Simulações atomísticas de líquidos formadores
de vidros: uma aplicação a ligas metaestáveis
de Cu-Zr(Al)
Campinas
2020
René Alberto Álvarez Donado
Simulações atomísticas de líquidos formadores de vidros:
uma aplicação a ligas metaestáveis de Cu-Zr(Al)
Tese apresentada ao Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Cam-pinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Ciencias, na Àrea de Física
Orientador: Prof. Dr. Alex Antonelli
Este exemplar corresponde à versão final da tese defendida pelo aluno René Alberto Álvarez Donado, e orientada pelo Prof. Dr. Alex Antonelli
Campinas
2020
AlvOrientador: Alex Antonelli.
AlvTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Física Gleb Wataghin.
Alv1. Líquidos super-resfriados. 2. Temperatura de transição vítrea. 3.
Viscosidade. 4. Dinâmica espacialmente heterogênea. 5. Entropia. I. Antonelli, Alex, 1954-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Física Gleb Wataghin. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Atomistic simulation of glass-forming liquids : an application to
metastable alloys of Cu-Zr(Al)
Palavras-chave em inglês:
Supercooled liquids
Glass transition temperature Viscosity
Spatially heterogeneous dynamics Entropy
Área de concentração: Física Titulação: Doutor em Ciências Banca examinadora:
Alex Antonelli [Orientador]
Marcus Aloizio Martinez de Aguiar Mario Jose de Oliveira
Maurice de Koning Jose Pedro Rino
Data de defesa: 29-05-2020
Programa de Pós-Graduação: Física
Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)
- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-7348-4777 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/6478013463069001
APROVADA AO INSTITUTO DE FÍSICA “GLEB WATAGHIN”, DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, EM 29 / 05 / 2020.
COMISSÃO JULGADORA:
- Prof. Dr. Alex Antonelli – Orientador – DFMCIFGW/UNICAMP
- Prof. Dr. Marcus Aloizio Mart nez de Aguiar – DFMC/IFGW/UNICAMP - Prof. Dr. Mario José de Oliveira – IF/USP
- Prof. Dr. Maurice de Koning - DFMC/IFGW/UNICAMP - Prof. Dr. José Pedro Rino - DF/UFSC
OBS.: Ata da defesa com as respect vas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.
CAMPINAS 2020
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Gostaria de realmente estender a abrangência desta seção de agradecimentos porque durante estes seis anos de Unicamp, muitas foram as pessoas que de uma forma ou de outra me ajudaram a chegar até aqui.
Agradeço,
∙ a Deus pelo refugio e o socorro sempre presente.
∙ ao meu orientador o professor Alex Antonelli, por semear em mim o amor pela pesquisa, o interesse pela física computacional, a importância do subjuntivo na língua portuguesa e principalmente por sua infinita paciência em meus momentos de teimosia (que poucos não foram, dito seja de passagem). Muitíssimo obrigado por ter me dado "bússola, compasso e régua".
∙ a mi madre Mariana Donado por ser mi mayor admiradora y por siempre motivarme en los momentos de vacilación.
∙ a mi padre René Alvarez por convencerme de entrar a la universidad y apoyarme a pesar de no entender ¿por qué? tenía que estudiar física y no economía.
∙ aos meus amigos da sala de estudos do DFMC: Jessica, Barbara, Danilo, Vitor, William, Rodolfo, Lisan, Gabriel e Luiz. Muito obrigado pelos momentos de des-contração, pelas conversas e por me fazer sentir como um verdadeiro brasileiro. ∙ aos meus amigos do prédio D: Ingrid, Leonardo, Andres, Guille, Paulinho, Ale,
Arthur, Caroline e Luis (o biólogo aventureiro). Valeu, vocês são demais.
∙ Ao meu amigo Helder pela parceria, as boas histórias e por sempre chegar na hora marcada, mesmo sabendo que todo mundo atrasaria.
∙ A minha amiga Thais, pelo apoio e as noites de estudo quando algum de nós tinha um prazo mais apertado, a disposição para me explicar sempre que precisei, as recomendações ao escrever meu primeiro artigo e a amizade incondicional, Muito obrigado mesmo.
Muito obrigado pelos bons conselhos, a paciência nos meus momentos de candidez e principalmente pelas recomendações de leitura (ainda não li Musashi...).
∙ à Armand Soldera, professeur au sein du département de chimie de l’université de Sherbrooke, mais également vice doyen à la recherche de la faculté de sciences de cette même université, j’adresse ma profonde gratitude pour m’avoir donné la chance d’intégrer le Laboratoire de Physico-Chimie Moléculaire (LPCM). Outre le fait que je le remercie pour son soutien académique précieux et qu’il m’a beaucoup appris scientifiquement, je tiens à lui faire part de ma profonde gratitude pour sa disponibilité, sa bienveillance et son attention à mon égard.
∙ Aos meus amigos da maison godbout 1485: Geandra, João, Rafa, Malo, Anna, Jes-sica, Jansller, Aliny e Pierre-Luc, pelos bons momentos que passei durante meu estagio no Quebec e principalmente pelas quartas dos bolos, sextas de botecos e as jantas especiais de sábado durante a pandemia do Covid-19.
∙ Ao professor Caetano Miranda o qual infelizmente não conheci pessoalmente, mais tanto sua tese de mestrado como a de doutorado inspiraram-me sobre um estilo de escrita em português.
∙ Aos professores Maurice de Koning, Guillermo Cabrera, Luiz Oliveira, Marcus Aguiar, Amir Caldeira, Eduardo Miranda, Francisco Rouxinol e Thiago Alegre pela dedica-ção e o grande trabalho ao momento de ensinar. Com vocês aprendi como eu espero me tornar quando chegue minha vez de ensinar.
∙ O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 - sob o projeto 1618738/2016.
∙ Ao CCJDR pelo excelente serviço e rápida assessoria com qualquer problema rela-cionado aos serviços de computação de alto desenvolvimento.
Nesta tese investigamos as propriedades termodinâmicas e cinéticas de vidros metálicos e dos líquidos que os formam MGFLs (pelas suas siglas no inglês: "Metallic glass-forming
liquids") através de simulações computacionais. Os resultados são apresentados em duas
partes. Na primeira, referente as propriedades cinéticas, estudamos o comportamento do coeficiente de difusão, da densidade de estados vibracionais, e da viscosidade de cisalha-mento de três ligas metálicas de Cu𝑥Zr𝑥Al100−2𝑥 com 𝑥 = 50, 49, 46. O comportamento
destas grandezas revela dois "crossovers" acontecendo durante o resfriamento. O primeiro a 𝑇 ≈ 1200 K marca o início da heterogeneidade dinâmica, i.e. a mobilidade dos átomos no sistema é diferente em diferentes regiões do mesmo. O segundo, é uma mudança no comportamento do líquido super-resfriado, passando de um líquido frágil para um líquido forte a uma temperatura próxima a temperatura de transição vítrea. Ambos "crossovers" são deslocados a temperaturas mais altas se a porcentagem de Al da liga for maior. Na segunda parte desta tese aplicamos uma eficiente metodologia que nos permitiu separar as contribuições vibracional e configuracional para a entropia nesses vidros metálicos sem a necessidade de uma fase cristalina. O método baseia-se no cálculo da energia livre vibra-cional na fase sólida (vidro) e da energia livre total na fase líquida usando como sistemas de referência o cristal de Einstein e o recentemente proposto, modelo de Uhlenbeck-Ford, respectivamente. A energia livre em função da temperatura durante o resfriamento (aque-cimento) do líquido (sólido) foi obtida através do método de "Reversible Scaling", impondo uma restrição no parâmetro de "scaling" para manter uma taxa de resfriamento fixa de 100 K/ns. Ao aplicar esta metodologia a duas ligas de Cu𝑥Zr𝑥Al2𝑥−100 com 𝑥 = 50, 46;
nossos resultados mostram que para o caso da liga sem Al o excesso de entropia possui uma contribuição vibracional devida principalmente a efeitos anarmônicos. Além disso, a entropia configuracional aumenta em 70% com a presença do Al. Sugerindo assim, que a entropia configuracional pode ser usada para investigar a capacidade que os materiais possuem para formar um vidro.
Palavras-chaves: Líquidos super-resfriados; Propriedades cinéticas; Crossover
temperature. Both crossovers are shifted to higher temperatures if the percentage of Al in the alloy is higher.
In the second part of this thesis we applied an efficient methodology that allowed us to separate vibrational and configurational entropy without requiring a crystalline phase. The method is based on the calculation of the vibrational free energy in the solid phase and the total free energy in the liquid phase using as reference systems the Einstein crystal and, the recently proposed, Uhlenbeck-Ford model, respectively. The free energy as a function of temperature during cooling (heating) of the liquid (solid) was obtained by means of the Reversible Scaling method, imposing a restriction on the scaling parameter to keep a fixed cooling rate of 100 K/ns. By applying this methodology to two alloys of Cu𝑥Zr𝑥Al2𝑥−100
with 𝑥 = 50, 46; Our results show that for the case of the alloy without Al the excess of entropy has a vibrational contribution due mainly to anharmonic effects. Moreover, configurational entropy increases by 70% with the presence of Al. Thus suggesting that configurational entropy can be used to investigate the ability of materials to form glass.
Keywords: Supercooled liquids ; Kinetic properties; Fragil-to-Strong crossover; Dynamic
Al andar se hace el camino, y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar. Caminante no hay camino sino estelas en la mar.”
Figura 1.2 – Representação esquemática do comportamento da função auto-intermediária de espalhamento normalizada Φ = 𝐹 (⃗𝑞, 𝑡)/𝐹 (⃗𝑞, 0) (Adaptado da refe-rência [7]). . . 18 Figura 1.3 – (Tomado da referência [14]) Mapa espacial do deslocamento das
partí-culas na simulação de uma mistura binária de Lennard-Jones em duas dimensões. As setas mostram o deslocamento de cada partícula em uma escala de tempo comparável com 𝜏. . . 20 Figura 1.4 – Gráfico de Angell para diferentes materiais. a) Viscosidade de
cisalha-mento em função da temperatura reduzida 𝑇𝑔/𝑇 (adaptado da
referên-cia [3]). b) Tempo de relaxação em função da temperatura reduzida
𝑇𝑔/𝑇 (adaptado da referência [14]). . . 21
Figura 1.5 – a)(Adaptado da referência [20] e as referências aí contidas) Comporta-mento da capacidade calorífica em função da taxa de resfriaComporta-mento para um vidro orgânico. b) (Retirado da referência [21]) Duas configurações de um sistema bidimensional para 𝑇 ≫ 𝑇𝑔 e 𝑇 ∼ 𝑇𝑔. . . 23
Figura 1.6 – Representação esquemática do comportamento de Δ𝑆 com a diminui-ção da temperatura. A linha amarela indica o comportamento que o líquido teria se a transição vítrea não acontecesse. . . 24 Figura 1.7 – (Adaptado da referência [23]) Representação simplificada da
superfí-cie de energia potencial, assim como as relaxações 𝛼 e 𝛽 dentro deste contexto. . . 25 Figura 1.8 – (Adaptado da referência [27]) Representação simplificada da curva TTT.
As curvas laranja, vermelha e verde são respectivamente as curvas de cristalização para metais puros, ligas simples e BMG. 𝑇𝑚e 𝑇𝑔 são
de dinâmica molecular no equilíbrio. Dois ajustes foram usados para estimar a temperatura de transição vítrea. b) Comportamento da ca-pacidade calorífica isobárica 𝐶𝑝 para as mesmas ligas . . . 31
Figura 2.2 – Inverso do coeficiente de difusão para as três ligas: (a) Cu50Zr50, (b)
Cu49Zr49Al2 e (c) Cu46Zr46Al8. A linha vermelha indica o ajuste feito
com a equação VFT e a linha azul o ajuste usando uma equação tipo Arrhenius. A região amarela indica o valor aproximado de 𝑇𝑓 𝑠. . . 33
Figura 2.3 – Inverso do coeficiente de difusão em função da temperatura para a liga ternária de Cu46Zr46Al8para células de simulação de N = 4000 átomos
e N = 8000 átomos. Do gráfico podemos notar que os valores de 𝑇𝑓 𝑠
permanecem inalterados. . . 35 Figura 2.4 – DDEV e DDVr ("inset") da liga Cu50Zr50 em função da frequência
angular para diferentes temperaturas. um pico bosônico aparece para temperaturas inferiores a 750 K, para a aproximadamente 1,2 THz. . . 36 Figura 2.5 – rVDOS e VDOS ("inset") da liga a) Cu49Zr49Al2 e b) Cu49Zr49Al8 em
função da frequência angular para diferentes temperaturas. . . 37 Figura 2.6 – (a) Função de autocorrelação média 𝐶𝑝𝑝 em função do tempo e (b)
logaritmo da viscosidade de cisalhamento em função da temperatura reduzida 𝑇𝑔/𝑇 para a liga ternária de Cu46Zr46Al8. 𝐶𝑝𝑝 mostra uma
diminuição na dinâmica de relaxação para temperaturas abaixo de 1200 K. Três regimes estão bem definidos no comportamento da viscosidade, mostrando os dois "crossovers" típicos em líquidos super-resfriados. . . 37 Figura 2.7 – A relação SE para Cu46Zr46Al8. Para altas temperaturas, no intervalo
1800 − 1300 K, a inclinação é 𝜁 = −1. Entretanto, para temperaturas abaixo de 𝑇𝐴= 1200 K, a relação SE se desvia do ideal para uma forma
fracionária com 𝜁 = −0.81. . . 39 Figura 3.1 – Capacidade calorífica a pressão constante 𝐶𝑝 para a liga binária de
Cu50Zr50 usando dois métodos: derivada da entalpia e flutuações da
entalpia. . . 44 Figura 3.2 – Energia livre de Gibbs por átomo em função da temperatura de uma
liga metálica de Cu50Zr50. 𝐺0𝐹 𝐿 e 𝐺0𝑈 𝐹 são os valores de 𝐺(𝑇0)
obti-dos usando o AS com o EC e o UFM como sistemas de referência, respectivamente. . . 45 Figura 3.3 – Comportamento a) do parâmetro 𝜆 e b) da temperatura como função
vidro se transforma em um líquido e a entropia 𝑆𝐹 𝐿 não é mais apenas
vibracional, contém uma parte configuracional. . . 50 Figura 3.8 – O excesso de entropia em função da temperatura. Como as
contri-buições vibracionais do vidro e CuZr2 não são as mesmas, o excesso de
entropia diminui linearmente quando a temperatura diminui, sugerindo um comportamento como descrito por Goldstein. . . 51 Figura B.1 – Representação esquemática de um fluido submetido as forças de
cisa-lhamento 𝐹 (𝑡). . . 64 Figura C.1 – Analogia entre o cálculo das grandezas termodinâmicas através de
di-nâmica molecular e a medição da profundidade de um rio. . . 67 Figura C.2 – (Adaptado de [102]) (a) Potencial de interação e (b) função de
distri-buição de pares do UFM. . . 71 Figura C.3 – (Adaptado de [99]) Visualização no espaço de fase do processo
adiabá-tico. Superfície de energia 𝐸2mapeada pela superfície de enrgia inicial
𝐸1 , conservando o volume de fase Ω. . . 72
Figura C.4 – Comportamento da equação (C.29) e sua derivada como função do tempo. 75 Figura C.5 – força generalizada entre a liga binária de Cu50Zr50e o cristal de Einstein
a 𝑇 = 300 K durante um ciclo de ligação adiabática. . . 76 Figura C.6 – Energia de histerese para um vidro de Zr durante o aquecimento (Forward)
Tabela 2.1 – Temperatura de transição vítrea 𝑇𝑔 obtida através das equações (2.2)
e (2.3), comparadas com os resultados experimentais da referência [46] para três ligas cuja composição é CuxZrxAl100−2x alloys (𝑥 = 50, 49, 46) 32
Tabela 2.2 – Parâmetros do ajuste para as equações de VFT e Arrhenius, e a tem-peratura do transição frágil-forte 𝑇𝑓 𝑠 para as três ligas de CuZr(Al). . . 34
2.1.1 Estimando a temperatura de transição vítrea . . . 30
2.1.2 Propriedades dinâmicas . . . 32
2.2 Resultados . . . 33
2.2.1 Densidade de estados vibracionais . . . 35
2.2.2 Viscosidade de cisalhamento . . . 36
2.3 Conclusões (Parte I) . . . 39
3 Separação das contribuições vibracional e configuracional da entropia em vidros metálicos: Uma abordagem termodinâmica . . . 41
3.1 Métodos . . . 42
3.1.1 Detalhes computacionais . . . 42
3.1.2 Metodologia e protocolo . . . 43
3.2 Resultados . . . 45
3.2.1 Separando a entropia . . . 47
3.2.2 Comparação com o experimento . . . 49
3.3 Conclusões (Parte II) . . . 52
A Movendo os átomos: dinâmica molecular . . . 53
A.1 Algoritmos de integração . . . 54
A.2 O operador de evolução temporal . . . 55
B Teoria da resposta linear e relações de Green-Kubo . . . 58
B.1 Operadores de Liouville e evolução temporal . . . 58
B.2 Teoria da resposta linear . . . 61
B.3 Relações de Green-Kubo . . . 64
C Cálculos de energia livre . . . 67
C.1 Integração termodinâmica . . . 68
C.2 Escolhendo os sistemas de referência . . . 69
C.3 Ligação adiabática . . . 72
C.4 Ligação Adiabática II: detalhes técnicos . . . 74
C.5 Reversible Scaling . . . 76
C.6 Reversible scaling II: detalhes técnicos . . . 78
CAPÍTULO 1
Introdução
Glasses formed by different thermodynamic histories may have different thermodynamic properties at the same temperature and pressure. They thus may be regarded as different substances even though they have identical chemical composition.
J.E. McKinney, M. Goldstein, 1974
Quase 60 anos depois de ter sido sintetizado o primeiro vidro metálico [1], a natureza destes materiais, assim como a de outros vidros, ainda mantém-se como um problema não resolvido na física da matéria condensada e da ciência dos materiais [2, 3]. Em particular, a temperatura na qual um líquido torna-se um vidro, a temperatura de transição vítrea, 𝑇𝑔, é fortemente dependente da composição química e da taxa de
resfriamento usada para obter o vidro [4, 5], isto torna difícil uma definição acurada da transição vítrea e um único valor para 𝑇𝑔. Pelo dito anteriormente, a transição vítrea
tem ganhado a fama de ser polêmica ou mal compreendida, até mesmo levando a piadas como: "Há mais teorias sobre a transição vítrea do que teóricos que as propõem" [6]. Neste capítulo, focaremos unicamente nas interpretações cinética e termodinâmica da transição vítrea, não porque consideramos que sejam as mais importantes ou acuradas, mas porque a partir delas conduzimos as noções necessárias para apresentarmos nossos resultados originais.
1.1
A transição vítrea: uma visão cinética
Dependendo de como resfriemos um líquido nos depararemos com dois possíveis cenários. Se o resfriamento for feito lento o suficiente permitindo a nucleação acontecer, o líquido se tornará um cristal. No entanto, se evitarmos a nucleação acelerando o processo de resfriamento, o líquido não cristalizará entrando, assim, ao chamado regime
superes-Figura 1.1 – Representação esquemática do comportamento da/do entalpia/volume em função da temperatura durante o resfriamento de um líquido. Dois possíveis cenários podem acontecer quando 𝑇 = 𝑇𝑚. O sistema pode cristalizar (linha
azul) ou evitar a nucleação e continuar sendo líquido para temperaturas inferiores a 𝑇𝑚 (líquido super-resfriado).
friado.
A Figura 1.1 mostra esquematicamente o comportamento da/do entalpia/volume durante o resfriamento. Começando como um líquido em equilíbrio (bem acima da sua temperatura de fusão (𝑇𝑚)). A entalpia (O volume) diminui continuamente até 𝑇𝑚, neste
ponto o sistema pode cristalizar ou evitar a cristalização e continuar sendo líquido. Quando o segundo caso acontece dizemos que o líquido está superesfriado, i.e. o material continua sendo líquido para temperaturas inferiores à temperatura de fusão.
O tempo de relaxação estrutural 𝜏, é geralmente da ordem de 10−12𝑠 para os
líquidos [7]. Esse curto tempo na escala microscópica reflete o fato de que para tempe-raturas suficientemente altas as partículas se movimentam rapidamente e colidem entre si, levando a um movimento do tipo Browniano cujos tempos de colisão são da ordem de picosegundos. Quando o líquido entra no regime superesfriado 𝜏 cresce vertiginosamente, de modo que para uma certa temperatura 𝑇𝑔, a relaxação estrutural torna-se tão lenta que
é impossível observá-la. 𝑇𝑔 é chamada temperatura de transição vítrea e seu valor seria
dependente da taxa de resfriamento usada e da composição química do material. Assim, resfriar o líquido a diferentes taxas levará a vidros diferentes (linhas amarela e vermelha na Figura 1.1). O estado vítreo é então uma consequência da nossa incapacidade de ob-servar algum tipo de relaxação estrutural em uma escala de tempo mensurável.
A definição anterior de transição vítrea implica que se esperarmos o tempo suficiente (a idade do universo talvez) seremos capazes de observar algum tipo de relaxa-ção estrutural no vidro, i.e. o vidro "fluindo". Esta ideia foi reforçada pelo mito sobre os
vidros nas janelas das antigas catedrais medievais, das quais se dizia que eram mais largas nas partes inferiores devido a um fluxo descendente no vidro que acontecia a temperatura ambiente. Embora seja certo que, se esperarmos um tempo longo, o volume de um vidro tenderá a diminuir ao volume que teria o líquido superesfriado em um processo conhecido como "envelhecimento" (ver seta amarela na Figura 1.1), o tempo necessário para ver o vidro das catedrais antigas fluir a temperatura ambiente é da ordem de 1023 anos [8, 9],
um tempo muito maior que a idade do universo (aproximadamente 1010 anos!).
Para entender a física por trás da relaxação estrutural uma análise ao nível microscópico é necessária. A função de auto-espalhamento intermediária 𝐹 (⃗𝑞, 𝑡) carate-riza as flutuações na densidade entre as mesmas partículas de um sistema durante dois instantes de tempo diferentes [10]. Esta função é definida como:
𝐹(⃗𝑞, 𝑡) = 1 𝑁 ⟨𝑁 ∑︁ 𝑙=1 exp{−𝑖⃗𝑞 · (⃗𝑟𝑙(𝑡) − ⃗𝑟𝑙(0))} ⟩ , (1.1)
onde 𝑁 é o número de partículas no líquido, ⃗𝑞 é o vetor de onda da onda espalhada e ⃗𝑟𝑙
é o vetor posição da 𝑙-ésima partícula.
Figura 1.2 – Representação esquemática do comportamento da função auto-intermediária de espalhamento normalizada Φ = 𝐹 (⃗𝑞, 𝑡)/𝐹 (⃗𝑞, 0) (Adaptado da referência [7]).
A função 𝐹 (⃗𝑞, 𝑡) pode ser obtida experimentalmente por difração de nêutrons ou através de simulações computacionais. Na Figura 1.2 temos uma representação esque-mática do comportamento de 𝐹 (⃗𝑞, 𝑡), a linha azul representa o comportamento típico de um líquido simples acima da sua temperatura de fusão 𝑇𝑚. Para tempos muito curtos a
função 𝐹 (⃗𝑞, 𝑡) é proporcional a 𝑡2. Na teoria cinética esta dependência temporal é
carate-rística de sistemas cujas partículas não interagem entre si, e a janela de tempo na qual este comportamento é observado é chamado regime balístico. Para tempos longos as partículas colidem entre si levando a trajetórias aleatórias similares às de um movimento Browniano, portanto, 𝐹 (⃗𝑞, 𝑡) decai exponencialmente. Em contrapartida, o comportamento da função
no regime superesfriado deve-se ao drástico incremento do tempo de relaxação que se reflete em um retardamento no movimento das partículas do líquido. Para uma escala de tempo intermediária, cada partícula do líquido encontra-se "presa" devido a um conjunto de outras partículas vizinhas que impedem um longo deslocamento e, portanto, a par-tícula é obrigada a oscilar no interior de uma "gaiola" criada pelas parpar-tículas vizinhas. Este fenômeno é portanto comumente chamado de efeito gaiola. Com a diminuição da temperatura o platô no regime superesfriado permanece por tempos cada vez mais longos (notar o logaritmo na Figura 1.2), isto faz com que para valores próximos à 𝑇𝑔 o líquido
superesfriado tenha caraterísticas tipicas da fase sólida. Um exemplo disso é o chamado pico bosônico [11], um excesso de modos vibracionais a baixas frequências com relação ao modelo de Debye (𝑔(𝜔) ∼ 𝜔2), cuja intensidade dispersada se escala com a temperatura
de acordo à estatística de Bose-Einstein. A origem deste pico bosônico é bastante contro-versa [11–13], no entanto associa-se também com o "dip" que aparece em 𝐹 (⃗𝑞, 𝑡) após sair do regime balístico. Para tempos muito longos a partícula consegue escapar da "gaiola" e 𝐹 (⃗𝑞, 𝑡) começa a decair novamente. Porém, este decaimento geralmente não é de forma exponencial como no caso de altas temperaturas. Por motivos históricos o processo pelo qual as partículas "escapam" da sua gaiola é chamado relaxação-𝛼, em contrapartida à janela de tempo na qual estas permanecem dentro, chamado relaxação-𝛽.
O fato de que a relaxação-𝛼 não decaia exponencialmente mantêm-se como uma das questões mais inquietantes na física da transição vítrea e existem dois cenários fundamentalmente diferentes para explicar a origem deste fenômeno [7,14]:
(i) a relaxação é localmente exponencial, porém 𝜏 varia espacialmente, o que faz que correlações globais ou funções resposta tornem-se não exponenciais sobre médias espaciais.
(ii) a relação é complicada e inerentemente não exponencial, mesmo localmente. Experimentos e simulações sugerem que ambos mecanismos podem provavelmente acon-tecer, concluindo assim que a relaxação é espacialmente heterogênea, com regiões que se movimentam com maior ou menor velocidade que o seu valor médio. A presença de flutu-ações espaço-temporais não triviais no líquido superesfriado é chamada heterogeneidade
dinâmica [15,16].
Figura 1.3 – (Tomado da referência [14]) Mapa espacial do deslocamento das partículas na simulação de uma mistura binária de Lennard-Jones em duas dimensões. As setas mostram o deslocamento de cada partícula em uma escala de tempo comparável com 𝜏.
A Figura 1.3 mostra um mapa espacial dos deslocamentos das partículas em um líquido de Lennard-Jones binário obtidos por métodos computacionais. Este resultado, fora do alcance da maioria das técnicas experimentais para estudar líquidos, revela a exis-tência de partículas no interior do líquido com diferentes mobilidades durante a relaxação, além da presença de correlações espaciais entre as flutuações dinâmicas, confirmando sem ambiguidade a existência da heterogeneidade dinâmica.
Para quantificar quão rapidamente o tempo de relaxação aumenta com a di-minuição da temperatura quando 𝑇 → 𝑇𝑔, Angell introduziu o conceito de fragilidade do
líquido superesfriado. No entanto, medir o tempo de relaxação experimentalmente pode ser uma tarefa complicada. Felizmente, a viscosidade de cisalhamento 𝜂 apresenta um comportamento similar ao tempo de relaxação para a maior parte dos líquidos (ver Fi-gura 1.4).
Dependendo da sua fragilidade os líquidos superesfriados são classificados em duas grandes categorias. Vidros "fortes", os quais apresentam uma fraca dependência entre
𝜂 (ou 𝜏) e 𝑇 , e vidros "frágeis" que mostram um incremento muito mais rápido de 𝜂 (ou 𝜏) quando 𝑇 decresce. A Figura 1.4 mostra o comportamento do logaritmo da viscosidade
e do tempo de relaxação para diferentes materiais em função da temperatura reduzida
𝑇𝑔/𝑇, um gráfico deste tipo é comumente chamado de gráfico de Angell. O logaritmo é
Figura 1.4 – Gráfico de Angell para diferentes materiais. a) Viscosidade de cisalhamento em função da temperatura reduzida 𝑇𝑔/𝑇 (adaptado da referência [3]). b)
Tempo de relaxação em função da temperatura reduzida 𝑇𝑔/𝑇 (adaptado da
referência [14]).
de acordo com uma equação do tipo Arrhenius da forma:
𝜂= exp (︂ 𝐸 𝐴 𝑘𝐵𝑇 )︂ , (1.2)
onde 𝐸𝐴é a energia de ativação do processo de relaxação e 𝑘𝐵é a constante de Boltzmann.
Assim, 𝐸𝐴 nos líquidos fortes é um valor constante que pode ser extraído da inclinação
no gráfico de Angell. No caso de líquidos frágeis a equação (1.2) não é mais válida, refle-tindo o fato de que a energia de ativação em líquidos frágeis é fortemente dependente da temperatura. Como a energia de ativação deverá estar relacionada de algum modo com as propriedades estruturais do líquido, a correspondente estrutura dos líquidos fortes é independente da temperatura, i.e. são mais estáveis, mais "fortes", que aqueles para os quais a estrutura pode variar com a temperatura, "frágeis".
Um ponto que será discutido no capítulo seguinte (ou no Apêndice B) mas vale a pena mencionar aqui, é a limitação computacional no momento de calcular 𝜂 ou 𝜏, como é indicado pela linha horizontal tracejada na Figura 1.4. Com os recursos computacionais atuais apenas é possível obter valores para 𝜂 ou 𝜏/𝜏0 da ordem de ∼ 104 poise, e ∼ 107,
respectivamente.
Finalmente, usando a viscosidade ao invés do tempo de relaxação a transição vítrea pode ser definida como o valor no qual a viscosidade do líquido superesfriado atinge um valor de 1013 poise.
1.2
A transição vítrea: uma visão termodinâmica
Se analisarmos novamente a Figura 1.1 veremos que a transição vítrea acontece de maneira contínua, i.e. não há nenhuma liberação de calor (entalpia de transformação)
durante a vitrificação. De acordo com a definição moderna de transições de fase [17, 18], seremos tentados a pensar que a transição vítrea é uma transição de fase de segunda ordem. No entanto, ao fazer uma análise mais cuidadosa dos resultados experimentais observamos que:
i) a entropia 𝑆 deve ser contínua durante a transição (pois estamos supondo uma transição de segunda ordem), assim a entropia do líquido deve ser igual à entropia do vidro e portanto, para mudanças na temperatura ou na pressão, deve-se manter a condição 𝑑𝑆𝑔 = 𝑑𝑆𝑙. Usando a identidade anterior e as relações termodinâmicas
de Maxwell chegamos às equações [19]:
𝑑𝑇𝑔 𝑑𝑝 = 𝑇 𝑉 Δ𝛼𝑇 Δ𝐶𝑝 , (1.3) 𝑑𝑇𝑔 𝑑𝑝 = Δ𝜅𝑇 Δ𝛼𝑇 , (1.4)
onde Δ𝐶𝑝, Δ𝛼𝑇 e Δ𝜅𝑇 são as diferenças na capacidade calorífica, na expansibilidade
e na compressibilidade isotérmicas antes de depois da transição vítrea, respectiva-mente. Experimentalmente é observado que a equação (1.3) é sempre válida, embora o termo Δ𝜅𝑇/Δ𝛼𝑇 na equação (1.4) é maior que 𝑑𝑇𝑔/𝑑𝑝.
ii) nas transições de fase (de primeira ou segunda ordem) a temperatura de transição é uma quantidade bem definida e independente de fatores cinéticos. No entanto, sabe-se que diferentes taxas de resfriamento levam a diferentes valores de 𝑇𝑔.
iii) nas transições de fase de segunda ordem, o parâmetro de ordem apresenta um au-mento significativo no tempo de relaxação até o equilíbrio quando é submetido a uma perturbação perto do ponto crítico, este fenômeno é conhecido como decres-cimento crítico lento ("critical slowing down"). Como vimos na seção anterior, na transição vítrea também acontece o fenômeno de decrescimento crítico lento, con-tudo, o intervalo de temperaturas no qual o fenômeno acontece é quase 100 vezes maior que no caso das transições de segunda ordem [7].
A Figura 1.5a mostra a variação da capacidade calorífica de um material orgânico quando este é resfriado a três taxas de resfriamento diferentes. Cada um dos resfriamentos mu-dam o valor de 𝑇𝑔, assim como a altura e posição do pico em 𝐶𝑝. Além da impossibilidade
de estabelecer um único valor para a temperatura de transição vítrea, há um problema ainda maior quando tentamos comparar este fenômeno com outras transformações de fase encontradas na termodinâmica. O cerne do problema é ilustrado na Figura 1.5b. Como mencionamos anteriormente, na transição vítrea acontece um decrescimento crítico lento quando o líquido entra no regime super-resfriado (o tempo de relaxação cresce em quase
Figura 1.5 – a)(Adaptado da referência [20] e as referências aí contidas) Comportamento da capacidade calorífica em função da taxa de resfriamento para um vidro orgânico. b) (Retirado da referência [21]) Duas configurações de um sistema bidimensional para 𝑇 ≫ 𝑇𝑔 e 𝑇 ∼ 𝑇𝑔.
12 ordens de grandeza). A Figura 1.5b mostra duas configurações de um líquido bidimen-sional. Do lado esquerdo o sistema se encontra bem acima da sua temperatura de fusão. Do lado direito temos a estrutura do mesmo sistema, mas agora próximo da temperatura de transição vítrea. Como esperado o tempo de relaxação dos dois sistemas difere por um fator de 1012. Contudo, as duas configurações são bastante similares!!!. Em
termodi-nâmica quando uma transição de fase acontece, esta vem acompanhada de algum tipo de mudança estrutural e alguma forma de ordem aparece no sistema, seja esta cristalino, nemático, ferromagnético, etc. No entanto, a identificação de alguma grandeza física que permita distinguir entre as duas configurações da Figura 1.5b é ainda uma questão em aberto.
A solução ao problema anterior parece encontrar-se na entropia, mais exata-mente na diferença de entropia entre o material nas fases líquida e cristalina, o chamado excesso de entropia. Na temperatura de fusão 𝑇𝑚, a entropia do líquido é maior que a
entropia do cristal, portanto, Δ𝑆 = 𝑆𝑙𝑖𝑞− 𝑆𝑐𝑟𝑦𝑠é uma grandeza positiva. No entanto, com
a diminuição da temperatura o valor de Δ𝑆 vai se tornando cada vez menor, até chegar a zero a uma temperatura finita, o que implicaria que a entropia do líquido seria menor que a entropia do cristal, a fase estável para 𝑇 < 𝑇𝑚. O cenário descrito anteriormente
nunca acontece, porque antes disso acontecer a transição vítrea intervém e Δ𝑆 para de diminuir e se mantêm em um valor praticamente constante.
A Figura 1.6 descreve esquematicamente as ideias descritas anteriormente. A temperatura na qual Δ𝑆 seria nula é chamada temperatura de Kauzmann 𝑇𝐾 [22]. O fato
de existir um decrescimento crítico lento durante o regime super-resfriado que se acentua quando a temperatura diminui permite separar o excesso de entropia em duas partes. Para temperaturas suficientemente baixas (𝑇𝑔 < 𝑇 ≪ 𝑇𝑚) e intervalos de tempo curtos, o
mo-vimento das partículas é inteiramente vibracional (relaxação-𝛽), e só para tempos muito longos começa a acontecer a relaxação dinâmica (relaxação-𝛼), assim podemos dividir as
Figura 1.6 – Representação esquemática do comportamento de Δ𝑆 com a diminuição da temperatura. A linha amarela indica o comportamento que o líquido teria se a transição vítrea não acontecesse.
contribuições da entropia em:
∙ uma parte vibracional 𝑆𝑣𝑖𝑏, que inclui os efeitos harmônicos e anarmônicos que
acontecem dentro da "gaiola" durante a relaxação-𝛽.
∙ uma parte configuracional 𝑆𝑐𝑜𝑛𝑓 devida à relaxação-𝛼, i.e. o movimento que as
partí-culas realizam ao sair da gaiola e portanto permite ao líquido fluir, atingindo assim outras configurações acessíveis.
De maneira geral espera-se que a parte vibracional do líquido super-resfriado (vidro)
𝑆𝑣𝑖𝑏, seja parecida com 𝑆𝑐𝑟𝑦𝑠, a qual é unicamente vibracional (as partículas estão presas
em pontos fixos da rede cristalina e apenas podem oscilar em torno da sua posição de equilíbrio). Portanto Δ𝑆 pode ser usado como uma boa estimativa de 𝑆𝑐𝑜𝑛𝑓.
Para entender como a entropia configuracional pode ser usada como a grandeza fundamental para caraterizar o decrescimento crítico lento e, portanto, a transição do líquido super-resfriado ao vidro, a noção de paisagem de energia (PES, do inglês "potential
energy landscape") é muito útil. A PES é uma forma elegante de descrever a energia
potencial do sistema em função de todos os seus graus de liberdade. Portanto, é uma hipersuperfície de 3𝑁 + 1 dimensões, onde 𝑁 é o número de partículas do sistema [23]. Nesta interpretação cada possível vidro em que o líquido pode se tornar é representado por um mínimo local na PES, que nesta interpretação são chamados estruturas inerentes e a fase cristalina é o mínimo global. O conjunto de pontos que levam a uma estrutura inerente são chamados bacias e um conjunto de bacias próximas são chamadas metabacias. As relaxações 𝛼 e 𝛽 são entendidas no contexto da PES da seguinte maneira:
Figura 1.7 – (Adaptado da referência [23]) Representação simplificada da superfície de energia potencial, assim como as relaxações 𝛼 e 𝛽 dentro deste contexto.
O ponto agora é como uma quantidade puramente termodinâmica pode ser usada para descrever o decrescimento crítico lento e portanto a transição vítrea? Fenôme-nos que são aparentemente inteiramente cinéticos [21]. Embora isto ainda seja um tópico em aberto entre os cientistas que trabalham com a transição vítrea [24,25], a ideia central é a seguinte: quando o líquido entra no regime super-resfriado o número de estruturas inerentes que o vidro pode acessar vai se tornando cada vez menor e para valores próxi-mos da transição vítrea apenas relaxações 𝛽 são permitidas acontecer. Se definipróxi-mos por Ω𝐼𝑆 o número de estruturas inerentes accessíveis ao líquido, a entropia configuracional é
definida então como:
𝑆𝑐𝑜𝑛𝑓 = 𝑘𝐵ln Ω𝐼𝑆, (1.5)
assim, quando Ω𝐼𝑆 → 1, 𝑆𝑐𝑜𝑛𝑓 → 0. No entanto, antes disso acontecer a transição vítrea
intervém e o sistema é "congelado" em uma estrutura inerente com energia específica 𝐸𝐼𝑆.
Contudo a superfície de energia potencial é composta por um mar de estruturas inerentes e todas as que possuem uma energia igual a 𝐸𝐼𝑆 contribuem ao valor de Ω𝐼𝑆 que agora
será constante devido ao congelamento das partículas no estado vítreo. Assim, quando o líquido super-resfriado torna-se um vidro 𝑆𝑐𝑜𝑛𝑓 para de diminuir, atingido um valor
constante, mesmo a 𝑇 = 0 K.
da termodinâmica. A entropia do cristal 𝑆𝑐𝑟𝑦𝑠 → 0 quando 𝑇 → 0 enquanto a do vidro
atingiria um valor negativo (∀𝑇 < 𝑇𝐾). Uma entropia negativa não estaria de acordo
com a definição estatística 𝑆 = 𝑘𝐵ln Ω, sendo Ω o número de microestados accessíveis ao
sistema. Esta aparente contradição é comumente chamada paradoxo de Kauzmann [3,22]. A solução desse paradoxo é a existência de uma autêntica transição termodinâmica em
𝑇𝐾, na qual 𝑆𝑒𝑥𝑐 = 0 e o líquido é congelado numa única estrutura amorfa chamada
de vidro ideal. Na linguagem da PES, esta transição representaria o mínimo local com energia mais baixa fazendo Ω𝐼𝑆 = 1. Esta transição ao vidro ideal jamais acontece porque
o líquido sempre fica preso em algum outro mínimo local maior. Portanto, o vidro ideal é visto como o limitante inferior da transição vítrea.
1.3
Um tipo particular de vidros: Bulk Metallic
Glasses (BMG)
Chegando a este ponto, ainda temos uma questão sem responder: o quão rá-pido deve ser resfriado um líquido para evitar a cristalização? A princípio, pelo menos teoricamente, é possível vitrificar qualquer material resfriando-o rápido o suficiente para evitar a nucleação. Contudo, as taxas de resfriamento reais (experimentais) são limitadas. Atualmente é possível resfriar um líquido com taxas de resfriamento da ordem de 107s [26],
o problema é, todavia, que muitos materiais, principalmente metais puros, ainda cristali-zam com taxas dessa ordem. Por esta razão até há aproximadamente 60 anos a ideia de um vidro metálico era impensável. O grande avanço no estudo de vidros formados a partir de metais aconteceu com a descoberta de certas ligas que possuem uma alta capacidade de formar vidros. Tais ligas levaram ao rápido crescimento de uma nova classe de materiais conhecidos como vidros metálicos ou Bulk Metallic Glasses (BMG) em inglês.
A formação de um vidro pode ser vista como uma competição entre o tempo de relaxação estrutural do sistema e o tempo necessário para formar núcleos cristalinos no líquido (nucleação) [20,27]. Para líquidos de compostos orgânicos ou óxidos a corrida con-tra a cristalização é facilmente vencida. Nesses sistemas os átomos além do ordenamento translacional na rede cristalina, precisam se alinhar em direções particulares com respeito aos átomos vizinhos. O ordenamento coletivo acontece lentamente, e taxas de resfriamento moderadas evitam a cristalização. A capacidade que possui um material para formar um vidro (GFA, do inglês Glass Forming Ability), depende da taxa de resfriamento usada e a composição do material. A GFA pode ser estudada a partir do diagrama de transformação temperatura tempo (comumente chamado curva TTT), o qual contém toda a informação necessária para prever a capacidade que tem um material para formar um vidro [20,27].
Figura 1.8 – (Adaptado da referência [27]) Representação simplificada da curva TTT. As curvas laranja, vermelha e verde são respectivamente as curvas de cristaliza-ção para metais puros, ligas simples e BMG. 𝑇𝑚 e 𝑇𝑔 são respectivamente,
as temperaturas de fusão e transição vítrea respetivamente.
A curva TTT na figura 3 mostra que a quantidade de tempo que um líquido possui na fase super-resfriada sem cristalizar, desde 𝑇𝑚 até 𝑇𝑔, depende da taxa de
res-friamento e da composição do material. Para formar um vidro, um líquido tem que ser resfriado rápido o suficiente de modo que sua curva de resfriamento não atinja a curva de cristalização. As curvas 𝑅1 e 𝑅2 são duas possíveis taxas de resfriamento para um metal
puro. A rapidez de resfriamento da curva 𝑅1resultará numa cristalização, embora a curva
de resfriamento 𝑅2 formará um vidro. A taxa de resfriamento crítico de uma liga metálica
formadora de vidro (BMG) é de aproximadamente 10 ordens de grandeza maior que a de um metal puro!!!
1.4
Objetivos
Na primeira parte desta tese, apresentamos evidências computacionais de um
"crossover" frágil-forte de três ligas metálicas formadoras de vidros (MGFL, do inglês "Me-tallic glass-forming liquids") cuja composição geral é Cu𝑥Zr𝑥Al2𝑥−100, com 𝑥 = 50, 49, 46.
Escolhemos este tipo de ligas porque se trata de um modelo ideal, muito utilizado para explorar as propriedades dos vidros metálicos [29–35,46]. Sabe-se que uma pequena por-centagem de alumínio aumenta o índice de fragilidade e a temperatura de transição vítrea, permitindo a exploração de mudanças nas propriedades dinâmicas através de simulações de dinâmica molecular [36]. O FSC em ligas Cu-Zr-Al foi verificado experimentalmente e sugerido por simulações computacionais [30, 31, 46]. Contudo, os estudos experimen-tais anteriores baseiam-se em valores de viscosidade obtidos a altas temperaturas quando ainda não houve a aparição da heterogeneidade dinâmica e, portanto, o valor de 𝑇𝑓 𝑠
estudo computacional que confirme a existência do FSC nos MGFL de Cu-Zr-Al, mos-trando diretamente a alteração do comportamento de não-Arrhenius para Arrhenius nem no coeficiente de difusão nem na viscosidade de cisalhamento. Com base nisto, encaminha-mos nossas simulações sobre as provas de FSC em vidros metálicos através de simulações computacionais. Para tal fim, calculamos a dependência do coeficiente de difusão, da den-sidade de estados vibracional e da viscoden-sidade de cisalhamento nos MGFL de CuZrAl, utilizando um "Embedded atom potential" (EAM) potencial desenvolvido por Cheng et al [53].
Os resultados obtidos são apresentados no capítulo dois da seguinte maneira: a primeira seção descreve os métodos computacionais empregados para o cálculo das propri-edades termodinâmicas e dinâmicas das ligas; os resultados e a discussão são apresentados na segunda seção; e, finalmente, a última seção transmite as nossas conclusões.
Na segunda parte desta tese, aplicamos uma eficiente metodologia baseada em métodos fora do equilíbrio para separar as entropias vibracional e configuracional de uma liga binária de Cu50Zr50e uma ternária de Cu46Zr46Al8, através de simulações de dinâmica
molecular. Recentemente, a contribuição da entropia vibracional destas ligas foi obtida experimentalmente utilizando medições "in situ" dos espectros vibracionais permitindo a separação das contribuições vibracional e configuracional da entropia nestas ligas. Assim, o objetivo desta segunda parte é empregar uma metodologia puramente termodinâmica para calcular a entropia. A nossa metodologia computacional é aplicada para calcular e dividir a entropia dos BMG em contribuições configuracionais e vibracionais usando um potencial interatômico realista.
Vitrification of liquids ... turns out to be a relaxation process and obeys kinetic rather than thermodynamic laws ... At vitrification the structure of the substances freezes in under conditions where molecular rearrangements are so slow that a change of structure cannot keep up with changes in external parameters.
M.V. Vol’kenshtejn, O.B. Ptitsyn, 1956
A esmagadora maioria de vidros formados por elementos não metálicos pre-cisam apenas de um único índice de fragilidade para descrever o intervalo inteiro de temperaturas no qual o líquido encontra-se no regime super-resfriado. No entanto, alguns sistemas, tais como água [38, 39], sílica [40, 41], BeF2 [42], e composições específicas de
ítria-alumínio [43] e trifenil-fosfato [44], não se encaixam em nenhuma das duas categorias. Estes sistemas apresentam índices de fragilidade diferentes em altas e baixas temperaturas. Tais líquidos apresentam um crossover dinâmico, começando com um comportamento frá-gil e tornando-se um líquido forte na vizinhança de 𝑇𝑔. Ademais, esse crossover frágil-forte
(FSC) parece ser uma propriedade geral de ligas metálicas formadoras de vidro [45,46]. Visando entender as razões desse crossover, várias teorias têm sido propostas. Uma expli-cação da transição vítrea baseada em ondas elásticas em líquidos [69] prediz que o FSC no regime super-resfriado na vizinhança de 𝑇𝑔 é uma consequência de eventos de relaxação
local em todo o sistema produzindo assim uma energia de ativação independente da tem-peratura. Outra tentativa para descrever o FSC é baseada na extensão da teoria de modos acoplados [48] ( MCT da sigla em inglês: Mode coupling theory). Nessa teoria, o coefici-ente de difusão e o tempo de relaxação mudam seu comportamento de frágil para forte próximo à temperatura crítica 𝑇𝑐, definida na teoria original do MCT. Trabalhos
compu-tacionais e experimentais têm sido desenvolvidos simultaneamente para testar ou validar as teorias sobre o FSC. Chen. et al. [39] encontraram um FSC em água super-resfriada estudando o comportamento térmico do inverso do coeficiente de autodifusão e o tempo de relaxação translacional médio. Zhou et al. [46] propuseram uma relação aproximada para
a temperatura do crossover 𝑇𝑓 𝑠 ≈ 1.36𝑇 𝑔 baseados nos resultados experimentais de 98
líquidos formadores de vidros. O FSC foi observado experimentalmente em ligas metálicas baseadas em Zircônio [29,46] e mais recentemente em ligas a base de ferro [49]. Contudo, apesar da variedade de teorias e experimentos realizados para entender as razões por trás do FSC, suas origens ainda não são bem entendidas.
Estudos recentes apontam à aparição de dois crossovers em ligas metálicas formadoras de vidros quando o líquido é resfriado para obter o vidro. O primeiro acorre na vizinhança do regime super-resfriado e é associado com o começo da heterogeneidade dinâmica [50,51]. Durante esse crossover, as propriedades de transporte desviam-se de um comportamento tipo Arrhenius (forte) para um comportamento não-Arrhenius (frágil). O segundo
cros-sover é o FSC, que ocorre na vizinhança de 𝑇𝑔. Neste capítulo, apresentamos evidências
computacionais destes dois crossovers através de simulações computacionais para três ligas metálicas de Cu-Zr-Al.
2.1
Metodologia
As simulações computacionais foram feitas usando o código computacional LAMPPS de dinâmica molecular, que é um software livre [52]. Primeiramente, começamos com uma liga binária de Cu-Zr, composta por 4000 átomos (2000 Cu e 2000 Zr) em uma caixa cúbica sujeita a condições periódicas de contorno nas três dimensões. Um potencial do tipo Embedded-atom (EAM) foi usado para descrever as interações interatômicas [53, 54]. Logo após o líquido ser equilibrado a 2000 K, é resfriado até 300 K usando uma taxa de resfriamento fixa de 100 K/ns. O resfriamento foi realizado no ensemble isobárico-isotérmico (NPT) com pressão externa zero. As equações de Nosé-Hoover foram integradas usando um passo de tempo de 2 fs, com parâmetros de amortecimento para a temperatura e a pressão de 200fs e 5ps, respectivamente. Durante o processo de resfriamento, várias configurações foram armazenadas com a intenção de obter as propriedades dinâmicas e termodinâmicas, as quais foram determinadas através de simulações de equilíbrio. As funções de correlação foram calculadas no ensemble canônico (NVT).
Simulações similares foram realizadas nas duas ligas ternárias (𝑥 = 46, 49) e analisamos o comportamento da viscosidade, o coeficiente de difusão e a densidade de estados vibracional quando a porcentagem de alumínio aumenta.
2.1.1 Estimando a temperatura de transição vítrea
Quando o resfriamento foi realizado, as configurações atômicas foram salvas a cada 50 K, isto foi feito para extrair informações termodinâmicas durante o processo
Figura 2.1 – a) Entalpia por átomo de uma liga binária de Cu50Zr50 e uma ternária de
Cu46Zr46Al8 como função da temperatura extraídas de simulações de
dinâ-mica molecular no equilíbrio. Dois ajustes foram usados para estimar a tem-peratura de transição vítrea. b) Comportamento da capacidade calorífica isobárica 𝐶𝑝 para as mesmas ligas
de resfriamento. Estas configurações foram usadas como condições iniciais para realizar simulações de equilíbrio. Após a termalização, as propriedades termodinâmicas foram determinadas de simulações de equilíbrio usando 106 passos de tempo. O comportamento
da entalpia e da capacidade calorífica como função da temperatura para a liga binária de Cu50Zr50 e a ternária de Cu46Zr46Al8 são apresentados na Figura 2.1a. A capacidade
calorifica isobárica 𝐶𝑝 definida como:
𝐶𝑝= (︃ 𝜕𝐻 𝜕𝑇 )︃ 𝑝 , (2.1)
Junto com as relações de Kubawaschewski [55]:
𝐶𝑝= 3𝑘𝐵+ 𝑎𝑇 + 𝑏𝑇2 (2.2)
e
𝐶𝑝 = 3𝑘𝐵+ 𝑐𝑇 +
𝑑
𝑇2, (2.3)
foram usadas para obter a temperatura de transição vítrea 𝑇𝑔. As equações (2.2) e (2.3)
descrevem o comportamento do sólido e do líquido respectivamente. Para obter o valor de 𝑇𝑔, integramos as equações (2.2) e (2.3) para obter a forma funcional da entalpia dos
dois estados. A linha magenta na Figura 2.1a é obtida ajustando os valores para a fase lí-quida com a equação (2.3), no intervalo de 1400-900 K, enquanto a linha amarela é obtida ajustando os dados pra a fase sólida na equação (2.2). No intervalo de temperaturas de 500-300 K. Os valores estimados para 𝑇𝑔 são aproximadamente 623 K para a liga binária
e 713 K para a liga ternária de Cu46Zr46Al8, estes valores foram obtidos través do
cruza-mento das duas curvas do ajuste. O valor estimado para 𝑇𝑔 concorda bastante bem com
resultados anteriores obtidos através de experimento ou cálculos computacionais em ligas de CuZr(Al). Um pico na capacidade calorífica marca o início da transição vítrea. O valor
(aproximado) de 𝑇𝑔encontra-se em algum valor intermediário entre o pico que aparece em
𝐶𝑝 e a temperatura na qual o valor se torna quase constante novamente (região amarela
na Figura 2.1b).
Um procedimento similar foi empregado para obter a 𝑇𝑔 da liga ternária de Cu49Zr49Al2
obtendo 𝑇𝑔 ≈ 632 K; omitimos este resultado para evitar repetição. Na tabela 2.1 são
apresentados os valores de 𝑇𝑔 estimados, comparados com os obtidos através do
experi-mento na referência [46].
Tabela 2.1 – Temperatura de transição vítrea 𝑇𝑔 obtida através das equações (2.2) e (2.3),
comparadas com os resultados experimentais da referência [46] para três ligas cuja composição é CuxZrxAl100−2x alloys (𝑥 = 50, 49, 46)
Liga 𝑇𝑔 (K) 𝑇𝑔 (K) (Ref. [46])
Cu50Zr50 623 664
Cu49Zr49Al2 632 674
Cu46Zr46Al8 713 701
2.1.2 Propriedades dinâmicas
A fim de evidenciar o FSC, foram estudadas três propriedades dinâmicas: o coeficiente de difusão, a densidade de estados vibracionais, e a viscosidade de cisalhamento das ligas de Cu𝑥Zr𝑥Al100−2𝑥.
Primeiramente, o coeficiente de difusão foi computado através do deslocamento quadrático médio (MSD, do "inglês mean squared displacement") para cada átomo:
⟨𝑟2(𝑡)⟩ = 𝑁1 ⟨𝑁 ∑︁ 𝑙=1 |𝑟𝑙(𝑡) − 𝑟𝑙(0)|2 ⟩ , (2.4)
onde 𝑟𝑙(𝑡) é o vetor de posição da 𝑙-ésima partícula no tempo 𝑡. Para tempos longos,
as partículas estão no regime difusivo, e o MSD é linearmente dependente do tempo. Consequentemente, a difusão pode ser calculada pela equação:
𝐷= lim
𝑡→∞
1
6𝑡⟨|𝑟𝑖(𝑡) − 𝑟𝑖(0)|2⟩. (2.5)
Trabalhos anteriores, reportam um excesso de modos na densidade de estados vibracional (DDEV) de baixas frequências com relação ao modelo de Debye. Este excesso de modos é característico de líquidos fortes e sua aparição para baixas temperaturas reafirma a existência de um FSC [56, 57]. A DDEV é obtida através da transformada de Fourier da função de correlação normalizada das velocidades
𝑔(𝜔) = 1 𝑁 𝑁 ∑︁ 𝑙=1 ∫︁ ∞ −∞ ⟨⃗𝑣𝑙(𝑡) · ⃗𝑣𝑙(0)⟩ ⟨⃗𝑣𝑙(0) · ⃗𝑣𝑙(0)⟩ 𝑒𝑖𝜔𝑡𝑑𝑡, (2.6)
fazer uma média das três componentes anteriores, além de incluir na média mais duas componentesAPÊNDICE: 1 2(𝑃𝑥𝑥− 𝑃𝑦𝑦) and 1 2(𝑃𝑦𝑦− 𝑃𝑧𝑧),
portanto, cinco componentes são usadas para calcular a viscosidade.
Como veremos depois, a temperatura do crossover 𝑇𝑓 𝑠 é maior quando a
por-centagem de alumínio aumenta, isto permite explorar o comportamento da viscosidade na liga ternária de Cu46Zr46Al8 a temperaturas nas quais o FSC pode ser evidenciado.
Infelizmente não conseguimos observar o FSC na ligas binária de Cu50Zr50 e ternária de
Cu49Zr49Al2 devido ao alto custo de calcular a viscosidade para temperaturas próximas a
transição vítrea.
2.2
Resultados
Figura 2.2 – Inverso do coeficiente de difusão para as três ligas: (a) Cu50Zr50, (b)
Cu49Zr49Al2 e (c) Cu46Zr46Al8. A linha vermelha indica o ajuste feito com a
equação VFT e a linha azul o ajuste usando uma equação tipo Arrhenius. A região amarela indica o valor aproximado de 𝑇𝑓 𝑠.
Na Figura 2.2 apresentamos o inverso do coeficiente de difusão (ID) como função do inverso da temperatura para as três ligas, calculadas usando a equação (2.5). Observamos uma mudança no comportamento do ID para temperaturas próximas à tran-sição vítrea nas três ligas. No entanto, essa mudança de comportamento é deslocada a
temperaturas maiores quando a porcentagem de alumínio aumenta. Isto deve-se ao fato de que os BMG são fortemente dependentes da composição [29,45]. A mudança no com-portamento do ID pode ser associada com a existência de um FSC em um certo valor de temperatura 𝑇𝑓 𝑠, onde o crossover acontece. Para estimar o valor da 𝑇𝑓 𝑠 nas ligas,
usamos duas equações para ajustar os nossos resultados. Para altas temperaturas usamos a equação de Vogel-Fulcher-Tamman (VFT) [61–63] 𝐷= 𝐷0exp (︂ −𝑇 𝐴 − 𝑇0 )︂ , (2.8)
onde 𝐴 é um parâmetro que indica o quanto a difusão diverge do comportamento Arrhe-nius quando a temperatura diminui, 𝑇0é a temperatura na qual o ID diverge, e o fator 𝐷0
é o coeficiente de difusão extrapolado para temperatura infinita. Estudos anteriores base-ados em ligas de CuZr(Al) revelam um desacoplamento acontecendo a uma temperatura
𝑇𝐴 = 1200 K [32, 34]. Este desacoplamento é associado ao começo da heterogeneidade
dinâmica. Para temperaturas maiores que 𝑇𝐴, a liga apresenta um comportamento não
Arrhenius, assim, como nosso objetivo é identificar o FSC o ajuste dos dados usando a equação do VFT foi para valores de temperatura menores a 𝑇𝐴.
A linha vermelha na Figura 2.2 é o ajuste obtido usando a equação do VFT. Para baixas temperaturas, próximas a 𝑇𝑔, os valores obtidos para o ID não são bem ajustados pela
equação (2.8). Para esta região, é mais apropriado ajustar os dados com uma equação do tipo Arrhenius: 𝐷= 𝐷𝐴exp (︂ −𝑘𝐸𝐴 𝐵𝑇 )︂ , (2.9)
onde 𝐸𝐴é a energia de ativação constante, caraterística de um líquido forte [3,64]. A linha
azul na Figura 2.2 é o ajuste feito usando a equação (2.9). A temperatura do crossover 𝑇𝑓 𝑠,
acontece quando a contribuição das regiões frágil e forte possuem o mesmo comportamento dinâmico, isto é, a temperatura na qual os valores para o coeficiente de difusão calculado pelas equações (2.8) e (2.9) são iguais. Para a liga binária de Cu50Zr50 o FSC ocorre a
730 K. Por outro lado, para as ligas ternárias de Cu49Zr49Al2 e Cu46Zr46Al8 o FSC ocorre
a 774 e 797 K, respectivamente, sugerindo uma relação entre a temperatura de transição vítrea e o FSC [65]. Na Tabela 2.2 são apresentados os parâmetros obtidos do ajuste e a temperatura do crossover para as três ligas.
Tabela 2.2 – Parâmetros do ajuste para as equações de VFT e Arrhenius, e a temperatura do transição frágil-forte 𝑇𝑓 𝑠 para as três ligas de CuZr(Al).
Alloy 𝐷0(𝑚2/𝑠) × 10−8 𝐴 𝑇0(K) 𝐷𝐴(𝑚2/𝑠) × 10−3 𝐸𝐴(eV) 𝑇𝑓 𝑠(K) 𝑇𝑓 𝑠(K) (Ref [46])
Cu50Zr50 2.36 1333.35 571 49.23 1.44 730 989
Cu49Zr49Al2 1.98 1232.81 623 1.12 1.27 774 1047
Cu46Zr46Al8 2.31 1272.53 650 417 1.11 797 1059
principal razão do porque os valores experimentais de 𝑇𝑓 𝑠 são significativamente maiores
que os nossos, para ligas metálicas baseadas em CuZr(Al). Seguindo as ideias de um trabalho recentemente publicado sobre efeitos de tamanho finito no FSC em ligas de CuZrAl [67] analisaremos na continuação os efeitos de tamanho. A Figura 2.3 mostra o inverso do coeficiente de difusão como função da temperatura para a liga ternária de Cu46Zr46Al8, calculado usando duas super-células uma com 𝑁 = 4000 átomos com a qual
realizamos todos os cálculos deste capítulo e outra com 𝑁 = 8000 átomos para mostrar que nossos resultados não são afetados pelo incremento de tamanho. Como apontado por Sukhomlinov e Müser no seu trabalho, o efeito de tamanho diminui com o aumento de N, sendo esta a razão pela qual para 𝑇 < 𝑇𝑓 𝑠 as flutuações no inverso do coeficiente de
difusão são menores quando 𝑁 = 4000 do que 𝑁 = 8000.
Figura 2.3 – Inverso do coeficiente de difusão em função da temperatura para a liga ternária de Cu46Zr46Al8 para células de simulação de N = 4000 átomos e N
= 8000 átomos. Do gráfico podemos notar que os valores de 𝑇𝑓 𝑠 permanecem
inalterados.
2.2.1 Densidade de estados vibracionais
Os vidros apresentam um excesso de modos vibracionais na sua DDEV com-parados com a lei de Debye [𝑔(𝜔) ∼ 𝜔2] a baixas temperaturas [68]. Este excesso aparece
pico bosônico (PB) [69–71]. Estudos prévios do PB mostram que o excesso na DDEVr é mais pronunciado em líquidos fortes que nos frágeis. Portanto, usamos como critério do FSC um PB pronunciado a baixas temperaturas caraterístico de líquidos fortes [72].
A DDEVr junto com a DDEV para a liga de Cu50Zr50obtidas usando a equação
(2.6) são apresentadas na Figura 2.4. Para temperaturas acima de 1000 K a DDEVr dimi-nui monotonicamente com o incremento de 𝜔. No entanto, como mostramos previamente no comportamento do ID, o FSC não acontece nesta temperatura e o PB só aparece como um fraco desvio da lei de Debye. Porém, para aproximadamente 1.7 𝑇 𝐻𝑧, acontece uma mudança apreciável no comportamento da DDEVr, a qual pode ser associado com o FSC no intervalo de 750-700 K. Este resultado é consistente com a temperatura de "crossover"
𝑇𝑓 𝑠 obtida anteriormente do ID para a mesma liga.
Figura 2.4 – DDEV e DDVr ("inset") da liga Cu50Zr50 em função da frequência angular
para diferentes temperaturas. um pico bosônico aparece para temperaturas inferiores a 750 K, para a aproximadamente 1,2 THz.
Na Figura 2.5 apresentamos a DDEVr e DDEV para as ligas ternárias de Cu𝑥Zr𝑥Al100−2𝑥, 𝑥 = 49, 46. Com o aumento de alumínio o PB começa a aparecer a
tem-peraturas maiores, de novo este resultado concorda com nosso cálculo do ID no qual a temperatura de "crossover" 𝑇𝑓 𝑠 é deslocada a valores de temperatura mais altas quando
a porcentagem de alumínio é maior.
A fim de fornecer uma prova adicional do FSC, na seguinte seção analisaremos a viscosidade de cisalhamento da liga ternária de Cu49Zr49Al8 na próxima subseção.
2.2.2 Viscosidade de cisalhamento
Para calcular a viscosidade de cisalhamento usamos a Equação (2.7), a mé-dia da função de autocorrelação (𝐶𝑝𝑝) das cinco componentes do tensor das tensões
𝑃𝛼𝛾(𝑡)𝑃𝛼𝛾(0) deve ser calculada e integrada ao longo de toda a história do sistema.
Figura 2.5 – rVDOS e VDOS ("inset") da liga a) Cu49Zr49Al2e b) Cu49Zr49Al8em função
da frequência angular para diferentes temperaturas.
liga ternária de Cu46Zr46Al8. Para temperaturas inferiores a 1300 K, a 𝐶𝑝𝑝 mostra uma
vertiginosa desaceleração na dinâmica de relaxação, isto se deve ao início da heterogenei-dade dinâmica que ocorre na temperatura característica 𝑇𝐴, que se encontra no intervalo
1000-1300 K para as ligas metálicas CuZr(Al) [32,34].
Figura 2.6 – (a) Função de autocorrelação média 𝐶𝑝𝑝em função do tempo e (b) logaritmo
da viscosidade de cisalhamento em função da temperatura reduzida 𝑇𝑔/𝑇
para a liga ternária de Cu46Zr46Al8. 𝐶𝑝𝑝mostra uma diminuição na dinâmica
de relaxação para temperaturas abaixo de 1200 K. Três regimes estão bem definidos no comportamento da viscosidade, mostrando os dois "crossovers" típicos em líquidos super-resfriados.
Para temperaturas inferiores a 790 K, a 𝐶𝑝𝑝 não descorrelaciona para 𝑡 = 5𝑛𝑠,
o que gera um custo computacional proibitivo para cálculos confiáveis da viscosidade nes-tas temperaturas. No caso das ligas de Cu50Zr50 e Cu49Zr49Al2, não foi possível calcular
a 𝐶𝑝𝑝 para temperaturas em que o FSC pudesse ser observado. O motivo pelo qual isso
acontece foi explicado por Cheng et al. [36] através das diferenças entre as ligas binárias e ternárias no que diz respeito ao desenvolvimento de clusters icosaédricos à medida que seus respectivos líquidos são resfriados. Ao comparar o tempo da relaxação-𝛼, o qual es-cala com a viscosidade, para ligas de CuZr e CuZrAl, Cheng et al. concluíram que o 𝜏𝛼da
liga ternária é pelo menos uma ordem de magnitude maior do que a da liga binária. Esta é a razão pela qual no nosso caso só conseguimos observar o FSC para a liga ternária de Cu46Zr46Al8já que o 𝑇𝑓 𝑠 é deslocado para temperaturas mais altas quando a porcentagem
de Al aumenta.
O comportamento do logaritmo da viscosidade de cisalhamento como função da temperatura reduzida (𝑇/𝑇𝑔) é exibida na Fig. 2.6b. Três regimes podem ser identificados
durante o processo de resfriamento. No início, para altas temperaturas, a liga apresenta um comportamento do tipo Arrhenius até a temperatura diminuir a aproximadamente 1200 K. Este primeiro "crossover" de Arrhenius para não-Arrhenius está associado ao início da heterogeneidade dinâmica à temperatura específica 𝑇𝐴 , ou seja, as mobilidades diferem
por ordens de grandeza em regiões de poucos nanômetros de separação. Para o caso dos MGFLs baseados no CuZrAl, anteriores estudos mostram que este valor ocorre para uma temperatura perto de 1300 K [32,73]. Nossos cálculos levam a um valor para 𝑇𝐴 de 1200
K, que está em bom acordo com estudos destas ligas [34]. Para temperaturas abaixo de
𝑇𝐴, a viscosidade de cisalhamento apresenta um comportamento não-Arrhenius, que é
re-presentado na Fig. 2.6b pela região azul. O FSC ocorre na temperatura reduzida de 0.85 (≈ 840 K); novamente, este valor para 𝑇𝑓 𝑠 concorda bastante com aqueles obtidos
atra-vés do ID e da rVDOS para esta liga. Nossas estimativas para 𝑇𝑓 𝑠 são significativamente
inferiores aos relatados em quase todos os estudos anteriores de estes MGFLs [31,46]. Finalmente, na Figura 2.7 mostramos o comportamento do logaritmo do co-eficiente de difusão em função do logaritmo correspondente da viscosidade, ambos cal-culados à mesma temperatura, a fim de verificar a relação Stokes-Einstein (SE) para a liga Cu46Zr46Al8. Esta relação estabelece uma conexão entre o coeficiente de difusão e a
viscosidade de cisalhamento através da relação 𝐷 ∼ (𝜂/𝑇)𝜁 , que é estritamente válida
apenas para 𝜁 = −1. Entretanto, para a liga ternária este comportamento se afasta do ideal para uma relação fracionária para temperaturas abaixo de 𝑇𝐴, com 𝜁 = −0.81. Esta
violação da relação SE de 𝜁 = −1.00 para 𝜁 = −0.81 está associada a um "crossover" do comportamento Arrhenius para o não-Arrhenius quando as ligas são resfriadas abaixo de
Figura 2.7 – A relação SE para Cu46Zr46Al8. Para altas temperaturas, no intervalo 1800−
1300 K, a inclinação é 𝜁 = −1. Entretanto, para temperaturas abaixo de
𝑇𝐴 = 1200 K, a relação SE se desvia do ideal para uma forma fracionária
com 𝜁 = −0.81.
2.3
Conclusões (Parte I)
Três propriedades dinâmicas mostrando a existência de um FSC em ligas de Cu𝑥Zr𝑥Al100−2𝑥 com 𝑥 = 50, 49, 46 foram calculadas através de simulações de MD. Dois
"crossovers" dinâmicos são evidenciados durante o processo de resfriamento. O primeiro "crossover" é associado com a heterogeneidade dinâmica, e marca o início do
comporta-mento não-Arrhenius antes que o líquido entre no regime super-resfriado. Ao investigar o ID para temperaturas abaixo de 𝑇𝐴 para Cu50Zr50 , Cu49Zr49Al2 e Cu46Zr46Al8
ob-servamos dois regimes bem definidos. O primeiro regime apresenta um comportamento não-Arrhenius ajustado com uma equação VFT e um segundo regime, que exibe um comportamento Arrhenius. A partir desses resultados, somos capazes de estimar a tem-peratura na qual o "crossover" ocorre. Nossos resultados para a temtem-peratura FSC são significativamente inferiores a quase todas as estimativas anteriores de experimentos e simulações computacionais, contudo, termos obtido um valor para T𝑓 𝑠 que está de acordo
com estudos recentes usando MD com o mesmo potencial interatômico [66, 67]. A razão para estas discrepâncias com trabalhos anteriores possivelmente decorre do fato de que nesses estudos a determinação da temperatura FSC se baseia em evidências indiretas do cruzamento, ao invés da observação direta da mudança de comportamento de não-Arrhenius para não-Arrhenius, seja no coeficiente de difusão ou na viscosidade cisalhamento. A DDEVr revela um PB pronunciado a baixas temperaturas, o que pode ser considerado como uma evidência do FSC. No caso da liga binária de Cu50Zr50, um PB
pronunciado só é observado para temperaturas abaixo de 750 K. Além do aparecimento do PB coincidir com o valor 𝑇𝑓 𝑠 obtido através do ID, investigamos também a quebra da