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A correlação entre ciência e técnica em Heidegger

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Academic year: 2021

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Acylene Maria Cabral Ferr

A correlação entre ciência e técnica em Heidegger

Resumo

Nosso intuito é investigar a correlação entre ciência e técnica, com o objetivo de mostrar que na ciência experimental o ente torna-se disponível e real no procedi- mento investigativo. Enquanto disponível, o ente torna-se objeto, isto é, ele tem sua existência comprovada e sua realidade assegurada. Nesta perspectiva, pretende- mos expor que a disponibilidade fundamenta tanto a objetividade do ente quanto a subjetividade do sujeito. Na medida em que o sujeito somente pode conhecer o objeto enquanto ente disponível no dispositivo experimental, entendemos que o ente é o produto e o sujeito o produtor do real. Nossa hipótese consiste no caráter de metamorfose do sujeito e do objeto. Qual seja, o sujeito torna-se um expectador do real e o objeto uma simulação da realidade. Num sentido amplo, indicaremos que a ciência, a técnica e a tecnologia produzem o real como disponível no sentido de elaboração e construção de realidades através de procedimentos investigativos e experimentais que prevêem, direcionam e determinam a concepção de mundo da moderna Contemporaneidade.

Palavras-chave: ciência; técnica; correlação; disponibilidade; experimentação.

Abstract

In the present paper we seek to investigate the correlation between science and technology. We aim to show that in the research procedures of experimental science entities become available and real. Converted into available things, entities have their existence ascertained and secured and thus become objects. Availability founds both the objective character of entities as the subjectivity of subjects. Given that an object can only be known by a subject insofar as it is available in the experimental

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procedure, objects come to be understood as products and subjects as producers of the real. Our hypothesis thus highlights the metamorphosis of subject and object, the process whereby the subject becomes a spectator of the real and the object a simulation of reality. More generally, we will show how, through investigative and experimental procedures that foreshadow, direct and determine the worldview of contemporary modernity, science and technology produce the real as availability.

Keywords: science; technology; correlation; availability; experimentation.

Introdução

Trataremos da correlação entre técnica e ciência a partir dos textos O tempo da imagem do mundo (1938), Ciência e pensamento do sentido e A questão da téc- nica (1953). De acordo com estes textos de Heidegger a ciência e a técnica se fundamentam na metafísica moderna, isto é, se estruturam através da concep- ção do mundo como objeto e do homem como sujeito. Enquanto modo de conhecimento produzido pelo sujeito, a ciência e a técnica são modos de ser do homem. Isto significa que a ciência e a técnica são antes de tudo ontológi- cas. Entretanto, a relação que naturalmente fazemos entre ciência e técnica é aquela estabelecida por Heisenberg em sua conferência A imagem da natureza na física moderna, proferida em 1953, no mesmo congresso em que Heidegger proferiu a conferência A questão da técnica. Assim como Heidegger, Heisen- berg também estabelece uma correlação entre ciência e técnica, “segundo a qual a física e a técnica encontram-se em uma relação de dependência ou de pressuposição recíproca – a técnica sendo uma aplicação da ciência física no domínio da natureza e, inversamente, a física se utilizando dos aparelhos técnicos em seus protocolos experimentais.”1 Conforme Heidegger esta cons- tatação de dependência da física e da técnica estabelecida por Heisenberg é

“apenas uma mera constatação histórica de fatos e não diz nada a respeito do fundo e do fundamento em que se baseia esta dependência recíproca.”2 Por que Heidegger e Heisenberg, pensadores de áreas distintas do conhecimento e com argumentos diferentes, defendem o mesmo pressuposto, qual seja, a

Pradelle, Dominique. Science et technique chez Heidegger. In: Heidegger, le danger et la promesse.

Bensussan, Gérard; Cohen, Joseph (Org.). Paris: Kimé, 2006, p. 288.

Heidegger, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, p. 18.

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reciprocidade fundamental entre ciência e técnica? É possível falarmos de uma ciência tecnicista e de uma técnica científica? Por que a partir da Moder- nidade ciência e técnica tornaram-se inseparáveis?

Calcular como expectativa de resultados

“Como a arte, a ciência tampouco é, apenas, um desempenho cultural do homem. É um modo decisivo de se apresentar tudo que é e está sendo. [...]

a essência da ciência. Pode-se dizê-lo numa frase concisa: a ciência é teoria do real.”3 Qual a implicação desta afirmação de Heidegger? Que a investigação é o fundamento da ciência moderna, já que ela possibilita a produção de teorias e com isto o avanço de uma determinada área específica do conheci- mento. Podemos acrescentar que um dos principais requisitos para o avanço de qualquer conhecimento investigativo consiste na abertura e na mobilida- de do investigador em abandonar ou alterar a hipótese escolhida, caso esta se apresente como inadequada ou insuficiente para resolver o problema da investigação. Outro requisito importante para o avanço da investigação é a delimitação apurada do projeto, visto que este traça previamente o trajeto investigativo em direção aos resultados esperados.4 Quanto mais o projeto delimitar as suas hipóteses ao âmbito do problema a ser investigado, quanto mais abertura e mobilidade o investigador tiver em relação às suas hipóteses, tanto mais sucesso a investigação terá e tanto mais especializada esta ciência se tornará. O que permite a ciência a especializar-se e a cercear cada vez mais o seu âmbito de investigação?

Na medida em que partimos do pressuposto que o fundamento da ciên- cia é a metafísica moderna, podemos afirmar que a especialização da ciência provém da concepção de ente como objeto do conhecimento e de sujeito como investigador que elabora teorias sobre o real. Por quê? Enquanto ob- jeto do conhecimento, qualquer ente pode ser submetido à experimentação, previsões, definição de suas propriedades, determinação de suas funções etc.

Isto é, o sujeito investigador prevê, elabora e determina o modo de ser no qual o ente é objetivado desta ou daquela maneira. Por isto, podemos definir

Idem. Ciência e pensamento do sentido. In: Ensaios e conferências, p. 39, 40.

Cf. Idem. O tempo da imagem do mundo. In: Caminhos de floresta. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p. 99.

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o elétron tanto como partícula quanto como onda, dependendo do disposi- tivo experimental que utilizarmos. Este fato nos permite inferir que o ente, enquanto objeto do conhecimento experimental está submetido ao cálculo, seja no sentido matemático ou no sentido de expectativa de produção de re- sultados esperados no fim do procedimento investigativo. Nesta perspectiva,

“calcular significa contar com alguma coisa, ou seja, levá-la em consideração e observá-la, ter expectativa, esperar dela alguma outra coisa.”5 Quer dizer, na investigação científica o ente pode ter sua existência simulada em laboratórios através de dispositivos e de equipamentos de precisão utilizados na experi- mentação. É importante sublinhar que o dispositivo experimental provoca o aparecimento do ente. Isto implica em que o ente investigado somente tem sua realidade tangível a partir das conjecturas do procedimento investigativo e da prescrição do dispositivo experimental. Mediante a correlação do proce- dimento investigativo e do dispositivo experimental, o investigador elabora e fundamenta a existência do ente e seu modo de ser através de uma teoria, que expõe o ente investigado e o institui como real. Neste sentido, a ciência é uma teoria do real. Isto significa que na ciência a realidade se institui como uma explicação, que representa a clarificação dos fatos previstos e acontecidos na experimentação.

Filosoficamente, o que acontece quando acessamos o real mediante te- orias produzidas pelos procedimentos investigativos através de dispositivos experimentais? O ente se torna disponível, já que ele é descoberto a partir de sua disponibilidade para acontecer na experimentação científica. Como?

Novamente, pensemos no caso do elétron. Sabemos que ele somente ganhou realidade a partir de investigações realizadas com dispositivos experimentais no final do século XIX e início do século XX. Temos conhecimento de que há elétron por toda parte, mas somente podemos falar dele através da expe- rimentação científica, porque é ela que o torna disponível, como objeto, para os investigadores. Enquanto objeto do conhecimento, o ente disponível na investigação pode ser descrito com propriedade e realidade. Os avanços cien- tíficos concernentes a disponibilidade do elétron decorreram das pressuposi- ções teóricas e das experiências com os dispositivos elaborados e construídos, com precisão, pela investigação científica. Esta nossa constatação pode ser atestada pelo princípio da incerteza de Heisenberg, pois este expõe a neces- sidade de dispositivos tecnológicos e de equipamentos de precisão para de- terminar a posição de um elétron. Isto implica que em experimentos da física

Idem. Ciência e pensamento do sentido, p. 50.

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contemporânea é impossível separarmos o ente investigado do dispositivo experimental. Eis porque afirmamos que o ente aparece como disponível e, logo, como objeto na investigação. Assim, corroboramos que o ente é des- coberto no dispositivo experimental como fora previsto e pressuposto pela investigação. Este fato comprova que, na investigação experimental, calcular tem também o sentido de realizar a expectativa de resultados prometidos e esperados. Ora, esta afirmativa nos remete para a correlação entre ciência (en- quanto teoria e investigação) e técnica (enquanto dispositivo experimental e tecnológico de precisão). Nesta correlação, o ente torna-se disponível e, con- comitantemente, real. Na medida em que o ente é disponível e real, ele tem sua existência comprovada e sua realidade assegurada. Neste momento, vale salientar que nesta correlação específica entre ciência e técnica ou tecnologia, muitas vezes, é difícil produzir o acontecimento do ente disponível tal como na experiência anterior e, outras vezes, é impossível repetir o aparecimento do ente disponível, na experiência científica, da mesma forma e identicamen- te como apareceu em experimentos anteriores.

O caráter de consistência da disponibilidade

Frente a nossas considerações sobre a correlação entre ciência e técnica, pode- mos afirmar que a ciência experimental, além de caracterizar o ente como dis- ponível, é intervencionista, porque o investigador elabora constructos teóricos que explicam e fundamentam entes que estão presentes em nosso cotidiano, mas que apenas podemos acessá-los e conhecê-los via dispositivos experimen- tais. Pois, somente a partir da experimentação estes entes se tornam reais para nós. Ou seja, a disponibilidade do ente é viabilizada teoricamente pela expli- cação e esclarecimento produzidos pela investigação. Isto nos permite afirmar que a investigação dá consistência e realidade aos entes disponíveis nos dispo- sitivos experimentais. Como exemplificação desta nossa afirmativa, podemos citar ainda o caso dos fótons, mésons, neutrinos, quarks etc. Nesta perspec- tiva, “nós já nos movemos, se nós olharmos penetrantemente, num mundo onde já não existem ob-jectos (Gegen-stände). Mas esta des-ob-jectualidade (Gegen-standlose) não é ainda o sem-objecto (Standlose). Pelo contrário, vem até acima na des-ob-jectualidade uma outra consistência (Ständigkeit).”6 Esta

Idem. O princípio do fundamento. Lisboa: Instituto Piaget, s/d, p. 57.

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consistência a que Heidegger se refere, podemos denominá-la de disponibili- dade. Com isto queremos dizer que na ciência experimental a disponibilidade é a consistência que dá objetividade ao ente como disponível. Neste sentido, a disponibilidade é desobjetualidade do ente no modo de ser disponível no dispositivo experimental. Dessa forma, o modo de objetivação do ente desloca o sentido de objeto como entes que comumente encontramos, acessamos e conhecemos em nosso cotidiano para o sentido de objeto como entes que so- mente encontramos, acessamos e conhecemos na investigação por intermédio do dispositivo experimental. Motivo pelo qual a disponibilidade, enquanto desobjetualidade não é de todo sem objeto, já que o ente disponível na ex- perimentação torna-se objeto para o conhecimento. Por isto, dizemos que a objetividade do ente disponível acontece na investigação e nos dispositivos experimentais, os quais são aparatos técnicos, tecnológicos ou equipamentos de precisão. Ora, esta nossa consideração coincide tanto com a afirmação de Heidegger: “a ciência é uma teoria do real”, quanto com a afirmação de Hei- senberg: a técnica é uma aplicação das teorias científicas. Mas, como a ciência poderia avançar sem os dispositivos técnicos e tecnológicos, que lhe permite realizar com acuidade a investigação teórica? Como a técnica ou tecnologia po- deria desenvolver-se sem utilizar os avanços teóricos da ciência? Estas pergun- tas nos remetem para a nossa questão inicial: qual a correlação entre ciência e técnica? A consideração que fizemos aqui de que o ente disponível se torna o ente que ele é a partir de procedimentos previstos teoricamente e atestados através de dispositivos técnicos ou tecnológicos, implica em que consideramos o ente como processável pela ciência e pela técnica ou tecnologia. Esta consta- tação nos permite dar um passo à frente, visto que a partir dela podemos acres- centar que a correlação entre ciência e técnica consiste em uma composição (Gestell) que concede o real como ente disponível no procedimento teórico.

A objetividade se transforma na constância da dis-ponibilidade determina- da pela com-posição. Só assim a relação sujeito-objeto chega a assumir seu caráter de “relação”, ou seja, de dis-posição em que tanto o sujeito quanto o objeto se absorvem em dis-ponibilidades. Isso não significa que a relação sujeito-objeto desaparece mas, ao contrário, que somente agora atinge seu completo vigor já predeterminado pela composição. Ela se torna, então, uma dis-ponibilidade a ser dis-posta.7

Heidegger. Ciência e pensamento do sentido, p. 52

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Quer dizer, a composição, que fundamenta e estrutura a ciência, a técnica e a tecnologia, institui não apenas o ente disponível como objeto na disponibili- dade, mas correlativamente institui também o sujeito como disponibilidade, pois na medida em que o sujeito investiga o ente mediante dispositivos expe- rimentais, ele se coloca como um expectador do acontecimento do ente que se processa e acontece no experimento. Nesta perspectiva, podemos afirmar que o sujeito, na investigação científica e experimental, ganha consistência mediante o caráter de disponibilidade. Denominamos esta consistência do sujeito de ex- pectador. Caracterizamos o sujeito de expectador porque o seu modo de ser na experimentação é o de expectativa que o experimento lhe conceda o resultado previsto e pressuposto pela investigação, ou seja, o sujeito investigador tem a expectativa de que o experimento torne disponível o ente investigado. Assim, o sujeito investigador é o sujeito expectador. Nesta medida, o ente disponível é o produto como objeto da investigação experimental e o sujeito expectador é o produtor da disponibilidade do objeto para o conhecimento científico. O su- jeito como expectador é, ao mesmo tempo, um espectador dos acontecimentos, porque enquanto ele está na expectativa e na espera do acontecimento do ente no dispositivo experimental, ele também observa, assiste e testemunha a produ- ção dos entes disponíveis como objeto para o conhecimento no procedimento investigativo e experimental. É importante ainda acrescentar que a palavra “ex- pectador” além de acolher o sentido de espectador, simultaneamente, engloba o sentido de antecipação do acontecimento de algo contido na palavra “expec- tativa”. Pois, quando estamos na expectativa, já antecipamos, de alguma forma, como algo acontecerá. E, concomitantemente, aguardamos e esperamos que este algo aconteça tal qual nós o projetamos. O caráter de antecipação contido na expectativa é mais um motivo para concebermos o sujeito como expectador.

Por quê? Pelo fato de o caráter de antecipação fundamentar tanto o projeto que guia a investigação, quanto o método que direciona a experimentação.

A metamorfose do sujeito e do objeto

Conforme assinalamos, com a absorção do sujeito e do objeto como disponi- bilidade surge outro modo de consistência e, portanto, de concepção destas instâncias. De acordo com nossas considerações anteriores, esta outra con- sistência do sujeito consiste no modo de ser expectador. Porém, qual é a consistência do objeto na disponibilidade? Se, como vimos, o sujeito expec- tador é produtor do ente disponível como objeto, então podemos dizer que a

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consistência do objeto, enquanto produto da experimentação investigativa, é o ente simulado como real no dispositivo experimental. Que mudança advém da concepção de sujeito e de objeto como disponibilidade?

Na disponibilidade, o sujeito expectador conhece o objeto somente quan- do este se torna disponível no experimento investigativo. Isto significa que a investigação através do dispositivo experimental, provoca o aparecimento do ente, que se torna disponível como objeto para o conhecimento. Donde podemos certamente inferir que o sujeito expectador não conhece o ente disponível como objeto tal como este ente se apresenta para ele no cotidiano.

Lembremos do elétron: por acaso podemos apontá-lo em nosso cotidiano tal qual ele aparece como ente disponível e como objeto do conhecimento no dispositivo experimental? Não. O que nos permite afirmar que na disponi- bilidade o sujeito do conhecimento é investigador enquanto expectador do acontecimento do real, e que o ente torna-se objeto do conhecimento quando simulado na experimentação. É preciso salientar que apenas quando o obje- to e o sujeito são absorvidos e determinados pela disponibilidade, podemos falar de uma relação entre ambos. Por quê? Justamente porque a disponibi- lidade é o fundamento ontológico tanto do sujeito quanto do objeto. Parece que neste copertencimento de fundamentação ontológica, a dicotomia entre sujeito e objeto do conhecimento desaparece. Como? Na medida em que o objeto somente está disponível no experimento teórico e o sujeito é o provo- cador e simulador da realidade, confirmamos que o sujeito é o produtor do real e o objeto é o produto como real. Nesta perspectiva, o sujeito somente pode conhecer o objeto e este tornar-se conhecido a partir dos resultados pro- duzidos no dispositivo experimental. Isto é, na disponibilidade não há sujeito nem objeto do conhecimento sem a investigação experimental.

Neste momento, faz-se necessário apontar o caráter de metamorfose do su- jeito e do objeto. O sujeito investigador da realidade se metamorfoseia em sujeito expectador do real e o ente disponível como real se metamorfoseia em objeto que simula a realidade. Num sentido amplo, podemos dizer que a ciência, a técnica e a tec- nologia produzem o real como disponível no sentido de elaboração e construção de realidades através de procedimentos investigativos e experimentais que pre- vêem, direcionam e determinam a concepção de mundo da moderna Contem- poraneidade. Dentre estes procedimentos podemos citar o cálculo, a precisão, o rigor e o método. Enquanto na ciência é o projeto que direciona, antecipada- mente, a investigação, na técnica é o método que direciona e conduz, previa- mente, o percurso dos entes no procedimento experimental. Isto quer dizer que ciência e técnica têm um caráter antecipativo. Assim, a produção dos entes na técnica se efetiva de modo calculado e preciso por seguir com rigor um método

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que define, antecipadamente, o modo de acontecimento dos entes. A finalidade de tais procedimentos metódicos e experimentais é submeter o acontecimento do real ao menor grau de incerteza, assegurando-lhe a precisão de sua verdade.

Portanto, podemos entender a realidade produzida pela ciência e pela técnica como um constructo teórico que explica e clarifica o acontecimento dos fatos que ocorrem em nosso cotidiano. Cabe sublinhar que apesar de o ente dispo- nível na investigação experimental ser existente e presente em nosso cotidiano, somos incapazes de percebê-los e conhecê-los sem a mediação dos dispositivos experimentais, dos equipamentos de precisão e dos procedimentos teóricos, que antecipam e direcionam a disponibilidade objetiva dos entes como realidade.

A representação processadora, que assegura e garante todo e qualquer real em sua objetidade processável, constitui o traço fundamental da repre- sentação com que a ciência moderna corresponde ao real. O trabalho, que tudo decide e que a representação realiza em cada ciência, constitui a elabo- ração que processa o real e o ex-põe numa objetidade. Com isto, todo real se transforma, já de antemão, numa variedade de objetos para o asseguramento processador das pesquisas científicas.8

Seguindo esta linha de raciocínio, podemos afirmar que a composição, es- truturadora da técnica e da ciência, assegura e garante o modo de ser do sujeito e do objeto, qual seja, a disponibilidade antecipada. Dessa maneira, a realidade é de certa forma encomendada, pois na técnica há a determinação antecipada do produto pressuposto como real pelo método, e na ciência há a determinação an- tecipada da produção da realidade prevista pelo projeto. Melhor dizendo, tanto o método quanto o projeto asseguram o modo de ser disponível dos entes. Por este motivo, podemos considerar a técnica, a tecnologia e a ciência como um modo de acontecimento do ser e, conseqüentemente, como um modo de acontecimen- to da verdade. Enquanto estruturadas pela composição, a técnica, a tecnologia e a ciência acontecem como uma correlação de copertença e codependência entre o asseguramento no ente e a possibilidade da experiência do ser. Como?

A essência da técnica moderna se mostra no que chamamos de com-posição.

[...] Com-posição é a força de reunião daquele “por” que im-põe ao homem des-cobrir o real, como dis-ponibilidade, segundo o modo da dis-posição.

[...] Com-posição (Gestell) denomina, portanto, o tipo de desencobrimento que rege a técnica moderna, mas que em si mesmo, não é nada técnico.9

Idem. Ciência e pensamento do sentido, p. 48.

Idem. A questão da técnica, p. 26, 27, 25.

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Dessa maneira, a composição é o fundamento da técnica na medida em que ela é o modo de desencobrimento antecipativo, que rege o modo de ser do ente na Modernidade e na Contemporaneidade. Porque a composição é es- truturada como antecipação, entendemos que o modo de ser do ente tem o caráter de encomenda, pois, como vimos, o seu acontecimento é previsto no projeto, que guia a investigação e predeterminado no método, que direciona a experimentação. Enquanto encomenda, o ente é disponível e a realidade determinável pela composição no modo de desencobrimento do ser como as- seguramento no ente e experiência do ser. Visto que partimos do pressuposto que ciência e técnica participam de uma correlação de copertencimento e de codependência, caracterizamos, por um lado, o modo de desencobrimento da composição, que estrutura a ciência e a técnica, de asseguramento no ente, porque ambas conservam e resguardam o ente conhecido e se prendem ao ente disponível como objeto. Este recurso assegura as verdades da ciência e da técnica, permitindo-lhes a avançarem no âmbito da investigação. Por outro lado, caracterizamos o modo de desencobrimento da composição, que fundamenta a ciência e a técnica, de experiência do ser, porque o desenco- brimento antecipativo que caracteriza a composição exige também o empe- nhar-se do sujeito investigador enquanto expectador. À medida que o sujeito está centrado no ente disponível e no objeto conhecido (no asseguramento no ente), ele se projeta para a experiência do ser, possibilitando que o ente desconhecido se torne disponível e acessível para o conhecimento. Assim, a composição, enquanto reúne e conserva o asseguramento no ente e a expe- riência do ser, “fundamenta algo desconhecido através de algo conhecido e verifica, ao mesmo tempo, este conhecido através daquele desconhecido.”10

Conclusão

Como podemos apontar o caráter da composição na ciência e na técnica? A partir da abertura e da mobilidade do investigador em fundamentar-se no conhecido para explicar o desconhecido. Neste sentido, o investigador, en- quanto expectador, faz a experiência do ser, quer dizer, provoca a produção do ente disponível através da experimentação prevista pela teoria científica, fundamentando assim o acontecimento da realidade. Motivo pelo qual afir-

Idem. O tempo da imagem do mundo. In: Caminhos de floresta, p. 102.

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mamos, anteriormente, que a composição é o fundamento da ciência e da técnica, já que ela reúne os modos de desencobrimento caracterizados pela antecipação: o asseguramento no ente disponível como objeto do conheci- mento na investigação e a experiência do ser enquanto produção antecipada do real, o qual aparece como produto no dispositivo experimental. Porque estes modos de desencobrimento da composição são antecipativos, eles acon- tecem no modo de abertura e de mobilidade do investigador no projeto cien- tífico, que direciona a investigação; e no modo de previsão do ente disponível no método, que regula o dispositivo experimental. Daí, temos condições de afirmar que o caráter antecipativo da composição produz o real como teoria na investigação experimental. E ainda que a teoria assegura e garante a fun- damentação da realidade com rigor e precisão. Pautados nesta afirmativa, podemos indicar que na técnica o caráter antecipativo da composição é o método, o qual provoca e predetermina o desencobrimento do ente como objeto disponível para o conhecimento. E que na ciência o caráter antecipa- tivo da composição é o projeto, o qual prevê e pressupõe o modo de ser do ente como disponível. Temos, portanto, dois momentos do ente disponível:

primeiro, ele é pressuposto e previsto como real no projeto da investigação científica e, segundo, ele é provocado e simulado como realidade pelo mé- todo no dispositivo experimental. Ora, se a composição reúne em si tanto o desencobrimento da realidade como asseguramento no ente, quanto o desen- cobrimento do real como experiência do ser, então a composição é um modo antecipativo de produção do real e de simulação da realidade. Diante desta consideração nos resta perguntar: por que Heidegger afirma que “o desenco- brimento que rege a técnica moderna não é nada de técnico”?

Porque a composição é o modo de desencobrimento do ser na Moder- nidade e na Contemporaneidade. Neste sentido, a composição consiste na possibilidade de o sujeito do conhecimento deslocar-se do asseguramento no ente para a experiência do ser e reciprocamente. Neste deslocamento o sujeito investigador enquanto expectador se abre para novas possibilidades de desencobrimento dos entes e de inovação de dispositivos técnicos e tecno- lógicos. Portanto, no modo de desencobrimento da composição, o real é pro- duzido pela investigação como teoria e a realidade é o produto fundamentado no dispositivo experimental como imagem do real. Nesta perspectiva, a com- posição é um modo de ser do sujeito do conhecimento que determina o modo de ser da ciência e da técnica como disponibilidade, por isto, a composição não é técnica nem científica. No entanto, “se o Gestell [composição] é um destino da essência do ser, então ousamos presumir que o Gestell enquanto

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um modo dentre outros dos modos de ser se metamorfoseia.”11 É justamente no metamorfosear da composição que acontece o deslocamento recíproco do asseguramento no ente para a experiência do ser. Enquanto metamorfose do desencobrimento de ser e ente, a composição fundamenta e estrutura, tanto o modo de ser da ciência, da técnica e da tecnologia como disponibilidade que absorve o sujeito; quanto o modo de ser do ente disponível como objeto para o conhecimento teórico e experimental. Assim, a composição metamorfoseia o sujeito e o objeto do conhecimento em disponibilidade. Nesta metamorfose o sujeito é um expectador do real e o objeto é uma simulação da realidade.

Idem. Le tournant. In: Questions III e IV. Paris: Gallimard, p.310.

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Referências

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