaral, Yumi Nagatsu.

Ao professor Luis Perez e aos colegas do curso de percussão corporal da Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP).

Aos responsáveis pelos arquivos do MIS-SP (Museu da Imagem e do Som de São Paulo) e do MIS-RJ (Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro) pelo pronto apoio no que diz respeito às pesquisas que precisei realizar nessas locais.

Aos responsáveis pelo arquivo da Biblioteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural São Paulo.

Ao meu orientador, Amailton Magno Azevedo por suas aulas, indicações de leitura e nossas conversas que ajudaram de maneira indubitável no resultado final da dissertação.

Às coordenadoras do Colégio Nove de Julho, Raquel Lopes da Silva e Cecília Holzapfel Lessa que, há praticamente dois anos têm sido infinitamente compreensivas em relação à loucura da vida de uma estudante de mestrado. Gratidão!

À Lêdda Pena, supervisora do EAD da Universidade de Santo Amaro (UNISA) o meu agradecimento eterno por compreender e apoiar minha luta na elaboração final deste trabalho.

À professora Estefânia Knotz Cangucu Fraga por seu apoio sincero no que diz respeito ao texto parcial de minha pesquisa. Obrigada pelos elogios e, principalmente, por todas as críticas construtivas.

Ao colega e grande exemplo profissional Professor Doutor Rafael Lopes por sua rica leitura em relação ao segundo capítulo da dissertação, suas colocações ajudaram-me sobremaneira.

Aos “mestres” Maria Izilda Santos de Matos e Salloma Salomão Jovino da Silva pelos apontamentos feitos na ocasião da qualificação da dissertação que agora apresento. Obrigada por todas as indicações bibliográficas e sugestões, principalmente as que diziam respeito à redação final do trabalho. Obrigada, também, pelo exemplo de vida acadêmica tão brilhante e fundamental para os estudos de História e Música.

Ao Capes que financiou parte dessa pesquisa.

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DEDICATÓRIA

Ao samba que “ainda vai nascer” Ao samba que “ainda não chegou”

O samba que não vai morrer Veja o dia ainda não raiou

Ao samba que é “o pai do prazer” Ao samba que “é o filho da dor”

O grande poder transformador

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RESUMO

Este texto insere-se na perspectiva da História Cultural, em particular, à abordagem relacionada ao processo de urbanização das cidades brasileiras e à construção de identidades ligada a uma abordagem crioula da mesma. O objetivo central encontra-se em estudar como se deu o processo de intensificação da favelização da cidade do Rio de Janeiro, entre as décadas de 1950 e 1980, e as respostas e reflexos desse movimento caracterizados na construção de identidades e na produção musical carioca do período, analisada através das composições do sambista José Flores de Jesus, o Zé Kéti.

Buscamos compreender, por meio das composições e da própria biografia de Zé Kéti,

aquilo que Édouard Glissant denominou como “irrué”, a mistura de irrupção e ímpeto,

realidade e irrealidade, características, que acreditamos estar presentes, não apenas nas produções que serão aqui analisadas, mas, também, no próprio samba (assim como nos demais gêneros musicais formados nas fronteiras do Atlântico Negro) e mesmo, na

identidade da favela carioca e do “povo” brasileiro que aqui buscaremos elucidar. Desse modo, buscaremos observar como as transformações econômicas e políticas, levadas a cabo no período em questão, refletiram-se, não apenas na transformação desordenada do espaço público, mas também, na forma de se pensar e sentir as situações que se assumiam cada vez mais presentes na vida de grande parte da população menos favorecida.

Assim, partindo de uma realidade particular, almeja-se representar mais uma contribuição entre os recentes, e cada vez mais relevantes trabalhos sobre os processos de construção de identidades em torno do Atlântico Negro e das transformações das cidades brasileiras, além de possibilitar um olhar menos pragmático e deformador com o qual se percebem essas mesmas situações ao longo de toda uma História.

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ABSTRACT

This study is part of the Cultural History perspective, particularly, the approach related to the urbanization process of Brazilian cities and the identities construction linked to its crioulo approach. The main aim of this research is to study how the slums intensification process in Rio de Janeiro city came about, between the decades of 1950 and 1980, and also the answers and reflexions of this action characterized in building identities and the carioca musical production of that period, analyzed per the work of the Samba composer, José Flores de Jesus, the Zé Kéti.

We seek to understand, through compositions and also biography of Zé Kéti, what Édouard Glissant called "arrué", the mix of irruption and impulse, reality and unreality, characteristics, which we believe been present, not only in the productions that are analyzed in this writing, but also, in Samba itself (as well as in other musical genres created in the "Atlântico Negro" border), and even, in the carioca slum identity and the Brazilian "people" that we will try to elucidate.

Thus, we will try to observe how the economic and politic transformations, carried out in studied period, were reflected not only in the transformation of public space disordered, but also, in the way we think and feel the situations that were assumed increasingly more present in the lives of many of the less favored population So, starting from a particular reality, it is desired to represent another contribution among the recent, and increasingly relevant, work about the processes of identities construction around the "Atlântico Negro" and the transformations of Brazilian cities , beyond enable a less pragmatic and deforming look with which realize this same situation along an entire History.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO………...10

Sobre História e Cidades...………...……....16

Sobre História e Música………...………...21

Sobre História e Identidades…...………...28

Estrutura e Objetivos………...………...…….………...32

CAPÍTULO 1: TRANSFORMAÇÕES URBANAS E RELAÇÕES DE GÊNERO EM KÉTI……….…...38

1.1 Kéti e a múltipla Rio de Janeiro ... ...40

1.2 Outros assim como Kéti, Kéti assim como outros: sambas e crônicas de uma Rio de Janeiro mutante...51

1.3 A cidade boêmia e as relações de gênero em Kéti...,,....56

CAPÍTULO 2: A ESTÉTICA DO ESPAÇO EM KÉTI………66

2.1. Desconstruindo a cidade-partida: favela sujeito versus favela objeto...….…...67

2.2 A desconstrução da favela-objeto em Kéti...75

2.3 A desconstrução dos sujeitos-objetos em Kéti: O Cinema Novo e o Show Opinião………...87 2.3.1 A cidade, o cinema e Kéti...89

2.3.2 A cidade, o teatro e Kéti...97

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UMA REFLEXÃO ACERCA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO E DA CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE POS COLONIAL......……...111

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INTRODUÇÃO

A proposta deste trabalho, desenvolvido no Programa de Estudos pós-graduados em História, em nível de Mestrado, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), é dupla, quiçá, tripla.

Apresento, no decorrer de todo o texto, uma discussão acerca da constituição da favela carioca entre as décadas de 1950 e 1980– procurando compreender os motivos políticos, econômicos, sociais e culturais que resultaram em sua organização – ao mesmo tempo em que remonto, partindo de preocupações baseadas na cultura e na sociedade da cidade do Rio de Janeiro do mesmo período,uma estrutura geral da época, objetivando, por fim, observá-la a partir de preceitos ligados aos estudos de identidades,baseados na questão da diáspora negra, como forma de sugerir: “que o compartilhamento das formas culturais negras pós-escravidão seja abordado por meio de questões relacionadas que convergem na análise da música negra e das relações

sociais que a sustentam”1.

Pretendi, em outras palavras, analisar, como uma estrutura vista desde o seu nascimento como lócus de exclusão e depósito de desajustados aos novos rumos que a cidade tomava, pôde criar arcabouços culturais, superando toda a sorte de preconceitos, criando para si maneiras de ser e de existir próprias que, nesta oportunidade, foram analisadas através do samba que, além de gênero musical é aqui compreendido como uma das formas de sociabilidade do negro na cidade do Rio de Janeiro que possui, ao mesmo tempo, a função de transmissor de memórias, bem como a de canal que torna

possível a construção de um “ser” autônomo baseado nos saberes de sua cultura.

Todas essas questões, apresentarei, tendo na esteira dos acontecimentos e como sujeito e objeto da pesquisa, a vida e a obra do sambista José Flores de Jesus, o Zé Kéti. Sua trajetória de vida e, principalmente, suas composições musicais (que cantam o morro, a malandragem, as relações de gênero etc.) foram aqui observadas como documentos propícios para a análise do cotidiano social, cultural, político e econômico e dos ideais acerca de identidade que permearão a dissertação.

Talvez seja conveniente, no entanto, iniciar os resultados da pesquisa afirmando o seguinte: não pretendo, de maneira alguma, pautá-lo em quaisquer tipos de colocações que faltem com a realidade dos fatos, assumindo, porém, as dificuldades encontradas

1 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora

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dia após dia para que as ideias, agora sistematizadas, tomassem formato digno de uma

dissertação de mestrado. Para que este “desabafo” ganhe algum significado, é mais do

que justo iniciar as explanações esclarecendo que: até o momento em que comecei a escrever, simplesmente desconhecia a existência desse compositor chamado Zé Kéti.

Suas músicas? Estas, sim, antigas conhecidas. Quantas e quantas vezes não me

flagrei cantarolando “Opinião”, “Máscara Negra” ou “Diz que fui por aí”, sem, no

entanto, questionar quem as havia composto ou mesmo em quais situações pessoais ou momentos políticos do país elas teriam sido pensadas, produzidas e apreciadas. Nada tão absurdo assim, mesmo para uma historiadora, contudo, conforme meu interesse em relação ao referido sambista cresceu, cresceu também a descoberta de que, por algum motivo, o seu nome e suas contribuições para a música brasileira estavam cercados por grandes lacunas.

Mesmo que seja visto como “um dos titulares do primeiro time da música brasileira”, ao lado de Noel Rosa e Tom Jobim, um “sambista genial”, ou ainda como um dos “autênticos” do samba2, ao lado de Cartola e Nelson Cavaquinho, o que ocorreu

ao procurar produções historiográficas que dessem conta de sua trajetória foi a incômoda descoberta de um grande vazio bibliográfico.

“Mas”, deve perguntar-se o leitor curioso, “se existe realmente tamanha lacuna

em relação ao nome de Zé Kéti, como teria sido, esta que agora escreve apresentada a

ele e porque tamanho interesse em estudar vida e obra do compositor?”.

À primeira pergunta, respondo: Fui “apresentada” a Zé Kéti, ainda durante o

período de especialização no curso de História, Sociedade e Cultura da PUC-SP, no momento da elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso, um projeto de mestrado que possuía como problemática principal as interpretações de Nara Leão e suas contribuições performáticas para o estudo do período da Ditadura Civil-Militar brasileira.

Achei e, de fato, ainda acho realmente impressionante e corajosa a maneira pela

qual Nara negaria a posição de “musa da bossa nova” para se tornar a “intérprete da resistência”. Através da escolha dos compositores que abraçaria – ligados ao chamado

“samba de morro” –sua postura e posicionamentos políticos acabariam culminando no

LP “Opinião de Nara”, de 1964, e depois no inovador “Show Opinião”, de 1965,

2 Tais citações podem ser encontradas em BARROS, Julio Cesar. A voz do morro: Zé Renato resgata a

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produções que encerrariam o período por mim elencado para a discussão acerca de tal intérprete.

Figura 1 Nara Leão e Zé Kéti.3

O que aconteceu, no entanto, é que, através das leituras feitas para esse projeto, o nome de Zé Kéti, mesmo que de maneira bastante rasa, apareceria. E, a partir daquele momento, decidi que precisava saber mais acerca da trajetória de vida e da produção

musical envolvendo aquele que havia participado do “Show Opinião” e elaborado

composições como “Diz que fui por aí” e “Acender as velas”.

--

Feita a escolha do tema, entretanto, algumas adversidades, surgiriam. Em primeiro lugar, o já citado vazio bibliográfico em relação a Kéti, tornaria muito mais árdua a proposta inicial de utilizá-lo enquanto sujeito-objeto da pesquisa. Mas, através das pistas levantadas por Nei Lopes, na única bibliografia existente sobre o compositor, foram encontradas as informações necessárias para aprofundar as questões próprias ao trabalho. A partir daí, fez-se necessário um levantamento dos arquivos que poderiam possuir materiais relevantes à minha pesquisa. Os principais foram: O Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS SP), o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS RJ) e o acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga, que está no Centro Cultural São Paulo.

3

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Dessa forma, os “pontapés iniciais” para o trabalho, foram, sem dúvida, por um

lado, a curiosidade – uma vez que, como indica a historiadora Mary Del Priore, “o

documento sozinho, isolado, não existe se não houver intervenção da curiosidade do

historiador”4,e, por outro, indagações e incômodos ligados ao momento presente pelo

qual a história do Brasil e das cidades brasileiras vem passando,visto que as questões sociais, políticas, econômicas e sobretudo culturais que envolvem o morro carioca e sempre me foram bastante caras retornaram, nos últimos anos, aos meios acadêmicos5e acabaram por me fazer tentar encontrar no passado motivos que elucidassem e

clarificassem melhor as antíteses que acredito existir nesse “universo do morro”, desde sempre visto de maneira tão oposta ao “universo do asfalto”.

É possível afirmar, portanto, que,no decorrer da pesquisa, alguns assuntos do tempo presente foram inegavelmente e mesmo, propositalmente, tangenciados,com o objetivo claro de “colocar em xeque”relevantes aspectos das atuais realidades das

cidades brasileiras, como, por exemplo,a crescente militarização da vida cotidiana que, de maneira imperativa tem se intensificado – desde nosso processo de redemocratização política, na década de 1980 –produzindo a chamada “arquitetura do medo”, geradora de

lugares comuns e preconceitos múltiplos em relação ao outro que, no caso do Rio de Janeiro, atua como elemento intensificador do processo de segregação econômica, social e cultural pelo qual a cidade vem passando desde, pelo menos, o início do século XX.

Conforme sugere o antropólogo Antônio Risério, a “arquitetura do medo” seria

causada pela sensação de insegurança provocada pelas atuais situações socioeconômicas das grandes cidades brasileiras, o que acaba produzindo uma segregação espacial baseada no medo e na desconfiança que gerariam, dentre outras questões, uma organização urbana caracterizada pela dissociação: Teríamos, de um lado, os bairros desassistidos, carentes de infraestrutura urbana e serviços públicos elementares e,de

4 DEL PRIORE, Mary. Fazer História, interrogar documentos e fundar a memória: a importância dos

arquivos no cotidiano do historiador. Revista Territórios e Fronteiras [PPGHistória/UFMT], v.3, n.1, p. 15, 2002.

5 Para maiores informações, consultar VALLADARES, Lícia do Prado (org.). Repensando a habitação

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outro, os condomínios fechados, os shoppings centers e os grandes conjuntos de escritório.6

A socióloga Teresa Pires do Rio Caldeira7 que também possui trabalhos

referentes às problemáticas dessa “arquitetura”, corrobora com o pensamento de

Risério, afirmando que a violência e o medo de nossa atual sociedade têm gerado novas formas de segregação espacial e discriminação social, observadas no discurso do combate ao crime violento que acaba incorporando, preocupações raciais e étnicas, preconceitos de classe e referências negativas ao pobre e aos marginalizados.

Caldeira também desenvolve categorizações genéricas do crime e dos criminosos possibilitadas por essa diferenciação do espaço urbano:

O crime e os criminosos são associados aos espaços que supostamente lhes dão origem, isto é, as favelas e os cortiços, vistos como os principais espaços do crime. Ambos são espaços liminares: são habitações, mas não o que as pessoas consideram apropriada [...]. Como residências um tanto anômalas, ou seja, que não se encaixam totalmente na classificação de casas apropriadas, favelas e cortiços acabam classificados como sujos e poluidores [...] Excluídos do universo do que é adequado, eles são simbolicamente constituídos como espaço do crime, espaços de características impróprias, poluidoras e perigosas.8

Richard Sennet, sociólogo e historiador norte-americano, também se debruça sobre a questão das cidades contemporâneas e como essas estão relacionadas ao viver e ao conviver em sociedade. De acordo com o autor, “o individualismo moderno

sedimentou o silêncio dos cidadãos na cidade. A rua, o café, os magazines, o trem, o ônibus e o metrô são lugares para se passar a vista, mais do que cenários destinados a conversações [...], centelhas de vida não merecem mais que um lampejo de atenção”.9

Corroborando com a questão da cidade enquanto espaço de individualismos, o

autor observa como as diferentes “regiões” que as cidades modernas possuem,

potencializam esse individualismo e influenciam na maneira como os cidadãos tratam-se mutuamente, estabelecendo laços de amizade e convívio ou de medo e exclusão;

Sennet comenta, ainda, sobre aquilo que denomina como “repertório de imagens”, que seria o conjunto de noções acerca do “outro” que o sujeito constrói imageticamente durante a sua vida.

6 RISÉRIO, Antônio. A cidade no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 303

7CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania. São Paulo: Editora

34, 2003, p. 9.

8Ibidem, p. 79-80.

9SENNET, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record,

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Em relação a esse “repertório” Sennet, cita aquilo que chama de cenários

complexos ou não familiares, onde, de acordo com ele, o indivíduo tenderia a classificar o que vê de acordo com categorias simples e genéricas, baseadas em estereótipos sociais. Em outras palavras: um branco que se depara com um negro, um índio, um árabe ou um judeu registra a ameaça, desvia os olhos e, quase que automaticamente,

procura o afastamento instantâneo em relação ao “corpo estranho”. De acordo com os

seus estudos, portanto, o repertório de imagens que possuímos– e que só pode ser incrementado a partir do contato com o múltiplo, o diferente, o alternativo– pode nos levar ao convívio com o mundo ou ao completo fechamento em relação a ele. O ser humano, nesse sentido, passa a ser visto, muitas vezes, como aquele que sinaliza

“perigo” e, mais uma vez, observamos a ideia de uma “arquitetura do medo” que

pretende que iguais convivam sempre com iguais e temam o diferente.

Dessa forma, tanto Risério quanto Caldeira, e mesmo Sennet, tratam sobre alguns dos estigmas relativos ao espaço da favela carioca, de seus moradores e frequentadores, bem como, do cotidiano desses, que desde o início do século XX fazem parte do arcabouço de pré-concepções relativas ao “morro”. Em outras palavras, alguns

assuntos atuais serão abordados no sentido de fazer uma crítica direta às rupturas, permanências e intensificações de questões relacionadas ao universo da favela.

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e objetivas que procurem solucionar, de fato, o que se tem apresentado como adversidade. Como escreve Risério, hoje, no Brasil, não há:

Políticas públicas pensadas globalmente para o momento concreto e presente da realidade urbana brasileira, com problemas que vão do crime organizado ao saneamento básico, passando pelo imbróglio fundiário, o crescimento das favelas, a poluição (sonora, visual, aquática e atmosférica), o estado crítico da saúde pública, o aumento da legião de pedintes nas ruas, o grande déficit habitacional.10

Assim, também é importante afirmar que os motivos que levaram à produção deste trabalho encontram-se, sobretudo, no tempo presente, pois, como afirmaria o

historiador francês Antoine Prost: “A explicação do passado baseia-se nas analogias

com o presente, mas, por sua vez, ela alimenta a explicação do presente”11.

Não apenas Prost, mas outro historiador francês do século XX, Marc Bloch –

reconhecido internacionalmente não apenas por suas produções envolvendo o período medieval, mas também por ter fundado nos idos de 1929, ao lado de Lucien Frebvre (outro importante historiador francês), a Escola dos Annales –, estará presente nas páginas que seguem, uma vez que sua maneira de fazer história através do que chamou de método regressivo– que consiste, em linhas gerais, em perceber que, apenas através do presente, podemos delimitar o retorno, possível que desejamos fazer ao passado12–

será a maneira pela qual se percebe aqui a construção da história.

Portanto, para que as intenções supracitadas sejam satisfeitas, o trabalho percorre, três grandes temas: História e Cidades, História e Música e História e Identidades.

Sobre História e Cidades

Nas últimas décadas, principalmente nos últimos 50 anos, as produções historiográficas vêm passando por uma série de transformações que inegavelmente possibilitaram uma revisitação à História, seus fatos e personagens.Tais transformações podem em muito ser explicadas a partir do nascimento da chamada Escola dos Annales, que, de maneira especial, após 1979, tornar-se-ia reconhecida e prestigiada internacionalmente e, através de suas propostas, abriria espaço para o estudo de “novas

10 RISÉRIO, op. cit., p. 308.

11PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 1996, p. 146.

12BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.

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histórias”, que contribuíram para o desempenho da História Social e Cultural, uma vez

que propunha a inclusão de temas e sujeitos até então silenciados historicamente.

Os herdeiros desse novo modo de contar a história das coisas percebem, portanto, nos mais variados sujeitos, a possibilidade de discutir os fatos históricos que, em boa medida, deixam de ser a preocupação primordial dos historiadores. Centro e periferia também perdem o status de grandes reguladores do fazer histórico, abrindo espaço para que o estudo do caminhar do homem pudesse partir de todos os lugares, a todo o tempo, movido por toda a sorte de ser humano: do mais rico ao mais pobre, do homem à mulher, do deputado ao engraxate, do prefeito ao sambista, todos seriam vistos como personagens de uma história que acontece todos os dias, nos gabinetes políticos, no interior das casas, na cidade, na favela e nas festas.

Dentro dessa perspectiva, podemos elencar a História das Cidades como algo que tem passado por significativas mudanças; afinal, observada no decorrer da história como mero elemento de delimitação geográfica e espacial, a cidade passa a representar

em si uma questão, um “problema”.

No presente trabalho, embora a principal preocupação tenha sido pensar a favela carioca durante as décadas de 1950 a 1970, acredita-se que, em certa medida, observar a história da cidade do Rio de Janeiro ainda durante o século XIX seja algo não apenas interessante, mas também necessário, uma vez que o surgimento da própria favela, todos os preconceitos que ela tem sofrido, assim como os novos movimentos de organização espacial que a cidade vem passando, baseadas em muito na chamada

“arquitetura do medo”, só podem ser compreendidos a partir das modificações nela

empreendidas durante esse período.

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melhorias para a cidade do Rio de Janeiro, sobretudo, para a sua região central.13 Dessa forma, muito embora os empreendimentos de D. João VI não tivessem sido bem aceitos por certos segmentos da população brasileira do período, várias foram as modificações por ele implementadas na cidade.

Outra atitude que, dentro de um século, se tornaria mais comum e que, poderíamos afirmar, se configuraria como uma das principais geradoras do elevado grau de desigualdade na cidade, já pode ser observada durante esse período.

Uma importante intervenção no embelezamento do espaço urbano foi a publicação de um edital em 1816. O documento escrito por [Paulo] Viana sugeria que propriedades antigas ou mal construídas fossem demolidas dentro de um prazo fixado (VIANA, 1816), já que poderiam ruir e em mais de uma oportunidade tinha ameaçado a vida de criados do Paço. Evidentemente, não seria de bom tom que a realeza desterrada viesse a presenciar algum desabamento.14

Fora as transformações urbanas levadas a cabo durante o Período Joanino, a chegada da família real ao Brasil irá representar de maneira muito intensa uma modificação cultural profunda do que até então se tinha nas ruas e vielas do Rio de Janeiro. Sabemos que D. João não chega ao Brasil sozinho, mas sim acompanhado por um número bastante razoável de representantes da corte real portuguesa (que gira em torno de 10.000 a 15.000) que trazem na mala, além do medo da invasão Napoleônica empreendida em Portugal, suas práticas e costumes.

Essa aglutinação cultural, no entanto, não seria viabilizada apenas por esse novo contingente populacional, mas pelo próprio D. João VI, ao assinar, já em 1808, na cidade de Salvador, a Abertura dos Portos às Nações Amigas. Isso facilitaria não apenas a entrada de produtos importados no Brasil, mas também a entrada de um grande número de comerciantes de diversas nacionalidades – tornando o porto do Rio de Janeiro mais movimentado do que o de Boston15 –, o que representará para a cultura carioca mais um variado número de costumes e práticas que, dentro em pouco, seriam deglutidos e recolocados na cultura da cidade.

Ocorre ainda, após a morte de Napoleão Bonaparte, em 1814, uma nova onda de transformações culturais em terra brasilis que, tal qual um tsunami de cores, cheiros e

13ANDRADE, Manuel Correia de. A Revolução Pernambucana de 1817. Coleção Guerras e Revoluções

Brasileiras. São Paulo: Ática, 1995.

14OLIVEIRA, Anelise. D. João VI no Rio de Janeiro: preparando o novo cenário. Revista História em

Reflexão, v.2, n.4, UFGD – Dourados, jul./dez.2008, p. 6.

15 LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006,

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sabores, se espalha pelo Rio de Janeiro. A reaproximação entre França e Portugal traz ao Brasil não apenas a Academia de Belas Artes, mas uma série de hábitos no vestir, comer, construir, consumir e decorar que acarretam um afrancesamento intenso do cotidiano da cidade, acessível, evidentemente, apenas aos que fizessem parte da parcela letrada da população.16

Durante o período Imperial, principalmente no que se refere ao Segundo Reinado, encontra-se, também, uma Rio de Janeiro com cores e sabores europeus. A partir da segunda metade do século XIX, o país ingressaria numa nova fase, intermediária, entre um Brasil escravagista e um Brasil proto-capitalista. Como capital, a cidade recebia todas as grandes novidades emanadas do velho continente como, por exemplo, gás e água encanada; nessa época também começaram a aparecer, primeiramente na região do Botafogo e da Tijuca, os primeiros bondes de tração animal que, em pouco tempo, se transformariam em bondes elétricos.

De acordo com Humberto Fernandes Machado, no entanto, “duas cidades já conviviam naquela época: uma civilizada, branca, voltada para a Europa; outra, negra, verdadeira cidade aquilombada caracterizada pelos cortiços e epidemias que dizimavam

os seus habitantes”.17 Mas, apesar das discrepâncias sociais que produzia, os ideais de

embelezamento e de enquadramento às tendências europeias seriam recolocadas na ordem do dia, com intensidade e intenções renovadas, ainda na virada do século XIX para o XX, mais especificamente após a Proclamação da República, quando as elites brasileiras, desejosas por modernizar não apenas os seus preceitos políticos e econômicos, mas também a estética de seu principal centro político, empreenderão uma série de modificações que irão, de maneira bastante direta, flagelar uma vez mais os mais pobres e carentes da cidade.

Esse período será aquele em que as elites do Rio de Janeiro voltam suas preocupações primeiramente para os cortiços e, em seguida, para as favelas, buscando a

construção de uma “cidade prometida” que, como veremos já no primeiro capítulo da dissertação, fracassará.

Pensar a favela carioca – e todo e qualquer espaço de convivência social, cultural, política e econômica –, sem levar em consideração seus fluxos e movimentações,desde seu surgimento até a própria dinâmica característica da relação

16Ibidem, p. 53.

17 NEVES, Lucia Maria Bastos; MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de Janeiro:

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morro-asfalto, geradora de preconceitos duradouros e cunhados de maneira tão eficiente no decorrer da história, seria contribuir tão-somente para mais uma pesquisa cheia de pré-concepções, tabus e lugares-comuns que em nada colaborariam para realmente modificar o modo de enxergar tais sujeitos e espaços.

Dessa forma, observa-se a favela carioca não a partir de sua representação global fundadora de ideias genéricas no que diz respeito ao seu cotidiano18 em relação à sua realidade, mas sim das memórias construídas por aqueles que dela fizeram parte; em outras palavras, como diria Maria Izilda Santos de Matos:

Em seu processo de transformação, a cidade tanto pode ser registro como agente histórico. Nesse sentido, destaca-se a noção de territorialidade, identificando o espaço em conformidade com experiências individuais e coletivas, em que a rua, a praça, a praia, o bairro, os percursos estão plenos de lembranças, experiências e memórias. Lugares que, além de sua experiência material, são codificados num sistema de representação que deve ser focalizado pelo pesquisador, num trabalho de investigação sobre os múltiplos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização.19

No que diz respeito, portanto, ao estudo das cidades como um documento em si, Ana Lúcia Gonçalves Maiolino, através de sua obra Espaço urbano: conflitos e subjetividade, cujo foco de análise é a “interface urbano-subjetividade [...] onde a produção e a apropriação do espaço urbano pelos atores analisados não só refletem as desigualdades e as contradições sociais, como também afirmam sujeitos que as

reproduzem e modificam”,20

e Lícia do Prado Valladares, em A invenção da favela: do mito de origem a favela.com,21 além de propiciarem uma riquíssima análise acerca da História das Favelas, indicam caminhos profícuos para fugir de ideias dogmáticas, já cristalizadas, em relação ao espaço da favela, sua cultura, sua gente.

18 Já no início do século XX, começaram a ser publicadas as primeiras crônicas em relação ao espaço da

favela: Olavo Bilac, João do Rio, Benjamin Constellat e Orestes Barbosa são bons exemplos de observadores que, tomados pelo espírito de modernidade e remodelação pelas quais passava a cidade do Rio de Janeiro, projetariam visões um tanto quanto rasas acerca da favela e do cotidiano dos que ali viviam. Para uma leitura mais específica: VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

19 MATOS, Maria Izilda Santos. A cidade, a noite e o cronista. Bauru: Edusc, 2007, p. 26.

20 MAIOLINO, Ana Lúcia Gonçalves. Espaço urbano: conflitos e subjetividade. Rio de Janeiro: Mauad,

2010, p. 12.

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Sobre História e Música

Dentro da perspectiva das “novas histórias” propiciadas pela quebra dos paradigmas tradicionais no campo da história já trabalhados anteriormente, podemos falar acerca da música enquanto possibilidade documental de análise.

Como afirma Matos,22 a produção musical é um documento bastante interessante por propiciar a possibilidade de dar voz a certos setores que, durante muito tempo, estiveram renegados ao silêncio, sendo, portanto, uma porta de entrada possível para a revelação do cotidiano, das sensibilidades, das paixões e, no caso do trabalho aqui apresentado, das dificuldades e formas de luta, resistência e identidade de grupos sociais.

É importante enfatizar que a música, assim como outros documentos que vêm sendo cada vez mais utilizados para a escrita da história, como, por exemplo, a literatura, não significa e nem deve ser observada como “reflexo” de quaisquer

questões. Tais produções devem ser vistas como representações possíveis de períodos e situações específicas.

Nesse sentido, deve ter-se a preocupação de perceber o produtor de tal documento como um ser que, ao viver situações próprias de sua contemporaneidade, produz, através de sua subjetividade, formas de significar aquilo que vê e sente. Dessa forma, não podemos descartar a importância de discutir de maneira aprofundada quem foi Zé Kéti, qual a sua formação, bem como quais são os seus circuitos sociais, culturais e mesmo profissionais, questões que serão profundamente trabalhadas no 3º capítulo.

As obras de Nicolau Sevcenko,23 José Geraldo Vinci de Moraes,24 Antônio Pedro Tota,25Maria Izilda Santos de Matos26 e Amailton Magno Azevedo27 serviram de base metodológica no sentido de como trabalhar a canção como fonte documental para a

22 MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. Bauru:

Edusc, 2007. p. 38.

23 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira

República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

24MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia: história, cultura e música popular na São

Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

25TOTA, Antonio Pedro. Cultura, Política e Modernidade em Noel Rosa. São Paulo em Perspectiva. São

Paulo, v.15, n.3, 2001.

26MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: Edusc, 2002.

_________________________. Âncora de emoções: corpos subjetividades e sensibilidades. Bauru: Edusc, 2005.

_________________________. A cidade, a noite e o cronista. Bauru: Edusc, 2007.

27AZEVEDO, Amailton Magno de. A memória musical de Geraldo Filme: os sambas e as micro-áfricas

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pesquisa histórica representarão nossas bases teóricas em relação à música brasileira no decorrer da história.

A obra Literatura como Missão, de Nicolau Sevcenko, proporciona a oportunidade de observar um bom exemplo de como é absolutamente possível contar e problematizar a história de determinado período, região e grupos políticos e sociais utilizando como fonte documental informações outras que não as indicadas por uma história tradicional. Sevcenko problematiza a história da Primeira República brasileira, recorrendo, para tanto, às produções e discussões estabelecidas durante esse período pela literatura e, de forma especial, pelos textos de Euclides da Cunha e Lima Barreto. Tais autores não possuíam vínculos outros que não aqueles que dissessem respeito à luta contra o Império brasileiro, ou seja, a única relação de proximidade que existiu entre um e outro foi aquela relacionada com a luta por uma mudança no sistema político nacional, que acabou ocorrendo, como sabemos, no dia 15 de novembro de 1889.

Essa mudança, no entanto, não teve exatamente as características esperadas por esses dois estranhos, que, como afirmaria o próprio historiador: “Apesar de viverem na

mesma cidade e circularem nos seus poucos núcleos literários, esses intelectuais eram estranhos entre si: provavelmente nunca se defrontaram, certamente jamais trocaram

uma palavra”.28 Dessa forma, as obras desses dois grandes nomes da produção da

literatura nacional estarão, em muito, ligadas ao descontentamento referente aos novos rumos da política e economia brasileiras e como essas refletiam na sociedade de então.

As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX assinalaram mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira. Mudanças que foram registradas pela literatura, mas sobretudo mudanças que se transformaram em literatura. Os fenômenos históricos se reproduziram no campo das letras, insinuando modos originais de observar, sentir, compreender [...]. Por outro lado, os valores éticos e sociais mudaram tanto no nível das instituições e dos comportamentos como no plano das peças literárias. Os textos artísticos se tornaram, aliás, termômetros admiráveis dessa mudança de mentalidade e sensibilidade.29

Em linhas gerais, como citado no prefácio do livro, a obra de Sevcenko,

“questiona o papel decisivo que cabem à imaginação artística e às energias intelectuais em momentos críticos de mudança histórica”.30 Retrata, através dessas questões, o

momento de tensão e transformações múltiplas pelas quais a cidade do Rio de Janeiro passava.

28SEVCENKO, op. cit., p. 141. 29Ibidem, p. 286-7.

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De forma bastante análoga à que Sevcenko problematiza a história do Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX, José Geraldo Vinci de Moraes e sua obra Metrópole em Sinfonia: História, cultura e música popular na São Paulo dos anos 30(2000) irão propor uma análise da música brasileira sobre um período em que a cidade passava por um processo conturbado de transformação, uma intensa urbanização, momento em que também surgiu o rádio e o microfone, ferramentas que tornariam cada vez mais a música em profissão.

No precário circuito de consumo cultural que se formava na metrópole paulistana, o livro mostra como a própria instabilidade profissional gerou esse curioso hibridismo no meio artístico, fazendo com que tais músicos mesclassem o cotidiano diurno do trabalho, com a boemia noturna dos bares e cafés, convivendo muito mais de perto com o difícil dia-a-dia da cidade.31

Embora se trate de uma obra cuja característica fundamental é estudar a cidade de São Paulo através da música produzida durante a década de 1930, alguns pontos da pesquisa construída por Moraes são bastante caros a este trabalho, como, por exemplo, perceber que, em meio às múltiplas transformações pelas quais passava a cidade, múltiplas também seriam as formas de se fazer música. A ideia mesma de Metrópole em Sinfonia sugere que São Paulo, num momento de crescimento e mistura vertiginosa, onde a realidade das imigrações se juntava à instabilidade da vida na cidade, só poderia produzir músicas de caráter igualmente diverso: amores frustrados, destinos mórbidos e o sentimento de saudade, nostalgia, próprio de quem passa por mudanças.Esse cenário paulistano enseja o desenvolvimento de produções únicas, como as gravações de Capitão Furtado e as crônicas de Juó Bananere, que criam estéticas de influência caipira

e italiana,gerando “outra coisa” especificamente paulistana e que só pode ser entendida

dentro desse âmbito.

Uma questão bastante interessante levantada por Moraes diz respeito às

temáticas recorrentes no fazer das “modinhas paulistanas”. Como forma de representar a violência, a miséria e a morte que começariam a distinguir, de certa forma essa “nova metrópole”, a subjetividade dos compositores levou a um grande número de canções que terão esses assuntos como preocupação principal:

Os assuntos encontrados nessas modinhas são variados, mas giram em torno de alguns pontos convergentes. Em primeiro lugar, baseiam-se em alguns fatos diários e reais que ocorriam na cidade. Em geral, causam forte impacto a população local, independentemente de sua origem social, cultural ou étnica. Nas canções paulistanas, ganham certo tom exagerado, com o claro objetivo de destacá-los. Finalmente, esses fatos impactantes preenchem as colunas policiais dos jornais diários, vorazes por eles, comovendo muito a

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população mais humilde. Nas 27 modinhas recolhidas por Alcântara Machado é possível observar essas narrativas, que envolvem inúmeros temas, formando verdadeira(s) história(s) com começo, meio e fim, que, na realidade, contam parte do cotidiano da cidade que começava a se consolidar, com as contraditórias características de uma metrópole.32

Outra obra que teve como preocupação a cidade de São Paulo, mas que em muito auxiliou na construção das ideias principais deste trabalho foi A cidade, a noite e o cronista, de Maria Izilda Santos de Matos (2007), livro dividido em três partes principais que se subdividem em capítulos bastante elucidativos: no primeiro momento,

o princípio norteador é explanar acerca das “outras histórias”: quais são elas, onde

aparecem ou podem aparecer. A intenção é aguçar o olhar do historiador para novas abordagens, novos documentos históricos; em um segundo momento, as atenções passam a convergir para a cidade de São Paulo: como essas novas abordagens e documentos históricos podem ser utilizados para compreender as nuances na história da

“Pauliceia desvairada”,bem como em outras diversas situações; e, por fim, mas longe de esgotar todas as possibilidades de análise, a autora debruça-se menos sobre a vida de Adoniran Barbosa do que sobre os reflexos dela frente às crescentes modificações que ocorreram na São Paulo das décadas de 1930 a 1960.

Dessa forma, observando personagens, cenários e documentos ainda hoje pouco trabalhados no campo da história, como a música, o boêmio e a noite, Matos propõe, fugindo de concepções clássicas embasadas pelo senso comum acerca de pelo menos dois desses temas– o boêmio e a noite –, compreender as características dos anos de inchaço urbano da cidade de São Paulo.

Debruçando-se sobre o cotidiano de personagens e agentes históricos que

pertenceram a uma ou mais “São Paulos”: a bonita, embelezada dos anos 1920; a

moderna dos anos 1930; a transbordante e cada vez mais conturbada e sufocante dos anos 1940 em diante, a autora deseja compreender, para além dos discursos oficiais, o que significava viver na dita capital do trabalho e do progresso caracterizada pelas comemorações do IV centenário da cidade, ou na cidade da diversidade, já no século XXI. A música, dessa forma, como documento que não se esgota em si, mas que metodologicamente permite análises diversas – não somente no que diz respeito à sua difusão na sociedade: seu consumo e recepção; também sobre o artista que a compõe: sua formação, profissão, os círculos sociais pelos quais transita e todas as subjetividades

(26)

que podem estar imbricadas nesse processo –, aparece como o documento principal; a noite, a cidade e o boêmio como locais e personagens principais.

Tratando-se das duas últimas questões supracitadas, Matos foge das interpretações clássicas: não trata a noite como um local de pecado e perigo, mas de complementaridade com a correria do dia a dia; não observa o boêmio simplesmente como o templo de encarnação do não trabalho, não família, não moral, mas como um personagem cheio de possibilidades de revelações outras sobre as coisas que o cercavam. Não se pode esquecer, por exemplo, que muito da boemia paulistana das décadas de 1920 a 1950 era composta não somente por populares mal encaixados no mercado de trabalho, com postos de trabalho cada vez mais escassos na cidade, mas também e principalmente por médicos, advogados e outros membros da high-society. O que empurra a noite paulistana para a periferia da cidade e a transforma em “local da imoralidade” está diretamente relacionado coma expansão urbana paulistana, um

movimento estudado pela autora.

Quanto a Adoniran Barbosa, se arrisca dizer que seu papel no livro é representar um grande exemplo de todas as ideias que se desejavam elucidar: um paulista que nasceu em 1910 e que, na década de 1930, se tornou também paulistano. Um cidadão que vivenciou os anos fundamentais da urbanização de São Paulo, um boêmio por natureza, que aprendeu a contar a história das coisas que via, ouvia e sentia através de suas rimas, sua poesia. Um cronista, ou melhor, um historiador da cidade de São Paulo

– da Praça da Bandeira, da Praça da Sé, do Viaduto Santa Efigênia, do metrô etc. – e de seus sentimentos – o amor, o esforço, a saudade, a raiva, a tristeza.

Em outras palavras, o livro A cidade, a noite e o cronista cumpre uma dupla função: servir de referência indispensável para os historiadores que já estão ou

pretendem adentrar no mundo das “novas possibilidades”, dos “novos pontos de vista”, “novos documentos”, ou, como Matos prefere nomear, das “novas histórias”, uma vez

que traça o panorama geral da nova situação do fazer histórico, nos deixando muito mais à vontade para pensar além do tradicional, sendo essa a maior contribuição da obra; ou servir de presente para os paulistanos mais apaixonados e mais críticos sobre a história de sua cidade, a nossa grande maloca.

(27)

memória musical de Geraldo Filme: os sambas e as micro-áfricas em São Paulo.33De maneira geral, o autor pretendeu, através da reconstrução da memória musical do sambista Geraldo Filme, entrar em contato com aquilo que denominou como micro-áfricas existentes na cidade e que estariam representadas por formas possíveis de luta e resistência de grupos negros que, no caso de sua pesquisa, ocorriam em locais específicos de São Paulo.

Rebatendo a afirmação de Vinícius de Moraes de que São Paulo seria o “túmulo do samba”34, Azevedo traça uma cartografia musical desse ritmo, mostrando não apenas

a existência dele, mas também a força e a influência que teria no cotidiano de algumas áreas mais específicas da cidade.Tal reconstrução foi feita a partir da análise da relação de Geraldo com sua família e amigos, e de sua convivência no momento de trabalho e diversão.

Azevedo mostra como a análise dessas micro-áfricas pode elucidar a criação de uma cultura mista, heterogênea, que, para além da sociedade paulistana burguesa e branca, representou o múltiplo, resultado de diálogos, conflitos e misturas de culturas e formas de viver e conviver que criam aquilo que Antony Appiah35 denomina de “tela

multifacetada” própria de culturas formadas a partir do Atlântico Negro. Como

especifica:

No entanto, mesmo com a verticalização guiada por um conceito de monumentalidade da cidade, não se conseguem calar projetos dissonantes que se faziam na experiência social concreta. Geraldo viveu suas experiências no entre-lugar invisível da cidade dos fotógrafos, urbanistas, arquitetos e prefeitos. Por entre essa metrópole tentacular as culturas negras e mestiças irão, em alguns aspectos modificar, e em outros manter seus sentidos de existência. Diante de um espaço urbano que tenderia a alisar e padronizar as experiências, houve a penetração em fissuras não controladas pelo projeto hegemônico de cidade para se viver as musicalidades.36

Nos cinco capítulos em que sua obra está dividida, procura trabalhar os materiais que coleta em relação a Geraldo Filme: uma entrevista dele a um programa musical, um filme-documentário, letras de música e jornais, e desenvolve como isso pode, de alguma

33 AZEVEDO, op. cit.

34 De acordo com os jornalistas Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli: Numa noite em que seu amigo

Johnny Alf se apresentava numa boate paulistana, o poeta e letrista Vinicius de Moraes teria se envolvido num bate-boca com um grupo de pessoas por causa do barulho que faziam e proferido uma frase que

ficaria célebre: “São Paulo é o túmulo do samba”. RIBEIRO, Eduardo; BARONCELLI, Wilson. Que túmulo que nada. Jornalistas e Cia.Ano II – nº16 – 5/7/2013

35APPIAH, Kwame Anthony. Na Casa de Meu Pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro:

Contraponto, 1997, p. 11.

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maneira, ajudar a reconstruir memórias e histórias não contadas pela historiografia tradicional sobre São Paulo e mesmo sobre o samba.

O que se pretendeu esclarecer aqui, portanto, é que para estudar a cidade e as

transformações pelas quais ela passa no decorrer dos séculos, “dar ouvidos” a

personagens que, como verdadeiros flaneurs, desvendaram a cidade e suas entranhas, ao caminhar, observar, vivenciar e, por fim, contar pode ser, não apenas válido, mas bastante enriquecedor. Antônio Pedro Tota, em seu artigo Cultura, política e modernidade em Noel Rosa,37 estudando a cidade do Rio de Janeiro, apresenta um bom

exemplo de como seguir esse caminho: problematizando a figura de “crítico a sociedade burguesa”,38 atribuída a Noel Rosa, Tota analisa os percursos criados através de suas

composições e percebe que se tratavam de criações de um artista preocupado em contar aquilo que absorvia de seu meio. Em muitas de suas canções, emerge, então, uma crítica à sociedade brasileira, em particular, à carioca, das primeiras décadas do século XX; aos olhos de Noel, mesmo sendo cada vez mais moderna e economicamente mais submissa ao capital estrangeiro, podia fazer tremer de tensão e saudade os olhos e ouvidos dos mais atentos. Qual outro meio mais intenso poderia existir para explicitar certos acontecimentos, certas transformações, certas angústias trazidas pelo novo, do que a música de Noel? De que outra maneira mais direta seríamos levados a sentir saudade de um tempo que se foi, absorvendo e reelaborando informações, se não através de uma

canção que diz “Saudade do violão e da palhoça/ Coisa nossa... coisa nossa”.

Dessa forma, com a utilização dos alicerces teórico-metodológicos supracitados, pretende-se uma nova contribuição ao que se tem pensado acerca da música popular brasileira fugindo sempre do que Paul Gilroy chamaria de “nacionalismo cultural silencioso”39, que acredita-se aqui estar bastante presente nos escritos acerca do samba.

Apesar de as obras de Moraes, Matos e Azevedo terem uma outra cidade como objeto de análise, ou seja, São Paulo, seus métodos e abordagens são exemplares do que se busca construir e da postura a ser adotada neste trabalho, de historiadores preocupados em contar, através da música, a história de lugares e pessoas até então subjugados pela historiografia tradicional.

37TOTA, op. cit., p. 46.

38A ideia de dar mais ouvidos aos personagens comuns do dia a dia também pode ser pensada nas

questões trabalhadas por Walter Benjamin, em O narrador. Dissecando a própria questão da arte do narrar, Benjamin, através do estudo da vida e das obras do literato Nikolai Leskov indica como conhecer um legitimo narrador, aquele sujeito cada vez mais raro no mundo, que teria como função primordial

sugerir, sempre, uma “moral da história” naquilo que conta.

(29)

Sobre História e Identidade

Outras prerrogativas que foram abertas com a mudança dos paradigmas da

História dizem respeito aos chamados “estudos pós-coloniais”, que possuem como um de seus preceitos principais o “multiculturalismo”, que, principalmente após as décadas de 1980 e 1990, ganharão fôlego intenso e serão desenvolvidos em pesquisas que perpassam a teoria literária, a psicanálise, a filosofia, a antropologia, a política e a história.

Tais estudos possuem como uma de suas características, além da proposta de transversalidade, a busca por um diálogo que possibilite perceber os processos de colonização a partir de pontos de vista não mais pautados no discurso eurocêntrico das ex-metrópoles. Trata-se, como pontua Stuart Hall, de uma proposta que “relê a

colonização como parte de um processo global essencialmente transnacional e transcultural e produz uma reescrita descentrada, diaspórica, ou global das grandes

narrativas imperiais do passado centradas na nação”40.

Importante ressaltar, que o termo pós-colonial não pretende estabelecer meras periodizações baseadas em estágios, mas, para além disso, perceber as possíveis resultantes do processo de colonização como um período de influências múltiplas que continuam presentes nas histórias dos povos dominados e dominantes e que, se corretamente problematizados, podem ajudar na observação da história a partir de novos paradigmas.

Ainda de acordo com Hall,41 muito embora as sociedades multiculturais não sejam algo novo, afinal, os impérios grego, romano, islâmico otomano e europeu podem ser considerados multiétnicos e multiculturais, o final do velho sistema imperial europeu e das lutas pela descolonização e independência nacional e depois, o final da Guerra Fria, possibilitaram um novo impulso para os estudos que intentam novos meios de dizer o que já foi dito e ainda permitem que se fale acerca de tudo o que se calou durante boa parte da história.

Dessa forma, junto e em conjunto com as questões trabalhadas acerca do samba e das favelas cariocas, pretendeu-se, sobretudo, representar – tendo como alicerces as ideias levantadas por pensadores como o sociólogo português Boaventura de Sousa

40HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011,

p. 102.

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Santos,42o semiótico argentino Walter Mignolo,43 o poeta e etnólogo martiniquense Édouard Glissant,44 o literato cubano Antonio Benitez Rojo,45 o sociólogo inglês Paul Gilroy46 e o acima mencionado teórico cultural jamaicano Stuart Hall–uma contribuição efetiva no que diz respeito à produção de uma História que proponha diferenças horizontais, sem a existência de grupos ou características próprias de uma análise baseada em pensamentos de ordem capitalista, colonial e patriarcal. Pretendeu, portanto, fugir-se da lógica do samba enquanto produto de uma cultura nacional brasileira única e homogênea.

Em outras palavras, procurou construir-se um lugar sob luzes pós-eurocêntricas onde a cultura brasileira possa ser observada e discutida a partir daquilo que Glissant

chama de “culturas compósitas”, indicando que apenas através da abertura ao múltiplo e

aos personagens vistos até então como excluídos e desclassificados – personagens que, de maneira recorrente, estão presentes nas letras de Kéti –, uma história possível, justa e necessária pode ser construída.

Teremos, ainda, como um dos nortes de nossas explanações a noção trabalhada por Salomão Jovino da Silva47, quando discute as polifonias existentes nos protestos de grupos negros engajados de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, durante os anos de 1970 e 1980. De acordo com o autor, tais grupos buscavam um ponto de convergência entre as culturas residuais de origem africana e práticas culturais e artísticas contemporâneas, visando reconhecimento artístico, visibilidade social e legitimidade política. Dessa forma, a partir da manipulação de símbolos, imagens, alegorias, representações, ressignificações do passado grafadas nas letras, arranjos e instrumentações, teriam reinventado uma África sedenta por um espaço que, pelo menos desde o século XVI, vinha sendo aqui na América, negado. Através dessas

musicalidades urbanas, repletas da noção de “culturas compósitas” a pouco citada, seria

42SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Concepção Multicultural dos Direitos Humanos. Contexto

Internacional, n.23, v.1, 2001, p. 7-34.

__________________________. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, n.63, 2002, p. 237-80.

__________________________. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

43 MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em

política. In: Cadernos de Letras da UFF–Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008.

44 GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora, MG: UFJF, 2005. 45 BENITEZ ROJO, Antonio. La isla que se repite. Barcelona: Casiopea, 1998.

46GILROY, op. cit

47 SILVA. Salomão Jovino da. A polifonia do protesto negro: movimentos culturais e musicalidades

negras urbanas nos anos 70-80 em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. Dissertação (mestrado) –

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possível, portanto, identificar o contexto em que essas letras teriam sido criadas, num eterno construir-descontruir-reconstruir de identidades. Identidades, no plural, uma vez que tais práticas teriam sobrevivido na esteira dos séculos tendo como máxima a pluralidade de suas atuações e discursos nos quais, ainda de acordo com Salomão, a univocidade seria algo difícil, se não impossível, de ser localizado.48

Dessa forma, passamos por um momento, onde ocorrerá um embate/negação à hegemonia cultural de tendência majoritariamente branca, cristã, ocidental que em conjunto com a negação e a busca de caminhos possíveis frente ao contexto político instaurado no Brasil do pós-golpe civil-militar, encontrará um terreno fértil para germinar novos sujeitos ou mesmo, dar voz, a velhos sujeitos tão pouco considerados no decorrer de nossas História.

“Ela pensa que minha vida é uma beleza

Eu dou duro no baralho Pra poder comer A minha vida não é mole, não Entro em cana toda hora sem apelação

Eu já ando assustado, sem paradeiro

Sou um marginal brasileiro”

(Nega Dina, 1957)

Na letra de Nega Dina, tenta compreender-se o que significa a expressão

“marginal brasileiro” dentro da lógica levantada por Kéti, já que, através de tal

categorização da qualidade de marginal, abre-se espaço para pensar numa série de referências socioeconômicas que o compositor pretende indicar. Da mesma forma,

tomaremos “Malvadeza Durão” como exemplo:

“Mais um malandro fechou o paletó

Eu tive dó, eu tive dó

Quatro velas acesas em cima de uma mesa”

(Malvadeza Durão, 1964)

(32)

Assim, pretende-se aqui a observação da História a partir de ideias como as teorizadas por Boaventura de Sousa Santos,49 que defende a necessidade da construção de uma nova história baseada na horizontalidade e na justiça social que indiquem, de forma real e não apenas superficial, os meios pelos quais uma mudança de mundo pode ser conquistada.

Ele também indica que a ciência deve possuir, se pretende realmente transformar o mundo, preocupações que tanjam o que ele denominou a) Sociologia das Ausências, b) Sociologia das Emergências e c) Ecologia dos Saberes. Tais questões poderiam ser resumidas da seguinte maneira: aceitar mais conhecimentos e meios de viver e ver um mundo que possibilite um verdadeiro “conversar” sobre a humanidade.

Essa credibilidade contextual deve ser considerada suficiente para que o saber em causa tenha legitimidade para participar de debates epistemológicos com outros saberes, nomeadamente, com o saber científico. A ideia central da sociologia das ausências neste domínio é que não há ignorância em geral nem saber em geral. [...] Deste princípio de incompletude de todos os saberes decorre a possibilidade de diálogo e disputa epistemológica entre os diferentes saberes.50

Assim, ele defende a ideia de que “outros saberes” possam ser observados e nomeados como “saber científico”, uma vez que, apenas dessa maneira, poderiam

representar pistas ou documentos do que se pretende analisar.

Em conformidade com as ideias desse autor, Glissant irá propor, em seus estudos sobre identidades culturais, que o estudo dos povos, independentemente de quais forem, sejam feitos a partir dos próprios povos e não dos pressupostos metafísicos que durante séculos têm operado o sistema de racionalidade burguesa. Dessa forma, ele critica, entre outras características dessa ciência burguesa e eurocêntrica: o racionalismo

burguês, a transparência do real, a objetividade do conhecimento e os resultados “unos”

que tais formas de pensar o mundo e o homem podem sugerir. Para o autor, “O Uno não prevalece, nem tampouco o único, nem a unidade. A realidade os tritura e os realiza”.51

Ou seja, ao se propor o estudo do homem e das culturas e identidades que podem ser produzidas por esta teoria, deve-se partir do pressuposto de multiplicidade latente criada a partir da troca forçada ou não, característica de culturas que, como a cultura brasileira, sofreram com a escravidão dos nativos e, posteriormente, com a escravidão dos negros africanos.

(33)

Dessa forma, o autor estabelece que uma maneira eficiente de se empreender a busca por um conhecimento diferente desse modo mais limitado, herança do pensamento iluminista, seria a elaboração do pensamento poético, mais aberto e menos interessado em impor modelos de análise, entrelaçando fios de seu lugar cultural com a Totalidade-terra.

Em Rojo,52 autor também utilizado no sentido de auxiliar na construção do que se entende aqui como cultura brasileira, observamos a sua impressão de que a identidade caribenha – na qual a cultura brasileira está contida – seria difícil de classificar. Ele afirma que a aventura intelectual dedicada ao investigar o caribenho está destinada a ser uma busca contínua, uma vez que são culturas múltiplas e que, de certa forma, estarão sempre em processo de formação e transformação.

O trabalho aqui desenvolvido não pretende, de maneira alguma, estabelecer características únicas e fixas para o que seria a cultura brasileira e, dentro dela, o que representaria o samba. A intenção é, na verdade, corroborar com todos os autores anteriormente citados, numa intenção de reafirmar aquilo que disse Stuart Hall acerca dos pesquisadores que pretendessem estudar as identidades nacionais: o que se procura

aqui é “costurar as diferenças numa única identidade”,53 o que será sempre algo

múltiplo, tal qual uma colcha de retalhos que só pode ser costurada partindo de vários e diferentes pedaços e, por isso, será sempre única, mesmo se comparada a outras como ela.

Estrutura e Objetivos

Visando, portanto, a elucidar cada uma das temáticas supracitadas, este trabalho

está dividido em dois capítulos principais, cada um com três “subtemas” que, embora

possuam particularidades e especificidades, complementam-se em relação à problemática central desta monografia, que é, como já explicitado, observar a existência de uma identidade multifacetada– criada a partir da herança do Atlântico Negro e da

convivência desta com as demais diversidades existentes na “colcha de retalhos” que era

a cidade do Rio de Janeiro no início do século XX – por meio da produção musical e da vida de Zé Kéti.

52ROJO, op. cit.

Imagem

Figura 1 Nara Leão e Zé Kéti. 3
Figura 2 Planta Geral da Avenida Presidente Vargas. 55
Figura 3  Jornal do Brasil.  Especial "Jornal do Século", 1903. 73
Figura 4 A. Uma favela. B. Dois favelados em frente à construção do Juventus  AC.
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Referências

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