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Mal de amor: A dependência e obsessão das mulheres que amam demais

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Academic year: 2021

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A dependência e a obsessão das

mulheres que amam demais

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fumaça dos poucos carros que passam no alto da Avenida Independência, em Porto Alegre, se iguala ao vapor que sai da boca dos transeuntes nesta fresca manhã de julho. Apesar do horário, os moradores de rua continuam cobertos por pedaços de papelão e o sol reluta em despir-se das nuvens carregadas da noite anterior.

São 9h30min quando Clarice abre o portão enferrujado da sede da Cruz Vermelha. Atravessa o jardim que um dia fez jus àquele casarão colonial, passa por uma porta metálica nos fundos da construção e, de cabeça baixa, senta-se em uma das cadeiras estofadas de braços expostos aos anos e às traças. Em silêncio, aguarda os dois quartos de hora que faltam para o início do encontro. É sua primeira reunião no grupo de apoio Mulheres Que Amam Demais Anônimas, MADA.

Clarice chegou cedo. Saíra mais cedo ainda de Arroio dos Ratos, cidade de 13 mil habitantes, onde mora com uma das filhas a 62 km de Porto Alegre. Veste calças jeans, jaqueta acolchoada branca com os punhos dobrados, pouca ou nenhuma maquiagem e um cachecol cinza com fios prateados, onde esconde as pequenas mãos enquanto não sabe onde por os olhos.

A coordenadora do encontro, Adriana, chega a passos curtos e ligeiros. Prepara a mesa com os materiais da reunião, pendura os cartazes com os códigos de conduta do MADA, faz as honras da casa. Apresenta a Clarice as apostilas de 12 Passos e 12 Tradições, os livros de meditação diária e o livro que deu origem ao grupo “Mulheres que Amam Demais”, da psicoterapeuta conjugal norte-americana Robin Norwood. Prossegue a reunião para o estudo dos 12 Passos, os princípios graduais da recuperação.

Clarice desembainha as mãos do cachecol e, ao pegar o livro de Norwood, sorri: “Somos velhos conhecidos. Um amigo do CODA (Co-Dependentes Anônimos) disse que eu tinha que ler esse livro. Quando terminei pensei: É isso! Sou uma Mada e essas histórias são as histórias da minha vida. Recortei vários trechos e colei na porta da geladeira. Eles me dão força”. E é com força que Clarice o segura contra o peito durante as duas horas de reunião que se seguem, deixando a ponta dos dedos fundir-se no matiz vermelho da capa.

A cada parágrafo lido pela coordenadora, Clarice fixa ainda mais os olhos no coração bordado em ponto cruz na toalha da mesa principal. Concorda com o que escuta. Quer contar da mãe alcoólatra, do pai que a rechaçou, do alcoolismo do primeiro marido, dos abortos, dos remédios tarja-preta, da paixão avassaladora, dos golpes financeiros do marido, das noites em que furtara o celular e encontrara mensagens de ameaças, dívidas, traições e cobranças, do divórcio com um psicopata, da intolerância das filhas adolescentes, das vezes que tentou se erguer, das poucas que conseguiu. Seus pés espremidos em botas curtidas tremem impacientes sobre as lajotas. Clarice quer falar.

Todas as misérias da minha vida

aconteceram por problemas de

relacionamento. Conheço o medo, a

vergonha, o pânico e a rejeição desde muito

cedo. Olho pra trás e vejo que fiz tão ou

mais mal às pessoas ao meu redor do que se

eu tivesse sido usuária de drogas

(Clarice, MADA)

É chegado o momento dos depoimentos, cinco minutos cronometrados para cada uma. A coordenadora empunha placas que avisam quanto daqueles cinco restam. Clarice é a primeira. Com o livro colado ao peito, levanta o queixo, toma fôlego – parece acostumada a repetir aquelas palavras, mesmo que para si mesma. Entoa como um mantra.

Meu nome é Clarice e eu sou uma Mada em recuperação. Todas as misérias da minha vida aconteceram por problemas de relacionamento. Conheço o medo, a vergonha, o pânico e a rejeição desde muito cedo. Olho pra trás e vejo que fiz tão ou mais mal às pessoas ao meu redor do que se eu tivesse sido usuária de drogas. Perdi tudo e estou sempre tentando me reconstruir. Repito os comportamentos da minha mãe, me envolvo com pessoas que não são saudáveis, quero recuperar essas pessoas. De quatro irmãos, fui a única a ficar em casa para cuidar da minha mãe. Buscava no bar, às vezes, caída na sarjeta. Cidade pequena, sabe como é, mulher que

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bebe é puta e eu, filha de mulher que bebe, era puta também. Aos 23 anos, casei para fugir daquela casa, daquela situação. Nem pensei em amor, queria segurança e ele era um homem bom. Pena que bebia.

Nosso casamento durou sete anos. Depois do divórcio, entrei pra igreja evangélica e me entreguei totalmente. Queria que cuidassem de mim como uma criança, eu não tinha forças. Então conheci o meu segundo marido, achei que fosse um anjo. Namoramos dois meses e casamos. Era uma paixão tão forte, tão avassaladora, nunca tinha sentido aquilo. Estava cega. Aos poucos as pessoas começaram dizer que eu ia me surpreender com ele, mas eu não sabia exatamente porquê. No terceiro ano de casamento, começa as brigas e as agressões verbais. Ele nunca me bateu, mas se vangloriava de como tinha batido em outras mulheres. Passou a chegar em casa tarde e perder a paciência por qualquer coisa. Até que uma noite olhei o celular dele enquanto dormia e encontrei mensagens de outras mulheres, de envolvimento com jogo, prostituição, tráfico. Fui à delegacia e vi que ele tinha ficha de estelionatário, devia mais de 280 mil reais. E o pior, vendi a minha casa para comprarmos uma terra e construirmos juntos, mas descobri que ele comprou como se fosse solteiro. Dei o dinheiro e não averiguei. Era louca por ele, confiava, parecia ser um ótimo cuidador. Passei um ano disfarçando que não sabia de nada disso até pedir o divórcio. Tinha medo, ele é um psicopata. Faz dois anos que nos separamos e nunca mais o vi, porque ele sumiu da cidade. Isso tudo me faz tão mal. As minhas filhas não me entendem, dizem que preferiam ser filhas de outras mulheres, me chamam de louca. Não adianta dar o livro pra elas e dizer “Estão vendo esse livro? Tá tudo aqui. A mãe de vocês não sabe amar, porque nunca teve amor. Como é que vou saber amar?” Hoje estou me reerguendo e estou aqui por elas, quero que me respeitem e que não repitam as mesmas coisas que eu e a minha mãe fizemos.

A sineta toca. As companheiras agradecem em coro o depoimento da novata. Outras mulheres querem falar. Querem e falam em 45 reuniões semanais como essa realizadas pelo grupo Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA), no Brasil.

O MADA é um grupo de apoio a mulheres que sofrem, assim como Clarice, por relacionamentos doentios, obsessivos ou opressivos.

Os trabalhos desenvolvidos pela organização ajudam-nas a aprenderem a se relacionar de maneira saudável e a recuperar-se da dependência em relações, sejam elas amorosas ou não. Diferente dos grupos de apoio em que o problema está vinculado a algo material como uma substância química, droga ou hábito que necessite de um objeto físico, o MADA auxilia mulheres a curar algo imaterial, um sentimento: o “amar demais”.

Na verdade, elas são viciadas em dor e no caos em que seus relacionamentos se transformam. A relação homem-mulher é apenas uma faceta da postura insalubre que desenvolvem. Por não conseguirem mais conviver com o não saber relacionar-se e com o sofrimento que isso lhes traz, vão ao MADA.

As mulheres citadas nesta reportagem frequentam as reuniões das cidades de Porto Alegre e Curitiba e aceitaram contar suas histórias de amor, falta ou excesso dele, sob o principal manto protetor do MADA: o anonimato. Seus rostos não foram fotografados, as vozes permanecem ecoando nas salas de encontro sem serem aprisionadas em gravadores e os nomes foram trocados. Fora dos encontros são Maria, Luiza, Ana ou Roberta. Mas ali, entre as singularidades, é a dor compartilhada que as representa e as faz repetir antes de qualquer soluço: “Sou uma MADA em recuperação”.

Ao contrário do que parece, o MADA não é uma terapia de grupo, muito menos um tratamento psicológico ou psiquiátrico. É, como suas participantes costumam chamá-lo, uma “irmandade”, um grupo de apoio, de ajuda mútua. As reuniões são uníssonas, com depoimentos de MADA para MADA. Também não há acompanhamento profissional, e as mulheres não podem opinar ou intervir nos depoimentos das companheiras.

Toda a dinâmica que Adriana apresentou a Clarice naquela gélida manhã de julho é uma adaptação do plano de recuperação de 12 Passos e 12 Tradições do Alcóolicos Anônimos às especificidades do MADA. Nesse programa, a reabilitação encontra-se na partilha, em se identificar na graça ou na desgraça da outra. É a catarse que fala, aliás, a catarse que reside na escuta – embora se tenha a corrente sensação de que a maioria está mais inclinada a contar as próprias experiências que ouvir as alheias.

Adriana é voluntária, assim como todas as mulheres que prestam algum tipo de serviço ao MADA. Embora o grupo não cobre taxas das frequentadoras, há um momento da reunião em que as organizadoras pedem contribuições espontâneas para cobrir os custos. “Dê o quanto você pode, o quanto acha que o tempo aqui vale e o quanto a irmandade influencia no seu bem estar”, sugere a coordenadora de Curitiba enquanto uma sacola de tecido passa de mão em mão na meia lua formada pelas participantes. Por esse ser o único aporte financeiro da irmandade, os encontros acontecem de maneira autônoma em locais, geralmente favoráveis ao trabalho desenvolvido, como sedes de instituições públicas, escolas, Cruz Vermelha, associações comunitárias e igrejas. Apesar da proximidade física, o MADA não assume cunho religioso, apenas espiritual.

O MADA teve origem a partir do livro Mulheres que Amam Demais, de 1985, da norte americana Robin Norwood. A autora é psicóloga e terapeuta familiar e percebeu um padrão de comportamento comum em centenas de mulheres envolvidas com dependentes químicos – Robin as identificou como “mulheres que amam demais”. No último capítulo do best seller, Norwood sugere a abertura de grupos para tratar a doença de amar e sofrer demais e dá um passo a passo de como fazer as reuniões: “Esse livro é

escrito com um propósito bastante específico: ajudar mulheres com maneiras ou sentimentos destrutivos a reconhecerem o fato, a compreenderem a origem desses sentimentos e a obterem os instrumentos para modificarem suas vidas. Que este livro não ajude apenas a se tornarem mais conscientes da realidade de sua condição, mas também as encoraje para mudar, retirando sua atenção afetuosa de sua obsessão por um homem e colocando-a na própria recuperação e na própria vida”.

Outros três livros escritos por ela são utilizados nas reuniões. Robin, hoje com 69 anos, vive em uma fazenda na Califórnia e não viaja para conferências ou palestras. Por ser psicoterapeuta, sua obra é focada nas causas emocionais do “amar demais”, deixando as socioculturais e neuroquímicas em segundo plano. As frequentadoras do MADA se referem a ela com adoração digna de divindade e ao livro que batiza o grupo como uma obra sacra, a bíblia do MADA. Quando as coordenadoras arrumam a mesa para as reuniões, Mulheres que Amam Demais é elevado em suportes metálicos ou deixado na vertical, em destaque, para que as participantes possam vê-lo.

“Se você é uma mulher que ama demais e deseja modificar seus padrões de comportamento, dê uma chance a você e a nós”, é o que diz, em tinta vermelha, o panfleto do MADA Independência de Porto Alegre.

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O grupo Alcóolicos Anônimos foi criado em 1935, nos Estados Unidos, por Bill Wilson, corretor da Bolsa de Valores de Nova Iorque, e Bob Smith, cirurgião de Akron, no estado de Ohio -- ambos dependentes de álcool. Quatro anos após a criação do A.A, a irman-dade publicou seu livro base “Alcóolicos Anônimos”, conhecido como “Big Book”. No livro, Bill apresenta a filosofia e os métodos de recuperação do A.A. Os 12 passos foram escritos por Bill e outros membros do A.A como forma de normatizar atitudes que su-postamente funcionariam para a recuperação deles. Os códigos de conduta compilados no livro são uma releitura dos seis passos do Grupo de Oxford, funda-do pelo missionário Frank Buchmam que acreditava na orientação de Deus, sem relação direta com tra-tamentos de vícios.

A partir da publicação do livro, o grupo de Bill Wil-son e Bob Smith desenvolveu-se rapidamente. No Brasil, a primeira sede foi aberta em 1947, no Rio de Janeiro. Hoje, há 4.915 reuniões semanais no país e somos a terceira nação em número de membros do Alcóolicos Anônimos, ficando atrás apenas dos Esta-dos UniEsta-dos e México. Com a significativa expansão do A.A, outras irmandades foram criadas e adaptaram os conceitos, passos e tradições como o NA (Narcóti-cos Anônimos), DASA(Dependentes de Amor e Sexo Anônimos), CCA(Comedores Compulsivos Anôni-mos), Al-Anon (Familiares e Amigos de Alcóolatras) e MADA(Mulheres que Amam Demais Anônimas).

Por serem grupos sem a participação de profissio-nais especializados e coordenados por pessoas que também necessitam dos serviços a que se destinam, eles dispõem de um conjunto de normas para manter o equilíbrio e a unidade interna: as 12 Tradições. Já os 12 Passos, são preceitos a serem seguidos gradualmen-te no processo de recuperação individual.

Uma das principais críticas ao A.A se refere ao teor moralista, religioso e evangelizador dos passos e tradições. Partindo deles, o dependente precisa aceitar um programa espiritual para ser curado. O tema deu origem ao livro “O mito da doença es-piritual na dependência de álcool”, de Luiz Alber-to Bahia. O auAlber-tor é ex-frequentador do Alcóolicos Anônimos e fundador do Grupo de Recuperandos da Dependência do Alcóol (GREDA) – um grupo de ajuda mútua com embasamento estritamente científico. Pelo fato dos 12 Passos e Tradições do A.A serem a origem dos códigos de conduta e re-cuperação de vários grupos, a ressalva se aplica à maioria deles – inclusive ao MADA.

Conheça a adaptação dos 12 Passos e 12 Tradi-ções que compõem a literatura do MADA:

1.

Admitimos que éramos impotentes perante os re-lacionamentos e que tínhamos perdido o controle de nossas vidas.

2.

Passamos a acreditar que um poder superior a nós mesmas poderia nos devolver a sanidade.

3.

Decidimos entregar nossas vidas aos cuidados de Deus, na maneira como O concebíamos.

4.

Fizemos um minucioso e destemido inventário moral de nós mesmas.

5.

Admitimos perante Deus, perante nós mesmas e outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.

6.

Nos dispusemos inteiramente a deixar que Deus removesse os defeitos do nosso caráter.

7.

Humildemente, pedimos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.

8.

Fizemos uma lista de todas as pessoas que prejudi-camos e nos dispusemos a reparar os erros que come-temos com elas.

9.

Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-lo significasse prejudicá-las ou a outrem.

10.

Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quan-do estávamos erradas, nós o admitíamos prontamente.

11.

Procuramos, através da prece e da meditação, me-lhorar nosso contato com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade e forças para realizar essa vontade.

12.

Graças a esses passos, experimentamos um des-pertar espiritual e procuramos transmitir essa mensa-gem a outras mulheres, dependentes de pessoas. Pro-curamos praticar esses princípios em todas as nossas atividades. Nada, absolutamente nada, acontece por equívoco no mundo de Deus.... A não ser que eu aceite a vida totalmente do jeito que ela é, não poderei ser feliz. Preciso me concentrar menos no que é preciso mudar no mundo e mais no que eu preciso mudar em mim e nas minhas atitudes.

1.

Nosso bem-estar deve vir em primeiro lugar. O pro-gresso pessoal da maioria depende da unidade.

2.

Para o propósito do nosso grupo, existe somente uma autoridade: um Deus afetuoso, que Se expressa em nossa consciência de grupo. Nossas líderes são apenas servidoras confiáveis. Não governam.

3.

O único requisito para ser membro de MADA é o desejo de se recuperar da dependência das pessoas.

4.

Cada grupo deve ser autônomo, exceto em ques-tões que digam respeito a outros grupos de dependên-cia de pessoas ou de anônimos em geral.

5.

Cada grupo de MADA tem um único objetivo, que é o de ajudar a seus membros a se recuperarem da sua dependência de pessoas. Fazemos isso através da prática dos Doze Passos de MADA, dando e recebendo ajuda de outras dependentes.

6.

Os grupos de MADA não devem apoiar, financiar ou emprestar seu nome a nenhuma entidade externa, para evitar que problemas envolvendo dinheiro, propriedade ou prestígio os afastem do seu objetivo primordial, que é o espiritual. Embora sejam entidades separadas, devem sempre cooperar com outros Programas de Anônimos.

7.

Todos os grupos de MADA devem ser economica-mente auto-suficientes e não devem aceitar contribui-ções externas.

8.

O trabalho dos Doze Passos de MADA nunca deve-rá ser profissional. Entretanto, nossos centros de serviços poderão empregar funcionários especializados.

9.

Nossos grupos, assim como os grupos de Anônimos, não devem ser organizados, mas podemos criar comitês ou juntas de serviço diretamente responsáveis perante àqueles a quem servem.

10.

Os grupos de MADA não têm opinião sobre ques-tões externas, para impedir que o seu nome possa ser levado a controvérsias públicas.

11.

Nossa política de relações públicas baseia-se mais na atração do que na promoção; é necessário manter o anonimato pessoal para a imprensa, rádio, filmes e televisão. É necessário proteger, com cuidado especial, o anonimato de todos aqueles de quem nos tornamos dependentes.

12.

O anonimato é o fundamento espiritual de todas as nossas tradições. Devemos lembrar sempre que os princípios estão acima das personalidades.

FONTE: Site Oficial MADA (www.grupomada.com.br)

A condição para participar é se reconhecer como tal, como uma mulher que ama demais, sem qualquer tipo de prescrição prévia ou indicação – muito embora, al-gumas cheguem ao grupo por sugestão médica ou de outros grupos anônimos de 12 Passos e 12 Tradições.

Como o próprio nome indica, as reuniões são permitidas apenas para mulheres. Não que os

ho-mens estejam imunes a comportamentos seme-lhantes às MADAs. Inclusive Norwood afirma no livro, que alguns também se comportam assim e os sentimentos dessa natureza vêm dos mesmos tipos de vivências e traumas da infância. No en-tanto, a maioria dos homens que foi afetado du-rante a fase pueril não desenvolve vícios ligados a relacionamentos. Também por razões sociocul-turais, a tendência é que a obsessão aconteça com atividades mais impessoais, como trabalho, hob-bies ou esportes.

12 Passos

Códigos de Conduta

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A biologia, mais especificamente os hormônios, é parte fundamental nessa diferença de conduta entre os dois gêneros. A neuropsiquiatra da Universidade da Califórnia e fundadora do Women’s and Teens Girls’ Mood and Hormone Clinic, Louann Brizendine, defende em seu livro Como as mulheres pensam que o cérebro feminino é tão profundamente afetado pelos hormônios que é possível dizer que sua influência cria a realidade de uma mulher. Para Brizendine, não existe cérebro unissex.

N

o Brasil, funcionam cerca de 17 tipos de grupos de ajuda mútua. O Alcóolicos Anônimos(AA) foi o pioneiro, mas a partir dos anos 1990 foram criadas várias outras organizações anônimas – majoritariamente relacionadas a dependências de temas como amor e sexo, que adaptaram a estrutura de reuniões e o programa de recuperação de 12 Passos e 12 Tradições do AA. E o MADA é uma delas.

Para o psiquiatra e coordenador do grupo de apoio a familiares e portadores de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), de Florianópolis, Marcelo Calcagno, o sentimento de acolhida e compreensão é a principal razão para a existência de tantas associações nesse formato. “Mas é preciso mais que aceitação, porque ela pode inclusive alimentar o problema e criar a impressão de que o normal é o patológico. É necessário que haja uma psicoeducação mostrando o que leva ao sofrimento e a importância de tratá-lo”, ressalta.

A primeira reunião do MADA no Brasil ocorreu em 16 de abril de 1994, em São Paulo, nos fundos da Igreja do Perpétuo Socorro, no bairro Jardins. A iniciativa foi de uma mulher casada com um dependente químico que se identificou com o livro Mulheres que Amam Demais, de Norwood. No início, a Associación de Mujeres Adictas a Personas (AMAP), de Buenos Aires, cedeu apostilas e livros base para as reuniões. Cinco anos depois, foi aberto um grupo MADA no bairro Leblon, no Rio de Janeiro.

Hoje, quase todas as grandes cidades brasileiras têm reuniões do MADA -- São 45 encontros semanais em 15 estados. E há grupos que seguem os mesmos moldes em Portugal e na Venezuela. Uma reunião em Lisboa e cinco em Caracas, sendo duas via Skype.

Mas é preciso mais que aceitação, porque ela

pode inclusive alimentar o problema e criar

a impressão de que o normal é o patológico.

É necessário que haja uma psicoeducação

mostrando o que leva ao sofrimento e a

importância de tratá-lo

(Marcelo Calcagno, psiquiatra)

Em Porto Alegre, há duas unidades indepen-dentes do MADA. Uma funciona desde 2000 com reuniões todos os sábados na Cruz Vermelha, na Avenida Independência. A outra realiza encon-tros há dez anos às quartas-feiras no Centro Es-pírita “Nossa Casa”, no Bairro Glória. Em Curiti-ba, o grupo que começou em 2001 se reúne duas vezes por semana em salas locadas na Igreja Bom Jesus, no centro da cidade.

Na capital catarinense, as reuniões foram suspensas em 2013 pelo acúmulo de funções e pela falta de envolvimento das participantes nos preceitos de recuperação do grupo. A ex-coordenadora,

Carla, de 42 anos, afirma que tentou compartilhar as tarefas de tesouraria, coordenação do grupo e organização dos encontros com outras pessoas, mas não houve envolvimento. “No início, era muito produtivo. Vinham mulheres de várias cidades do estado, tivemos sábados com mais de 30 integrantes. Mas com o passar do tempo, elas queriam que as reuniões fossem em um dia, outras queriam que fosse em outro e não entravam em acordo. O grupo passou a se adequar às participantes e não as participantes ao grupo. Tenho vontade de retomar, mas desse jeito não. Cansei”.

Carla, que é chef de cozinha e mãe de três filhos, conta que muitas mulheres chegavam ao grupo em fase de crise conjugal ou logo após uma separação apenas para contar sobre os próprios problemas. “Você chega como uma coitada, sofredora. Depois, vê que você mesma era a bruxa da história, a principal responsável por toda aquela dor. Não é mágica, é um processo de tomada de consciência. O MADA desencadeia a racionalização do sentimento e do tipo de comportamento desenvolvido ao longo da vida. Mas quando algumas percebiam isso, fugiam e não queriam encarar a mudança. Preferiam ficar anestesiadas”, afirma.

A orientação do MADA é que as recém-chegadas assistam a seis reuniões, mesmo com dúvidas se o gru-po é o local adequado para se dedicarem na recupera-ção de suas compulsões. As coordenadoras também aconselham as novatas a não romperem ou começa-rem relacionamentos durante a fase de adaptação.

Pelo fato da irmandade ser gerida por pessoas que precisam dela (também são MADAs), muitas unidades acabam tendo problemas de gestão ocasionados pelos mesmos motivos que as levam a procurar ajuda: excesso de controle ou ausência absoluta dele. Uma das consequências disso é a falta de coesão e diálogo entre os grupos. Exemplo visível é o site oficial do MADA: arcaico e desatualizado. No Rio de Janeiro e em São Paulo, os grupos mantêm blogs que agregam outras unidades no estado, mas são casos isolados. Nas demais regiões, os grupos se reconhecem como MADA, porém não há interação entre eles. Outra decorrência é a (quase) impossibilidade de realizar estudos numéricos sobre a irmandade. Não existem pesquisas ou estimativas que tracem um perfil do MADA ou assegurem a eficácia do tratamento proposto.

Adriana é coordenadora e co-fundadora do MADA Independência em Porto Alegre. E diz que o desejo de estar sempre no comando fez com que o grupo da Cruz Vermelha ficasse fechado durante alguns meses: “Eu não tinha condições de coordenar as reuniões e não conseguia entregar a chave para ninguém vir em meu lugar. A minha necessidade de controle é absurda, esse é um dos motivos porque estou aqui. Dentro desta sala aprendi que existem coisas mais importantes que um homem ao meu lado e que não posso controlar tudo”, afirma, como se quisesse reafirmar para si mesma e firmar um compromisso diante das participantes que a observam atentamente.

Filha de um renomado anestesista de Cachoeira do Sul (RS), Adriana assistiu à ruína do pai pelo abuso dos medicamentos que utilizava a trabalho. Estudou no colégio Rosário em Porto Alegre, cursou psicologia na PUC, não exerceu, nunca trabalhou. Foi jovem nos anos 1970 e, ao contar para a mãe sobre sua primeira experiência sexual, ouviu que era uma puta. Casou-se porque devia casar, teve um filho porque devia ter, separou-se porque quis. Assim como muita MADAs, participou de outras instituições de ajuda mútua, esteve no Neuróticos Anônimos (NA) e no Al-Anon, destinado a familiares e amigos de alcoólatras. Em 2000, viu um anúncio no jornal sobre terapia de grupo a R$40 e, indignada, fundou o primeiro MADA de Porto Alegre com o auxílio de companheiras do NA. Mas esse não foi o anúncio responsável pela percepção de que era dependente em relacionamentos. “Sou uma MADA desde a adolescência, eu só não sabia”, confessa durante seus cinco minutos de depoimento.

Achei que fosse morrer. Quando eu não

tinha mais forças, ele me soltou. Não sei

como levantei e saí daquele apartamento

recolhendo roupas e me vestindo pelo

caminho. Ali eu vi que precisava de ajuda

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Adriana está atrás das placas, da sineta, dos livros. Está à frente das participantes, da novata Clarice, do cartaz de orações que ao final da reunião celebrarão de mãos dadas. Adriana ajeita o sobretudo púrpura e a cada troca de frase troca também a angulação das grossas sobrancelhas sobreviventes ao tempo. Compara sua adição em relacionamentos ao vício em substâncias químicas. Gesticula com a aliança cravejada ganha da mãe como um símbolo da união das duas. Fala dos dias em que passou trancada no quarto à espera de um telefonema, das tardes em que o filho brincou sozinho enquanto ela chorava na cama, das vezes que quis abrir a porta do carro em movimento e se jogar na estrada, das chances que perdeu e da vida que resgatou no MADA. Conta sobre o primeiro anúncio de jornal.

Estava esperando o ônibus em frente a uma sinaleira. Até que um cara parou e me ofereceu carona. Acreditam? Meu primeiro impulso foi dizer que não, claro. Mas continuei olhando aquele cara bonito, aquele carrão. Aceitei. Tivemos um relacionamento de cinco

anos puramente sexual. Até que um dia cheguei na casa dele e ele estava lendo jornal. Mostrou o classificados e disse que ia chamar outra mulher para participar do encontro. Eu não concordei, começamos a discutir e ele deitou em cima de mim tentando me sufocar. Me debati, tentei gritar, não conseguia me soltar. Achei que fosse morrer. Quando eu não tinha mais forças, ele me soltou. Não sei como, levantei e saí daquele apartamento recolhendo as roupas e me vestindo pelo caminho. Ali eu vi que precisava de ajuda.

A coordenadora é uma “MADA em recuperação” há 14 anos e passou seis desses sem se relacionar com ninguém. Adriana termina o depoimento otimista com os efeitos do grupo. Enquanto fala, coloca insistentemente os cabelos bem cortados atrás da orelha, evidenciando ainda mais a aliança da mãe em seus longos dedos de pianista. O olhar parece introvertido para os dias de desatino, que segundo ela ficaram no passado, mas a forma como fita Clarice convence do contrário. Adriana ainda é uma delas.

Com o MADA consegui recuperar os laços que havia perdido ou que estava perdendo. Penso nos dias em que fiquei chorando agarrada a um telefone enquanto podia ter levado meu filho no parque. Hoje ele tem 31 anos e temos uma boa relação. Também consegui me ligar melhor à minha mãe. Agora ela está internada, sei que não tem muito tempo de vida, quem sabe poucos dias. Estão vendo essa aliança? Tão linda! Foi ela quem me deu e cada vez que olhar vou lembrar dela. Quero cuidar dela neste momento. Até me comprometi a não olhar o Facebook durante

esse período. Sabe por quê? Reencontrei um antigo conhecido de infância e estamos nos falando há algum tempo. Acho que ele é alcoólatra, mas como mora em Brasília é mais fácil. Não quero entrar no Facebook para não controlá-lo. Olho só as mensagens. Aliás, ele me mandou uma mensagem linda. Fiquei muito feliz, meu dia mudou completamente! Fui cuidar da minha mãe com outro astral, outra energia.

Foi a última na rodada de depoimentos. Em seguida, todas se levantam. Clarice larga o livro de Robin Norwood pela primeira vez na reunião. Adriana dá a volta na mesa, se une à roda. Entoam juntas, e de pestanas cerradas, a oração da serenidade. Ao final, dizem unânimes a plenos pulmões “Só por hoje. O segredo está na próxima reunião”.

Antes do abraço coletivo de despedida, Adriana convida as participantes a assinarem o livro de presença. Abaixo da data do encontro, grifado de caneta azul sobre as linhas pautadas “Poder Superior” aparece como o primeiro da lista. Em um dos cartazes fixados na parede, os 12 Passos declaram que o MADA assume a fé como um dos elementos norteadores do tratamento. O “despertar espiritual” é considerado a base para que as integrantes renunciem de suas condutas patológicas e possam sair do vício de amar demais. Pela maneira com que os encontros são conduzidos, nota-se a entrega dos problemas ao “Poder Superior” e o crédito a um Deus “poderoso e amoroso”. Nas reuniões, há falas de gratidão espiritual e as MADAs celebram as orações da serenidade, unidade e sabedoria sem

titubear. Adriana se refere ao “Poder Superior” como agente primordial de seus avanços como MADA: “A espiritualidade foi o antídoto para o meu vício”.

É o circuito de desamor que as prende.

Assim, a dependência leva algumas pessoas

a ficarem posicionadas num lugar propício

à violência emocional que pode terminar em

doença, loucura ou morte

(Patrícia Faur, psicóloga)

Assim como Clarice e Adriana, muitas MADAs vêm de lares desajustados, com pais alcoólatras, de-pendentes químicos, abusivos ou violentos. Gran-de parte dos textos que leem durante os encontros são sobre a repetição de comportamentos nascidos desses traumas com várias pessoas de seus círculos sociais – companheiros, familiares, amigos, colegas de trabalho. A psicoterapeuta, supervisora e co-criadora do Setor de Amor e Ciúme Patológicos do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impul-so (AMITI) do Hospital de Clínicas de São Paulo, Eglacy Sophia, afirma que o estilo de amor recebido durante o primeiro ano de vida com o primeiro cui-dador, em geral mãe, pai ou avós, é incorporado por nós e reproduzido na vida adulta. “Esse vínculo é chamado de ansioso ambivalente, em que a mãe está presente em algumas situações de medo e em outras ameaça rejeitar o filho. Isso faz com que a criança

fi-Tempo de Amor

Está comprovado pela ciência: o amor não é uma emoção, mas um instinto instalado no cérebro ao longo da evolução da espécie humana. E, no passar dos séculos, vem sendo moldado e construído por interferências sociais, culturais e religiosas.

Acredita-se que a primeira manifestação de amor ocorreu há 40 mil anos, quando os mortos passaram a ser enterrados

em túmulos ornamentados. Até 5 mil anos atrás, ignorava-se a participação do homem na procriação e supunha-se que a vida pré-natal das crianças começava na natureza antes de ser introduzida por

um sopro no ventre da mãe.

Em Roma, o amor era sexual e a infidelidade era a regra. Os romanos desenvolveram a ideia de prudência, de lutar contra

o amor para evitar o sofrimento.

Na Idade Média, o amor deveria ser somente a Deus. Durante esse

período, o amor e o sexo eram, respectivamente, Deus e o Diabo

na terra. O sexo era abominável e qualquer coisa que tornasse o corpo mais atraente era visto como

incentivo ao pecado.

Na Grécia Clássica, o amor era visto como uma distração

ou uma aflição enviada pelos deuses. As mulheres eram desvalorizadas e a bravura era o resultado do amor. Consideravam o homem mais próximo da perfeição, o que o tornava objeto de amor ideal.

Do século III ao V, o cristianismo ligou amor, carne e pecado. O mérito espiritual residia na renúncia aos prazeres carnais e às amenidades do amor. O casamento não era um bem, mas “é melhor casar que se abrasar”,

disse São Paulo.

A partir do século XV, o casamento passou a ser celebrado dentro das igrejas e

regido por ela: indissolúvel e monogâmico.

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que sempre insegura, com medo de ser abandonada. Quem sofreu isso na infância tende a sentir também na idade adulta. Em geral, pessoas com problemas de dependência afetiva tentam reviver a relação de completude simbiótica com a mãe.”

No I Seminário MADA “Sintomas e Caracte-rísticas da Doença de Amar Demais”, organizado no dia 23 de agosto pelo Intergrupo MADA São Paulo, muito foi discutido sobre os reflexos das vivências da infância e os processos sartrianos para recuperá-los. O psicólogo José Kenshiti falou sobre a utopia de buscar um relacionamento dual, um fundido ao outro como na relação mãe-bebê. “As situações de medo e rejeição estão ligadas à tenra idade. O que deve ser trabalhado é a forma como as pessoas adaptam o medo da infância nas situações da vida adulta. É necessário tomar cons-ciência dessas experiências e ressignificá-las. E o MADA faz isso”, disse ele.

Aquela foi uma tarde atípica de agosto, com cara de janeiro em São Paulo enquanto 146 pessoas passaram cinco horas no pavilhão de telhas de Brasilit do centro espírita Lar Dona Cotinha, na Mooca. Embora o evento fosse voltado para profissionais da área da saúde e estudantes, a forma como as mulheres reagiam às falas da juíza Rafaela Caldeira Gonçalves, atuante no combate à violência doméstica, sobre as aplicações da Lei Maria da Penha, e às considerações dos dois psicólogos palestrantes sobre doenças mentais, sofrimento amoroso e espiritualidade, as denunciava como integrantes do MADA.

No amplo pavilhão, uma mulher ocupa apenas metade da cadeira plástica branca. É Elis, que não tem corpo suficiente para ocupá-la por inteiro. Dis-creta, troca poucas palavras com a participante ao lado. Elis se esconde atrás da grossa armação dos óculos de grau. Segura o canudo do suco de maçã com as mãos em concha, aproveita o movimento para ocultar o hematoma que preenche o lado di-reito do rosto de roxo esverdeado. Findo o suco, rói o pouco de unha que resta em seus dedos até per-cebê-los doloridos. No intervalo entre as falas dos palestrantes, não segue as demais no café ao fundo do salão. Puxa da mochila de couro um livro cober-to por uma proteção de tecido. Retira do sapacober-to de camurça os calcanhares secos. Ao final do evento, quando todos cantam a oração de São Francisco, Elis mostra-se pela primeira vez, porém não com-pletamente. Afasta os óculos da fronte e derrama grossas lágrimas antes guardadas pelo silêncio. Ela não quer falar, pelo menos não ali. Elis participa do grupo MADA da Avenida Paulista, é lá que fala.

D

a mesma forma com que a infância e a espi-ritualidade são pautas recorrentes e bastante discutidas no MADA, as comparações com vícios ligados a substâncias químicas também per-meiam os depoimentos das participantes. Adriana, de Porto Alegre, acredita que as mulheres que fre-quentam o grupo precisam de tanta ajuda quanto os dependentes químicos. “Nós somos dependentes de pessoas. E a dificuldade é que não conseguimos ficar longe do vício. Quando um alcoólatra quer se recu-perar, deixa de ir ao bar, de frequentar ambientes com

bebidas alcoólicas para ficar menos vulnerável. Nós, MADAs, estamos sempre vulneráveis. A menos que se viva em uma ilha isolada, estamos em constante contato com a nossa compulsão.”

Não é à toa que o tema seja tão presente. A relação entre os diferentes tipos de adição é, inclusive, alvo de estudos clínicos. No livro Amores que matam, a psicóloga argentina especializada em dependências afetivas e coordenadora de grupos de apoio relacionados ao tema, Patricia Faur, defende a existência de relacionamentos tão ou mais tóxicos que o vício em drogas. “É um circuito de desamor que as prende. Assim, a dependência leva algumas pessoas a ficarem posicionadas num lugar propício à violência emocional que pode terminar em doença, loucura ou morte”. Faur, autora de quatro livros sobre o assunto, compara esse tipo de vício a uma “injeção de alguém” e endossa: “Há um grau de dependência doentia em que acreditamos não sermos nada sem o outro, em que essa outra pessoa é tão imprescindível para a nossa sobrevivência quanto um respirador artificial quando falta oxigênio”.

A comparação pode ser explicada fisiologicamen-te. No cérebro, existe a região do “centro de recom-pensa”, mediado pela dopamina. Essa substância neurotransmissora é considerada o sulco do prazer, responsável pelas sensações geradas pelo uso de drogas químicas e não químicas, como amor, sexo, exercício físico, alimento. Sendo assim, a mesma re-gião cerebral que regula o prazer das drogas tam-bém controla o prazer causado pelo amor e pela pai-xão. Esse sistema pode entrar em descontrole, uma

espécie de exaustão, e necessitar cada vez mais da substância, seja ela uma droga ou algum dos hormô-nios liberados pela paixão, para continuar sentindo o prazer inicialmente obtido.

De acordo com a psiquiatra especialista em transtornos sexuais, Alessandra Diehl, da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Outras Drogas (ABEAD), autora de diversos livros sobre dependência química, apesar da paixão ser um sentimento transitório e finito, muitas pessoas buscam revivê-lo a todo momento nos relacionamentos. Alessandra também defende a existência de indivíduos mais propensos a sofrerem por algum tipo de dependência ou vício: “Pessoas impulsivas, pouco tolerantes a frustrações, menos assertivos, ou com excesso de confiança, ou até mesmo aqueles com menor capacidade de resiliência têm mais tendência a desenvolver dependências tanto para substâncias psicoativas quanto para relacionamentos”.

Uma questão sociocultural distancia a adição em álcool, drogas ou jogo do vício das MADAs: a aceitação. Além do fato de que as mulheres ainda recebem uma educação machista tolerante à ideia de que um homem vai salvá-la de seus problemas e a atitudes que priorizem os relacionamentos, histórias de amor, e de sofrimento amoroso, são narradas através dos séculos. E nessas narrativas, não há apelo na serenidade. Na poesia, na música, na literatura, na história, na mitologia ou no cinema, sobram casos de amantes idílicos que se apaixonam, enfrentam qualquer coisa por esse sentimento e até

Este período é marcado pelo amor cortês, que trouxe uma grande transformação: a passagem do amor a Deus para o amor recíproco. O amor

respeitoso pelas mulheres surgiu como tema central na poesia e na vida. A mulher poderosa é

honrada e o homem honrado é gentil. Com viés trovadoresco, o ideal de amor cortês espalhou-se pela Europa medieval e deu origem ao amor

romântico, recorrente ainda hoje.

No século das Luzes, o amor era ridicularizado. Ninguém queria ser escravo das emoções. As classes superiores e intelectuais queriam ocultar seus verdadeiros sentimentos, e o amor romântico

sofredor parecia-lhes uma loucura supersticiosa da infância da humanidade. Os bailes de máscara tornaram-se populares. Laissez faire, laissez passer:

os rigores morais desaparecem e as aventuras amorosas não eram carregadas de culpa.

A Renascença foi cruel. Durante a caça às bruxas, milhares de mulheres foram queimadas vivas nas

fogueiras acusadas de feitiçaria, roubo de sêmen de homens adormecidos, de provocar impotência,

esterilidade, abortos e deformações nas partes íntimas das pessoas. Moças atraentes eram suspeitas de ter relações sexuais com Satã. Sob tortura, muitas confirmavam os supostos pecados e afirmavam voar à

noite montadas em vassouras.

Discípulos do Jovem Werther: o amor romântico volta a emergir no século XIX. O amor é uma finalidade nobre na vida. A mulher é acanhada e virginal, e o amor, puritano e cauteloso. Palidez e decadência física eram provas de sensibilidade da

alma. A repressão sexual aumenta pesadamente entre 1800 e 1960.

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morrem por ele. O público absorve esses conceitos e, de certa maneira, os naturaliza.

O fenômeno não é recente. Os efeitos do romance alemão Os sofrimentos do jovem Werther, publicado por Goethe em 1774, são exemplo disso. A então geração de jovens adultos alemães, franceses e ingleses entrou em uma “febre de Werther”, imersos na supervalorização dos sentimentos e do culto ao personagem de fim trágico. A escritora compatriota de Goethe, Christiane Zschirnt, conta em seu livro Livros - Tudo o que você não pode deixar de ler que, na Alemanha, essa febre recebeu o nome de “Empfindsamkeit”, na Inglaterra “sensibility” e na França “sensibilité”. A comoção não se restringia a engrandecer as emoções de Werther. Alguns leitores chegaram a seguir o comportamento do herói e suicidaram-se após a leitura. Percebendo a influência, muitos países baniram a obra. As edições seguintes à “febre Werther” traziam a advertência “Seja homem e não me siga”.

O frio na barriga que as mulheres que

amam demais dizem sentir a todo tempo

não é amor. Frio na barriga todo dia é

medo, medo do abandono, da rejeição. Elas

amam por temor

(Selma Tavares, psicóloga)

A idealização de amores perfeitos, o desejo por relações em que ambos vivem um para o outro e por sentimentos constantes de contentamento e excita-ção fazem parte dos testemunhos das MADAs. Em Amores que matam, a argentina Patricia Faur fala sobre o potencial de alienação e embriaguez pre-sente nas relações dependentes: “É pouco relevante por quem se está apaixonado, o importante é o alívio transitório da dor. É como se por um tempo houves-se uma trégua e a pessoa esqueceshouves-se de houves-ser quem é e das frustrações da sua vida”.

Durante o seminário “Sintomas e Características da Doença de Amar Demais” ocorrido em São Paulo, no mês de agosto, a psicóloga Selma Tavares, que ajudou no desenvolvimento do primeiro grupo MADA em São Paulo, falou sobre a supervalorização dos comportamentos difundidos como o amor, a alienação e a autodepreciação das MADAs diante da pessoa pela qual mantém um relacionamento doentio. Selma foi taxativa: “O frio na barriga que as mulheres que amam demais dizem sentir a todo tempo não é amor. Frio na barriga todo dia é medo, medo do abandono, da rejeição. Elas amam por temor”. Selma terminou sua fala dando foco ao reconhecimento disso como um problema. “O primeiro passo é a aceitação. Depois canalizar a energia gasta no outro para si, para o resgate da própria identidade. Existem relacionamentos saudáveis possíveis, mas não perfeitos. Homens possíveis, mulheres possíveis. E não o ideal de amor construído em nossa sociedade. Se esses ideais fossem desconstruídos, grande parte dos conflitos e das projeções seriam solucionados”.

É

quarta-feira e os ponteiros do relógio bran-co da recepção do Centro Espírita Nossa Casa marcam 18h50min. Bárbara e Cristi-na conversam Cristi-nas poltroCristi-nas de couro ao lado da sala do MADA. Bárbara tem 19 anos e os longos cabelos escuros escondidos por reflexos loiro acinzentados visivelmente esticados. Veste blazer preto, botas de salto e maquiagem cansada da jornada de trabalho. É uma menina fantasiada de mulher. Conta à outra sobre o convívio com a avó que a criou desde bebê, a quem chama de mãe. “Se as coisas não vão bem entre nós, minha vida vira um caos. E o meu relacio-namento com ele, que já é doente, um inferno. Mas quarta é o dia que cuido de mim, vou à psicoterapia, venho aqui e depois tomo um passe”, mastiga – em mais genuíno sotaque porto alegrense.

Cristina escuta paciente a epopeia narrada pela companheira. Tímida, mexe no camisetão preto e não levanta os olhos, apenas concorda. Em uma das pausas de Bárbara para tomar fôlego, Cristina fala so-bre os estudos no cursinho pré-vestibular, a reconci-liação com o namorado e a esperança de recuperar sua autoestima nas aulas de ginástica. Informam uma à outra sobre as agruras da semana seguindo o filtro motivacional do MADA – beiram a doutrinação.

Vera, a coordenadora, chega esbaforida sacudin-do o molho de chaves. Culpa o trânsito pelo atraso de meia hora, convida as participantes a entrarem. Abraça uma a uma, ajeita o cabelo das que o tem

sobre o rosto, diz que Cristina emagreceu e que as ombreiras do blazer de Bárbara a deixam mais ve-lha. Em seguida, Luisa, de 30 anos, entra na sala amarrando a vasta cabeleira loira em um coque no topo da cabeça. Há tempo sem frequentar o grupo, conta, com voz quase barítona, entre sorrisos que ocupam toda a boca e os translúcidos olhos azuis, que seu novo relacionamento nada tem a ver com os anteriores, que está feliz. As demais compartilham do sorriso e a encaram cientes de que continua to-mando antidepressivos, indo ao psicólogo e ao psi-quiatra.

A reunião corre normalmente. Os nomes dos homens ali descritos não são mencionados, todos são “ele”. Vera intermedia o encontro como uma professora de primário faz com seus alunos. Talvez porque tenha sido professora durante toda a vida. Agora, aposentada, trabalha como voluntária no MADA e no GAPOM (Grupo de Apoio a Portadores e Pessoas Ligadas à Pacientes de Mieloma Múltiplo – doença que afeta a medula óssea). Mãe de sete filhos, mora em Nova Petrópolis (RS) e divide seu tempo entre a pequena cidade turística e a capital.

A armação acrílica de seus óculos é clara assim como as outras peças de roupa, canalizando a aten-ção para a boca vibrante de um vermelho alaranjado. O incisivo lateral projetado para frente faz com que a fala tenha um quê de particular. Intercala a leitu-ra com histórias pessoais. O texto diz que o centro

FONTE: O Livro do Amor- vol 2, Regina Navarro Lins

Com a sexualidade sendo encarada como doença vergonhosa, nasce

a clientela de Freud. Exagerada repressão sexual, submissão

das mulheres, luta contra a masturbação e culpabilização da homossexualidade. O estudo da histeria levou Freud a descobrir o

inconsciente e criar a psicanálise. Haja divã!

Na década de 1950, “o que os outros vão dizer” contava muito.

As aparências e normas sociais tinham um peso excessivo. A reputação das moças apoiava-se na capacidade de resistir aos avanços sexuais dos rapazes. Para

as mulheres, casar era a principal meta a ser alcançada na vida.

O avanço tecnológico dos anos 2000 deu origem ao retrato amoroso

do nosso tempo: as relações virtuais. O ambiente virtual faz com que as pessoas digam coisas que não diriam se não estivessem protegidas pelo escudo da tela de seus computadores. Assim como nos

bailes de máscara do Iluminismo, a informática cobriu os rostos para

ajudar a revelar os espíritos.

Uma grande novidade do século XX foi o encontro marcado. Os encontros vigiados na igreja

ou na sala de visitas da família cederam espaço às conversas por telefone e passeios a sós, de carro. A partir de 1940, o casamento por amor se

generalizou.

Para os jovens dos anos 1960, a geração Beat, sexo, drogas e rock and roll, e make love, not war, o sexo vinha

em primeiro lugar. As reivindicações da contracultura e o movimento gay contribuíram para a democratização do prazer. Durante 20 anos, entre 1960 e 1980, houve mais celebração

ao sexo do que em qualquer outro período da História; com o amparo da

pílula anticoncepcional e, ainda, sem o fantasma do HIV.

Quebra de tabus: hoje a sexualidade é discutida nos meios comunicação

e a sociedade aceita comportamentos antes considerados ultrajantes.

Mães solteiras, jovens vivendo juntos, sexo

causal, pais criando sozinhos seus filhos etc.

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da própria vida não pode estar no outro, mas em si mesmo. Todas assentem com a cabeça. Vera reforça contando do dia em que perguntou ao falecido ma-rido se ela o fazia feliz e a resposta foi negativa. “Sou dependente em pessoas e ele foi meu grande mestre, me deu muito amor e carinho. Aquilo me deixou ar-rasada, me senti impotente. Eu fazia tudo por aquele homem. Hoje entendo que a felicidade dele depen-dia dele e que a minha tem que depender de mim.”

Faz quatro invernos que Vera acorda sozinha. Foi casada por 38 anos com o primeiro namorado que morreu de mieloma múltiplo. Junto com ele, morreu também o amor na vida de Vera.

Claro que amo outras pessoas, outras coisas. Mas excluí o sentimento romântico da minha vida. Os tangos e boleros que tanto gostava, não ouço mais. Nem as músicas do Luis Miguel, pobrezinho. Filmes de drama ou romance também estão fora. Aprendi a gostar de comédias. Hoje só músicas animadas, rock ou eletrônico, porque não me dizem nada. Entram por um ouvido e saem pelo outro. Sou muito ligada a

tradições gaúchas, mas não tenho como ir em CTG. Sempre engatam uma dança, e eu não tenho mais meu par. Lembro dos nossos bailes e acabo voltan-do pra casa. Quanvoltan-do não consigo aguentar de tanta tristeza, não consigo parar de pensar nele, vou cami-nhar pela cidade. Teve dias que saí de casa quatro vezes para caminhar.

Apesar de Vera dar ênfase aos sentimentos provocados pelo luto, frequenta o MADA há 12 anos – durante os oito iniciais, o marido estava vivo. “Não estou recuperada. Venho para continuar aprendendo. Todo mundo acha que o MADA é um lugar para mulheres loucas, mal amadas. Mas não é isso. Eu, por exemplo, fui muito amada durante meu casamento. O problema é que nós não sabemos nos relacionar de forma saudável. Pensamos no outro e nada além dele. Nós nos esquecemos pelo outro.”

Enquanto a coordenadora fala, Luisa escuta atenta. Segura o queixo proeminente com uma das mãos. Mal pisca. “Aqui eu mudei o foco dos meus pensamentos. Estou mais confiante, percebi que não

sou louca e que existem muitas pessoas como eu já fui. Em uma escala de zero a 10, o MADA é 10 para o meu bem estar”, concorda com Vera, enrolando novamente os cabelos enquanto arregala os olhos para pontuar as frases.

O que Vera e as demais contam e discutem como perda de identidade, abandono de atividades antes valorizadas e esquecimento das próprias vontades para agradar o parceiro (ou tentar), é o que os es-pecialistas chamam de “amor patológico”. Mesmo percebendo os prejuízos para si, para o comnheiro e para as pessoas próximas, os amantes pa-tológicos continuam.

O amor patológico não é uma doença, é um tipo de comportamento. E embora pareça pelo rompante das atitudes, não é um sentimento profundo. O que as MADAs descrevem como “amar demais” ou “excesso de amor” não tem a ver com intensidade. “Ao contrá-rio, o amor patológico (AP) é característico da baixa intensidade de amor. É muito mais o medo da perda, da rejeição, a necessidade de controle, o ciúme deses-perado e a idealização da relação. O que está por trás disso é a insegurança, a necessidade do companheiro. A pessoa age assim para receber a atenção que dá ao outro”, afirma a psicoterapeuta, Eglacy Sophia.

Eglacy trabalha no Setor de Amor e Ciúme Patológicos do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (AMITI) do Hospital de Clínicas de São Paulo, e começou a desenvolver pesquisas relacionadas ao tema em 2004, na USP. A partir dos estudos sobre amor patológico, foi criado um grupo de análise psicodramática pioneiro no Brasil, com 16 a 20 sessões de terapia para solucionar as causas emocionais do AP, dar assistência psiquiátrica e medicação aos que precisam. A capital fluminense foi a segunda cidade brasileira a ter um local específico para o tratamento de AP. A equipe de Eglacy participou do treinamento que deu origem a um ambulatório similar ao AMITI no Serviço de Dependência Química e Outros Transtornos do Impulso da Santa Casa do Rio de Janeiro.

Mas não são todos que tomam remédio e fazem acompanhamento psiquiátrico, apenas os casos em que a pessoa tem alguma outra disfunção associada ao AP. No estudo inicial de Eglacy, foi constatado que 22% das pessoas diagnosticadas com esse tipo de comportamento não apresentavam ansiedade,

depressão, transtornos de personalidade ou risco de suicídio. O que confirma que o amor patológi-co pode aparecer sozinho, independente de outros problemas psicológicos e, nesses casos, é passível de ser tratado sem medicação. Apesar disso, os outros 78% dos pacientes da pesquisa e a grande maioria das MADAs tomam remédios como ansio-líticos e antidepressivos.

Durante a reunião do MADA Glória, Bárbara gira a argola metálica na narina esquerda e lamenta, franzindo a testa até então sem marcas: “Me dou bem com quem faz parte do meu círculo social, minhas amigas, meus colegas de trabalho. Mas quanto mais proximidade, pior fica. Com a minha mãe e meu companheiro, o convívio é muito difícil e desgastante”. A reclamação da órfã, no MADA há cinco meses, de conseguir nutrir vínculos saudáveis apenas com pessoas menos íntimas é um dos sintomas de amor patológico comprovado no estudo científico da USP.

Outra reclamação comum às MADAs que também serve como diagnóstico desse tipo de comportamento são as alterações físicas. Muitas mulheres sofrem com distúrbios alimentares (como bulimia e anorexia), tensões musculares, taquicardia, úlceras, dermatites e alterações bruscas no metabolismo, sobretudo em situações em que o relacionamento está ameaçado ou na ausência física ou emocional do parceiro.

No livro “Quem ama não adoece”, o médico pernambucano Marco Aurélio Dias da Silva traça um paralelo entre a condição emocional e física de seus pacientes e constata que indivíduos felizes, com relações saudáveis, não adoecem com facilidade. Marco Aurélio também faz menção a maiores manifestações de dor e doenças psicossomáticas em pessoas do sexo feminino e à criação de um comitê especial para o estudo da dor em mulheres na Associação Internacional para Estudos da Dor, em Seattle, nos Estados Unidos.

Ele garante que há dores que somente elas são capazes de sentir (dor do parto e cólica menstrual, por exemplo) e que as doenças que têm a dor como expressão essencial são muito mais frequentes e intensas em mulheres. “A dor pode ser uma forma mascarada: o condicionamento cultural. Assim, com relação às mulheres, há maior aceitabilidade social

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para utilização da queixa de dor física como expressão de seus conflitos internos, particularmente àqueles ligados à esfera sexual.” Marco Aurélio completa contrapondo ao gênero masculino: “Os homens, por ‘terem de ser fortes’(?), não encontram espaço para esse caminho e recorrem à violência, ao álcool, às drogas e também à promiscuidade sexual e ao “dom-juanismo”.

A

sala é ampla e as janelas com cortinas ocre ocupam toda a extensão da parede. O quadro negro, as carteiras, o crucifixo de metal, o piso de tabuão. Tudo lembra a sala de aula de um colégio católico. E de fato é. A sede do MADA de Curitiba funciona em um cômodo alugado nas dependências da Igreja Bom Jesus, no centro da cidade. São pouco mais de 30 cadeiras dispostas em meia lua, 26 delas ocupadas por mulheres que amam demais, diante da mesa de Neida, a coordenadora.

Neida é uma mulher baixa e enérgica. Tudo nela é prático: as roupas de ginástica, a tiara segurando os cabelos encaracolados, o determinismo do signo de escorpião. Coordenadora há três anos, está an-siosa para ser exonerada. A partir deste ano, a troca do cargo acontecerá anualmente. Neida também faz parte do grupo Vigilantes do Peso, é ex-obesa. Per-deu quilos e ganhou paciência. “Meu problema é o excesso de sinceridade”, brada a cada intervenção.

Sabe o filme

Atração Fatal

?

Eu sou a Glenn Close

(Beatriz, MADA)

Estão em reunião de serviço. Ela fala sobre o convite da Penitenciária Feminina de Piraquara para que o grupo apresente o MADA às detentas. Argumenta com o 12º Passo: “É preciso levar os ensinamentos do nosso despertar espiritual às companheiras que ainda sofrem”. Os 23 km entre Curitiba e Piraquara intimidam as mulheres ali presentes. “Quem for tem que conhecer muito bem o grupo, temos que decidir isso com mais calma”, interrompe uma mulher de rosto redondo ao lado da porta. Neida concorda, a visita à Penitenciária é registrada em ata para ser debatida em outra oportunidade, possivelmente quando os ânimos estiverem menos exaltados.

Neida continua, explica as diferenças entre os encontros de serviço, de estudo, de recuperação e lamenta estarem há tempos sem fazer uma reu-nião à luz de velas. Em seguida, lê os 12 Passos e 12 Tradições e indaga as demais. Durante duas horas, tudo é colocado em ata para discussão. O horário do intervalo, a forma de receber uma nova inte-grante, a sala, o aluguel, o padre, as dissidentes, o estacionamento, a literatura utilizada, o chá, o café, os biscoitos, a chave do banheiro, o papel higiênico. Beatriz está no fundo da sala. Suspira, vira os olhos, mexe no anel de pedra. Opina e compra briga. Cria novas regras com a companheira ao lado. As outras não recuam, percebem o olhar desconfiado de Beatriz e a prontidão para apontar as falhas do grupo.

A representante comercial de 50 anos conhece a literatura do MADA desde que o livro de No-rwood foi lançado no Brasil, faz terapia desde os 18 anos e tem frequentado apenas as reuniões de serviço como forma de retribuir o bem que a ir-mandade lhe fez. “Percebi que estava criando de-pendência das reuniões, me afastei. Quando ve-nho é muito difícil. Vejo algo errado e já quero meter a colher”, explica.

Beatriz é levemente estrábica, tem as mãos pálidas sem esmalte, os dentes amarelados, as sobrancelhas finas e arqueadas. Veste uma blusa bege de linha, as veias dos pés gritam da sapatilha preta. É filha adoti-va e mãe solteira. Engravidou de uma relação casual há 16 anos e quis ter o filho sem o pai por perto.

Nunca esteve em um relacionamento sério. “Sou muito moderna para o meu tempo”, gaba-se. Em uma época em que os homens dividiam as mulheres entre as que iriam para a cama e as que iriam para o altar, Beatriz escolheu conquistá-los pela primeira opção. Se reconhece como uma MADA fora do padrão: não sofre de amor patológico, não é co-dependente. Não se refere à casos, romances ou relações. Intitula como “obsessões”.

Homens solteiros ou emocionalmente estáveis não a atraem. O deslumbramento é pelos que não se encantam por ela. O interesse está em despertar-lhes interesse. “Faço todos os jogos de sedução possíveis. Quando passa de quatro encontros, esfria. E fico assim, obcecada, por anos.”

Eu disse aos dois delegados: “Podem

me prender, que vou dar um jeito de

continuar, mas se ele me explicar, eu

paro”. Só queria uma justifcativa.

(Beatriz, MADA)

“Sabe o filme Atração Fatal? Eu sou a Glenn Close”, dispara. No suspense trágico de 1987, a personagem de Glenn Close, Alex Forrest, tem um caso com o advogado bem-sucedido Dan Gallagher, interpretado por Michael Douglas. Nos primeiros 30 minutos de trama, Alex pergunta: “Por que todos os caras interessantes são casados?”. Dan, que é casado, não tarda a encerrar o affair. Mas Alex não aceita ser ignorada e começa a persegui-lo. Coelhos e facadas à parte, Beatriz fez o mesmo com dez homens.

As sensações e o desejo sexual estão aflorados, não há muito envolvimento emocional. Testosterona e estrogênio

são liberados na corrente sanguínea.

Love is in the air: Euforia, romance e ligação emocional. Os altos níveis de dopamina, cortisol e noradrenalina dão sensação de bem-estar e satisfação, mas podem tirar o sono e a fome. A inibição da serotonina está associada à fixação

no ser amado e quanto menos serotonina, mais hormônios sexuais.

Nessa fase, as áreas do cérebro responsáveis pelo julgamento crítico

são desativadas.

A paixão acaba, mas a química continua. O fim da enxurrada

de substâncias de estímulo e agitação faz com que a atração

evolua para uma relação mais segura, calma e duradoura. A união da vasopressina (ADH) à

ocitocina(hormônio do amor) estimula a fidelidade e a criação

de vínculo afetivo.

A culpa é dos hormônios

Atração

Vínculo

Envolvimento

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A paixão acaba, porque o organismo não aguenta por muito tempo o turbilhão de alterações químicas provocadas pelos hormônios. Entre os estudiosos, não há consenso sobre o prazo de validade da paixão, os mais otimistas afirmam que o tempo máximo é de quatro anos. Mas se a paixão tem fim, o amor pode ser eterno. Para a ciência, o amor é composto de três etapas: atração, envolvimento e vínculo. As duas primeiras formam a paixão.

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Uma das minhas obsessões durou 14 anos. Foi

por um homem muito influente daqui de Curitiba. A cada dois ou três meses estaria sozinho e ia querer sexo. Eu sabia exatamente quando ligar, quando ele iria precisar de mim e me aceitar. Mas depois que começou a me ignorar, passei a persegui-lo. Nada mais me interessava. Fazia plantão na casa dele, esperava em frente ao trabalho. Montava guarda. Até que me denunciou à polícia. Eu disse aos dois delegados: “Podem me prender, que vou dar um jeito de continuar, mas se ele me explicar, eu paro”. Só queria uma justificativa.

Beatriz teve depressão durante os dois anos seguintes à conversa com os delegados. Tomou remédio, fez terapia, engravidou de um dos únicos

e-mail pra atual dele, estou tranquila. Eu pensava “Meu Deus, o que ela fez pra conquistá-lo? Ela já tá morando com ele e a gente só se encontrava em outras cidades”. Depois de mandar o e-mail perguntando se eles estavam realmente juntos, percebi que ela fez mil coisas pra agradar e eu não. Via ele e travava. Isso me deu paz, porque não fiz esforço nenhum pra que gostasse de mim, e ela sim.

Beatriz reconhece que suas maiores paixões foram também suas relações mais obsessivas. Trata paixão e obsessão como conceitos homônimos. Muito embora a curitibana prossiga na insistência de controlar, perseguir e arrancar respostas que digam mais do que está implícito quando seus parceiros afirmam não querer mais, a ciência concorda com Beatriz. A paixão é, comprovadamente, um sentimento obsessivo.

Inclusive, há uma pesquisa da Universidade de Pisa, na Itália, que confirma que os apaixonados e os pacientes que sofrem de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) compartilham pensamentos da mesma natureza. Os primeiros centrados nos parceiros e os segundos em suas compulsões, como contar objetos, lavar as mãos ou testar várias vezes se as portas estão trancadas antes de sair de casa.

Os antidepressivos aumentam os níveis de

serotonina e, ao aumentá-los, se suprime

o circuito da dopamina que é associada

ao amor romântico. Além de acabar com

o circuito, aniquila o desejo sexual e,

consequentemente, o orgasmo

(Helen Fisher, antropóloga)

Donatella Marazziti, autora do estudo e de cinco livros sobre amor, obsessão e compulsão, comparou o cérebro de 20 voluntários apaixonados e de 20 portadores de TOC. Ela descobriu que ambos os grupos apresentavam baixos níveis de uma proteína responsável pelo transporte de serotonina, substância relacionada à regulação do humor. Depois de um ano, o nível dessa proteína e, consequentemente, da serotonina, voltou ao normal entre os apaixonados

– eles não estavam mais obcecados por seus parceiros. O resultado desta pesquisa é notório na comunidade médica e científica e causa polêmica, porque dá brecha à utilização de antidepressivos que aumentam os níveis de serotonina, melhoram o comportamento de pessoas com TOC, e podem manipular o sentimento dos apaixonados por seus companheiros, minimizando até o sofrimento na hora da separação.

O uso indiscriminado dessas substâncias preocu-pa. Na palestra popularizada pelo serviço de confe-rência TED, Por que amamos, por que traímos, a an-tropóloga Helen Fisher, da Universidade de Rutgers, nos Estados Unidos, avisa sobre o potencial desastre inerente ao abuso de medicamentos antidepressivos. Helen estuda atração romântica há mais de 30 anos e é autora de cinco livros sobre o assunto. Na mesma palestra, ela explica que essas drogas aumentam os níveis de serotonina e, ao aumentá-los, se suprime o circuito da dopamina que é associada ao amor ro-mântico. “Além de acabar com o circuito, aniquila o desejo sexual e, consequentemente, o orgasmo. As-sim, a corrente de substâncias relacionadas ao apego não ocorre. Tudo está conectado no cérebro. Enfim, estou simplesmente dizendo que um mundo sem amor deve ser um lugar horrível.”

A

luz do fim do inverno não passa mais pelas janelas quando Débora abre a porta de madeira escura para participar da reunião do MADA, em Curitiba. É noite e apenas a lâmpada central reflete no espelho de borda laranjada sobre a mesa. Em cima dele, colado com fita adesiva, letras garrafais avisam: “Essa é a única pessoa que você pode modificar”.

Débora acomoda com dificuldade as compridas pernas na única cadeira vazia em frente à janela. Segura a bolsa no colo, empurra os óculos de grau para mais perto dos olhos, arruma os cachos castanhos atrás das orelhas deixando os brincos de franja metálica à mostra. Demora um tempo para que sua voz retumbe pela sala. À primeira vista não parece uma mulher retraída. Talvez nem o seja.

Durante a pausa da reunião de serviço, algumas mulheres se prontificam para participar desta repor-tagem. Contam arremedos de histórias, pequenos fragmentos de suas tragédias ou os indícios da

recu-peração. Falam sobre o MADA, sobre a abstinência seguida dos descontroles, sobre as tentativas de sui-cídio, sobre os remédios que tomaram, os maridos que as traíram e os amantes que tiveram.

Se você me trocar por um broto, eu não fico

com raiva. Fico com tudo

(Maria Tereza, MADA)

A primeira é Maria Tereza, uma das mais velhas do grupo. Veste uma bata verde musgo e o suave decote é emoldurado por um cordão com os óculos suspensos. Maria Tereza tem os braços longos e logo segura um dos meus. Em poucos instantes, conta sobre os netos espalhados pelo mundo, as escapadas do marido durante as décadas do casamento, as traições na elite curitibana, o quanto foi sexualmente infeliz, como descobriu os bares da cidade, os 11 anos de psicanálise e os quatro no MADA.

Meu marido tem 80 anos e posso dizer que somos sócios perfeitos. Criamos filhos maravilhosos e temos um capital financeiro invejável. O problema é na cama. Agora que ele não tem mais pique pra pular a cerca, pulo eu. Ainda assim, eu digo a ele: “Se você me trocar por um broto, eu não fico com raiva. Fico com tudo”. Só aqui mesmo pra falar disso sem medo de que todo mundo saiba ou me julgue.

homens que a procurava, as obsessões voltaram. Entrou para o MADA. Sua última relação acabou no ano passado. Ela garante ter sido o término mais fácil, até então.

Quando eu tinha 18 anos, ele me dispensou. Fiquei até os 20 para conseguir esquecê-lo. As pessoas tentavam me apresentar a outros homens, eu não me interessava. Ia nos lugares em que ele estava. Tentava encontrá-lo. Eu não queria saber de mais nada. Me afundei na depressão, mas passou. Conheci outros caras, fiquei obcecada por outras pessoas. Depois de 28 anos, ele reapareceu. Hoje ele é escritor, sabia? Ficamos juntos, nos vendo por três anos. Ele mexia comigo, me deixava sem reação. Com ele eu me sentia uma criança, não conseguia agir normalmente. Faz um ano que acabou. Tive algumas recaídas. Às vezes vejo foto no Facebook. Mas agora que mandei um

Referências

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