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Vol. 02 - n 06 - ano 2021

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Filipe Lins dos Santos

Presidente e Editor Sênior da Periodicojs CNPJ: 39.865.437/0001-23

Rua Josias Lopes Braga, n. 437, Bancários, João Pessoa - PB - Brasil website: www.periodicojs.com.br

instagram: @periodicojs

ISSN: 2675-7451

Vol. 02 - n 06 - ano 2021

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A missão da Revista Gênero e Interdisciplinaridade (GEI) des- tina-se a informar a comunidade acadêmica sobre os desafios e perspec- tivas que revestem a discussão interdisciplinar das ciências humanas e do gênero. O objetivo da GEI é estimular o debate e produção científica com o propósito de produzir conhecimentos e atuar como transformador social e instrumento de reflexão para uma isonomia entre os indivídu- os. O público-alvo de nossa revista é pós-doutores, doutores, mestres e estudantes de pós-graduação. Dessa maneira os autores devem possuir alguma titulação citada ou cursar algum curso de pós-graduação. Além disso, a GEI aceitará a participação em coautoria. A Revista possui um conjunto de Seções para recebimento de trabalhos científicos, como:

•Seção de Estudos Interdisciplinares em Ciências Humanas: Seção interdisciplinar que recebem trabalhos de língua portuguesa, espanhola, inglesa ou francesa produzidos através de pesquisas ou reflexões acadê- micas na área das ciências humanas;

•Seção de Estudos sobre Gênero: essa seção se destina a discutir as- suntos que versem sobre a temática de gênero, podendo abordar temas como: direitos Homoafetivos, lutas LGBTI, teoria queer, direitos huma-

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nos e políticas públicas de gênero, saúde, multiculturalismo, religião, povos tradicionais, inclusão social, pensamento africano, populações afro e diáspora negra;

3 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs

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OS CONTOS DE AIA DE MARGARETH ATWOOD 8

GÊNERO E VOZ NA MÚSICA: UMA REVISÃO SOBRE A PESSOA TRANSGÊNERA E O BINARISMO HOMEM-MU-

LHER NA PRÁTICA DO CANTO 33

FREYRE POR QUINTAS: UMA RELEITURA DA OBRA

“SEXO À MODA PATRIARCAL”

53

COMO O GÊNERO INFLUENCIA NOS CÁLCULOS E RE- LAÇÕES EPISTÊMICAS

77

CONSUMO CONSCIENTE E SUSTENTABILIDADE: RE- FLEXÕES À LUZ DO PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE

103

O CINEMA COMO SÍMBOLO DA MODERNIDADE EM TE- RESINA (1900-1920)

131

Estudos em Gênero

Estudos em Interdisciplinares

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INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA: POSSIBILIDADES E PERSPECTIVAS DE MUDANÇA DO INSUCESSO ES- COLAR DE ALUNOS REPROVADOS NA DISCIPLINA DE

LÍNGUA PORTUGUESA 155

O ACESSO À EDUCAÇÃO COMO PROCESSO DE RESSO- CIALIZAÇÃO DE JOVENS INFRATORES: UMA REVISÃO

BIBLIOGRÁFICA 196

AMBIENTE E EDUCAÇÃO: A INFLUÊNCIA DO AMBIEN- TE NAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM

212

A REALIDADE DOS PROFESSORES DE CIÊNCIAS NO ENSINO FUNDAMENTAL DE UM MUNICÍPIO DO MA-

RANHAO 230

AS TECNOLOGIAS DIGITAIS PARA EDUCAÇÃO DA PES- SOA COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA)

267

A IMPORTÂNCIA DA DIVULGAÇÃO DA LÍNGUA DE SI- NAIS (LIBRAS) NA COMUNIDADE DA ZONA RURAL

287

A ORGANIZAÇÃO FINANCEIRA DAS TRABALHADO- RAS INFORMAIS DO SHOPPING POPULAR DE FEIRA DE

5 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs

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SANTANA 313

O ABISMO SOCIAL EM TEMPOS DE PANDEMIA: A EDU- CAÇÃO É UM DIREITO PARA TODOS OU UM PRIVILÉ-

GIO?

325

O ENDOMARKETING E SUA PRÁTICA NAS ORGANIZA- ÇÕES

346

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: REFLEXÕES BI- BLIOGRÁFICAS ACERCA DO PROCESSO DE AQUISIÇÃO

DA LEITURA E ESCRITA NA AFROBETIZAÇÃO 357

THE PROVISION OF FREE LEGAL AID IN INDIA: INTER- NATIONAL HUMAN RIGHTS ASPECT AS WELL AS THE

CONSTITUTIONAL PURVIEW 372

A COMPARATIVE STUDY OF ABU NASR MUHAMMAD FARABI’S “UTOPIA” WITH DAVID HARVEY’S “RIGHT

TO THE CITY”

390

INVESTIGATING THE RELATIONSHIP BETWEEN THE USE OF DOMESTIC RADIO AND THE LEVEL OF SOCIAL

TRUST 427

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Estudos em Gênero

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Fernanda Eméri Mokfa Matitz Celuppi1

1 Professora de Literatura no Ensino Fundamental

8 Resumo: Os contos de Aia de

Margareth Atwood (1985) é uma crítica feminista futurista que usa da sátira para apresen- tar o “perigo” que o feminismo radical pode causar ao fornecer elementos para o extremismo do patriarcado se apropriar da luta feminista, como aconteceu com a sociedade gileadana. A essên- cia da desigualdade é a noção misantrópica misógina no caso das mulheres - de que algumas são intrinsecamente mais dignas do que outras, portanto, justa- mente pertencem acima de eles, por causa do grupo do qual eles são (ou são percebidos como) um membro. A substância de cada

desigualdade, daí o domínio em que opera como hierarquia, é dis- tinta para cada um, mas é a hie- rarquia que a torna uma desigual- dade. A hierarquia de gênero é o sistema social transnacional da masculinidade sobre a feminili- dade que torna os homens sobre as mulheres baseados na menti- ra da superioridade masculina.

Inerentemente, a igualdade é re- lacional e comparativa. A crítica ao sistema patriarcal e ao próprio movimento feminista estabeleci- do pela autora é uma necessidade para evitar sociedades distópicas como a República de Gilead. Por fim, discute-se também a estraté- gia adotada de silenciamento do

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8 9 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs outro, dentro da perspectiva de

David Le Breton (1997).

Palavras-chave: Gênero. Femi- nismo. Margareth Atwood.

Abstract: Margareth Atwood’s Tales of Aia (1985) is a futuristic feminist critique that uses satire to present the “danger” that ra- dical feminism can pose by pro- viding elements for patriarchal extremism to appropriate the fe- minist struggle, as it did with the Gileadan society. The essence of inequality is the misanthropic misogynist notion in the case of women - that some are intrinsi- cally more worthy than others and therefore rightly belong abo- ve them because of the group of which they are (or are perceived to be) a member. The substance of each inequality, hence the do- main in which it operates as a hie- rarchy, is different for each, but it

is the hierarchy that makes it an inequality. The gender hierarchy is the transnational social system of masculinity over femininity that makes men over women ba- sed on the lie of male superiority.

Inherently, equality is relational and comparative. The critique of the patriarchal system and the fe- minist movement established by the author is a necessity to avoid dystopian societies such as the Republic of Gilead. Finally, the adopted strategy of silencing the other is also discussed, within the perspective of David Le Breton (1997).

Keywords: Gender. Feminism.

Margaret Atwood.

Introdução

Mesmo em nossa so- ciedade contemporânea homens e mulheres estão longe de exer-

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10 cerem direitos iguais, a discri-

minação social, política e eco- nômica baseada no gênero ainda existe, assim como, existem vá- rios países onde as mulheres são oprimidas e discriminadas sis- tematicamente pelo regime. Só recentemente, em 24 de junho de 2018, a Arábia Saudita promul- gou uma lei que anulou a proibi- ção de mulheres dirigirem. As- sim, os movimentos feministas são de grande importância para finalmente alcançar a igualdade entre os sexos.

No entanto, em nossa sociedade atual existem dois ex- tremos e ambos representam pe- rigo para essa equalização. Por um lado, há pessoas que ainda não levam a sério o feminismo e a igualdade de gênero e até mesmo anulam essas mudanças sociais. Isso leva à necessidade de examinar o feminismo e a crí- tica feminista na literatura para

conscientizar que as mulheres são seres individuais e sua obje- tivação deve ser deplorável. Por outro lado, o feminismo radical com crenças radicais para criar uma “utopia feminina” pode acabar sendo usado por organi- zações antifeministas ou mesmo regimes para seus próprios pro- pósitos. Por isso, é importante examinar como as tendências fe- ministas atuais são criticadas na literatura, mostrando o que elas podem levar.

Este artigo apresenta uma crítica de gênero aos contos de Aia de Margareth Atwood, analisando como o Silêncio das aias são uma distopia feminista que fornece crítica feminista atra- vés da representação da opressão das mulheres e sua exibição como

“Outros” na sociedade patriarcal Gilead. Através da obra da autora é possível estabelecer uma críti- ca simultaneamente em relação

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11 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs as tendências feministas atuais

através da sátira para aumentar a conscientização de como sonhos feministas utópicos radicais po- dem acabar em distopias.

Para abordar esse tema, recorre-se a uma análise da pre- sente desigualdade das mulheres na sociedade, para isso é impres- cindível apresentar o mecanismo do patriarcado e a exibição das mulheres como “Outros”, tendo como pano de fundo a obra de Margareth Atwood.

2. Gêneros Literários e Femi- nismo na Literatura: Análise do contexto de Contos de Aia

Contos de Aia de Mar- gareth Atwood pode ser analisa- da dentro do conceito de utopia e distopia no contexto literário, mesmo que trate da caracteriza- ção do feminismo, bem como da crítica feminista.

Atwood imagina um retrocesso tecnoló- gico. Pode-se imagi- nar que os patentes interesses patriarcais a que, nessa obra, o uso das mulheres como incubadoras humanas serve, pode também perpassar, embora que ainda de forma mascarada, as biotecnologias em reprodução humana assistida que vêm se desenvolvendo cada vez mais na contemporaneidade (DEPLAGNE; CA- VALCANTE, 2019, p. 107).

A utopia e a distopia podem ser analisadas a partir do contexto do Estado funda- mentalista cristão, a República de Gilead (onde se desenrola a história). Antes do golpe de Esta- do, que nasce das consequências do feminismo radical, havia um problema sério, no atual EUA de 10

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12 taxa de natalidade, em decorrên-

cia de fatores próprios a disto- pias, como acidentes nucleares, poluição química etc.

No cenário dantesco da república de Gilead, o estupro é meio de reprodução. As Aias são forçadas a terem relações sexuais em uma cerimônia, na presença das esposas dos comandantes e homens poderosos do regime. As esposas que antes do golpe exer- ciam atividades profissionais, até mesmo lutavam pelos direitos das mulheres passam a ser impedidas até mesmo de ler e escrever.

No pesadelo feminis- ta em que se traduz essa República, a lei- tura e a escrita estão proscritas para todas as mulheres, incluin- do as Esposas dos Comandantes. No entanto, é inegável que a opressão atinge mais acirradamente as Aias, que perdem o direito ao próprio

nome, passando a ser designadas como propriedade dos seus senhores (DEPLAG- NE; CAVALCAN- TE, 2019, p. 108).

Utopia e distopia são gêneros literários que comparti- lham o significado de um lugar não existente. Representam so- ciedades fictícias e não existen- tes, portanto são escritos ficcio- nais e formas imaginadas. Por essa razão, Atwood descreve es- crever sobre aqueles como escre- ver sobre o céu e o inferno (PA- RUCKER, 2019).

Uma sociedade utópi- ca que têm uma busca pela so- ciedade ideal e representam um ideal de modo de vida político e social, adotados pelo feminismo extremista que almeja inverter a opressão masculina pela opres- são feminina é palco para o nas- cimento de uma sociedade distó-

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13 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs pica como a República de Gilead.

Em contraste com a uto- pia, a distopia significa lugar ruim ou lugar perverso, que em Contos de Aia representam um mundo imaginário muito desagradável no qual tendências sinistras de nossa atual ordem social, política e tecnológica são projetadas em uma culminação futura desastro- sa. Isso significa que a vida em sociedades fictícias distópicas é muito dura e desagradável devi- do a várias circunstâncias em to- das as áreas da vida.

2.1. Características da Repú- blica de Gilead

A República de Gile- ad se caracteriza como um lu- gar imaginado e não existentes onde a vida está longe de ser ideal, mas bastante miserável em razão de terríveis condições de vida para as mulheres. Antes

de chegar à questão que elemen- tos transformam a sociedade em Contos de Aia em uma distopia, é importante notar que a utopia de um homem é distopia de ou- tro homem, como o comandante diz em determinado momento para Offred dizendo que “Me- lhor nunca significa melhor para todos [...]. Sempre significa pior para alguns” (ATWOOD, 2017, p. 211). Isso significa que nem to- dos sofrem em uma distopia, mas sim a maior parte da população e não apenas “alguns” como afir- ma o Comandante.

A sociedade fictícia dis- tópica que existe em Contos de Aia é um regime totalitário, cha- mado República de Gilead. É um estado imaginado e inexistente que substitui os Estados Unidos e onde a vida é avarento, capaz de grande parte da população, como o Estado governa por meio de um sistema de medo e exibição.

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14 Por exemplo, há enforcamentos

públicos e mutilações, com es- sas práticas o sistema conscien- tiza continuamente as pessoas de que elas melhor obedeceriam à lei e honrariam o Estado se- guindo suas práticas e tradições obedientemente porque se não o fizessem, acabariam as mesmas.

Assim, Gilead corresponde à de- finição de uma sociedade fictícia distópica como sendo um “lugar ruim”.

Além disso, Gilead re- presenta o desastroso futuro culminante de uma sociedade que enfrenta os problemas com lavouras, abortos e deformida- des genéticas (ATWOOD, 2017, p. 304) devido a vários acidentes com usinas nucleares, paralisa- ções e incidentes de sabotagem, assim como, de vazamentos de estoques químicos e de guerra biológica e locais de descarte de resíduos tóxicos e, assim, cumpre

o critério de conter a catástrofe.

Na sociedade gileadana o controle estatal desempenha um papel enorme que é caracte- rísticas das sociedades ficcionais distópicas e do regime totalitário que o Estado representa. Portan- to, o romance é uma exposição da política de poder. Gilead é um es- tado policial, com os movimentos e atividades de seus cidadãos mo- nitorados e controlados de perto.

Os exemplos de controle são os chamados “Anjos” que são, como Offred descreve, “objetos de me- do”(ATWOOD, 2017, p. 4). São soldados ou representantes políti- cos que patrulham fora do “Cen- tro Vermelho” (ATWOOD, 2017, p. 4). Além disso, há os “Olhos”

que trabalham como a força de vigilância do sistema político, eles vão disfarçados para espio- nar a população, na maioria dos casos sobre as Aias, porque eles são mais importantes para o ob-

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15 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs jetivo da sociedade de aumentar

a taxa de natalidade.

Outra coisa que é con- trolada na República de Gilead é o sexo que é característico de uma sociedade fictícia distópica.

Como tudo em Gilead é sobre reprodução, sexo é apenas uma ferramenta para os propósitos do regime. É regulamentado por lei que uma vez por mês tem que haver uma cerimônia de im- pregnação para engravidar a Aia preocupada e como seu consen- timento não é necessário e sua única escolha é entre se inscrever para isso e ser enviado para as colônias, esta cerimônia é ritua- lizada e estupro sancionado pelo Estado (ATWOOD, 2017).

Igualmente importante é que ficções distópicas forne- cem perspectivas sobre práticas sociais e políticas problemáticas e, portanto, mostram o que essas práticas extremistas podem levar

no futuro. Em relação a isso, um objetivo geral da literatura distó- pica é a crítica da sociedade atual através de diferentes formas de sua exibição.

A literatura distópica geralmente também constitui uma crítica às condições sociais ou sistemas políticos existentes, seja através do exame crítico das premissas utópicas sobre as quais essas condições e sistemas se baseiam ou através da extensão imaginativa dessas condições e sistemas em diferentes contex- tos que revelam mais claramente suas falhas e contradições. Outro critério é que na República de Gilead tudo tem que ser delibera- damente arranjado. Isso se refere às coisas como dinheiro e bens materiais, roupas, sexo e poder;

e sua distribuição desequilibra- da e desfavorecida (AZEVEDO, 2015).

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16 2.2. Distopias Feministas e Crí-

tica Feminista

Antes que seja possível identificar quais obras literárias podem ser contadas como dis- topias feministas, é importante identificar o que significa “femi- nista” e com as questões que as feministas se debruçam em pri- meiro lugar. Em primeiro lugar, importante definir que feminista é uma posição política que pode ser colocada em pé de igualdade com o desejo das mulheres de se- rem iguais aos homens e que luta contra a ideia antiquada de mu- lheres serem subordinadas aos homens (OLIVEIRA, 2021).

Além disso, a luta femi- nista trás temas de discrimina- ção social, econômica e política e, portanto, tem por objetivo a independência e autonomia das mulheres. Nessa correlação, ou- tra característica da literatura

feminista é que a diferença de gênero é a base de uma desigual- dade estrutural entre mulheres e homens, pela qual as mulheres sofrem sistemática injustiça so- cial. Além disso, a construção cultural das mulheres, a questão da identidade e representação das mulheres tornaram-se questões dominantes da teoria feminista e da ficção (SOUZA, 2021).

Em Contos de Aia todos esses objetivos do feminismo se invertem, portanto, muitas vezes há sociedades patriarcais onde as mulheres são subordinadas aos homens e oprimidas por elas e pelo regime. Além disso, como as feministas estão preocupadas com a identidade das mulheres, isso é tema também em socieda- des fictícias distópicas. Na maio- ria dos casos, as mulheres são arrancadas de suas identidades e são objetificadas (PARUCKER, 2019).

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17 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs Verifica-se que Marga-

reth Atwood traz críticas femi- nistas ao mesmo tempo quando aponta o problema da mentalida- de, em decorrência da desigual- dade das mulheres, que mostra tanto homens como mulheres perpetuando a desigualdade de gênero. Nota-se aí o mecanismo do patriarcado, que não só lida com a desigualdade e os patriar- cas das mulheres, mas também com a exposição das mulheres como “Outros”.

Para reunir as vertentes da discussão juntos, distopias feministas e a crítica feminista intimamente ligada lidam com ansiedades feministas sobre do- minação masculina e exploração sexual que sempre atormentaram as mulheres se tornando realida- de, e, portanto, temas-chave da escrita distópica feminista que incluem sexualidade, reprodu- ção, desigualdade econômica e

social, assim como, a forte pre- sença do totalitarismo patriarcal (PARUCKER, 2019).

2.3. A força do patriarcado

A história nos revela que cada fase da humanidade se re- vestiu de características próprias delineando determinados e dife- rentes conceitos de família, onde as influências do tempo, do meio social e da moral de cada época contribuíram para que os con- ceitos se modificassem (BOUR- DIEU, 2002).

Nos tempos atuais, as sociedades ocidentais estão pro- fundamente marcadas pela ma- nipulação técnicocientífica e voltadas para uma revolução de ideias e costumes, com a partici- pação da mulher no circuito eco- nômico, concorrendo cada vez mais em igualdade de condições com o homem. Neste sentido, a

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18 mulher moderna adquire certa

liberalidade na prática de seus atos e uma consequente autono- mia na escolha de seu parceiro e a melhor forma de constituir sua família (DEPLAGNE; CAVAL- CANTE, 2019).

Pesquisas apontam que o desejo individual da mulher de desenvolver suas potencialidades como ser humano e de também assumir responsabilidades fora do ambiente doméstico foi um fator importante para acelerar as transformações da família.

A divisão do trabalho entre os sexos tem origem nas funções biologicamente distin- tas do homem e da mulher, mas esses papéis são apenas conse- quências sociais dessas funções.

As diferenças de atividades en- tre o homem e a mulher são di- ferenças secundárias, adquiridas culturalmente, e não primárias e congênitas (PARUCKER, 2019).

As sociedades sempre tentaram explicar a prescrição de papéis atribuídos ao homem e à mulher com base nas diferenças fisioló- gicas existentes entre os sexos.

Tais fatos podem ter sido o pon- to de partida para essas prescri- ções, mas ficou evidente, à luz do conhecimento moderno, que as prescrições são determinadas exclusivamente pela cultura e têm caráter inegável de objetivo social (DEPLAGNE; CAVAL- CANTE, 2019).

Inicialmente em “O tra- balho histórico da des-historiza- ção” Bordieu (1980) convida o leitor a refletir sobre a história humana analisando o papel de cada instituição e sua respectiva formação para verificar como a dominação masculina foi repro- duzida. Exemplificando essa afir- mativa cita-se a divisão de tarefas no núcleo familiar, a posição da igreja sobre a emancipação femi-

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19 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs nina, assim como, a estrutura es-

colar que prioriza, desde sempre, a família patriarcal.

Uma verdadeira compreensão das mudanças sobrevin- das, não só na con- dição das mulheres, como também nas re- lações entre os sexos, não pode ser espera- da, paradoxalmente, a não ser de uma aná- lise das transforma- ções dos mecanismos e das instituições en- carregados de garan- tir a perpetuação da ordem dos gêneros (BOURDIEU, 1980, p.140).

A família com sua or- ganização patriarcal era o centro econômico e político da socieda- de e constituía uma força que se antepunha ao Estado. Entre eles havia a Igreja, atuando como uma espécie de intermediária, principalmente através das mu-

lheres que militavam fervorosa- mente na religião como uma for- ma de compensar sua condição de inferioridade social. a família é vista como mero aconchego de interesses, muitas das vezes tipi- camente econômicos. Se de um lado a família passa a ser vista como um ninho de desenvolvi- mento espiritual, e não mais tão- -somente ponto de convergência econômica, as modificações so- ciais também abalaram esse novo modelo familiar, o que conduziu esse paradigma familiar a uma crise modelar.

Outra instituição que merece uma cuidadosa análise a parte é o Estado que como ente detentor do modelo patriarcal construiu toda sua estrutura com base no patriarcado o que inclui o direito, sobretudo, o ramo do di- reito de família. Nas palavras do autor o Estado:

(...) veio ratificar e

(21)

20 reforçar as prescri-

ções e as proscrições do patriarcado pri- vado com as de um patriarcado público, inscrito em todas as instituições encarre- gadas de gerir e regu- lamentar a existência cotidiana da unidade doméstica (BOR- DIEU, 2002, p. 143).

Chama atenção Bour- dieu (2002) para o papel masculi- no representado pelo Estado por meio de uma divisão arquetípica, ou seja, de um lado a força e a ordem que representa o mascu- lino e de outro a representação dos anseios sociais e vulnerabili- dades sociais representadas pelo feminino.

Verifica-se assim que essa reprodução da hierarquia so- cial dos gêneros deveria compor uma análise histórica da condi- ção da mulher, “e isso sem preci-

sar invocar a resistência ou a má vontade masculina ou a respon- sabilidade das próprias mulhe- res” (BORDIEU, 2002, p. 145).

As conquistas femini- nas por intermédio das lutas fe- ministas pela emancipação das mulheres, além dos direitos so- ciais e trabalhistas que foram conquistados ao longo do tempo que acabam sendo agente de mu- danças do Estado e seus princi- pais elementos, como, a família.

Os processos de urbanização, industrialização, imigração e aculturação contribuíram de ma- neira decisiva para as alterações sofridas pela unidade familiar.

A urbanização foi o fator mais importante na diminuição da au- toridade paterna, na maior parti- cipação da mulher nas atividades lucrativas, no maior controle da natalidade, no aumento do nú- mero de desquites etc., mas não modificou certas características

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21 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs feudais, como a tolerância pelo

adultério masculino (DEPLAG- NE; CAVALCANTE, 2019).

Em “Economia dos bens simbólicos e estratégias de repro- dução” Bordieu (2002) mostra que o casamento é a maior estru- tura de domínio do homem em relação a mulher, pois além dos elementos simbólicos da relação é no casamento que se encontra a transferência de bens e riqueza que são afiançados pela Igreja e pelo ordenamento jurídico. No mesmo tópico, discute-se a sexu- alidade como estratégia de repro- dução.

Na realidade, como or- ganismo natural, a família não se acaba, não se destrói e muito menos está liquidada. No entan- to, como instituição social per- faz a sua nova face ao sabor das mudanças sociais. O que existe é uma nova ideia de família e no- vas formas de sua constituição.

A resposta a essas inda- gações se encontra na nova im- pressão da família moderna que se estabelece e se fortalece não mais no argumento da autorida- de patriarcal, mas, sobretudo, no sentimento de afetividade recí- proca que une seus membros. As pessoas compartilham a cumpli- cidade e solidariedade familiar, não porque lhes foi imposto pela norma do contrato bilateral, mas porque tal sentimento de afetivi- dade recíproca já se encontra im- plícito na união entre homens e mulheres com o fim de constituir família (SOUZA, 2021).

O trabalho da mulher fora do lar é desestimulado, sen- do exaltado o trabalho no lar, em- bora não reconhecido como tra- balho produtivo. A família tende a se desorganizar, pois o homem não aguenta sozinho todos os en- cargos econômicos, abandonan- do a família em incidência espan- 20

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22 tosa, recaindo inteiramente sobre

a mãe a responsabilidade pelos filhos. Com a urbanização e a in- dustrialização, alterou-se o papel da mulher no mundo econômico.

Diminuiu a autoridade paterna em relação à escolha do marido para as filhas, as relações entre os sexos se fazendo de forma mais direta. Ao lado do ideal domésti- co, surgia a necessidade da edu- cação escolar, contra a qual havia grandes resistências, pois não se cogitava da equiparação da ins- trução entre homens e mulheres (HEITOR, 2020).

Dando continuidade, o autor passa a analisar outros campos de dominação da mu- lher no tópico intitulado “a força da estrutura”, nele é possível ve- rificar que tanto a escola, como os meios de comunicação e até mesmo as artes podem respon- der positivamente ao patriarcado, colocando a mulher em um papel

de submissão e inferioridade. Na literatura, através de sua análise temporal, é possível ver nitida- mente como os papeis femininos são retratados, na maioria das vezes, como frágil, dependente e carente de ações masculinas.

2.4. O silenciamento

Há uma instância do si- lêncio que é reconhecida por um modo particular de operaciona- lizar o silêncio. Essa instância do silêncio está intimamente li- gada ao exercício e manutenção do poder em Gilead. O exercício do poder é marcado pelo domí- nio da linguagem. É consabido que “a linguagem é poder” (LE BRETON, 1999, p. 78). David Le Breton define a política do silên- cio como “[...] o fato de, se certas coisas são próprias para serem ditas, outras são menos, ou nem são, em função das situações e

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23 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs dos protagonistas” (LE BRE-

TON, 1999, p.20). Em essência, a política do silêncio, para esse au- tor, trata do controle exercido por um determinado sujeito ou grupo sobre a linguagem.

Esse controle é exerci- do, com certeza, na comunicação do outro, mas também em si pró- prio. É justamente desta última forma que Gilead sistematiza seu funcionamento ideológico, trans- formando as mulheres em pari- deiras, sem direitos civis, sem propriedade privada, de olhar para a outras aias frente a frente, de falar, de ler e de se reconhecer enquanto mulher no mundo:

Eu costumava pensar em meu corpo como um instrumento de prazer, ou um meio de transporte, ou um implemento para a realização da minha vontade. Eu podia usá-lo para correr, para apertar botões, deste ou daquele

tipo, fazer coisas acontecerem. Havia limites, mas meu corpo era, apesar disso, flexível, úni- co, sólido, parte de mim. Agora a carne se arruma de manei- ra diferente, sou uma nuvem, congelada ao redor de um objeto central, com o forma- to de uma pera, que é duro e mais real do que eu e que in- candesce vermelho dentro de seu in- vólucro translúcido.

Dentro dele está um espaço, imenso como o céu à noite e curvo como ele, embora negro-avermelhado em vez de negro.

Pontos infinitesimais de luz incham, chispam, explodem e murcham den- tro dele, incontáveis como estrelas. Todo mês há uma lua, gi- gantesca, redonda, pesada, um augúrio.

Ela transita, se de- 22

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24 tém, segue em frente

e passa, desaparece de vista, e eu vejo o desespero vindo em minha direção como uma grande fome, uma escassez absoluta (ATWOOD, 2017, p. 90-91).

Este apagamento é tão totalizante na forma como se constitui a altura de Gilead, isto é, na recuperação econômica da nação, que faz com que esta seja vista como exemplar para outros países que começam a passar por uma situação similar de alta taxa de mortalidade infan- til.

2.5 O ontem, o hoje e o amanhã

Em Contos de Aia é possível fazer uma reflexão sobre a origem do patriarcado e a pro- blemática da questão de gênero, até dentro do próprio gênero e,

o silenciamento como estratégia política. Deixando de lado a fic- ção da obra, a opressão foi e é re- alidade na história. Para a mulher branca de classe alta, o casamen- to era uma questão de conveniên- cia econômica, assim como em o Conto da Aia.

O esforço material de poder sobre o corpo é evidente também nos uniformes croma- ticamente codificados que os indivíduos são obrigados a usar de acordo com a casta a que per- tencem. Além do significado do vermelho, no qual as Servas têm que se vestir, há uma imposição contundente em termos dos aces- sórios que devem usar para evitar que sejam olhados, bem como de olhar para os outros. Eles usam amplas capas vermelhas que co- brem todo o corpo, e gorros bran- cos e capas em suas cabeças. Es- tes gorros alados escondem seus cabelos, uma marca de sensuali-

(26)

25 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs dade, cobrem seu rosto e impe-

dem que eles olhem em qualquer outra direção, exceto para baixo.

A materialidade dos capôs disciplina seus corpos atra- vés da iteração da prática corporal que resulta de usá-los — olhando para baixo. As asas que emoldu- ram os rostos das Servas forçam o gesto que tradicionalmente cor- responde às noções patriarcais de modéstia e como se espera que uma mulher se comporte no es- paço público. Qualquer olhar ou olhar desenfreado fora do lugar produz um movimento da cabeça que imediatamente expõe a Aia aos Olhos, outras Aias, Marthas ou contornos ocasionais.

O ser humano se situa de um modo singular e, a mulher não pode querer se situar fora de seu sexo, mas não pode ser obri- gatoriamente circunscrita a ele.

É com ironia que De Beauvoir (1981, p. 236) afirma:

“[...] Assim como para os antigos havia uma vertical absoluta em relação à qual.se definia a oblíqua, há um tipo humano ab- soluto que é o tipo masculino. A mulher tem ovários, útero [...] eis as condições que a encerram em sua subjetividade [...] O homem, por arrogância, se esque- ce que também. tem hormônios e testícu- los. Encara seu corpo como uma relação direta e normal com o mundo, que acre- dita apreender em sua objetividade., ao passo que considera o corpo da mulher - sobrecarregado por tudo o que o especí- fica- um obstáculo, uma prisão.

Por esses e outros con- ceitos, durante a longa histó- ria, de dominação masculina, as mulheres foram vistas como 24

(27)

26 utensílios, escravas, amas de lei-

te, ‘objetos’ sexuais, como um mecanismo vantajoso no terreno econômico e social. Ainda hoje é esta a realidade em grande parte do mundo. A cultura é sistema de pensamento e de tecnologia intrinsecamente ligado aos inte- resses mais gerais dos agrupa- mentos humanos, que garantem seu controle sobre a natureza, seja esta tida como benéfica ou destruidora (ROSALDO; LAM- PHERE, 1979).

A observação da “con- dição feminina” física, social e psicológica, é usada para consi- derá-la ligada à natureza e, assim, essa “natureza” acabou impressa nas instituições, nos costumes e nas leis que tratam das relações entre os homens e as mulheres e entre estes e o Estado.

Há povos que criaram sistemas muito rigorosos de dife- renciação entre o que é conside-

rado cultura e o que é considera- do natureza, e outros que quase não fazem diferença entre o esta- do cultural e o estado da nature- za, pois, na verdade, essas cate- gorias não têm limite no mundo concreto.

As mulheres de classe alta, nos primórdios da sociedade brasileira eram reclusas e susten- tadas pelos maridos, assim como, em Contos de Aia. As mulheres de classe pobre não eram reclu- sas e muitas vezes sustentavam a casa como domésticas, costu- reiras, lojistas ou mesmo garim- peiras. Um exemplo interessante é o da Câmara de Vila Rica, no início do século XIX, citado por Tito Lívio de Castro, que conde- nava como imoral a família ma- trilinear e considerava suas che- fes como prostitutas (CASTRO, 1983). Na obra em análise, as mu- lheres de classe pobre, na melhor opção são as Aia.

(28)

27 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs A história nos revela que

cada fase da humanidade se re- vestiu de características próprias delineando determinados e dife- rentes conceitos de família, onde as influências do tempo, do meio social e da moral de cada época contribuíram para que os concei- tos se modificassem. Atualmen- te, a constituição da família não se adapta àquela velha fórmula burguesa, nem tampouco está completamente desagregada ou desprestigiada como querem al- guns. Simplesmente se reveste de novas características, na revalo- rização dos núcleos familiares.

Na sua evolução histó- rica, a família apresenta, como realidade sociológica, desde a patriarcal romana até a nuclear da sociedade industrial contem- porânea, uma íntima ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais (FACHIN, 1999, p. 11). Na realidade, como

organismo natural, a família não se acaba, não se destrói e muito menos está liquidada. No entan- to, como instituição social per- faz a sua nova face ao sabor das mudanças sociais. O que existe é uma nova ideia de família e no- vas formas de sua constituição.

Nesse sentido, leciona Caio Má- rio (1991, p.3):

Há uma concepção nova de família, que se constrói em nos- sos dias. Fala-se na sua desagregação e no seu desprestígio.

Fala-se na crise da família. Não há tal.

Um mundo diferente imprime feição mo- derna à família. Está se transformando aos nossos olhos. Ainda não se podem definir as suas linhas de con- torno. Como organis- mo natural, a família não acaba. Como organismo jurídico, elabora-se a sua nova organização.

(29)

28 Cunha Pereira (1997, p.

18), por sua vez, pergunta: “Será mesmo a família uma organi- zação natural? O que verdadei- ramente mantém e assegura a existência da família? Será a lei jurídica associada ao afeto e aos laços de consanguinidade?” A resposta a essas indagações se encontra na nova impressão da família moderna que se estabe- lece e se fortalece não mais no argumento da autoridade patriar- cal, mas, sobretudo, no sentimen- to de afetividade recíproca que une seus membros. As pessoas compartilham a cumplicidade e solidariedade familiar, não por- que lhes foi imposto pela norma do contrato bilateral, mas porque tal sentimento de afetividade re- cíproca já se encontra implícito na união entre homens e mulhe- res com o fim de constituir famí- lia.

A família, enquanto or- ganismo vivo capaz de manipu- lar as pretensões e realizações psicoafetivas dos indivíduos na realização do ser, se transforma e se aprimora, evolui para novas e diferentes formas de constitui- ção, modificando seus padrões de comportamentos na tentativa de se adequar aos novos precei- tos mandamentais impostos no convívio social.

Segundo Barros, para a psicanálise, a família “é uma es- trutura psíquica, um lugar onde se atravessa a cultura, onde os valores e ideais são transmitidos pelo discurso, bem como o exer- cício da autoridade que transmite as regras e os limites” (BAR- ROS, 1997, p. 794). Como visto, o protótipo familiar teve profun- das modificações mundo afora e o Brasil acompanhou essas nuan- ces.

Em Gilead, o Estado

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29 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs tenta disciplinar os corpos e ree-

ducar o olhar, invertendo a moral de um passado religioso purita- no, embora haja muita hipocri- sia nessa moralidade e piedade.

Olhar e ser olhado desencadeia o desejo nas mulheres, principal- mente servas, o que é potencial- mente prejudicial para as elites governantes, pois implica uma afirmação do eu que é incompa- tível com o altruísmo exigido de uma Serva. É por isso que con- sidero que o olhar feminino da série é contra hegemônico e im- plica uma espécie de empodera- mento visual.

Percebe-se que o papel social é muito bem delimitado e de pouca mobilidade, o silencia- mento é regra. As mulheres não têm qualquer escolha, seja a res- peito de como devem agir e se portar, estando isso já estabeleci- do de acordo com sua casta. São silenciadas e, inclusive, incenti-

vadas a se vigiarem. Tal situação ajuda a manter a ordem política vigente, vez que tira qualquer po- derio político das mãos das mu- lheres, impossibilitando sequer que transformem em ameaça aos

“Filhos de Jacó”.

3. Considerações Finais

Atwood traz uma dis- cussão sobre a identidade de gê- nero e o feminismo, explorando a identidade do sistema patriarcal e a de gênero. A obra em análise nesse artigo é um texto distópico de sobrevivência situado no final do século XX na iminência de al- cançar a igualdade entre os sexos, o livro retrata a dissolução dos Estados Unidos, resultando em um ódio revigorado às mulheres e aos explosivos crescimento do fundamentalismo religioso (pa- triarcal).

Esse ódio se concretiza 28

(31)

30 na força colonizadora da Repú-

blica de Gilead, um regime pu- ritano, reacionário e militarista.

Neste futuro, os homens estão fartos de mulheres arrogantes e as colocam de volta em seus lu- gares. Uma guerra civil é trava- da para tornar as mulheres ma- leáveis aos desejos dos homens.

Elas devem se submeter aos seus papéis socialmente determinados ou serem vistas como demônios.

Esses papéis sociais regressivos são determinados por um siste- ma de castas que define padrões de comportamento, vestimenta e deveres sociais, eliminando, as- sim, os indesejáveis problemas obtidos com o avanço do papel da mulher na sociedade.

Conclui-se que os di- reitos conquistados e a liberda- de devem ser vigiados, para não serem perdidos por fundamenta- listas. As diferentes formas que a autoridade patriarcal pode to-

mar e suas limitações, bem como a potencialidade das mulheres oprimidas para desafiá-la a fim de decidir sobre seus próprios corpos. A possibilidade das mu- lheres constitui sua subjetivida- de através do discurso também é apresentada no romance. Isso é possível através da projeção de tendências presentes no momen- to da publicação em um futuro distópico, um futuro próximo pós-apocalíptico em que há uma regressão aos valores puritanos possibilitada pela teocracia que governa Gilead como uma su- posta solução para a esterilidade e abortos produzidos por doenças e poluição.

As instituições demo- cráticas foram derrubadas pelas elites religioso-econômicas, e o estado de Gilead, que substitui o que antes eram os Estados Uni- dos, regula até mesmo as práticas mais íntimas dos cidadãos atra-

(32)

31 ISSN: 2675-7451 Vol. 02 - n 06- ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs vés de uma rede de inteligência e

um rígido sistema de castas.

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32 PARUCKER, I. G. “Vivíamos

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2021.

(34)

GÊNERO E VOZ NA MÚSICA: UMA REVISÃO SO- BRE A PESSOA TRANSGÊNERA E O BINARISMO

HOMEM-MULHER NA PRÁTICA DO CANTO

GENDER AND VOICE IN MUSIC: A REVIEW OF THE TRANSGENDER PERSON AND THE MALE-

-FEMALE BINARISM IN SINGING PRACTICE

Valter Carlos de Menezes1 Lucas Gabriell Fernandes Cruz 2

1 Graduado em Música pela UERN e Pós-Graduando em Voz Profissional: Abordagem multidisciplinar pela UNYLEYA

2 Graduando em Direito pela UERN Resumo: A voz é algo intrínse-

co a identidade e representa toda nossa história, marcada por ex- periências diversas, pelo espaço que crescemos e a cultura que nos cerca. Estes fatores acabam por contribuir com nossa cons- trução enquanto indivíduo e a voz é a porta por onde afirmamos nossa própria identidade. Para a pessoa transgênero a sua voz reafirma sua verdade, sua identi- dade. O estudo em questão tem

como intuito compreender o gê- nero, perceber a relação da voz com a identidade e reconhecer o gênero no espaço da música, em específico na prática do canto, atividade vocal a qual se utiliza da voz que muitas vezes é este- reotipada por ideais do binarismo homem-mulher.

Palavras-chave: Voz; Identida- de; Gênero; Binarismo; Canto.

32 33

(35)

Abstract: The voice is some- thing intrinsic to identity and represents our entire history, marked by diverse experiences, by the space we grew up in, and the culture that surrounds us.

These factors contribute to our construction as an individual, and the voice is the door through which we affirm our own identity.

For the transgender person, their voice reaffirms their truth, their identity. This study aims to un- derstand gender, to perceive the relationship between voice and identity, and to recognize gender in the music space, specifically in the practice of singing, a vocal activity which uses the voice that is often stereotyped by ideals of male-female binarism.

Keywords: Voice; Identity; Gen- der; Binarism; Singing.

Introdução

O nosso corpo é o es- paço onde habita nossas histó- rias, as vivências, experiências, tudo que nos constrói. Para Shel Almeida (2009), o processo de construção de identidade depen- de, além de escolhas pessoais, da influência do meio e da história pessoal de cada indivíduo, das experiências que este vivenciou.

É por meio dele que também nos expressamos, contamos quem so- mos e vamos transformando-o no decorrer do nosso crescimento, afinal nosso corpo acaba muitas vezes por ser caracterizado de acordo nossa verdade e no que acreditamos.

Ao mudar o corpo, o indivíduo pretende mudar sua vida, mo- dificar seu sentimen- to de identidade. O homem contemporâ- neo tem as possibi- lidades de modelar e

34

(36)

construir seu corpo conforme desejado.

O indivíduo modela para si diariamente um corpo inacaba- do. O corpo é, por- tanto, uma forma a ser transformada.

Tatuagens e marcas corporais são cada vez mais crescen- tes na associação do corpo como objeto maleável, sempre em transformação. Tra- ta-se de fabricar a si mesmo. O corpo não é mais matéria do sa- grado, mas sim uma matéria para trans- formação na cons- trução de uma nova identidade. A ana- tomia deixa de ser um destino para ser uma escolha. (TRA- BALHOS GRATUI- TOS, 2013, p. 1)

A psicóloga e neuroe- ducadora Gabrielle Prado (2017) diz que o corpo também é par- ticipante na construção e iden-

35 ISSN: 2675-7451

Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs tificação do eu, significando sua

identidade pela percepção do corpo físico a partir dos sentidos (PRADO, 2017, s/p). O corpo é parte de nossa identidade, com suas formas e características que lhe tornam único em meio a tantas pessoas que existem no mundo. Por mais que encontre- mos outro corpo muito pareci- do, perceberemos que existem particularidades que acabam por diferenciar um indivíduo de ou- tro. Para a autora Fernanda Brito (2017) a identidade é termo para descrever as características pró- prias que nos diferenciam de ou- tros (BRITO, 2017, p. 1).

Apesar de cada indiví- duo ser diferente a partir de sua construção sociocultural, bio- lógica e outros surgiram diver- sos padrões na história que não dizem respeito somente a ideia de beleza, mas também sobre gênero, sexualidade, em como 34

(37)

36 devemos nos reconhecer, agir, se

vestir, até sobre como sentimos e nos expressamos. A autora Mari Rodrigues ainda diz que

Em 1918, a revista de moda Earnshaw dizia que o que seria aceito era meninos usando rosa e meninas usan- do azul. Bem dife- rente do que se ouviu cem anos depois, em 2019: menino veste azul e menina veste rosa. Pois bem, será?

Não poderíamos usar outras cores, como o verde, o vermelho, o preto? Por que in- sistir em padrões tão aleatórios de afirma- ção de gênero? (RO- DRIGUES, 2020, p.

1).

Essas ideias padroni- zadas da sociedade acabam por abarcar apenas a ideia do binaris- mo homem-mulher, delimitando as coisas em elementos tipica- mente femininos ou masculinos,

como as roupas, cor azul ou cor rosa, cabelo grande é de mulher e homem usa cabelo curto, até no emocional e mental quando pro- movem frases como homens não choram e mulheres são frágeis e sentimentais demais. Mari Rodri- gues (2020) ainda considera que tal padronização do feminino e masculino é um fator prejudicial para as pessoas que transiciona- ram de gênero. Tais convenções acabam por promover situações absurda, nas quais essas pesso- as buscam se adequar ao máxi- mo nessas caixinhas, padrões, as vezes em nome de uma “pas- sabilidade” que permitam lidar com menos preconceito. Tantos homens trans quando mulheres trans acabam por adotar posturas e comportamentos, que podem ser tóxicos, isso em prol de serem percebidos de fato como são.

Segundo Menezes (2021) dentro do campo da Arte

(38)

37 ISSN: 2675-7451

Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs o indivíduo pode se expressar

de várias formas, utilizando seu corpo para transmitir sua histó- ria e como são e quem são, seja na dança, música, teatro, dentre outros (MENEZES, 2021, p. 11).

Refletindo sobre a voz cantada, para Cecília Coelho “cantar é uma atividade essencialmente corporal” (COELHO, 2017, p. 78).

A voz falada ou cantada, enquan- to fenômeno que surge através da atividade corporal, também pos- sui relação direta com a constru- ção de nossa identidade e gênero, como será explanado no decorrer do trabalho. Para Caldeira (2019) a voz também, além de ser parte do indivíduo, é uma ferramenta de identificação do ser e tem im- portância na atividade dos papéis sociais de gênero (CALDEIRA, 2019, p. 24).

Usamos a fala para afir- mar nossa identidade, a existên- cia em meio a sociedade, opinar

e expressar tudo o que sentimos, somos e desejamos. Junto disso podemos pensar que, se a identi- dade é construída a partir de tudo que já foi supracitado, em espe- cial nossas caraterísticas e for- mas, a voz também em suas ca- racterísticas timbrísticas, sonoras e outras, vão ter relação com nossa identidade. Como exemplo podemos recordar que muitas ve- zes os rapazes acabam por buscar falar mais grave num intuito de afirmar sua masculinidade em meio a sociedade.

O presente trabalho tem como objetivo compreender como a voz falada e cantada im- pactam e se relacionam com a identidade de gênero. A partir de revisão de literatura, em traba- lhos que abordam voz falada, voz cantada, transexualidade, gênero e identidade. Foram feitas buscas nas bases Scielo, Google Scholar, Google, a fim de buscar materiais 36

(39)

38 que pudessem agregar a esta pre-

sente pesquisa.

2 Construção de gênero

As diversas formas pos- síveis de se expressar que exis- tem em uma coletividade, além de mostrarem-se influenciadas pela cultura e pelo contexto his- tórico ao qual se situam, trilham por uma via que desemboca nas águas de um complexo e amplo emaranhado de personalidades, inseridas no contexto de uma sociedade globalizada, em que elementos como tempo e espaço foram amplamente relativizados através da utilização das redes sociais, da inteligência artificial e, sobretudo, da internet. Sobre isso, Alvarez (1999) explica que o termo globalização tem sido usado para

caracterizar um con- junto aparentemente bastante heterogê-

neo de fenômenos que ocorreram ou ganharam impulso a partir do final dos anos 80 - como a ex- pansão das empresas transnacionais, a in- ternacionalização do capital financeiro, a descentralização dos processos pro- dutivos, a revolução da informática e das telecomunicações, o fim do socialismo de Estado na ex-URSS e no Leste Europeu, o enfraquecimento dos Estados nacio- nais, o crescimento da influência cultural norte-americana etc.

-, mas que estariam desenhando todos uma efetiva “socie- dade mundial”, ou seja, uma sociedade na qual os principais processos e aconte- cimentos históricos ocorrem e se des- dobram em escala global”. (ALVA- REZ,1999, p. 97).

(40)

39 ISSN: 2675-7451

Vol. 02 - n 06- ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs

Nesse contexto global, as relações intersubjetivas acon- tecem quando há o encontro de interesses entre dois ou mais in- divíduos, resultando daí a possi- bilidade de geração de relações afetivas nutridas e sustentadas, em suma, pelo amor e pelos in- teresses comuns aos seus mem- bros. À medida que esses pon- tos comunicantes se afloram, as relações afetivas entre esses indivíduos acontecem e podem desenvolver a vontade de agregar novos membros à essa teia fa- miliar através da gestação e por meio do processo adotivo, para os que assim desejarem.

Apesar da beleza inegá- vel desse fenômeno, considerado algo sagrado até mesmo por di- versas práticas religiosas, o pro- cesso de multiplicação familiar através da gestação ou adoção de filhos pode também representar

um verdadeiro processo gerador de injustiças e traumas signifi- cativos, principalmente quando esses filhos em questão não se encaixam nos ditames de gênero e sexualidade culturalmente he- gemônicos, impostos a eles des- de o nascimento, sendo lançados em um contexto social que vai de encontro a quem realmente é.

Quanto a essa hegemonia, Swain (2010) explica que

A heterossexualida- de é, da mesma for- ma, politicamente compulsória, o que significa um intenso processo de conven- cimento cultural em políticas familiares e educacionais ou a imposição pela co- erção de normas de submissão e devoção ao masculino, cons- truindo-o de forma imperiosa como de- finidor da divisão de trabalho, remunera- ção e importância so- cial (SWAIN, 2010, 38

(41)

40 p. 47).

A partir da observação prematura da genitália do bebê, dependendo se ele nasce com a configuração sexual biologica- mente masculina ou feminina, a ele já é imputada uma carga ideológica representativa de um padrão estético e comportamen- tal típico para o sexo ao qual lhe foi designado. No decorrer do seu desenvolvimento, qualquer variância performática de gê- nero que destoe daquilo que lhe foi imputado como típico do seu sexo biológico, caracterizando-o como uma pessoa transgênera, é imediatamente rechaçado e vili- pendiado, visto como algo errado e não coerente com o “padrão”

que lhe é “cabível”.

Isso demostra a pre- mente necessidade de se tecer um olhar sensível e apurado para os fenômenos sociais que vão se

modificando, solidificando con- ceitos como o Feminismo e sua busca pela igualdade e justiça de gênero, as múltiplas variâncias de masculinidades e a quebra da hegemonia da aceitação de uma única forma de expressão mascu- lina possível ao se reconhecer as suas diversas faces e variâncias no meio social (VIGOYA, 2018, p. 58), além de difundir a teo- ria queer e seu questionamento quanto aos papéis sociais desem- penhados socialmente, aceitando a fluidez e diversidade em contra- ponto ao binarismo reducionista homem/mulher, heterossexual/

homossexual, defendendo que a orientação sexual e identidade de gênero são construções sociais e não padronizáveis (MISKOLCI, 2012).

Com o surgimento de pesquisas em torno de gêneros, conseguimos observar o quanto o corpo e diversos aspectos são

(42)

41 ISSN: 2675-7451

Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs de suma importância para per-

cepção do gênero, não apenas para outros, mas para o próprio

“eu” em especial para as pessoas que transicionam de gênero. Da- remos continuidade compreen- dendo agora a relação de música e gênero, delineando no sentido da voz enquanto fator social e expressor da identidade do indi- víduo.

3 Música e gênero

Dentro da sociedade em seus diversos espaços e contex- tos o machismo é presente e toda ideia de superioridade do homem, entretanto os movimentos sociais e as pesquisas feita por mulhe- res há décadas, abriram espaço para visibilizar e compreender a importância, do direito de ser e existir de todos. Essa luta por es- paço dura até hoje e provocou um maior olhar sobre outras expres-

sões de gênero e sexualidade. Na Música da mesma forma aconte- ce a predominância dos homens, levando em outrora até as mulhe- res a duvidarem que não eram ou são capazes de compreender ou fazer música. Com base nas pesquisas feitas por Martí (1999) e Silva (2000) o gosto musical feminino se fundamenta em “fu- tilidades” como na beleza de um integrante da banda. Diz também que as meninas tem mais relação com músicas lentas e melodias triste pois são sensíveis, emo- cionais e menos racional que homens (MARTÍ, 1999; SILVA, 2000 apud CALDEIRA, 2019, p.

28). Tais pensamentos acabam por sujeitar a figura da mulher, inferiorizando suas capacidades.

Caldeira (2019) diz que não é assunto novo a ideia de atribuir a homens a racionalidade e as mulheres a emoção. Desde os primórdios da narrativa his- 40

(43)

42 tórico-musical as atividades que

são consideradas racionais se atém ao homem e as sensitivas as mulheres, condicionando as fun- ções em masculino e feminino.

Lembrando até a outras ideias es- tereotipadas da sociedade, como a cor azul ser de menino e rosa de menina, da mesma forma acon- tece na prática de instrumentos musicais, na qual se propõe que as mulheres devem tocar instru- mentos mais leve e homens os mais pesados e maiores (CAL- DEIRA, 2019, p. 29).

Tanto as mulheres en- contram dificuldades no seu per- curso enquanto musicistas, mas também pessoas transexuais, travestis e outros. Pois, para além de lidar com todo preconceito manifestado pela sociedade, tam- bém passam por processos inter- nos como as dificuldades com a identidade e a relação social, com os espaços que vivencia todos os

dias. A partir disso buscando mudanças no seu corpo e na sua voz, a qual como já supracitado tem relação direta com sua iden- tificação em meio social.

Segundo Miyake (2013) no início do século XXI é que começaram a se desenvolver pesquisas que consideravam a teoria-queer, entretanto havia pouco material empírico no cam- po (MIYAKE, 2013 apud CAL- DEIRA, 2019, p. 26). Por alguns autores ainda é visto que esse campo de pesquisa é margina- lizado em nosso país. Segundo Caldeira (2019) muitos trabalhos que são consultados sobre gênero geralmente estão na perspectiva feminista na música. Estudos que retratem sexualidade, identidade de gênero de forma abrangente ainda são raros no macro campo brasileiro, mesmo tendo aconte- cido em 1990 o surgimento da teoria queer (CALDEIRA, 2019,

(44)

43 ISSN: 2675-7451

Vol. 02 - n 06 - ano 2021 Editora Acadêmica Periodicojs p. 27).

Atualmente as pesqui- sas sobre a pessoas transgênero em diversos contextos, possibili- dades, vêm sendo desenvolvidas, entre as diversas áreas sociais, hu- manas e outras, também no cam- po da Saúde pela Fonoaudiologia e na Música por meio de Canto, buscando compreender a voz da pessoa trans que enfrenta proces- sos para se adequar conforme se identifica, além de explanar sobre saúde, técnica vocal, fisiologia da voz e outros. Nas pesquisas de Drumond (2009); Souza, Gomes e Guedes (2015); Barros (2017);

Kienen e Silva (2020) e em di- versas outras podemos encontrar materiais que servirão de aporte para contribuir com a voz trans e sua identidade, além de ter co- nhecimento que pode favorecer a técnica vocal para voz trans. A seguir compreenderemos melhor sobre a relação da voz e identida-

de e os processos que existem por de trás da voz transgênera falada/

cantada.

4 A dualidade da voz e canto

Para compreendermos a relação da voz e identidade, se faz interessante compreender também o que é a voz. Segundo a Goulart e Cooper (2002) a voz é uma característica única e pró- pria do ser e sua produção tem relação com diversos fatores bio- lógico, genéticos e também com fatores culturais e psicossociais.

A personalidade, o emocional em seu estado e até a forma que ex- pressa suas emoções podem im- pactar na voz e causa diferenciais (GOULART; COOPER, 2002 apud SOUZA; GOMES; GUE- DES, 2015, p. 2).

Quando nascemos, seja menino ou menina, temos as vo- 42

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zes apenas infantis sem muita distinção direta fisiologicamen- te entre voz feminina ou mas- culina. O papel de identificação de gênero por meio dela é mais presente somente após a puber- dade. Para a fonoaudióloga Mara Behlau (2001) durante a fase da adolescência, no momento da grande produção de hormônios e mudanças nas caraterísticas físi- cas, ou seja, na puberdade é que a voz ganha papel importante na identificação dos gêneros. Nessa mesma faixa começa acontecer a muda vocal e a partir desse mo- mento, onde a ação hormonal provoca também mudanças no aparelho fonador, consequente- mente provocando a distinção entre o sexo masculino e femini- no (BEHLAU, 2001, apud DRU- MOND, 2009, p. 2).

Segundo a Hancock (2015) a voz é um fator deter- minante na percepção do gêne-

ro, quando não há consonância entre a voz e a expressão de gê- nero pode causar sentimentos complexos e tendo potencial para impactos psicossociais. Promo- vendo angústias e outros de acor- do como seu gênero é percebido socialmente (HANCOCK, 2015;

AZUL, 2015, apud BARRO, 2017, p. 15). A autora ainda diz que

Em decorrência dis- so, as pessoas transe- xuais podem experi- mentar várias formas de angústia derivadas de como seu gênero é lido socialmente, a conformidade com os estereótipos de gênero em vigor so- cialmente é conside- rada como algo fun- damental para grande parte das pessoas trans, uma vez que ser passável social- mente pode influen- ciar desde situações como a segurança contra ações transfó-

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bicas à satisfação de a pessoa ser reconhe- cida como realmente é (BARROS, 2017, p. 15-16).

Para Caldeira (2019) o que esperamos encontrar na voz de um indivíduo e seu gênero é uma construção sociocultural.

Enquanto parte da identidade do indivíduo a voz acaba por servir para identificação do gênero. É um padrão estabelecido pela so- ciedade onde se entende que “ser homem” é ter acompanhado de si uma voz grave e “ser mulher” é ter voz aguda, algo que corres- ponde ao sexo biológico de acor- do com o padrão. O autor ainda ressalta que pensar dessa forma gera uma problemática, pois nem toda “voz de homem” é necessa- riamente grave e nem a “voz de mulher” é sempre aguda, fora que existem as pessoas (travestis, transexuais e entre outras) que

não se identificam com o bina- rismo homem-mulher (CALDEI- RA, 2019, p. 24).

No campo da música, no que diz respeito ao ensino de canto vem sendo discutido a questão da dualidade da voz como pode se ver no trabalho de Caldeira (2019) onde ele nos apresenta que a construção da voz feminina e voz masculina no canto vem desde a Idade Antiga (CALDEIRA, 2019, p. 9). Teitler (1993) apresenta duas tradições de canto, a grega com a seguintes características: forte, vigoroso, poderoso e racional. Já a roma- na: suave, rebuscado, elegante e gracioso (TEITLER, 1993 apud CALDEIRA, 2019, p. 9). Cal- deira ainda diz que não é difícil perceber a dualidade presente na narrativa histórico musical, quando se vê considerado o que é racional inerente ao masculino e sensível ao feminino. As músicas

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mais rebuscadas e com ornamen- tos eram tidas como efeminadas, pois, iriam contra a “natureza máscula” que existia no canto- chão (CALDEIRA, 2019, p. 9-10).

Esse dualismo que foi instituído desde séculos atrás acaba por provocar proble- mas de identidade como até men- cionados anteriormente, padroni- zando voz grave para masculino e aguda para feminino, o que não atende àquelas e aqueles que não se identificam com o binarismo homem-mulher. Esse dualismo presente no canto também se re- laciona com a classificação vocal a qual pode ser prejudicial para o cantor ou cantora em questão, já que são feitas de acordo com gênero. Kienen e Silva (2020) apresentam em seu artigo relatos de professores de canto com seus alunos e alunas. Entre os relatos encontramos partilhas como a de Michael Chipman professor de

Música do Westminster College em Salt Lake, Utah onde fala so- bre sua experiencia com uma alu- na transexual, dizendo que

por conta da sua clas- sificação vocal como barítono, a mulher entrou em uma cri- se existencial, ape- sar de ela gostar de cantar nessa região, a maioria das obras cantadas eram por homens. A solução abordada pelo pro- fessor foi a de des- mistificar a relação entre a classificação vocal com o gênero de quem a executa, apresentando a aluna, por exemplo, obras cantadas por castrati ou mulheres com um registro mais grave que o costume (KIE- NEN; SILVA, 2020, p. p. 4).

Os autores Kienen e Silva (2020) ainda dizem que as pessoas transexuais a partir de

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suas experiências com a técnica vocal, acabam por publicar na internet conteúdos relatando as vivências a fim de ajudar outras pessoas transexuais e da comu- nidade LGBT+, geralmente com foco para o tratamento vocal (KIENEN; SILVA, 2020, p. 5).

Fora do país já encon- tramos pesquisadores estudan- do e explanando trabalhos so- bre a voz da pessoa transexual, mas segundo a Caldeira (2019) no Brasil ainda não temos tra- balhos escritos de pedagogia do canto sobre a voz transgênero (CALDEIRA, 2019, p. 13). É in- teressante observar que, mesmo vulnerável a discussão sobre gê- nero nas pesquisas cientificas no campo musical, e também, ape- sar da existência de diversos fa- tores que atrapalham uma maior visibilidade da pessoa transgêne- ro em meio ao campo musical, temos cada vez mais presente

em mídias e no mercado musical cantoras e cantores transgêneros, além de diversas outras e outros cantores que fazem parte da co- munidade LGBTQIAP+ que não se identificam com o binarismo.

Entre elas podemos citar: Urias, Assucena Assucena e Raquel Virginia com a banda As Bahias e a Cozinha Mineira, Nick Cruz, Liniker, Linn da Quebrada, Mu- lher Pepita, Aretuza Love, Gloria Groove, Candy Mel, Mc Xuxu e Mc Trans, onde por meio dessas pessoas conhecemos suas trajetó- rias, desde as dificuldades até o sucesso, suas características vo- cais e outras, além de serem por- ta-vozes para outros que vivem à beira da marginalização e do preconceito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mudanças que acon- tecem na sociedade de acordo

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com o espaço e época, refletem também no campo da Música.

Sendo assim nesse período con- temporâneo onde temos presen- te a multiplicidade nas formas e expressões de gêneros, sexuali- dades e outros, o estudo sobre a desconstrução de gênero se faz necessário. Isso está sendo in- serido nas pesquisas e espaços acadêmicos, após décadas de es- tudos feministas e da descoberta da teoria queer e de toda comuni- dade LGBTIQAP+. Nos estudos fora do país está começando a ser desenvolvido as pesquisas acerca das pessoas transgêneros.

Este trabalho a partir de sua revisão nota que é importan- te para as pessoas transgêneros, travestis e outras a compreen- são da voz enquanto ferramenta de identificação; que as mesmas pessoas precisam de profissio- nais e uma sociedade que reco- nheça as características da voz,

entenda suas particularidades e não que a sonoridade seja motivo para julgar o gênero, reduzindo o preconceito existente; podemos entender que o mercado musical abriga atualmente diversos artis- tas LGBTQIAP+ com isso cada vez mais será crescente a busca dessas pessoas por espaços mu- sicais e artísticos e que é impor- tante para elas que esses ambien- tes estejam preparados para lidar com suas particularidades sem buscar enquadrar no binarismo homem-mulher e sim valorize suas caraterísticas e habilida- des assim como são. Esperamos que as pessoas permitam que a voz possa ser livre para a opção do indivíduo e não algo julgado, adequado e sob condenação.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Shel. Corpo e Socie- dade x Corpo e Identidade. 2009.

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Referências

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