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Musicais De Chumbo: O figurino de Joana, Gota D água {Preta}

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Academic year: 2021

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Musicais De Chumbo: O figurino de Joana, Gota D’água {Preta}

Letícia dos Santos Rodrigues Pinto1

Resumo: Dentro das produções de teatro musical autoral no Brasil a categoria dos Musicais de Chumbo, escritos durante a ditadura militar, tem como destaque a obra Gota D’Água de Chico Buarque e Paulo Pontes. Este artigo apresenta a análise da construção do figurino de Joana em Gota D’Água {Preta} baseando-se na representatividade do corpo preto no contexto sociopolítico do país.

Palavras-chave: Gota D’Água, Musicais de Chumbo, Brasil, Figurino.

Abstract: Within the productions of authorial musical theater in Brazil, the category of Musicais de Chumbo, written during the military dictatorship, highlights the work Gota D'Água by Chico Buarque and Paulo Pontes. This article presents an analysis of the construction of Joana's costume in Gota D'Água {Preta}, based on the representation of the black body in the country's sociopolitical context. Keywords: Gota D'Água, Musicais de Chumbo, Brazil, Costume.

Resumen: Dentro de las producciones de teatro musical de autor en Brasil, la categoría de Musicais de Chumbo, escritos durante la dictadura militar, destaca la obra Gota D'Água de Chico Buarque y Paulo Pontes. Este artículo presenta un análisis de la construcción del traje de Joana en Gota D'Água {Preta}, a partir de la representación del cuerpo negro en el contexto sociopolítico del país.

Palabras clave: Gota D'Água, Musicais de Chumbo, Brasil, Diseño de vestuario.

1Estudante do bacharelado em Artes Cênicas do Centro Universitário Belas Artes e da licenciatura

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Introdução

A ditadura militar marcou o contexto sócio-político do Brasil na década de 1970, por meio do enclausuramento político, da violência armada e da censura a todos os meios de comunicação, produções artísticas e intelectuais. A pós-doutora em Literatura Brasileira, Maria Sílvia Betti, escreveu para o livro História do Teatro Brasileiro (2013) que a atmosfera de sufocamento e falta de liberdade fez com que os dramaturgos criassem personagens emblemáticos que empregavam em si traços deste contexto. Entre eles destaca-se Joana, protagonista da obra de teatro musical Gota D’água (1975).

A peça foi escrita pelos dramaturgos Chico Buarque e Paulo Pontes, inspirados na adaptação de Oduvaldo Viana Filho sobre Medeia de Eurípedes. Em 431 a.C., o dramaturgo grego escreveu sobre uma mulher feiticeira, Medéia, que foi contra o pai ao proteger e fugir com um rival, Jasão. Depois de anos de casamento e dois filhos concebidos, ela é substituída por uma mulher mais jovem, e, como em um ato de vingança para acabar com a linhagem do homem, cria um feitiço que mata seus filhos, ascendendo desta maneira ao Olimpo.

Em Gota D’água, Joana é uma mulher de meia idade ligada às religiões de matrizes africanas e moradora de um conjunto habitacional no subúrbio carioca da Vila do Meio-Dia com seus dois filhos e seu marido Jasão. Ele que se inicia na carreira como cantor e compositor de samba abandona a família para casar-se com a filha rica do proprietário do imóvel e corrobora com o despejo de Joana e seus filhos. Diferente de Medeia, Joana além de matar seus filhos opta pela morte tomando ela também o veneno.

Este artigo é uma continuação dos estudos realizados na pesquisa As fases do Teatro Musical Autoral Brasileiro: Uma Proposta de Classificação realizada no Programa de Iniciação Científica do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo nos anos de 2019 e 2020, no qual pode-se analisar a produção em teatro musical autoral no país durante os últimos 53 anos e construir o recorte de

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quatro fases, sendo elas: 1ª. Musicais de Chumbo, 2ª Musicais de Personificação, 3ª Musicais de Berço e 4ª Musicais de Inquietudes.

De acordo com a pesquisa realizada anteriormente classificou-se como Musicais de Chumbo aqueles que a dramaturgia foi escrita durante a ditadura militar brasileira e possuem teor sociopolítico, questionamento de liberdade, críticas a figuras que detém poder e dinheiro e um texto com impacto e alusão independente da época que é remontado. Ou seja, Gota D’Água pertence a esta categoria, pois constantemente cria-se em suas montagens paralelos com o contexto político contemporâneo. A estética visual torna-se uma ferramenta de extrema importância para contribuir com a relação proposta.

A visualidade também é uma dramaturgia estabelecendo códigos próprios, os elementos visuais ajudam a contar a história, e, tem a capacidade de ampliar os significados históricos, políticos e simbólicos -trazendo muitas camadas para a fruição leitura da obra artística. (LOPES, 2021)

Gota D’Água {Preta}

Em 2019 o Coletivo Negro estreou a adaptação Gota D’Água {Preta} em São Paulo sob idealização e direção de Jé Oliveira. O processo iniciou em 2017, e, com as eleições presidenciais brasileiras aproximando-se, o campo sociopolítico serviu de palco para debates e extremismo de opiniões. De modo que obra tornou-se para o diretor necessária por tratar de diversas camadas sociais como conta em entrevista realizada para a autora deste artigo:

Aquela história, pra mim, quando eu reli não tinha mais sentido se ela não fosse feita por pessoas pretas porque a história socialmente, historicamente leva a crer que aquelas pessoas são pretas por conta da condição social delas. E por conta da presença da religião de matriz africana tão forte como é no Gota D'Água. Aí falei “preciso montar essa peça”. E achei também que o conteúdo dela dialoga muito com a condição política do nosso país. As aproximações com o período da ditadura civil militar é a cada vez mais forte com esse governo que assumiu de direita e a peça

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também trata disso. Na peça de 75 estava em plena ditadura e estava em pleno AI 5. Para mim era perfeito para tratar das questões mais urgentes que a gente tem como país no momento: a questão de gênero (das mulheres pretas), a questão racial e a questão política. (OLIVEIRA, 2020.)

Reafirmando a importância de Gota D’Água Preta dentro da perspectiva contemporânea, o assistente de direção e figurinista, Éder Lopes, comenta para a produção deste artigo:

A Medéia carioca escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes infelizmente continua a existir em nossos tempos, essa tragédia atravessou décadas e insiste em se repetir em morros, quebradas e periferias por todo o Brasil, história que precisa ser contada, ainda levando em consideração as questões raciais. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, mulheres sofrem diariamente violência domestica e o índice de feminicidio acabou de aumentar, a especulação imobiliária cresce vertiginosamente e personagens como Creonte dominam a economia e estão no poder do país aumentando a desigualdade social. (LOPES, 2021)

Inicialmente fizeram um estudo aprofundado da obra e das pautas que queriam abordar, além de várias rodas de conversas entre os profissionais da montagem. A peça ganhou destaque por ser a primeira montagem realizada com um elenco e equipe majoritariamente preto e pela investigação do diretor sobre o texto mecânico, um áudio/texto que um DJ insere ao longo da peça, neste caso falas com discursos de ódio à corpos pretos e apoio à ditadura militar proferidas pelo atual presidente da república Jair Messias Bolsonaro.

O ator e músico do projeto Salloma Salomão diz no vídeo #Desmontagem | Gota D'Água {PRETA}: A Cor, o Corpo, a Voz e a Veia da tragédia no canal do Youtube Sesc Pompéia, sobre os reflexos da decisão de Jé Oliveira em um elenco preto:

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Este espetáculo vem à tona em um contexto de discussão sobre a criação teatral no Brasil e o quanto essa produção teatral tem sido uma exclusividade de uma pequena elite cultural branca. Quando Jé Oliveira faz a opção de sequestrar uma obra feita por dois dramaturgos da elite intelectual branca à um propósito político e estético nisso, porque ele levanta uma série de perguntas sobre a humanidade e sobre a humanidade dos negros. (SALOMÃO apud POMPÉIA, 2018)

O figurino de Joana

Segundo o diretor a proposta de encenação era criar na cenografia e no figurino uma atemporalidade. A estética baseou-se em um atravessamento de referências da década de 1970 com elementos das comunidades de periferias dos dias atuais, pois queriam criar e construir a favela no imaginário do público.

A paleta dos figurinos varia entre tons de azul claro, amarelo claro, vermelho, vinho e alaranjado que tem como inspiração o samba carioca, a estética dos anos de 1970 e a umbanda. Segundo o figurinista, cada personagem foi associado a um orixá de acordo com sua personalidade e assim as cores foram associadas como consequência.

Ter nos figurinos de Gota d’água {PRETA} indícios da década de [19]70, faz com que a encenação contemporânea relacione-se com a obra original e evidencia a questão social aguda que se arrasta no Brasil até os dias atuais. O projeto de figurino pretende ser menos carregado de teatralidade, característica de musicais tradicionais, e mais próximo de expedientes realistas buscando a simplicidade da vida nos morros, mesclando a elegância das rodas de samba, camisas de algodão e seda, priorizando tecidos menos sintéticos, as golas maiores dos paletós de Jasão e seus amigos de boteco, detalhe de estampas africanas no vestido preto de Joana e florais afro-brasileiros de suas amigas de Vila. (LOPES, 2021)

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Foto 1: Joana de Gota D’Água {Preta} interpretada por Juçara Marçal

Foto disponibilizada por Vanderlei Yui

Ao responder sobre como foi construído o desenho do figurino de Joana nesta montagem, Lopes conta que inicialmente partiu da indicação proposta pela dramaturgia original em que a personagem vestia-se de preto como uma representação de seus sentimentos internos. Porém acrescentou-se a oposição de Joana e Jasão, onde ele usava branco, em busca da simbologia em que Joana aceitava sua negritude enquanto Jasão se embranqueceu.

Existe um contraste entre Branco e Preto, que em muitas culturas são extremos opostos e muitas vezes a representação do masculino e feminino, mas para além desta simbologia, a gota d’água nessa versão é preta, Joana a protagonista que é vilipendiada tem seu figurino da cor preta, assim como maior parte da população em contrapartida Jasão veste branco ao se embranquecer para ascender socialmente, negando sua própria

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negritude e traindo sua classe e comunidade ao trocar Joana pela filha de Creonte. (LOPES, 2021)

Aprofundando a relação de Joana com a negritude e a religião, optou-se adicionar embaixo do vestido uma saia extra, comum nas vestes de várias vertentes de religiosidade afro-brasileira, além de detalhes de um tecido africando chamado capulana nos tons de preto, marrom e branco. Sobre as escolhas dos orixás:

As cores foram usadas representando Xangô (Orixá da Justiça) e Yamis Oxorongá (Mãe ancestral e feiticeira), além de uma relação com a mortalha. [...] Esta mortalha tem bordado um pássaro feito da capulana que compõe o vestido de Joana, se relacionando com o mito das Yamis que por vezes são retratadas como mulheres pássaros representando mães mortas. Acrescenta-se também a leitura de um misto entre figurino e objeto cênico representado pelo corpo morto de Joana e é livremente inspirado na vestimenta do culto das Gëlèdé (sociedade secreta feminina de caráter religioso existente nas sociedades tradicionais iorubás). (LOPES, 2021)

O contato de Joana com sua religião reverberou até na escolha pelos pés descalços da protagonista. Segundo a doutora Renata Silva Bergo em sua tese QUANDO O SANTO CHAMA: O terreiro de umbanda como contexto de aprendizagem na prática (2011) existem três razões principais para umbandistas ficarem descalço:

O primeiro é que o solo representa a morada dos antepassados e quando estão descalços, tocando o chão de modo direto, entram em contato com estes e, consequentemente, com todo o conhecimento e a sabedoria que esse passado guarda. O segundo motivo é o respeito ao solo sagrado do terreiro. [...] uma outra justificativa para os umbandistas atuarem “de pé no chão” é que este gesto “ é uma forma de representar a humildade e a simplicidade da religião”. (BERGO, 2011.)

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Em entrevista para este artigo o cenógrafo Julio Dojcsar (2021) explica que a área de cena é delimitada por um “tapete-bandeira brasileira como centro da gira, esta bandeira suja de sangue, sangue das Joanas brasileiras vítimas de violência cotidianamente, mulheres vítimas do estado patriarcal”, corroborando assim com os pontos elencados por Renata. Em #Desmontagem | Gota D'Água {PRETA}: A Cor, o Corpo, a Voz e a Veia da tragédia é possível entender a questão da ancestralidade pela fala de Juçara Marçal, atriz que interpretou Joana:

Essa mulher, colocada em um contexto de uma possível favela de São Paulo, traz toda uma questão de muitos séculos de que a gente convive, luta contra. Como se a Joana ela representasse esse povo oprimido durante tantos séculos. (MARÇAL apud POMPÉIA, 2019)

Foto 2: Joana em Gota D’Água {Preta}

Foto disponibilizada por Vanderlei Yui

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Joana e Jasão são o fio condutor para a dramaturgia de Chico Buarque e Paulo Pontes, eles são considerados personagens emblemáticos pois são reflexos de um contexto sociopolítico. Os Musicais de Chumbo propõe uma leitura amplificada do ponto de intersecção entre a criação dramatúrgica e a produção cênica em uma época distinta da original, promovendo assim que outros símbolos construam a dramaturgia da cena, como por exemplo, os figurinos.

Em 2018 a política na sociedade brasileira foi tratada com extremismos de opiniões, todos buscavam falar em defesa do que consideravam a melhor solução para o futuro político do país, e, Gota D’Água {Preta} surge para levantar o questionamento sobre as similaridades com o período ditatorial militar, além de criar um espaço para crítica direta do candidato e atual presidente da república. Ao optar por um elenco majoritariamente preto, pela inserção de músicas e textos contemporâneos, pelo aprofundamento da religiosidade e pelas escolhas estéticas de cenário e figurino na construção desta releitura, cria-se uma obra com diversas camadas de conexão e aproximação do espectador.

O desenho do figurino de Joana transforma seu corpo em um objeto cênico, em um corpo político, que através das escolhas de tecidos e seus pés descalços compreende-se a força da umbanda e desta personagem adjetivada como feiticeira. O vestido preto deixa de ser só um símbolo de seus sentimentos, como mágoa e luto e torna-se uma crítica ao embranquecimento presente nas representações no teatro e na música. E é neste ponto de criação crítica reflexiva que compreende-se a categoria dos Musicais de Chumbo.

Referências

BERGO, Renata Silva. Quando o santo chama: o terreiro de umbanda como contexto de aprendizagem na prática. 2011. 249 f. Tese (Doutorado) - Curso de Educação, Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais., Belo Horizonte, 2011.

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BETTI, Maria Silvia. A Politização do Teatro: do arena ao cpc. In: FARIA, João Roberto (org.). História do Teatro Brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas. São Paulo: Sesc-Sp, 2013. p. 175-194.

DOJCSAR, Julio. Entrevista concedida a Letícia dos Santos Rodrigues Pinto. São Paulo. 05 de março de 2021.

LOPES, Éder. Entrevista concedida a Letícia dos Santos Rodrigues Pinto. São Paulo. 07 de março de 2021.

OLIVEIRA, Jé. Entrevista concedida a Letícia dos Santos Rodrigues Pinto. São Paulo. 14 de maio de 2020.

POMPÉIA, Sesc. #Desmontagem | Gota D'Água {PRETA}: a cor, o corpo, a voz e a veia da tragédiaa veia da tragédia. A Cor, o Corpo, a Voz e a Veia da

tragédiaa Veia da tragédia. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=4f_tmXAGk8Y. Acesso em: 21 maio 2021. RABELO, Adriano de Paula. A melodia, a palavra e a dialética: o teatro de Chico Buarque. São Paulo: Linear B; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2008

Referências

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