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A natureza jurídica dos Tokens e da realização de Initial Coin Offerings (ICOs)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIA JURÍDICAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

Ivan Pereira Remor

A Natureza Jurídica dos Tokens e da Realização de Initial Coin Offerings (ICOs)

Florianópolis/SC 2020

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Ivan Pereira Remor

A Natureza Jurídica dos Tokens e da Realização de Initial Coin Offerings (ICOs)

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Mestre em Direito

Orientador: Prof. Dr. Orlando Celso da Silva Neto.

Florianópolis/SC 2020

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Remor, Ivan Pereira

A Natureza Jurídica dos Tokens e da Realização de Initial Coin Offerings (ICOs) / / Ivan Pereira Remor ; orientador, Orlando Celso da Silva Neto , 2020.

190 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós Graduação em Direito, Florianópolis, 2020.

Inclui referências.

1. Direito. 2. Mercado de Capitais. 3. Valores

Mobiliários. 4. Blockchain. 5. Inovação. I. , Orlando Celso da Silva Neto. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

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Ivan Pereira Remor

A Natureza Jurídica dos Tokens e da Realização de Initial Coin Offerings (ICOs)

O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof. André Lipp Pinto Basto Lupi, Dr. Unicuritiba

Prof. André Luiz Santa Cruz Ramos, Dr. IESB

Profa. Liz Beatriz Sass, Dra. UFSC

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em Direito.

____________________________ Profa. Norma Sueli Padilha, Dra.

Coordenadora do Programa

____________________________ Prof. Orlando Celso da Silva Neto, Dr.

Orientador

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It is only afterward that a new idea seems reasonable. To begin with, it usually seems unreasonable. (ASIMOV, Isaac, 1956)

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RESUMO

Após o lançamento do Bitcoin diversas empresas de tecnologia passaram a desenvolver produtos com base na tecnologia Blockchain. O funcionamento das plataformas é atrelado à criação de tokens, que servem para realizar as transações na respectiva plataforma. Em virtude da sua utilidade, as empresas passaram a realizar a venda antecipada destes tokens, antes mesmo do lançamento da plataforma, como uma forma de captação de investimento para financiar o desenvolvimento do projeto. A venda prévia dos tokens é convencionalmente chamada de Initial Coin Offering (ICO). Estima-se que entre 2016 e 2019 tenham sido arrecadados mais de 31 bilhões de dólares por meio da realização de ICOs. Nada obstante o grande volume arrecadados nessas operações, a sua maioria ocorre em um ambiente de incerteza legal, em virtude da falta de regulamentação específica sobre a realização de ICOs. Na ausência de normas específicas, autoridades do mercado de capitais ao redor do mundo vem enquadrando alguns ICOs como oferta pública de valores mobiliários e consequentemente punindo os seus organizadores por realizarem uma oferta pública irregular, em ofertas já realizadas, ou determinando o cancelamento de ofertas em realização. Nada obstante a movimentação de alguns reguladores na esfera sancionatória, há uma grande falta de clareza no espectro normativo, restando dúvidas e discussões sobre o enquadramento dos

tokens ofertados nos ICOs como valores mobiliários e, em caso positivo, qual seria a

abordagem regulatória adequada. A partir da aplicação do método dedutivo e técnica de pesquisa bibliográfica e documental, esta pesquisa analisou o arcabouço jurídico do Brasil e dos Estados Unidos da América, bem como a posição dos reguladores do mercado de capitais dos respectivos países para verificar se os tokens deveriam ser caracterizados como valores mobiliários no Brasil, concluindo que ao contrário do ocorrido nos Estados Unidos, os denominados utility tokens, que não garantem nenhum tipo de remuneração ou de participação no projeto, mas apenas o direito de utilizar a plataforma, não podem ser considerados valores mobiliários sob as leis brasileiras.

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ABSTRACT

After the launch of Bitcoin, several technology companies started to develop products based on Blockchain technology. The functioning of the platforms is linked to the creation of tokens, which serve to carry out transactions on the respective platform. Due to their usefulness, companies started to sell these tokens in advance, even before the launch of the platform, as a way of attracting investment to finance the development of the project. The prior sale of tokens is conventionally called Initial Coin Offering (ICO). It is estimated that between 2016 and 2019, more than 31 billion dollars were raised through ICOs. Notwithstanding the large volume collected in these operations, most of them occur in an environment of legal uncertainty, due to the lack of specific regulations on the realization of ICOs. In the absence of specific rules, capital market authorities around the world have been framing some ICOs as a public offering of securities and, consequently, punishing their organizers for carrying out an unlawful public offer, in offers already closed, or determining the cancellation of offers still in course. Notwithstanding the movement of some regulators in the sanctioning sphere, there is a great lack of clarity in the regulatory spectrum, leaving doubts and discussions about the framing of tokens offered in ICOs as securities and, if so, what would be the appropriate regulatory approach. Based on the application of the deductive method and technique of bibliographic and documentary research, this research analyzed the legal framework of Brazil and the United States of America, as well as the position of the capital market regulators in the respective countries to verify whether tokens should be characterized as securities in Brazil, concluding that, unlike in the United States, so-called utility tokens, which do not guarantee any type of remuneration or participation in the project, but only the right to use the platform, cannot be considered securities under Brazilian law.

Keywords: Initial Coin Offerings. Tokens. Capital Markets. Securities.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 11

2 BITCOIN, BLOCKCHAIN, TOKENS E ICOS ... 14

2.1 BITCOIN ... 14

2.1.1 Histórico e contextualização do lançamento do Bitcoin ... 14

2.1.2 Resolvendo o problema do gasto duplo: blockchain e a dinâmica de funcionamento do Bitcoin ... 21

2.1.3 Bitcoin e a democratização do dinheiro ... 26

2.2 BLOCKCHAIN: ALÉM DO BITCOIN ... 31

2.2.1 Blockchain além das transações monetárias ... 32

2.2.2 Smart Contracts: os contratos que não podem ser descumpridos... 36

2.3 TOKENS E ICOs ... 41

2.3.1 O que é um token ... 41

2.3.2 Tokenização de ativos ... 43

2.3.3 Initial Coin Offerings (ICOs)... 45

2.3.3.1 Histórico e desenvolvimento do mercado de ICOs... 45

2.3.3.2 Anatomia de um ICO ... 48

2.3.3.3 Atribuições e classificações dos tokens ... 54

3 MERCADO DE CAPITAIS E VALORES MOBILIÁRIOS ... 59

3.1 MERCADO DE CAPITAIS COMO FERRAMENTA DE FINANCIAMENTO EMPRESARIAL ... 60

3.2 EVOLUÇÃO DO REGIME JURÍDICO DO MERCADO DE CAPITAIS E DO CONCEITO DE VALOR MOBILIÁRIO NO BRASIL ... 65

3.3 O CONCEITO DE VALOR MOBILIÁRIO NOS ESTADOS UNIDOS ... 73

3.3.1 HOWEY TEST ... 78

3.3.1.1 Investment of Money ... 78

3.3.1.2 Common enterprise ... 79

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3.3.1.4 Solely from the efforts of others ... 83

3.4 CONCEITO ATUAL NO DIREITO BRASILEIRO: REQUISITOS PARA A CONFIGURAÇÃO DE UM VALOR MOBILIÁRIO ... 84

3.4.1 Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs) ... 86

3.4.2 Cédulas de Crédito Bancário (CCBs) ... 89

3.4.3 Créditos de Volume Florestal (CVF) ... 91

3.4.4 Reduções Certificadas de Emissão (RCEs) – “Créditos de Carbono” ... 92

3.5 REGULAMENTAÇÃO DA CVM SOBRE OFERTA PÚBLICA DE VALORES MOBILIÁRIOS ... 95

3.5.1 Oferta pública vs. Oferta Privada ... 95

3.5.2 Instrução CVM 400 (Oferta Pública de Valores Mobiliários)... 100

3.5.2.1 Princípios ... 101 3.5.2.2 Processo de registro ... 102 3.5.2.3 Oferta ... 107 3.5.2.4 Participantes ... 111 3.5.2.5 Eventos ... 113 3.5.3 Instrução CVM 588 (Crowdfunding) ... 114

4 TOKENS E MERCADO DE CAPITAIS ... 121

4.1 FUNDAMENTOS PARA A REGULAÇÃO DO MERCADO DE CAPITAIS . 121 4.2 PANORAMA DO MERCADO DE INITIAL COIN OFFERINGS ... 126

4.3 POSIÇÃO DOS REGULADORES ESTRANGEIROS SOBRE O TEMA ... 136

4.3.1 Um panorama mundial ... 136

4.3.2 Estados Unidos ... 140

4.3.2.1 The DAO Report ... 140

4.3.2.2 Caso Munchee, Inc. ... 146

4.3.2.3 Framework for “Investment Contract” Analysis of Digital Assets ... 150

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4.4.1.1 Avisos ao mercado ... 153

4.4.1.2 Niobium Coin ... 155

4.4.1.3 Diferença entre os conceitos de valor mobiliário nos Estados Unidos (Howey Test) e no Brasil (Lei 6.385/1976) e perspectivas sobre o enquadramento dos tokens como valores mobiliários ... 159

4.5 NECESSIDADE CLAREZA REGULATÓRIA ... 163

4.6 REGIME LEGAL DOS ICOS CARACTERIZADOS COMO VALORES MOBILIÁRIOS ... 167

4.6.1 Instrução CVM 400 ... 168

4.6.2 Instrução CVM 588 ... 170

4.6.3 Possíveis abordagens regulatórias ... 171

5 CONCLUSÃO ... 177

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1 INTRODUÇÃO

Após o lançamento do Bitcoin no ano de 2008, diversas foram as aplicações encontradas para a tecnologia subjacente à criptomoeda, o Blockchain. Essa tecnologia, que garante a integridade de seus registros sem a necessidade de intervenção de terceiros, pode ser utilizada para diversas aplicações além da simples transferência de valor, como ocorre no Bitcoin. A tecnologia Blockchain pode ser utilizada para o registro e execução de testamentos por meio dos smart contracts, manutenção de registro civil, registro de propriedades, armazenamento de documentos de identificação, por exemplo. As possíveis aplicações para o Blockchain são potencialmente infinitas.

Diante desse cenário surgiram projetos que utilizam o Blockchain das mais diversas maneiras, como sistemas de compensação bancária (Riplle), gerenciamento de recursos computacionais ociosos (Golem e MaidSafe), além de plataformas de apostas (Augur, Gnosis e FirstBlood), dentre várias outras. A maioria dessas plataformas possui uma criptomoeda (ou

token) própria, à semelhança do bitcoin, que possui diversas utilidades dentro do seu ambiente

virtual.

As diversas funções e privilégios concedidos aos seus detentores garantem aos tokens um valor de mercado inerente, despertando o interesse de investidores e potenciais clientes da plataforma. Criou-se assim o que foi chamado de Initial Coin Offering (ICO), por meio do qual os investidores injetam dinheiro na empresa em troca do recebimento de tokens emitidos sobre a plataforma do blockchain. Os ICOs são realizados por meio da internet e a compra dos

tokens geralmente é feita com bitcoins ou outras criptomoedas, o que garante um alcance

virtualmente global às ofertas. Diante dessas características, a venda de tokens surgiu como uma forma eficiente e bem-sucedida de captação de investimento inicial para novos projetos a serem desenvolvidos em Blockchain.

Operando sobre uma plataforma Blockchain, as transferências dos tokens pode ser realizada de qualquer lugar do mundo em uma fração de segundos. O primeiro ICO foi realizado em 2014, por meio da plataforma Mastercoin, e arrecadou 7 milhões de dólares em um dia. Desde então o mercado de ICOs cresceu vertiginosamente. Segundo estudos recentes, desde 2016 foram arrecadados mais de 31 bilhões de dólares por meio de ICOs ao redor do mundo.

Usualmente os tokens emitidos dão aos investidores o direito de utilização dos serviços que serão desenvolvidos na plataforma, a exemplo dos ICOs realizados pelas

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plataformas Filecoin, Brave e Gnosis. Contudo, em certos ICOs os tokens garantiam aos seus detentores direitos de participação nos futuros resultados da empresa e deliberação na companhia, como no caso da The DAO.

Em seu início os ICOs eram realizados em um ambiente completamente desregulado. Contudo, as elevadas quantias arrecadadas rapidamente pelos ICOs despertaram o interesse das agências reguladoras do mercado de capitais, suscitando a discussão sobre a configuração dos tokens emitidos nos ICOs como valores mobiliários em virtude de algumas de suas características. Também motivou a atuação inicial dos reguladores o fato de que as ofertas vinham atingido investidores inexperientes ao redor do mundo. A discussão sobre a necessidade de um enquadramento legal para os tokens e de uma intervenção dos reguladores do mercado de capitais se intensificou após o caso The DAO, em que um ataque cibernético se apropriou de mais de cinquenta milhões de dólares arrecadados no ICO da organização The DAO.

Após um período inicial de tímidas respostas dos órgãos reguladores do mercado de capitais, alguns países começaram a trabalhar para o desenvolvimento de um regime jurídico aplicável aos ICOs, dentre os quais se destacam Singapura, Suíça e Canadá. Outros, como os Estados Unidos, vêm atuando em uma abordagem caso a caso, com a aplicação das normas já existentes sobre valores mobiliários.

No Brasil, a CVM apresentou três comunicados, em 10/11/2017, 16/11/2017 e 07/03/2018, ressaltando a possibilidade de que os ICOs configurem uma oferta pública de valores mobiliários. Apesar de haver uma decisão do colegiado da CVM afastando a caracterização de um token como valor mobiliário, no que foi o único ICO realizado sob a jurisdição brasileira, projetos posteriores de realização de ICOs no Brasil foram levados ao exterior em virtude da insegurança jurídica.

Com exceção de alguns poucos países que adotaram recentemente uma posição mais clara sobre a realização de Initial Coin Offerings, este mercado ainda se encontra em uma área nebulosa em relação ao seu enquadramento legal. Surge assim, portanto, a necessidade de respostas do mundo jurídico a esse fenômeno, não com o objetivo de repreender a utilização dessa ferramenta de captação de recursos, mas de criar regras claras e conferir previsibilidade tanto aos investidores quanto aos empreendedores.

A regulação adequada da emissão de tokens é de interesse de todos os atores envolvidos, uma vez que a falta de clareza sobre o possível enquadramento jurídico dos

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regulatório diante da falta de um posicionamento firme das autoridades brasileiras fez com que pelo menos dois ICOs realizados por empresas brasileiras fossem feitos fora do Brasil.

Diante desse cenário, o objetivo deste estudo é verificar, com base no arcabouço jurídico existente no Brasil, a possibilidade de enquadramento dos tokens transacionados nas

Initial Coin Offerings como valores mobiliários e, consequentemente, sujeitos a fiscalização e

regulamentação por parte da Comissão de Valores Mobiliários. Superado este ponto, também será analisada a adequação das normas existentes sobre valores mobiliários e ofertas públicas com a dinâmica dos ICOs.

O capítulo inicial do trabalho possui dois objetivos centrais. O primeiro é explicar o funcionamento do sistema Bitcoin e da tecnologia Blockchain, contextualizando o seu surgimento como ferramenta para possibilitar a realização de transações sem intermediários e, assim, reduzir os custos de transação. Ainda, será abordado o conceito de smart contract, ferramenta que permite que as transações sejam realizadas de forma automática. O segundo objetivo do primeiro capítulo é apresentar as principais características de um token oferecido em um ICO e a dinâmica da realização das ofertas, o que auxiliará na posterior análise do seu enquadramento legal.

O segundo capítulo possui como objetivo apresentar a evolução do conceito de valor mobiliário no Brasil e em jurisdições estrangeiras, com foco no sistema adotado nos Estados Unidos da América. Neste capítulo serão realizados estudos casuísticos de decisões proferidas pela Comissão de Valores Mobiliários sobre a configuração de valores mobiliários, com o objetivo de fornecer balizas para a análise que será realizada no capítulo seguinte. Ainda, serão apresentados os regimes jurídicos das ofertas públicas de valores mobiliários, aos quais os ICOs deverão se submeter caso os tokens sejam considerados como valores mobiliários.

Finalmente, o terceiro capítulo possui como objetivo principal responder se os tokens ofertados em Initial Coin Offerings se enquadram como valores mobiliários diante da legislação brasileira. Para fundamentar essa análise, serão apresentados os fundamentos para a regulação do mercado de capitais e apresentado o panorama atual dos ICOs, de modo a verificar se estão presentes as situações que justificam a intervenção estatal. Ainda, será analisada a posição de reguladores estrangeiros sobre o tema, especificamente da SEC, reguladora norteamericana. Por fim, será verificada a adequação das normas já existentes sobre ofertas públicas de valores mobiliários à dinâmica dos ICOs.

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2 BITCOIN, BLOCKCHAIN, TOKENS E ICOS

O presente estudo tem o objetivo de analisar a natureza jurídica dos tokens emitidos em Initial Coin Offerings (ICOs). Para poder compreender o objeto de estudo, os tokens, é necessário dar alguns passos para trás e entender o funcionamento da tecnologia Blockchain e de seu precursor, o Bitcoin.

Com esse objetivo, o primeiro capítulo inicia com uma apresentação das circunstâncias em que o Bitcoin foi lançado no ano de 2008, as tentativas anteriores de criação de uma moeda eletrônica e a filosofia que motivou a sua criação. Posteriormente, passaremos à análise do funcionamento do Bitcoin e das soluções criadas que possibilitaram a ampla adoção da moeda e permitem a realização de transações sem intermediários de qualquer canto do mundo. Por fim, analisaremos o potencial disruptivo do Bitcoin no mercado financeiro e as razões pelas quais sua adoção pode incluir bilhões de pessoas no mercado consumidor global.

A segunda parte deste capítulo é dedicada ao detalhamento da tecnologia Blockchain e o seu potencial de aplicação em outras áreas além da troca de valor sem intermediários, destacando a utilidade da tecnologia Blockchain para garantir a verificação e a imutabilidade de qualquer registro. Também será analisada a figura dos smart contracts, ferramenta que permitiu o surgimento dos ICOs e que só foi possível graças às inovações trazidas pelo Bitcoin.

A terceira e última parte deste capítulo contém uma análise sobre os ICOs, partindo da definição de o que é um token para uma revisão da bibliografia empírica sobre os ICOs, apresentando os procedimentos comumente adotados pelas empresas desde o lançamento do projeto até a realização da venda de tokens, analisando especialmente as características e utilidades que são conferidas aos tokens em cada ICO, com o objetivo de obter elementos comuns que possam compor uma classificação dos ICOs.

2.1 BITCOIN

2.1.1 Histórico e contextualização do lançamento do Bitcoin

A ideia da criação de uma moeda eletrônica não é nova. Com efeito, moedas eletrônicas, ou virtuais, são utilizadas há décadas pelos bancos no Brasil. Afinal, as transações

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realizadas online, seja entre contas do mesmo banco ou entre bancos diferentes, não movimentam papel-moeda. A utilização de moeda virtual se expandiu para além dos bancos, por meio de empresas de arranjos de pagamento como o PayPal.

A moeda eletrônica, portanto, é uma realidade presente na vida comum, fruto da informatização. A sua utilização cresceu de modo exponencial com a popularização dos

smartphones e a massificação da internet móvel. A Lei nº 12.685/2014 assim define, em seu

artigo 6º, inciso VI, moeda eletrônica: “recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento”.

Se as moedas eletrônicas são tão presentes no cotidiano, por que o bitcoin1 é tão revolucionário? Como se pôde perceber dos exemplos citados acima, todos eles dependem de um intermediário para validar as transações e garantir ao receptor que o emissor é o efetivo detentor dos valores que estão sendo transferidos. Essa situação está ligada ao problema do gasto duplo, que será analisado adiante.

A necessidade de intervenção de um terceiro para validar a transação realizada com moedas virtuais acarreta em custos de transação2 que são inexistentes nas transações em papel-moeda. Além dos custos monetários de transação, pois o intermediário sempre será remunerado, a necessidade de intermediação nas transações de moedas virtuais leva a situações corriqueiras que também configuram custos de transação, como o fato de que transferências interbancárias e pagamentos de boletos não podem ser realizados nos finais de semana. Embora o dinheiro seja seu, você não pode utilizá-lo quando quiser, sujeitando-se às normas do intermediário3.

O grande mérito do Bitcoin, portanto, foi conseguir reduzir praticamente a zero os custos de transação feitos em moedas digitais ao retirar o intermediário da equação4. Isso foi possível através do aperfeiçoamento de diversas ferramentas tecnológicas já existentes5, como

1 Para fins de padronização, a utilização da palavra bitcoin em letras minúsculas se refere à unidade de moeda, enquanto Bitcoin, com a incial maiúscula, se refere à rede Bitcoin, onde os bitcoins são gerados e transacionados.

2 Custos de transação, Segundo Mackaay e Rousseau, são todos os custos – nem sempre monetários – necessários para a realização de uma troca no mercado. Segundo os autores, “[o]s “custos de transação” aparecem todas as vezes que uma operação que parece lucrativa não ocorre em virtude das constrições que impedem os atores do mercado de concluí-la. MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica

do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. Tradução de Rachel Sztajn, p. 93.

3 TEIXEIRA, Tarcisio; RODRIGUES, Carlos Alexandre. Blockchain e criptomoedas: aspectos

jurídicos. Salvador: Editora Juspodivm, 2019, p. 30.

4 CANDELARIO, Belkenia. Bitcoin: Información Sobre Su Reglamento En Las Américas y Futuro

Crecimiento. In: U. Miami Inter-Am. L. Rev., v. 47, p. 95-128, 2015, p. 97.

5 HALABURDA, Hanna; SARVARY, Miklos. Beyond bitcoin: The economics of digital currencies. Springer, 2016, p. 111-114.

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o próprio conceito de Blockchain, a criptografia hash e a ferramenta de proof-of-work, as quais também serão analisadas adiante.

A tentativa de desenvolver um meio seguro de transação sem intermediários teve origem no chamado movimento Cypherpunk, um grupo criado na década de 1990 em San Francisco, formado por hackers e criptógrafos que “se interessavam pelo estudo da matemática e criptografia, aplicado à filosofia de privacidade e respeito à liberdade individual na internet”6, com claras inclinações anarquistas.

Dentre os membros do movimento Cypherpunk destacam-se Nick Szabo, Adam Beck e Wei Dai, todos responsáveis por alguma inovação que permitiu, em 2008, o lançamento do Bitcoin7.

Wei Dai foi o primeiro propositor de uma “criptomoeda”, embora esse termo não tenha sido utilizado por ele. Em 1998 Wei Dai apresentou a proposta de criação do b-money8, uma moeda digital descentralizada cujo principal objetivo era evitar a intervenção de qualquer governo9. Contudo, o b-money não possuía uma solução para garantir que todos os membros da rede trabalhassem juntos e evitar fraudes nos registros, o que impedia a escalabilidade do arranjo proposto10.

Posteriormente, em 2005, Nick Szabo apresentou a proposta do bit gold11, que resolvia a questão da fraude através da utilização de proof-of-work. Contudo, a impossibilidade de limitar o suprimento total de bit gold permitia que um participante da rede que possuísse um poder computacional muito maior que dos demais produzisse uma quantidade muito elevada de bit gold, o que desequilibraria o sistema. Ademais, apesar da engenhosidade do projeto apresentado, não há registros de que o sistema tenha sido testado12.

Ambos os projetos apresentados resolviam – ao menos parcialmente – o problema do gasto duplo, mas possuíam outras deficiências que viriam a ser corrigidas com o lançamento do Bitcoin. As soluções adotadas pelo Bitcoin foram apresentadas em outubro de 2008 quando Satoshi Nakamoto – um pseudônimo com identidade até hoje não revelada,

6 CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e Blockchain: O direito no mundo digital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 13.

7 Os trabalhos de Wei Dai e Adam Beck são citados no whitepaper do Bitcoin, enquanto Nick Szabo é comumente citado como o principal suspeito de ser Satoshi Nakamoto.

8 DAI, Wei. B-money. 1998. Disponível em http://www.weidai.com/bmoney.txt. Acesso em 29/11/2019. 9 BITCOIN: BETWEEN LEGAL AND FINANCIAL PERFORMANCE, p. 243.

10 HALABURDA, Hanna; SARVARY, Miklos. Beyond bitcoin: The economics of digital currencies. Springer, 2016, p. 112

11 SZABO, Nick, bit gold. 2005. Disponível em https://nakamotoinstitute.org/bit-gold/. Acesso em 29/11/2019. 12 HALABURDA, Hanna; SARVARY, Miklos. Beyond bitcoin: The economics of digital currencies. Springer, 2016, p. 112.

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representando possivelmente um grupo de pessoas13 – publicou seu whitepaper14 apresentando sua ideia. O manifesto15 apresenta uma versão puramente „peer-to-peer’16 de uma moeda eletrônica que permitiria que pagamentos online fossem enviados diretamente de uma parte para outra sem a necessidade de processamento por uma instituição financeira.

O Bitcoin possui três ideais principais por trás da sua criação, que acabam por se interconectar: a retirada de intermediários, a proteção à privacidade e a ausência de intervenção estatal no sistema.

A ausência de intermediários, ao reduzir os custos de transação, permite o desenvolvimento de um sistema de microtransações17. Essas duas características – baixo custo de transação e possibilidade de microtransações – possui um potencial para impactar os cerca de dois bilhões de adultos ao redor do mundo que não têm acesso ao sistema bancário18.

Apesar de possuir um ideal de proteção à privacidade, o Bitcoin não é um sistema anônimo. Pelo contrário, a rede possui um sistema de registros “contínuos, públicos e rastreáveis”19. Com efeito, todas as informações sobre as transações realizadas na rede são acessíveis a todos os seus membros. A privacidade oferecida pelo Bitcoin deriva das informações que são necessárias para realizar as transações. Para realizar uma transferência diretamente na rede Bitcoin20, não é necessário fornecer qualquer informação pessoal à parte com a qual se está transacionando21. Para realizar uma transação de bitcoins via rede Bitcoin, a única informação necessária é o endereço (ou carteira) para onde os bitcoins serão transferidos22.

13 TSUKERMAN, Misha. The block is hot: A survey of the state of Bitcoin regulation and suggestions for

the future. In: Berkeley Tech. LJ, v. 30, p. 1127-1172, 2015, p. 1131.

14 White paper é uma expressão de origem inglesa que designa um relatório (briefing) acerca de uma questão, geralmente exprimindo o posicionamento dos subscritores do relatório. A expressão foi adotada pelos usuários do sistema blockchain para designar os documentos de apresentação de novas criptomoedas, ou tokens.

15 NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-Peer Eletronic Cash System. Disponível em: https://bitcoin.org/bitcoin.pdf.

16 „Par-a-par‟, em tradução livre, é utilizado para denominar estruturas que não utilizam intermediários para processar suas transações.

17 BITCOIN: A MOEDA DO FUTURO P. 23.

18 TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain Revolution: Como a tecnologia por trás do Bitcoin está

mudando o dinheiro, os negócios e o mundo. São Paulo: SENAI-SP Editora, 2016, p. 215.

19 CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e Blockchain: O direito no mundo digital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 20.

20 Caso a transação seja realizada por meio de exchanges, não haverá anonimato entre o agente e a plataforma, uma vez que essas plataformas, em sua quase totalidade, exigem a apresentação de informações pessoais para a realização de cadastros e muitas delas se submetem a normas de KYC (Know Your Client).

21 CANDELARIO, Belkenia. Bitcoin: Información Sobre Su Reglamento En Las Américas y Futuro

Crecimiento. In: U. Miami Inter-Am. L. Rev., v. 47, p. 95-128, 2015, p 107-108.

22 CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e Blockchain: O direito no mundo digital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 23

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Por essa razão, seus estudiosos preferem chamá-lo de “pseudonimizado”23. Esse sistema atinge um nível inédito de transparência nas transações ao mesmo tempo em que mantém a privacidade de seus usuários, protegendo suas identidades. Ainda sobre esse ponto, é importante destacar os limites do suposto anonimato do Bitcoin. Estudos sugerem que a análise das movimentações realizadas na rede permite a identificação de cerca de 40% dos usuários24.

O terceiro fundamento da criação do Bitcoin, que se interliga com as duas anteriores, é a impossibilidade de intervenção de governos no sistema. Em virtude dos ideais libertários e anarquistas do movimento Cypherpunk25, um dos objetivos do desenvolvimento de uma criptomoeda era criar um sistema em que não houvesse a possibilidade de intervenção estatal. Os trabalhos de Wei Dai e Nick Szabo deixam claro essa inclinação.

O trabalho de Wei Dai, publicado em 1998, de caráter mais anárquico, enuncia como problema a necessidade da existência de um governo para garantir a existência de um meio de troca fiduciário26. Já o bit gold de Nick Szabo aborda a questão a partir de suas consequências: a intervenção dos governos costuma gerar inflação, que é caracterizada no texto como “o mais pernicioso” dos problemas do sistema monetário atual27. A preocupação inflacionária também consta expressamente no whitepaper do Bitcoin28.

A política monetária do Bitcoin foi desenhada de modo a evitar, nas palavras de Don e Alex Tapscott, a “hiperinflação ou desvalorização da moeda causada por burocracias incompetentes ou corruptas”29. Para obter esse resultado, o Bitcoin foi criado de modo a mimetizar o comportamento do ouro de duas formas: há um suprimento máximo de bitcoins e quanto mais bitcoins existentes, mais difícil se torna obter novos bitcoins. A rede possui um

23 HALABURDA, Hanna; SARVARY, Miklos. Beyond bitcoin: The economics of digital currencies. Springer, 2016, p. 109.

24 ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2014, p. 21-22 25 ROBINSON II, Randolph. The New Digital Wild West: Regulating the Explosion of Initial Coin

Offerings (September 1, 2017). 85 Tenn. L. Rev. 897 (2018), p. 22-23.

26 “A community is defined by the cooperation of its participants, and efficient cooperation requires a medium of exchange (money) and a way to enforce contracts. Traditionally these services have been provided by the government or government sponsored institutions and only to legal entities. In this article I describe a protocol by which these services can be provided to and by untraceable entities. DAI, Wei. B-money. 1998. Disponível em http://www.weidai.com/bmoney.txt.

27 “In summary, all money mankind has ever used has been insecure in one way or another. This insecurity has been manifested in a wide variety of ways, from counterfeiting to theft, but the most pernicious of which has probably been inflation.” SZABO, Nick. Bit Gold. 2005. Disponível em https://nakamotoinstitute.org/bit-gold. 28 Once a predetermined number of coins have entered circulation, the incentive can transition entirely to transaction fees and be completely inflation free. NAKAMOTO, SATOSHI.

29 TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain Revolution: Como a tecnologia por trás do Bitcoin está

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limite máximo de 21 milhões de bitcoins a serem “minerados”30, o que se projeta que ocorrerá em 2140. Além do limite de bitcoins em circulação, o sistema foi desenvolvido para que a o volume de novos bitcoins caísse à metade a cada duzentos e dez mil blocos e o processo de mineração se tornasse mais difícil em uma frequência predeterminada31.

O contexto econômico mundial no ano de 2008 era bastante propício para o desenvolvimento de uma tecnologia como o Bitcoin. Desde o ano de 2007 o mundo vivia um período de incerteza causado pela chamada crise do subprime nos Estados Unidos, que ocasionou uma redução de liquidez no mercado mundial. O ápice da crise foi a falência do banco Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008, a maior falência já registrada no País. No dia seguinte, o governo americano concedeu à seguradora AIG uma linha de crédito no valor de R$ 85 bilhões de dólares para combater sua crise de insolvência. Após esses dois fatos, as autoridades financeiras do mundo inteiro, capitaneadas pelo Federal Reserve dos Estados Unidos, passaram a adotar medidas de estímulo à liquidez, injetando mais dinheiro na economia - e principalmente nos bancos, os próprios causadores da crise –, o que gerou movimentos inflacionários32. A crise de 2008 levou ao descrédito das instituições monetárias mundiais.

Não havia, portanto, melhor época para colocar em prática as ideias apresentadas por Wei Dai e Nick Szabo de desenvolver um sistema monetário que não pudesse ser manipulado pelos governos.

Foi sob esse pano de fundo que, em 31 de outubro de 2008, poucos meses após a quebra do Lehman Brothers, o whitepaper de Satoshi Nakamoto, denominado “Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System”33, foi publicado em fóruns de discussões sobre criptografia34. O trabalho, ainda teórico, apresentava um sistema de pagamentos sem a necessidade de intermediários, criando um sistema monetário sem bancos – os grandes vilões da crise de 2008.

A primeira transação realizada na rede Bitcoin (o primeiro bloco “minerado”) ocorreu às 18h15 do dia 3 de janeiro de 2009. O “bloco gênese” do Bitcoin, além de registrar os primeiros 50 bitcoins minerados, foi criptografado com a seguinte frase: “The Times

30 Sobre mineração, ver item 2.1.2.

31 KIVIAT, Trevor I. Beyond Bitcoin: Issues in Regulating Blockchain Transactions. In: Duke LJ, v. 65, p. 569-608, 2015, p. 579.

32 ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2014, p. 38-40. 33 “Bitcoin, um sistema monetário eletrônico par-a-par”, em tradução livre.

34 TEIXEIRA, Tarcisio; RODRIGUES, Carlos Alexandre. Blockchain e criptomoedas: aspectos

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03/Jan/2009 Chancellor on brink of second bailouts for banks” 35. O texto, que remete à manchete do jornal inglês The Times de 3 de janeiro de 2009, pode ser apenas uma forma de demonstrar que a transação não ocorreu em uma data anterior àquela indicada no bloco, mas é considerada por muitos como um indicativo da posição de Satoshi Nakamoto em relação à estrutura do sistema monetário internacional36, em harmonia com os princípios defendidos pelo movimento Cypherpunk.

Embora atualmente haja um certo frisson sobre o Bitcoin, a solução apresentada por Nakamoto não obteve notoriedade instantânea. Durante muitos anos o conhecimento do Bitcoin se limitou a um pequeno grupo de participantes de fóruns sobre criptografia e pequenos grupos de entusiastas contra o establishment do mercado financeiro37. Embora o Bitcoin tenha sido lançado para funcionar como um sistema monetário e tenha começado a operar em 3 de janeiro de 2009, a primeira transação financeira realizada por meio de bitcoins ocorreu apenas um ano depois, em 21 de maio de 2010.

Para o que seria a primeira transação da história envolvendo bitcoins, em 18 de março de 2009 o americano Laszlo Hanyecz publicou em um fórum de discussões sobre Bitcoin, que possuía cerca de 230 membros, propondo pagar 10.000 bitcoins para quem lhe comprasse duas pizzas grandes. A proposta foi aceita apenas em 21 de maio por um membro residente na Inglaterra, que realizou o pagamento das pizzas com seu cartão de crédito e recebeu os 10.000 bitcoins de Hanyecz. A transação, com base no ainda rudimentar mercado de bitcoins (já que essa era a primeira transação), correspondeu a 41 dólares estadunidenses38. Considerando o pico de 20.000 dólares americanos atingido no final do ano de 2017, a transação chegou a ser avaliada em duzentos milhões de dólares. Desde a primeira transação realizada, cuja oferta levou três dias para ser aceita e um bitcoin foi avaliado em 0,0041 dólares, o mercado de bitcoins se desenvolveu sobremaneira39, como será analisado no item 2.1.3 deste trabalho.

35 “The Times 03/Jan/2009 Ministro da Fazenda à beira do segundo resgate aos bancos”, em tradução livre. 36 ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2014, p. 43. 37 TSUKERMAN, Misha. The block is hot: A survey of the state of Bitcoin regulation and suggestions for

the future. In: Berkeley Tech. LJ, v. 30, p. 1127-1172, 2015, p. 1132.

38 VIGNA, Paul; CASEY, Michael J.. The age of cryptocurrency: How Bitcoin and the Blockchain are

challenging the global economic order. New York: Picador, 2016, p. 78-79.

39 HEWITT, Evan. Bringing Continuity to Cryptocurrency: Commercial Law as a Guide to the Asset

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2.1.2 Resolvendo o problema do gasto duplo: blockchain e a dinâmica de funcionamento do Bitcoin

O item anterior tratou de apresentar o surgimento do sistema Bitcoin, seus princípios e o contexto em que foi desenvolvido. Agora é necessária uma análise do funcionamento do sistema Bitcoin para demonstrar como foi resolvido o problema do gasto duplo, como ele opera sem a necessidade de um terceiro confiável e como o sistema se mantém.

Até o surgimento do Bitcoin, uma moeda virtual, como qualquer outro ativo virtual, poderia ser infinitamente copiada e não havia uma forma de comprovar que ela não havia sido enviada anteriormente a outra pessoa. Assim como podemos enviar o mesmo arquivo para milhares de pessoas por e-mail, seria possível enviar o mesmo dinheiro para mais de uma pessoa. Em termos práticos, seria o equivalente a permitir que todas as pessoas imprimissem seu próprio dinheiro, o que dissiparia o seu valor40. A esse problema foi dado o nome de problema do gasto duplo41. A dificuldade em obter confiança nas transações realizadas na internet é apresentada por Fernando Ulrich com o seguinte exemplo:

Por exemplo, se Maria quisesse enviar 100 u.m. (unidade monetária) ao João por meio da internet, ela teria que depender de serviços de terceiros como PayPal ou Mastercard. Intermediários como o PayPal mantêm um registro dos saldos em conta dos clientes. Quando Maria envia 100 u.m ao João, o PayPal debita a quantia de sua conta, creditando-a na de João. Sem tais intermediários, um dinheiro digital poderia ser gasto duas vezes. Imagine que não haja intermediários com registros históricos, e que o dinheiro digital seja simplesmente um arquivo de computador, da mesma forma que documentos digitais são arquivos de computador. Maria poderia enviar ao João 100 u.m. simplesmente anexando o arquivo de dinheiro em uma mensagem. Mas assim como ocorre com um e-mail, enviar um arquivo como anexo não o remove do computador originador da mensagem eletrônica. Maria reteria a cópia do arquivo após tê-lo enviado anexado à mensagem. Dessa forma, ela poderia facilmente enviar as mesmas 100 u.m. ao Marcos.

Para resolver o problema do gasto duplo em transações feitas por meio eletrônico, seria necessária a instituição de um livro-razão que acompanhasse todas as transações e pudesse verificar que o pagador possuía disponibilidade dos valores transferidos, o que impediria que o mesmo valor fosse transferido mais de uma vez pela mesma pessoa. Após a transação, o livro-razão seria atualizado constando a transferência da quantia.

Contudo, essa solução depende da intervenção de um terceiro que fique encarregado das anotações. Esses terceiros são escolhidos em virtude da confiança que ambas as partes depositam neles, acreditando que agirão com retidão. Por não confiarem entre si, as partes

40 HALABURDA, Hanna; SARVARY, Miklos. Beyond bitcoin: The economics of digital currencies. Springer, 2016, p. 100-101.

41 MORABITO, Vincenzo (ed). Business Innovation Through Blockchain. Springer International Publishing, 2017, p. 6.

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devem buscar um terceiro em que ambas confiam. De fato, essa é a solução adotada atualmente, ficando as anotações a cargo do sistema bancário ou de outros intermediários, que acabam por absorver grande parte do valor da negociação42.

A proposta apresentada pelo Bitcoin permite a criação de um livro-razão distribuído43 que dispensa a intervenção de um terceiro para manter os registros das transações44, permitindo assim a realização de transferências de valores peer-to-peer. Essa proposta já havia sido apresentada por Wei Dai em seu projeto de b-money. Contudo, a sua estruturação matemática e operacional só ocorreu com o lançamento do Bitcoin.

Com o Bitcoin, todos os integrantes da rede são possuidores de uma cópia da lista de todas transações realizadas até então (livro-razão), a qual é atualizada periodicamente pelos próprios participantes da rede com as transações realizadas após a última atualização. Depois de publicada a atualização, todos os integrantes verificam se as últimas transações são válidas e, caso positivo, passam a adotar a lista atualizada como sua45. O processo de atualização da lista é chamado de “mineração”. Antes de entrar em alguns detalhes técnicos sobre o funcionamento da rede, interessante trazer a explicação do sistema realizada por Angela Guo, em termos bastante acessíveis:

Conceptually, the blockchain was similar to other publicly updated databases such as Wikipedia or "Google Docs," which rely deeply on general users to submit on content, provide verification, and update the information. To ensure that all transactions are recorded accurately and reliably, the Bitcoin network gives every computer or user a publicly shared "copy" of the ledger and updates these copies in real time through a synchronizing algorithm. This record of transactions is most analogous to "just a big, publicly available spreadsheet," one that is distributed to every user and computer in the community. Since every computer within the network has a copy of these transactions, inconsistences are easily resolved through the "consensus algorithm." If, for example, a hacker were to tamper with the spreadsheets to reflect false transfers of Bitcoin into his personal wallet, the network would immediately correct the inconsistency as significantly more copies of the transaction sheet would not reflect that this amount had been transferred. Corrections are made in favor of the most agreed-upon version amongst all of the existing copies on the network. Given the decentralized nature of the spreadsheet, the lack of central database, and the absence of a master key, the only way to truly alter the master sheet requires controlling a dispositive majority of the entire Bitcoin network - an increasingly difficult feat at Bitcoin grows in popularity and more users

42 TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain Revolution: Como a tecnologia por trás do Bitcoin está

mudando o dinheiro, os negócios e o mundo. São Paulo: SENAI-SP Editora, 2016, p. 41.

43 A literatura adota a denominação “distribuído” em vez de “descentralizado” por considerar que um sistema descentralizado teria seu controle dividido entre algumas partes, havendo ainda uma hierarquia entre os participantes. Já em uma arquitetura distribuída, não há nenhuma hierarquia e todos os participantes integram o sistema no mesmo nível.

44 KIVIAT, Trevor I. Beyond Bitcoin: Issues in Regulating Blockchain Transactions. In: Duke LJ, v. 65, p. 569-608, 2015, p. 578.

45 SURUJNATH, Ryan. Off the Chain: A Guide to Blockchain Derivatives Markets and the Implications on

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join the network. Consequently, it is now virtually impossible to "hack" into Bitcoin databases and transfer assets maliciously46

As transações são registradas por meio de blocos. A cada 10 minutos, aproximadamente, um bloco é adicionado à cadeia47, contendo as transações realizadas desde a criação do último bloco. À solução adotada pelo Bitcoin deu-se o nome de Blockchain48, por envolver uma verdadeira cadeia de blocos. Cada novo bloco inserido na cadeia faz referência direta ao bloco anterior, o que torna impossível alterar um bloco anterior sem ter que alterar todos os blocos posteriores, tornando os registros virtualmente imutáveis49.

Essa referência é realizada por meio da criptografia hash, que consiste em um processo criptográfico de conversão de um texto simples em um valor (chamado de hash) de tamanho predeterminado (a depender do algoritmo usado) por meio de uma função matemática. Esse processo torna possível verificar a integridade da mensagem. Caso a mensagem não seja alterada, o hash permanecerá idêntico. Do contrário, a menor alteração realizada no texto acarretará em uma significativa alteração do resultado50. A título de exemplo, o código hash SHA256 da frase anterior, o mesmo utilizado no Bitcoin, é CBA29B61FF5548364E88E0131A54C4B4D4029A70E85DA88D9FF9D292B4591491. Se

46 Em tradução livre: Conceitualmente, o blockchain era semelhante a outros bancos de dados atualizados publicamente, como a Wikipedia ou "Google Docs", que dependem profundamente de usuários em geral para enviar no conteúdo, fornecer verificação e atualizar a informação. Para garantir que todas as transações sejam registradas de forma precisa e confiável, a rede Bitcoin dá a cada computador ou usuário uma "cópia" pública do livro-razão e atualiza essas cópias em tempo real através de um algoritmo de sincronização. Este registro de transações é mais análogo a "apenas uma grande planilha disponível publicamente", que é distribuída para todos os usuários e computadores da comunidade. Como cada computador dentro da rede possui uma cópia dessas transações, as inconsistências são facilmente resolvidas através do "algoritmo de consenso". Se, por exemplo, um hacker fosse manipular as planilhas para refletir falsas transferências de Bitcoin em sua carteira pessoal, a rede corrigiria imediatamente a inconsistência, já que as cópias da folha de transações não refletiam que esse valor havia sido transferido. As correções são feitas em favor da versão mais consensual entre todas as cópias existentes na rede. Dada a natureza descentralizada da planilha, a falta de banco de dados central e a ausência de uma chave mestra, a única maneira de alterar verdadeiramente o livro-razão requer o controle de uma maioria disposta de toda a rede Bitcoin - uma façanha cada vez mais difícil na Bitcoin cresce em popularidade e mais usuários se juntam à rede. Conseqüentemente, agora é praticamente impossível "piratear" em bancos de dados Bitcoin e transferir ativos de maneira maliciosa. GUO, Angela. Blockchain Receipts: Patentability and

Admissibility in Court. In: Chi.-Kent J. Intell. Prop., v. 16, p. 440-452, 2016, p. 442-443.

47 O protocolo do Bitcoin ajusta automaticamente a dificuldade do problema matemático a ser resolvido para manter a constância e previsibilidade da criação de novos blocos. Assim, caso a rede esteja com uma capacidade computacional elevada e os blocos estejam sendo resolvidos muito rapidamente, o problema ficará mais difícil para diminuir o ritmo da criação de novos blocos. Na situação oposta, o problema ficará mais fácil para aumentar a frequência dos novos blocos. TSUKERMAN, Misha. The block is hot: A survey of the state of Bitcoin

regulation and suggestions for the future. In: Berkeley Tech. LJ, v. 30, p. 1127-1172, 2015, p. 1138-1139.

48 A expressão “blockchain” não foi criada por Sathosi Nakamoto, não tendo sido mencionada em seu

whitepaper.

49 MORABITO, Vincenzo (ed). Business Innovation Through Blockchain. Springer International Publishing, 2017, p. 65.

50 CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e Blockchain: O direito no mundo digital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 39.

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retirássemos apenas a última letra da última palavra da frase, o código seria alterado para 9C2BC313B3A39A5B6CA65D78E6E03D7FA2C2302E305CE776161E6DD5C22E67CD.

Embora seja virtualmente impossível descobrir a composição de um hash, ou seja, saber qual é o teor de um texto que originou um determinado hash, a operação contrária – verificar qual é o hash originado de determinado texto – é simples, conforme descrito por Larissa Lee:

To break this concept down into something tangible, imagine someone gave you the number 589 and then asked you to figure out the two prime numbers that make up 589. To figure it out, you would need to go through a lot of trial and error before finally discovering that 9 and 31 multiplied together equals 589. Once this initial work is performed, it is much easier for anyone else in the system to verify that this is correct by simply multiplying 9 and 31 together and seeing that 589 is correct 51 Como cada novo bloco faz remissão ao hash do bloco anterior, é fácil detectar uma tentativa de alteração nos blocos anteriores, pois haverá uma inconsistência nas referências52. Um novo bloco é formado pelo hash do bloco anterior, todas as transações realizadas naquele período (até o limite de tamanho do bloco53), um número chamado de nonce e um novo

hash54. Como já apresentado, o sistema foi previsto com o objetivo de adicionar um novo bloco a cada 10 minutos55. Esses blocos são adicionados pelos próprios integrantes da rede, por meio da realização de uma operação matemática denominada proof-of-work, através do procedimento de “mineração”.

Quando um usuário quer realizar uma transação na rede, uma comunicação é enviada a todos os seus integrantes para que a transação seja autenticada. O transmissor dos bitcoins envia uma mensagem informando a sua chave pública, os valores a serem transferidos e a chave pública do receptor dos bitcoins. Essa mensagem deve ser assinada com a chave privada do transmissor. Depois de enviada a mensagem, o receptor deve transmitir a sua aceitação por meio de sua chave privada. Realizado esse procedimento, a rede deverá validar

51 Em tradução livre: Para transformar esse conceito em algo tangível, imagine que alguém lhe deu o número 589 e então pediu para que você descobrisse os dois números primos que formam 589. Para descobrir, você teria que passer por muita tentative e erro antes de finalmente descobrir que 9 e 31 multiplicados dão 589. Uma vez que esse trabalho inicial foi feito, é muito mais fácil para qualquer um verificar que está correto simplesmente multiplicando 9 e 31 e vendo que 589 está correto. NEW KIDS ON THE BLOCKCHAIN P. 101.

52 CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e Blockchain: O direito no mundo digital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 21.

53 A depender do volume de transações ocorridas desde a validação do último bloco, nem todas as transações vão poder ser inseridas no próximo bloco, o que gerará uma fila de espera para a inclusão das transações. Para abordar esse problema, a rede prevê uma remuneração aos mineradores que registrarem a transferência em seus blocos, o que estimula os membros a participarem como mineradores e ajuda a definir as prioridades nas transações. TSUKERMAN, Misha. The block is hot: A survey of the state of Bitcoin regulation and

suggestions for the future. In: Berkeley Tech. LJ, v. 30, p. 1127-1172, 2015, p. 1141.

54 SURUJNATH, Ryan. Off the Chain: A Guide to Blockchain Derivatives Markets and the Implications on

Systemic Risk. In: Fordham J. Corp. & Fin. L., v. 22, p. 257, 2017, p. 268-269.

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a transação. Isto é, verificar o histórico dos bitcoins enviados para garantir que eles já não foram previamente transmitidos a outra pessoa, evitando assim o problema do gasto duplo. Uma vez verificada a transação pela rede, ela poderá ser incluída no próximo bloco56-57.

Para que um participante possa incluir um novo bloco na cadeia, é necessário realizar com sucesso uma operação matemática trabalhosa, o que é denominado proof-of-work. No caso do Bitcoin, o hash de todos os blocos devem iniciar com um número predeterminado de zeros58-59. Portanto, para conseguir incluir o seu bloco na rede, o minerador deve elaborá-lo de modo que todas as informações constantes nele sejam derivadas em um hash que se inicie com o número necessário de zeros. Como visto, não é possível prever o resultado de uma criptografia hash. Portanto, a única forma de resolver o problema é através da força bruta, rearranjando as informações no bloco até a obtenção do resultado necessário60. O nonce é um número arbitrário inserido no bloco com o para evitar que todas as informações tenham que ser embaralhadas a cada nova tentativa de resolver o problema61. Em síntese, o processo de mineração consiste em alterar sucessivamente o nonce até que o bloco corresponda a um hash que cumpra os requisitos exigidos pela rede.

Esse sistema de proof-of-work garante que os participantes consumam recursos próprios para realizar as transações, o que garante a confiança das transações62. O sistema de

proof-of-work adotado pelo Bitcoin foi desenvolvido em 1997 por Adam Beck, com o

objetivo de evitar o envio de spam por e-mail ao exigir a resolução de um determinado problema matemático para que o e-mail pudesse ser enviado. Esse problema era fácil de resolver para enviar um e-mail, mas tornava praticamente impossível o envio de milhares de e-mails63.

56 KIVIAT, Trevor I. Beyond Bitcoin: Issues in Regulating Blockchain Transactions. In: Duke LJ, v. 65, p. 569-608, 2015, p. 578-579.

57 Para uma descrição detalhada de como ocorrem as transferências na rede Bitcoin e como funcionam as chaves públicas e privadas, ver LEE, Larissa. New Kids on the Blockchain: How Bitcoin's Technology Could

Reinvent the Stock Market. In: Hastings Bus. LJ, v. 12, p. 81-132, 2015, p. 94-99.

58 LEE, Larissa. New Kids on the Blockchain: How Bitcoin's Technology Could Reinvent the Stock Market.

In: Hastings Bus. LJ, v. 12, p. 81-132, 2015, p. 102.

59 TSUKERMAN, Misha. The block is hot: A survey of the state of Bitcoin regulation and suggestions for

the future. In: Berkeley Tech. LJ, v. 30, p. 1127-1172, 2015, p. 1138.

60 MORABITO, Vincenzo (ed). Business Innovation Through Blockchain. Springer International Publishing, 2017, p. 86.

61 SURUJNATH, Ryan. Off the Chain: A Guide to Blockchain Derivatives Markets and the Implications on

Systemic Risk. In: Fordham J. Corp. & Fin. L., v. 22, p. 257, 2017, p. 268-269.

62 CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e Blockchain: O direito no mundo digital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 39-41.

63 HALABURDA, Hanna; SARVARY, Miklos. Beyond bitcoin: The economics of digital currencies. Springer, 2016, p. 111.

(26)

Assim que um participante consegue resolver o problema e suas transações são validadas, o bloco é inserido no topo da cadeia e o minerador recebe um número predeterminado de bitcoins, que é reduzido ao passo que os bitcoins são minerados64, até o limite de 21 milhões de bitcoins, quando a remuneração dos mineradores será originada exclusivamente das taxas de transação. Resolvido o problema do bloco, todos os mineradores devem descartar o trabalho feito na tentativa de minerar este bloco recomeçar o trabalho na tentativa de mineração do bloco seguinte65, já que o novo bloco deve referenciar o hash do bloco diretamente anterior, que agora é o bloco recém-minerado. O processo pode ser comparado à resolução de um sudoku, sendo que a cada novo bloco um novo problema é apresentado para ser resolvido66.

A grande revolução do Bitcoin que permitiu o seu funcionamento descentralizado é o alinhamento adequado dos incentivos dos mineradores. Embora haja críticos da utilização do sistema de proof-of-work porque ele é inerentemente ineficiente – produz desperdício de recursos –, da perspectiva da teoria dos jogos esse alto custo é exatamente o que garante a integridade das transações, uma vez que a sua arquitetura faz com que cooperar com o sistema seja mais barato e mais recompensador do que tentar fraudá-lo67.

O Bitcoin, portanto, é um sistema que combinou e aperfeiçoou ideias e ferramentas já existentes68 para dar origem a um sistema que permite a realização de transações monetárias sem a necessidade de intermediários e com baixo custo de transação. Sem embargo das diversas aplicações da tecnologia blockchain fora do Bitcoin, que serão analisadas mais a diante, o protocolo Bitcoin, por si só, tem potencial para “redesenhar o mercado financeiro”69 e promover a inclusão de bilhões de desbancarizados no mercado consumidor global.

2.1.3 Bitcoin e a democratização do dinheiro

64 ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2014, p. 19. 65 HALABURDA, Hanna; SARVARY, Miklos. Beyond bitcoin: The economics of digital currencies. Springer, 2016, p. 107.

66 TSUKERMAN, Misha. The block is hot: A survey of the state of Bitcoin regulation and suggestions for

the future. In: Berkeley Tech. LJ, v. 30, p. 1127-1172, 2015, p. 1138.

67 CATALINI, Christian and GANS, Joshua S. Some Simple Economics of the Blockchain (September 21, 2017). Rotman School of Management Working Paper No. 2874598; MIT Sloan Research Paper No. 5191-16, p. A-3.

68 SWAN, Melanie. Blockchain: Blueprint for a New Economy, O'Reilly Media, 2015, p. 2.

69 KIVIAT, Trevor I. Beyond Bitcoin: Issues in Regulating Blockchain Transactions. In: Duke LJ, v. 65, p. 569-608, 2015, p. 572.

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Atualmente, aproximadamente 2,5 bilhões de adultos não possuem acesso a bancos.70 Isso significa uma massa de pelo menos 32% da população mundial. Em países em desenvolvimento, o percentual de pessoas com pouco ou nenhum acesso ao sistema financeiro pode chegar a 64% da população71. No Brasil, esse número foi estimado em 40% em 201372.

Os bancos não atendem essas pessoas por várias razões. Parcialmente porque os pobres não oferecem tanto lucro quanto os ricos, parte porque os lugares onde eles moram não oferecem infraestrutura e segurança para que bancos instalem suas agências. Mas a maior parte é em razão da fraqueza das instituições. Sem documentação para provar sua identidade, apresentar garantias e criar um histórico de crédito, os mais pobres não possuem os requisitos básicos para participar do sistema bancário73.

Alijados do sistema bancário, essa massa recorre ao papel moeda para realizar as suas transações. O problema é que, como visto no início deste capítulo, as transações em papel moeda devem ocorrer presencialmente, o que limita a participação dessas pessoas no mercado global. Alguém que não possui uma conta no banco, ou não possui ao menos um cartão de crédito, não consegue realizar transações básicas como fazer compras online.

O Bitcoin, por sua natureza pseudônima, não demanda de seus usuários nenhuma das informações que são exigidas pelos bancos ou emissores de cartão de crédito. Para criar uma conta na rede Bitcoin e gastar seus bitcoins na internet como bem entender, basta que se crie uma senha pessoal para a conta74. Assim, o Bitcoin possibilita que a massa de bilhões de desbancarizados no mundo consiga finalmente realizar transações básicas como fazer uma transferência de valores, ou uma compra na internet. A inclusão financeira é um pré-requisito para a inclusão econômica75, e a integração financeira de um terço da humanidade pode criar um enorme leque de novas oportunidades para o comércio internacional, assim como fornecer ferramentas para o combate contra a pobreza76.

70 VIGNA, Paul; CASEY, Michael J.. The age of cryptocurrency: How Bitcoin and the Blockchain are

challenging the global economic order. New York: Picador, 2016, p. 186.

71 TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain Revolution: Como a tecnologia por trás do Bitcoin está

mudando o dinheiro, os negócios e o mundo. São Paulo: SENAI-SP Editora, 2016, p. 25.

72 TEIXEIRA, Tarcisio; RODRIGUES, Carlos Alexandre. Blockchain e criptomoedas: aspectos

jurídicos. Salvador: Editora Juspodivm, 2019, p. 61.

73 VIGNA, Paul; CASEY, Michael J.. The age of cryptocurrency: How Bitcoin and the Blockchain are

challenging the global economic order. New York: Picador, 2016, p. 190.

74 GUO, Angela. Blockchain Receipts: Patentability and Admissibility in Court. In: Chi.-Kent J. Intell. Prop., v. 16, p. 440-452, 2016, p. 441.

75 TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain Revolution: Como a tecnologia por trás do Bitcoin está

mudando o dinheiro, os negócios e o mundo. São Paulo: SENAI-SP Editora, 2016, p. 215.

76 VIGNA, Paul; CASEY, Michael J.. The age of cryptocurrency: How Bitcoin and the Blockchain are

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A garantia de acesso ao sistema financeiro internacional é possivelmente a maior transformação potencial trazida pelo Bitcoin, mas não a única. A criptomoeda trouxe um potencial disruptivo também no mercado de remessas internacionais77. Aproximadamente 600 bilhões de dólares foram remetidos do exterior a países em desenvolvimento no ano de 2015 através de serviços como o Western Union e MoneyGram78. As remessas feitas por parentes no exterior representam uma parcela considerável da economia de certos países em desenvolvimento. No Haiti, por exemplo, as remessas internacionais representam 20% do PIB, enquanto nas Filipinas esse percentual corresponde a 10% do PIB.

A taxa média cobrada por esses serviços para enviar o dinheiro para outro país é de 6%, podendo chegar a 9% em alguns casos. No ano de 2015, essas taxas corresponderam a uma arrecadação de 36 bilhões de dólares pelos intermediários79. Ou seja, dos 600 bilhões de dólares enviados a parentes no exterior, 564 bilhões foram recebidos pelos parentes, enquanto 36 bilhões se perderam no caminho. Considerando que a maioria das remessas é de pequenos valores, as perdas com custos de transação são consideráveis. O Bitcoin, por outro lado, possui uma taxa média de transação de 1%80. Se todas as remessas realizadas no ano de 2015 tivessem sido feitas através do Bitcoin, isso representaria uma economia de 30 bilhões de dólares em taxas. Consequentemente, os destinatários das remessas receberiam 30 bilhões de dólares a mais, que seriam utilizados no mercado consumidor desses países em desenvolvimento.

Além de reduzir significativamente as taxas para a remessa de divisas ao exterior, que corresponde a uma economia de 83%, a utilização do Bitcoin é vantajosa em virtude do tempo necessário para a transação. Transações internacionais costumam levar de 3 a 7 dias úteis até a sua confirmação81. As transações realizadas através do Bitcoin, por sua vez, tendem a levar apenas 10 minutos, que é o tempo médio de mineração do próximo bloco.

A demora na confirmação das transações financeiras não se limita às transferências internacionais. À exceção de transferências bancárias realizadas entre contas do mesmo banco, que no Brasil ocorrem de maneira instantânea, operações como TED ou DOC

77 ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2014, p. 25 78 KIVIAT, Trevor I. Beyond Bitcoin: Issues in Regulating Blockchain Transactions. In: Duke LJ, v. 65, p. 569-608, 2015, p. 585-586.

79 KIVIAT, Trevor I. Beyond Bitcoin: Issues in Regulating Blockchain Transactions. In: Duke LJ, v. 65, p. 569-608, 2015, p. 585-586.

80 TSUKERMAN, Misha. The block is hot: A survey of the state of Bitcoin regulation and suggestions for

the future. In: Berkeley Tech. LJ, v. 30, p. 1127-1172, 2015, p. 1141.

81 TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain Revolution: Como a tecnologia por trás do Bitcoin está

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