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Uma mistura amarga e doce: da realização do sonho da casa própria à quitação da dívida do Estado

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Academic year: 2021

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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

Curso de Graduação em Antropologia

RAYLANE CHRISTIAN BRAZ DE OLIVEIRA

UMA MISTURA AMARGA E DOCE:

DA REALIZAÇÃO DO SONHO DA CASA PRÓPRIA À QUITAÇÃO

DA DÍVIDA DO ESTADO

Niterói 2017

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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

Curso de Graduação em Antropologia

RAYLANE CHRISTIAN BRAZ DE OLIVEIRA

UMA MISTURA AMARGA E DOCE:

DA REALIZAÇÃO DO SONHO DA CASA PRÓPRIA À QUITAÇÃO

DA DÍVIDA DO ESTADO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Antropologia.

Orientadora: Prof.a Dr.a Joana Miller

Niterói 2017

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O48 Oliveira, Raylane Christian Braz de.

Uma mistura amarga e doce: da realização do sonho da casa própria à quitação da dívida do Estado / Raylane Christian Braz de Oliveira. – 2017.

51 f. ; il.

Orientadora: Joana Miller.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense. Departamento de Antropologia, 2017.

Bibliografia: f. 48-51.

1. Espaço público. 2. Análise do discurso. 3. Programa Minha Casa Minha Vida (Brasil). I. Miller, Joana. II. Universidade Federal

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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

Curso de Graduação em Antropologia

RAYLANE CHRISTIAN BRAZ DE OLIVEIRA

UMA MISTURA AMARGA E DOCE:

DA REALIZAÇÃO DO SONHO DA CASA PRÓPRIA À QUITAÇÃO

DA DÍVIDA DO ESTADO

BANCA EXAMINADORA

__________________________________

Prof.ª Dr.ª Joana Miller (Antropologia) Universidade Federal Fluminense

___________________________________

Prof. Dr. Nilton Santos (Antropologia) Universidade Federal Fluminense

___________________________________ João Alípio de Oliveira Cunha

PPGAS-Museu Nacional/UFRJ

Niterói 2017

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AGRADECIMENTO

Agradeço aos que demoram… aos que um dia conseguiram realizar seus sonhos. E aos que não realizaram que, todavia, não param de sonhar. A cada um que tive o prazer de vivenciar, que me abriram as portas de suas casas, de seu lar, seja para uma xícara de café, uma boa conversa e até mesmo, uma roda de viola. Foi um prazer!

Aos que me moram…

Primeiramente, à minha mãe que reconheci que além de mãe, matriarca, é a melhor amiga há 26 anos. Minha vó, que me fez dar valor ao significado de lar, que quando saímos da nossa terra para construir em outro lugar, construímos o novo misturando a terra nova com o que deixamos para trás. A família que a vida nos trouxe, que sempre dando aquele incentivo, acreditando em você mesmo que, de alguma forma, distante não deixando de nos acreditar. À Marina Miranda, aquela irmã que o universo conspirou de forma inexplicável, que junto com Dandara, uma flor iluminada, que veio ao mundo para nos ensinar a como praticar e internalizar o afeto, e Fausto, com os melhores conselhos geográficos e de vida: a essa família que a gente mais respeita, que te abraçam e acolhem de tal forma, que não se quer soltá-los mais, eu só tenho gratidão.

Ao Gustavo que embarcou junto comigo na maré turbulenta, aos caminhos até aqui. Em cada momento de conversa, noites não dormidas e perrengues passados, uma coisa aprendi: independente de tudo, não podemos desterritorializar o amor. Obrigada por tudo, meu companheiro!

À Ana Lúcia, que além de educadora, uma amiga, querida. Que me mostrou a desafiar o tempo. Tenho saudades!

À Joana, aquela pessoa incrível, que aceitou encarar quase que na reta final essa orientação, com toda a paciência possível, agradeço muito!

Aos que caminharam junto nessa trajetória UFF, agradeço a cada troca de ideia,

insight e empolgação. Mesmo aos que já foram e que não são mais, agradeço por

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“Em breve...”, então, cumprimos nosso papel. A cada uma, um abraço bem apertado. Pois, sem a força quádrupla, muita coisa não teria sentido, muito menos, acontecido. Lindas, meninas, vocês são lindas!

Nos últimos suspiros, agradeço a Natália e Bruna. Bruna, que acha surreal eu não se ter wifi em casa, mas que quando eu precisei me deu um amparo “virtual” e ainda, emocional sem hesitar. Obrigada! E Natália, você é luz! Gratidão! E já está garantida nossa batata em Marechal.

E à Caiê – na lembrança e no coração – que me transformou e me fez experienciar, me fazendo sua primeira casa, a mistura amarga e doce do que é ser mãe.

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EPÍGRAFE

“El destino es una casualidad que se organiza”.

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RESUMO

Meu trabalho aqui é refletir sobre como a ideia da casa própria é introduzida, através do discurso, como um fator ideológico na sociedade. E de como, a partir das intervenções do Estado, o espaço interfere no “morar” e na própria produção de subjetividade do indivíduo que o habita. Para isso, tomarei como referência o Programa Minha Casa Minha Vida do Governo Federal, a partir da descrição etnográfica de dois conjuntos habitacionais: Zé Keti e Ismael Silva, situados no bairro Estácio, na zona central da cidade do Rio de Janeiro.

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ABSTRACT

My work here is to reflect on how the idea of home ownership is introduced, through discourse, as an ideological factor in society. And how, from the interventions of the State, space interferes in the "dwelling" and in the very production of subjectivity of the individual who inhabits it. For that, I will take as reference the My Home My Life Program (PMCMV in portuguese) of the Federal Government, based on the ethnographic description of two housing estates: Zé Keti and Ismael Silva, located in the Estácio neighborhood, in the central part of the city of Rio de Janeiro.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BNDS – Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social. BNH – Banco Nacional da Habitação.

CAIXA – Caixa Econômica Federal.

FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. FNH – Fundo Nacional de Habitação.

FNHIS – Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. OGU – Orçamento Geral da União.

PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. PlanHab – Plano Nacional de Habitação.

PMCMV – Programa Minha Casa, Minha Vida. PNH – Política Nacional de Habitação.

SNH – Sistema Nacional de Habitação.

SNHIS – Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social. SUS – Sistema único de Saúde.

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SUMÁRIO

PARTE I – INTRODUÇÃO

1.1 – O que é uma casa? ...……...…...…...…...…. 12 1.1.1–O que é uma casa, qual o sentido da moradia e o propósito da habitação? 13 1.2 –. Antecedentes ...…...…...…...…… 16 PARTE II – O sonho doce

2.1 – O sonho da casa própria ...…...…...………..…. 21 2.2 – O Programa Minha Casa, Minha Vida ...…...…... 22 PARTE III – O espaço (e o) simbólico: a etnografia

3.1 – Ismael Silva e Zé Keti ...…...…... 27 3.2 – O lugar-central ...…...…...…… 30 3.3 – Relações: espaço ocupado, corpo construindo …..…..……….……..……….. 31 3.4 – O antigo morador ...…...…...….. 34 PARTE IV – A realidade amarga

4.1 – “Deixaram aquilo ali para nos lembrar que estamos presos” ....…...………. 35 4.1.1– Um discurso atrelado ………..………..…… 36 4.1.2– Rio, um legado simultâneo ...…..……..……… 39 4.2 – Minha casa, minha dívida: a financeirização da casa própria ………..……… 40 4.2.1– Um recorte: o laboratório Chile ………..……. 42 4.3 – A questão é da terra? ...…...…...…… 44 PARTE V – Re-existências

5.1 – Considerações finais ...… 46 Referências ...…...……….... 49

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PARTE I – INTRODUÇÃO

“La lactura nuestra del espacio comprende estos dos sentidos, uno horizontal y otro vertical, como dos envolventes que tratan de abrazar e incluir todo lo que propicie la vida y que además nos dan las dimensiones respecto a dónde se localiza la comunidad, desde dónde nos hablan ellas e ellos y desde dónde estamos hablando nosotras con la comunidad”. (Paredes, 2008:40-41)1

O que é uma casa?

O trabalho a ser apresentado, primeiramente, surgiu como uma simples análise do espaço. Espaço este que está conectado ao todo que o circunda e que engloba os corpos como parte desse espaço. A partir dessa noção abrangente do espaço, pretendo refletir sobre uma outra perspectiva e procurar responder à seguinte pergunta: o que é uma casa?

Através da poesia de Julieta Paredes, que nos mostra um espacio como um campo vital para o desenvolvimento do corpo, temos um espaço onde a vida se move e se promove (PAREDES, 2008). A autora fala sobre as manifestações no espaço que são envolventes – já descartando a ideia de um espaço plano –, que manifestam uma extensão do espaço que nos envolve, não somente horizontal e verticalmente, mas também, “arriba, aquí e abajo”, ou seja, “que tratan de abrazar e incluir todo” (id. 2008). O que esta autora propõe é não desvincular as concepções de espaço dos corpos que o compõem. Neste sentido, o espaço é um “contenedor” de vida. Ao considerar essa concepção mais abrangente de espaço como algo que contém vida, faço jus à pergunta que abre a essa introdução: o que é uma casa?

De acordo com a Wikipédia2, o termo “casa”, oriundo do latim casa (ou residência = residentia), se configura num “conjunto de paredes construídas pelo ser humano”, tendo como função estabelecer um espaço de moradia para uma ou um grupo de pessoas, “de tal forma que estejam protegidos dos fenômenos naturais, além de servir de refúgio contra ataques de terceiros”. [...] “A casa é entendida como a estrutura que, para além de constituir-se como abrigo, define-se como uma construção cultural de uma dada sociedade”. Nesse sentido, casa é tomada como sinônimo de residência e, “portanto, corresponde ao arquétipo da habitação – termo

1. PAREDES, Julieta. Hilando fino desde el feminismo comunitario, 2008. Um manifesto que a autora apresenta de forma serena e poética, numa produção independente, como veria ser a construção e a vivência em comunidade.

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que normalmente é empregado por especialistas para se referir ao ato de morar e às suas várias possibilidades e configurações, enquanto a casa é entendida como o objeto da moradia”.

O que é uma casa, qual o sentido da moradia e o propósito da habitação?

As três categorias se integralizam no que se determina como indispensável à reprodução social do indivíduo. Tendo a casa como uma estrutura física, a moradia, a realização de uma necessidade como o ato de morar e a habitação sendo um fator dinâmico das duas primeiras, mas que, todavia, é uma mercadoria que se apresenta em distintos meios de produção e consumo, possuindo um acesso diferenciado. As palavras, “casa”, “moradia” e “habitação” são tomadas como sinônimos e representam “as edificações capazes de delimitar um espaço para habitar” (SCHWEIZER, Peter.; PIZZA JR., Wilson, 1997). Foi a partir dessa necessidade e da constatação do crescimento intenso do déficit habitacional que o governo federal, na gestão do então presidente Lula3, implementou um novo paradigma na política habitacional do país.

A criação de um (novo) projeto para suprir as demandas socioeconômicas, cruzando fronteiras ao chamar atenção de lideranças internacionais, teve como proposta a ampliação do mercado privado – antes, voltado para as classes de renda mais alta – priorizando o atendimento a pessoas e famílias de renda menor do que cinco salários mínimos. A política habitacional que, então, naquele momento se estabeleceu a partir de recursos públicos, da disponibilidade crédito e da participação ativa do setor privado, fez com que esse processo habitacional fosse visto como um bom investimento e, também, uma estratégia para o crescimento econômico e para a geração de empregos no Brasil, diante da crise mundial.

Então, em 2009, era lançado o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) que entrava em vigor com otimismo e inovações, com o objetivo de diminuir o déficit habitacional, impulsionando o desenvolvimento econômico e trazendo a milhões de brasileiros a esperança de realizar um grande sonho: a obtenção da casa própria.

Em seu lançamento, o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) tinha como meta financiar 1 milhão de moradias, que seriam repartidas de acordo com

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três faixas: a primeira, destinada a famílias e pessoas com renda mensal de 0 a 3 salários mínimos, que concentram 90% do déficit acumulado do país; a segunda, para famílias com renda de 3 a 6 salários mínimos; e a terceira faixa, de 6 a 10 salários mínimos. Entretanto, partindo das necessidades de moradia do país, o formato do programa não supriu as demandas do segmento habitacional. O PMCMV, de início, apresentou avanços, mas também, segregação urbana e dificuldade na produção de moradia:

(…) [e] se atentarmos à situação do cumprimento da meta por grupo, perceberemos duas coisas: a primeira é que, das unidades já contratadas, 200 mil são do primeiro grupo (0 a 3 salários mínimos) que é onde está concentrado o déficit. Para essa faixa, o programa oferece um subsídio integral. Ou seja, o governo subsidia os imóveis e estabelece um valor máximo para que as construtoras os produzam. Por sua vez, o custo para os compradores é de até 10% da renda mensal, sendo, no mínimo, R$ 50,00. Duzentas mil unidades deste tipo foram contratadas até agora. O problema é que quase todas essas unidades foram contratadas em cidades e regiões de menor déficit (ROLNIK, 2010).

Acontece que nas grandes metrópoles, onde se concentra a população de menor renda, as construtoras tiveram dificuldade para produzir moradias devido ao preço do terreno e dos imóveis, em função da disponibilidade de crédito e do avanço na produção, que aumentaram exacerbadamente. Logo, o programa não conseguiu atender aos que mais precisavam, tornando a produção para as outras duas faixas (2 e 3) mais eficazes. “Ou seja, toda essa disponibilidade de crédito está indo para o preço do terreno e com isso é muito difícil produzir uma unidade de R$ 50 mil, 60 mil reais, que é o valor total da unidade fixado para a faixa de renda mais baixa” (Idem, 2010).

Em meio a essa turbulência mercadológica e à mediação entre público e privado na produção de moradia, a casa própria é tida como estoque de riqueza – com a promoção do setor imobiliário residencial e o financiamento de seu consumo –, fatores que contribuíram com a inflação do valor dos imóveis no mercado imobiliário, o que dava a impressão de um aumento de riqueza na mão dos proprietários. Todavia, essa suposta riqueza era, na verdade, uma dívida.

Meu interesse aqui é pensar as noções de casa, moradia e habitação a partir das intervenções do Estado na constituição do espaço. Para isso, tomarei como referência o Programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal, a partir da descrição etnográfica de dois conjuntos habitacionais: Zé Keti e Ismael Silva, situados no bairro Estácio, na zona central da cidade do Rio de Janeiro. Esses conjuntos habitacionais foram concluídos em 2014, no âmbito do programa nacional de habitação.

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Realizei minha pesquisa de campo com os moradores desses conjuntos de 2014 a 2016, quando pude fazer visitas regulares ao local, conversar com os moradores e participar de alguns eventos comunitários. Nessas visitas, pude perceber como a relação dos corpos – que advindos de distintos lugares, e tendo inscrições de trajetórias e conflitos – com o espaço compõem histórias, ao fazer uma leitura de resistência e sobrevivência, onde o discurso da casa própria se define e edita as questões surgidas, seja a partir do poder público ou dos “poderes locais”.

A divisão dessa monografia se deu em “partes”, devido às dificuldades encontradas para escrever e compor a etnografia. A preocupação e o desconforto que eu sentia em relação à exposição das pessoas e em ter que achar um ponto central – o objeto de pesquisa –, me fizeram conduzir o trabalho de forma que a leitura fosse direcionada não somente à academia, mas também sobre aqueles de quem esse trabalho fala: os que (de)moram. Portanto, nessa primeira parte, procuro refletir sobre a ideia de casa – moradia, habitação –, fazendo uma introdução ao sentido das palavras complementares, mas, que possuem valores distintos, a partir dos discursos elaborados nos espaços. Traço um caminho desses termos, para chegar à segunda parte que intitulei “O sonho doce”, na qual procuro mostrar que a construção do sonho da casa própria se configura como um espaço simbólico no imaginário da população brasileira e que se baseia na necessidade de obter uma propriedade e na ideia de “ser alguém”.

Neste sentido, a noção de casa não se refere só “à casa da gente” – um lugar onde a gente se faz em paz –, mas também à ideia de que a casa própria é tida como um imperativo social e econômico, se tornando um fator ideológico, que é aproveitada como mecanismo de consumo, a partir da lógica do mercado imobiliário. Ainda na segunda parte, descrevo o Programa Minha Casa, Minha Vida, as articulações do governo para sua criação e suas definições. Mostro como sua implementação se deu com o objetivo de equacionar a precariedade do segmento habitacional do país e a resolução do programa como políticas públicas.

Na terceira parte, apresento a etnografia realizada a partir das minhas visitas aos conjuntos habitacionais Zé Keti e Ismael Silva, atrelada ao discurso de inauguração das moradias, feito pela então presidente Dilma Rousseff. Composta por quatro sessões, a apresentação da etnografia contempla, desde uma breve história sobre quem foram Zé Keti e Ismael Silva, ao portal de entrada do antigo “morador” deste espaço, o presídio Frei Caneca.

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A composição que procura entremear a etnografia com o discurso da presidente Dilma é interessante para construção da quarta parte desta monografia. Nesta parte, apresento as controvérsias que se desdobram com o discurso do poder, fazendo alusão à ideia da casa própria. “A realidade amarga”, título que dei a essa parte, revela, então, como um “sonho doce” se transforma na amargura do habitar os conjuntos habitacionais Zé Keti e Ismael Silva. Assim, o programa denominado “minha casa, minha vida” se desdobra em a “minha casa, minha dívida” (e minha sina) dos moradores, quando há interferência de “poderes locais”, como o tráfico de drogas de favelas próximas e a dificuldade de se manter num espaço que não supre suas demandas e onde as intervenções do Estado se concentram num ordenamento socioespacial da população. Neste ponto, faço um pequeno recorte trazendo a experiência do Chile, cujo programa de habitação pode ser visto como uma espécie de “laboratório” para o PMCMV. Procuro fazer uma comparação do desenvolvimento desse programa no Chile, a partir dos desdobramentos do programa que foi implementado no Brasil. Por fim, apresento um último capítulo sobre a questão fundiária e a ideia de valor que se estabelece a partir do preço da terra.

Antes de prosseguir voltarei a um momento paralelo à pesquisa de campo que realizei nos conjuntos habitacionais, que foi fundamental para refletir sobre as políticas públicas e intervenções deferidas pelo Estado, a ideia de casa e a relação das pessoas com o “sonho da casa própria”.

Antecedentes

O fio condutor dessa pesquisa remete a uma outra experiência que pude vivenciar antes e durante a minha pesquisa de campo. Em 2014, tive a oportunidade de acompanhar o surgimento de uma ocupação de moradia popular, cujos questionamentos surgidos suscitaram as reflexões e desdobramentos que levaram aos passos aqui dados. Nesse momento se encontra a gênese dessa pesquisa. A ida a uma ocupação de moradia popular trouxe ao debate não só a ideia sobre o conceito de casa que procuro discutir aqui, mas também sobre o que seria esse tal programa lançado pelo Governo Federal, o “Minha Casa, Minha Vida”, que fazia com que as pessoas voltassem a sonhar em ter a (sua) casa própria.

Em 2014, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro, uma fábrica de têxtil que há 22 anos estava abandonada, passa a ser notada por seus novos inquilinos. Uma movimentação incomum começa no bairro, um grande

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número de pessoas circulava pelas ruas da Estrada do Itararé, pessoas essas que vinham dar um novo significado ao espaço vazio. Como eu passava por ali com frequência, me chamava atenção a intensa circulação, pois não se sabia o que estava acontecendo. Imaginei que aquelas poderiam ter sido retiradas de suas casas por algum evento ocorrido nas favelas – até porque, quando há qualquer movimentação no Alemão, é de se ficar alerta –, mesmo assim, eram muitas, ainda era estranho. Ao conversar com uma colega da universidade, que também morava próximo ao local, ela me relatou o que acontecera: a antiga fábrica havia sido ocupada e se tornara a moradia temporária de algumas famílias.

Passados alguns dias, a colega de universidade me fez um convite para acompanhá-la à antiga fábrica, pois uma conhecida sua estava na ocupação. Aceitei mas com certo receio, pois não iria a um lugar abandonado e sim, a “casa de alguém”. Ao chegar à antiga fábrica, no portão antes de sermos liberadas para entrar, os moradores nos abordam com algumas perguntas como: “vocês fazem parte da imprensa?”, “fazem parte da igreja?” ou “são parte de algum movimento social?”. Logo se via que esses grupos, ali, não eram bem-vindos. Nos identificamos como moradoras dos arredores e estudantes. E depois de mais alguns “questionários”, nos foi permitida a entrada. Ao atravessar o portão, já se notava uma quantidade significativa de tábuas enormes de madeira, que chamadas de “madeiriti”, indicavam uma pequena comercialização do material por toda a ocupação. Também se via pequenos barracos recém construídos às margens da passagem para o galpão da fábrica. A chegada ao galpão surpreendera. Algumas famílias? Que nada! Ali já se formava uma pequena comunidade. Disseram que ocupavam aquele espaço aproximadamente duzentas famílias4. Os barracos

maiores de madeira, vistos de cima, tomavam toda a parte térrea do galpão. Havia, ainda, uma parte subterrânea na fábrica, lugar estreito, onde era difícil caminhar reto e respirar, sem nenhuma circulação de ar. Lá se encontravam mais barracos de madeira, tão estreitos quanto o lugar que ocupavam. E um pequeno comércio se expandia no subterrâneo, pequenas tendinhas de bebida, lanches e outras coisas que seriam de utilidade para quem ali habitava. Se via que não se tratava mais de uma ocupação temporária. Ao sair daquele espaço estreito, me deparei com os pequenos barracos que estavam à margem da passagem para o galpão, observei todo o lugar ao redor. Aquela imagem me fez pensar que ainda haviam pessoas que 4. Aparentemente, e era nítido, o número de pessoas e de famílias era bem maior que duzentas famílias. Esse número foi o levantamento feito pelas assistentes sociais enviadas pelo Governo.

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habitavam lugares como os que Jorge Amado descreveu ao narrar o cotidiano dos moradores do número 68, na ladeira do Pelourinho, em 1934. De como as pessoas vivem amontoadas, dormindo em lugares estreitos, insalubres, onde os ratos passavam sem nenhum sinal de medo, entre os homens que estavam parados às margens da passagem (AMADO, 2011:9), ao lado de esgoto a céu aberto, sem água, sem luz, cambiando entre os pequenos espaços, dividindo colchões, e quando não havia, dividiam apenas o suor.

Depois de passarmos e conhecermos todo o território espacial, nos encontramos com um grupo de ocupantes que faziam uma “reunião de organização”, uma espécie de reunião de condomínio, e foi nesse momento que compreendi o que se passava naquele espaço. Ao mesmo tempo que alguns moradores já estavam se fixando na antiga fábrica, outros, digo, a maioria, diziam estar “esperando o Minha Casa, Minha Vida sair”. Os ocupantes levantaram muitas pautas na reunião. Organizados e objetivos em seus discursos, nos permitiram participar para dar algum “tipo de opinião”. Algumas pautas discutidas chamaram mais atenção e alavancaram pontos importantes para uma pesquisa futura. Naquele momento, eu não imaginava que a articulação e o questionamento dos ocupantes da antiga fábrica me conduziria a este trabalho que escrevo. Na reunião, um dos primeiros pontos a ser levantado, que suscitou debates calorosos, foi sobre as idas do serviço social, representando o Governo Federal, para verificar a situação da ocupação. Os ocupantes da fábrica se diziam estressados com tanta “enrolação”. Pois, num primeiro momento, as assistentes sociais iam coletar dados para saber quantos pessoas ali estavam, em que condições estavam e quem eram elas para, depois, realizarem um cadastro para que elas recebessem o benefício do programa do plano de habitação MCMV. Num outro momento, essas assistentes sociais retornaram com novas notificações, o que os moradores chamavam de “exigências”, alegando que o cadastro só seria feito às famílias que ocupavam a parte do galpão da fábrica, “os de dentro”, e que cada pessoa e cada família tinha de fazer um “molde” de uma casa. Cada barraco levantado deveria conter o que seria de essencial, do ponto de vista das assistentes sociais, para uma casa, como, por exemplo: fogão, geladeira, cama e vaso sanitário. A divisão espacial de “beneficiados” gerou um mal-estar na ocupação, configurando-se num conflito entre “os de dentro”, “os de fora” e “os do buraco”5. Afinal, todos queriam ser beneficiados.

5. Os moradores se dividiram por espaço ocupado: “os de dentro”, são os que ocupam o galpão da fábrica, os que, segundo as assistentes sociais, seriam os únicos que se beneficiariam com o PMCMV; “os de fora”, os que se encontram a margem, desde da entrada do portão, aos pés do

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A “luta pela terra” na ocupação levou a uma nova demarcação do espaço. Os ocupantes começam a marcar seus barracos com números e letras e a selar com correntes e cadeados. Quem não o fizesse, caso saísse da ocupação por um dia6 ou

por algumas horas, quando voltasse já não encontraria mais suas coisas por lá, e a sua “casa” já seria de outro. A reunião continuou e, ainda sobre essa pauta, um outro grupo de moradores reclamava da demora do poder público em dar uma resposta, se iriam ou não ter uma casa. Alegavam estar sendo feitos de bobos e que o governo não iria fazer nada por eles. E uma outra pauta levantada, foi em relação aos movimentos sociais. Segundo os ocupantes, esses não iriam à fábrica para ajudar ninguém. Alguns ocupantes, advindos de outras ocupações, como a da Telerj7, diziam já conhecer “esse tipo de gente”, e que “esses dos movimento social

só querem se promover em cima da gente”.

A última pauta foi a respeito do envolvimento do tráfico na ocupação, que ocorreu a partir de um episódio com um pastor de uma igreja local. Este pastor se aproveitara da ocupação para conseguir mais “fiéis”, alegando ser o proprietário do espaço ocupado e solicitando um “aluguel” semanal (no valor de cinco reais por pessoa) para a manutenção – saneamento, luz, água potável, etc. – do espaço. Os moradores logo perceberam que o pastor agia de má-fé. A tal manutenção nunca era feita e o “proprietário” só aparecia nos dias que tinha que receber o aluguel. Alguns dos moradores, então, indignados, e com razão, convocaram os “donos do Morro”. Esses, que já tinham uma visão de toda a movimentação que ocorria na fábrica, situada no pé do morro, desceram para tomar as rédeas da ocupação. Um outro grupo de moradores, não ficou nada feliz com a “nova gestão”, pois, sob o comando do tráfico, a circulação na ocupação mudou. Surge uma boca de fumo na localização dos “do buraco”. As novas movimentações na antiga fábrica fizeram com que o lado externo reforçasse a atenção para o que acontecia dos portões para dentro. Ademais, do outro lado da rua, em frente à ocupação, havia sido instalada uma base da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). O envolvimento do tráfico anunciava o

morro, nos espaços mais insalubres; e “os do buraco”, são os que se instalaram onde estava a tubulação de gás da fábrica, uma espécie de subterrâneo.

6. Algumas pessoas da ocupação só estavam ali para marcar uma “casa” e tentar conseguir uma vaga no MCMV.

7. Ocupação conhecida como “Favela da Oi”, no prédio da Telerj, localizado no bairro do Engenho Novo, Rio de Janeiro, foi violentamente desocupada a mando do Estado pela polícia, no dia 30 de março de 2014.

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que alguns moradores da ocupação e dos arredores temiam: uma guerra, que impulsionaria ações violentas e extremas e, mais tarde, levaria ao fim da ocupação.

Retornei à antiga fábrica e os ocupantes agitados, devido uma liminar expedida pela Justiça do Rio, para reintegração de posse do local, haviam tomado algumas decisões. Uma delas foi com relação às idas e vindas do serviço social: decidiram que as assistentes só entrariam na ocupação com o objetivo de cadastrar as famílias para o PMCMV, sem mais “exigências”. Outra decisão foi que perceberam que ocupar era um dever, já que precisavam de moradia e a fábrica estava a serviço de mofos há mais de duas décadas. Eles se viram, não mais como ocupantes, invasores, e então, como os moradores da Ocupação Nova Tuffy8. Logo,

os moradores foram se ajeitando, mesmo que em condições precárias, no espaço. A contagem feita pelas assistentes sociais de duzentas famílias era, talvez, ilusória. A ocupação se expandia, chegando a mais duas mil pessoas ali habitando. Foram vivendo em meio às incertezas sobre se seriam retirados, se seriam cadastrados, ou, para onde iriam. O tempo de espera foi cruel. Conflitos entre o tráfico e os policiais da UPP afetaram, diretamente, os moradores da ocupação. Alguns que já haviam passado por transtornos com violência na ocupação da Telerj, por exemplo, temiam que o mesmo se repetisse. Enquanto outros moradores só queriam água potável para beber, recorrendo às autoridades públicas mas sem nenhuma ajuda e lembrança do Estado. Estes estavam preocupados e arquitetando como entrariam na ocupação para reintegração de posse do local, sem muita violência, pois era uma área de risco. A única lembrança foi de enviar a polícia, em dezembro, para que às 6 horas da manhã, efetuassem a reintegração de posse de qualquer maneira. Os moradores, pacificamente, foram divididos em seis ônibus – alguns, foram a pé ou para a casa de parentes e conhecidos próximos –, e levados para um clube num bairro próximo. Lá, eles seriam cadastrados para o programa MCMV. Acontece que alguns moradores foram proibidos de entrar no clube; outros, segundo o relato de pessoas presentes, os policiais mandavam descer do ônibus e caminhar. Ao chegar no clube, fariam o cadastro que durou quase um ano para acontecer e, mesmo assim, sem nenhuma assistência. Até hoje, moradores da Nova Tuffy aguardam serem chamados pelo Minha Casa, Minha Vida.

Foi através das pautas e reivindicações dos moradores, das ações de “assistência” e de intervenções do Estado e das autoridades públicas, e da relação das pessoas e instituições com o espaço ocupado que se deu o ponto de partida 8. Nova Tuffy, foi o nome batizado a ocupação. Tuffy, vem do nome do antigo proprietário da fábrica Tuffy Habib.

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desse trabalho em conexão com o MCMV. Me vi instigada a pensar sobre os moradores da ocupação que, vivendo em condições precárias, tinham a esperança de, no fim de todo um processo, conseguirem, enfim, sua casa própria. Mas não foi bem assim. Eles passaram por vários cadastros e exigências que partiram das autoridades, através de assistentes sociais, foram cumpridas. Mas, e as pessoas? E suas casas prometidas? Não passou de ilusão. Foram pedidos para que idealizassem suas casas, só para ficar no imaginário. Depois disso, comecei a querer entender como funcionava esse Programa Minha Casa, Minha Vida e quem ele beneficia? Se é para famílias de baixa renda, por que as pessoas da ocupação não conseguiram ter acesso ao programa de moradia? E foi através dessas manifestações, reivindicações, ações de “assistência” e intervenções do Estado e das autoridades públicas que fiquei intrigada com a relação das pessoas e das instituições com o espaço ocupado. Esses eventos foram o ponto de partida desse trabalho e me levaram à conexão com os conjuntos residenciais Ismael Silva e Zé Keti, que constituem, assim, o espaço de troca de reflexão dessa pesquisa.

PARTE II – O SONHO DOCE

“Ella pisa un suelo prestado. En ese campo añorado crecen ella y su esperanza. Ella sueña un sueño repetido. En ese redundar antiguo encuentra más y más deseos. Ella piensa una idea otra. En esa novedad rebelde mira reflejándose nueva. Ella regala una flor fresca. En esa sencilla delicia sola y maciza su paz camina. Ella desnuda su cabello joven. En esa destreza olvidada gana su estancada libertad.”. (Haddad, 2009:91) O sonho da casa própria

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Em A Poética do Espaço (1988), Bachelard mostra a casa como sendo o primeiro mundo do ser humano, o domínio do devaneio, onde se encontra o fundamento do nosso inconsciente. O espaço da casa é onde se produz os sujeitos, e onde temos proteção e abrigo. O Brasil possui uma valorização da aquisição da propriedade que vem de uma reivindicação histórica, resultado de uma exclusão de parte da população dos processos de urbanização. O sonho de ter uma casa é um substantivo que integra a sociedade, mas a situação econômica e desigual do país faz com que esse sonho se torne algo distante para boa parte da população. O país tem o déficit habitacional acumulado em 90% – moradores de rua, áreas de risco, ocupando espaços abandonados, ou, morando de aluguel –, concentrado em famílias que sobrevivem com a renda mensal de até três salários mínimos, mas que o desejo de ter a casa própria prevalece e se reitera de geração a geração. Ter um pedacinho de chão custa caro, muitas das vezes, até a própria vida. Vide a situação dos indígenas no Brasil, que lutam por suas terras há anos, sendo condicionados a viver em conflitos que geram dor e sangue.

Muitos dos que habitam o Brasil, hoje, constroem um plano familiar, um seguimento de vida, a partir da idealização do sonho da casa própria. A ideologia pelos direitos se finca em movimentos políticos e sociais, como a luta pela terra e as reivindicações por moradia em solo brasileiro, que se desdobram em ações duradouras e conflituosas. Realizar esse sonho não é fácil. A classe trabalhadora brasileira trabalha oito horas por dia, ganhando um salário que mal dá para pagar as contas mensais e despesas. Ter uma moradia é uma necessidade, embora ela seja inviável pela não acessibilidade por parte da população e pelo alto custo das moradias no mercado. Constrói-se, então, um sonho no imaginário coletivo das famílias brasileiras, onde “no sistema de finalidades em que à vida humana se sustenta, a casa ocupa um lugar privilegiado” (Levinas, E. 2000, pp. 135).

No entanto, em 2009, o Governo Lula lança o projeto que mudaria o cenário crítico da habitação do país e que, em tese, tornaria possível a realização do sonho da casa própria para milhões de brasileiros. O surgimento de um programa de habitação que viabilizaria o acesso à moradia digna, é o sonho doce da população brasileira e de Lula, ao revolucionar, implementando a questão habitacional como política pública, nos anos finais de seu mandato. O Minha Casa Minha Vida chegava para fazer e se inscrever na história.

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O Programa Minha Casa, Minha Vida

Projetos, leis e demandas foram discutidos pelo governo, autoridades locais e líderes de movimentos sociais para chegarem a alternativas que contornassem a situação da moradia (ou da falta dela). Em 2009, ao criar o PlanHab, o governo decide por renovar a política habitacional do país, implementando novas estratégias para mudar um cenário trágico, difundindo o sonho da casa própria e financiando a aquisição da propriedade como objetivo principal do programa de habitação. Surgia, então, o Programa Minha Casa, Minha Vida que entrava em vigor cheio de otimismo e inovações para diminuir o déficit habitacional, impulsionando o desenvolvimento econômico. Voltava à tona aquela que é a última esperança a partir: o MCMV trazia a esperança de milhões de famílias de realizarem o sonho da casa própria.

O primeiro mandato do governo Lula, em 2002, – depois de muitas tentativas de eleição presidencial – foi marcado por uma coalizão ampla e pluralista. Abarcou políticos de partidos conservadores – que o aderiram por conveniência – e antigos rivais, representantes de grandes empresas e outros stakebolders que estavam em lados opostos em eleições anteriores, sem uma ruptura radical. Esta coalizão suscitou uma “parceria” de interesses e intenções conflitantes. Mesmo em um momento político onde mudanças efetivas eram limitadas, tendo de aceitar concessões para que um equilíbrio fosse mantido, a vitória do antigo líder sindical, Luiz Inácio Lula da Silva, teve um grande significado simbólico para a população brasileira, sendo considerada um triunfo histórico para os trabalhadores. Lula conseguiu manter a harmonia entre os apoiadores antigos de seu partido com o novo eleitorado (ROLNIK, 2015:294).

Representando uma vontade de mudança, propondo uma reforma generalizada na administração realizada pela gestão do governo anterior de Fernando Henrique Cardoso, uma das primeiras ações do governo Lula foi implementar um novo ministério para atender demandas específicas do setor urbano, já estas que passavam de ministério para ministério sem resultados efetivos. O Ministério das Cidades, criado em 2003 para formular politicas urbanas no país e dar o apoio necessário aos governos locais, integrou as arenas institucionais das políticas federais e marcou a agenda da reforma urbana como prioridade. O governo Lula pretendia, a partir da construção de uma política que desenvolvesse projetos, associar o enfrentamento da questão social ao crescimento econômico e estimular a criação de empregos, começando por uma proposta de política habitacional que

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estava no papel desde a sua campanha. Esse novo ministério tinha como condutores integrantes do Partido dos Trabalhadores e lideranças de movimentos sociais que, durante um período, promoveram inúmeras atividades e reuniões para pensar a temática moradia, envolvendo todos os segmentos da sociedade, para chegarem a propostas e alternativas. Um dos projetos que se desdobrou dessas reuniões, lançado nos anos 2000, foi o Projeto Moradia que, inspirado no modelo do SUS, propunha a articulação de orçamentos sob controle social, um projeto financeiro e urbano-fundiário. A partir desse projeto, surgiu o Sistema Nacional de Habitação, que atuaria sob supervisão do Ministério das Cidades, para gerir fundos de habitação a partir do Conselho Nacional de Cidades. Para isso, era fundamental a aprovação do projeto de lei de iniciativa popular do Fundo Nacional de Habitação (FNH), que era a bandeira dos movimentos de moradia no Congresso, desde 1991. Uma política de subsídios que visava recursos do FGTS e do Orçamento Geral da União para conseguir créditos e acesso à moradia, não apenas partindo do governo federal, mas considerando o âmbito público e privado, concentrando os recursos para subsidiar moradia digna para a população mais pobre. Para isso, era indispensável a produção habitacional pelo mercado destinado à classe média, para atender à população de baixa renda com os recursos do FGTS. O Projeto Moradia tinha como objetivo a aprovação do Estatuto da Cidade, facilitando o acesso à terra e, assim, combater a especulação imobiliária.

Em 2005, pressionado pelos movimentos sociais, o governo Lula decide por aprovar no Congresso o projeto de lei. O projeto cria o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social que, com o FNHIS – sendo os recursos advindos do OGU e de outros fundos – e um conselho9, determina que os recursos públicos

direcionados para o segmento habitacional fazem parte do sistema (SNHIS), e que devem ser submetidos ao PlanHab e à PNH. O atendimento, a partir dessas movimentações políticas, destina-se à população de baixa renda, tendo a concessão de subsídios diferenciada por região, sendo a utilização dos recursos distribuída em diversas partes: a produção de habitação, reforma imobiliária para habitação, urbanização, regularização fundiária, entre outras intervenções.

9. Conselho Nacional de Habitação, criado e composto, na I Conferência Nacional das Cidades, a partir de um processo de mobilização social. O conselho contou com 56% de seus representantes da sociedade civil (movimentos sociais, entidades acadêmicas e profissionais, ONGs e entidades empresariais); e 42% representando as esferas do governo. Os movimentos sociais ocuparam metade na parte da sociedade civil. Instituído em 2004, propunha diretrizes para a política habitacional.

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O governo tenta expandir o valor do financiamento habitacional contratado pelo sistema FGTS-SBPE. Em 2003, o valor era de aproximadamente 5 bilhões de reais. Já em 2008, esse valor chega a 40 bilhões de reais. Em 2005, houve uma mudança na gestão do Ministério das Cidades, condicionada a uma dificuldade na operação do SNHIS e na agenda de reforma urbana. Quando o escândalo do mensalão veio à tona, o governo, involuntariamente, abre espaço para os conservadores para manter seus “aliados” no Congresso. O Ministério das Cidades sai da gestão do PT, mas não a presidência do banco Caixa Econômica Federal, que é onde se concentra os programas da área de desenvolvimento urbano do governo federal. Com a crise do mensalão, Dilma Rousseff assume a Casa Civil, potencializando o Ministério de seguinte forma: tornando-o o principal gestor nos segmentos habitacional e de infraestrutura urbana. Também ocorre uma mudança no Ministério da Fazenda, assumido por Guido Mantega. Com isso, torna-se estratégico impulsionar o desenvolvimento econômico estimulando os trabalhadores ao consumo. De Lula à Dilma, o incentivo ao consumo toma grande proporção como um meio da política dominante. Do final do segundo mandato de Lula ao final do primeiro mandato de Dilma, para ampliar o consumo, o governo decide pelo aumento do valor contínuo do salário mínimo e expande o programa Bolsa Família – programa que determina um benefício mensal para famílias de baixa renda –, remonte do governo anterior. Esses atos visavam viabilizar medidas para o incentivo à produção e aquisição de bens por meio de linhas de crédito com taxas baixas de juros e isenção fiscal, medidas essas que fizeram surgir uma “nova classe média”, – que na verdade, era o marco do consumo de pequenas empresas e o consumo dos trabalhadores (ROLNIK, R. 2015, pp. 299). A medida mais importante do governo, que ocorreu no final do mandato de Lula, mas que contemplou a presidente Dilma Rousseff10 em seu primeiro mandato, foi o PMCMV que, articulado junto a

empresários e investidores (e a Caixa Econômica Federal), em reação à crise internacional – e, também, à crise do mensalão no Brasil –, teve como uma de suas metas salvar empresas que quebraram mediante a crise.

O programa de habitação se definiu com condições específicas, contratou um milhão de moradias destinadas a famílias de diferentes faixas de renda (de 0 a dez salários mínimos), e teve seus recursos divididos por regiões do país, a partir da 10. O PMCMV, lançado em 2009, um ano e meio das disputas eleitorais. Com o objetivo de “conter os efeitos nefastos que uma crise econômica poderia gerar sobre a sucessão presidencial, [o programa] serviu para fortalecer a candidatura da ministra-chefe Dilma Rousseff da Casa Civil, sendo lançada como ”mãe do Minha Casa, Minha Vida” (ROLNIK, R. 2015, p. 306).

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estimativa do déficit habitacional, chamando a atenção para as principais metrópoles (tabela 1):

Com aos mecanismos financeiros e comerciais, subsídios, no que diz respeito ao limite de valor das unidades habitacionais, o programa definiu as três faixas contemplando que:

a faixa 1 – de 0 até 1,6 mil reais de renda familiar – oferece um produto quase totalmente subsidiado, construído por empresas privadas, mas distribuídos pelos governos locais. Estes, definem os beneficiários com base nos cadastros. Os moradores são obrigados a pagar uma taxa mensal, no valor de cinquenta reais, para a Caixa, que é quem compra das construtoras;

a faixa 2 – de 1,6 reais a 3,1 reais, são beneficiados com linhas de crédito com preço abaixo das condições do mercado e pela garantia de um fundo público, o FGHab, sendo 20% do limite de preço da unidade total;

já à faixa 3 – até 5 mil reais – só é concedido o barateamento do crédito e a garantia do FGHab11.

Não há dúvidas de como o lançamento do programa favoreceu as empresas e, principalmente, o setor imobiliário e seus investidores, impulsionando o valor das ações no mercado. Além de ser indiscutível o efeito que o programa teve sobre a indústria da construção civil12, criando mais de dois milhões de postos de trabalho

devido a demanda de produção de moradias. Pode-se observar que, do ponto de vista do crescimento econômico e do estímulo à criação de empregos, o plano deu certo, obtendo o apoio das empresas e setores sindicais. É importante observar, também, mediante diálogos entre público e privado que,

11. ROLNIK, R. 2015, pp. 303-304.

12. Idem. O sindicato das empresas de construção, contabilizou um crescimento de 47,1%, entre 2003 e 2013, e o PIB, 45,9%.

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[…] Embora em pequena escala e com grandes dificuldades para operar um programa desenhado para construtoras, os movimentos sociais obtiveram ganhos relevantes com o MCMV no sentido de atender às suas bases, compostas principalmente por famílias em busca de moradia. Esses ganhos demonstram ainda que, se por um lado os movimentos continuam a não participar efetivamente dos processos decisórios da política habitacional, por outro eles foram incluídos na lista de atores contemplados com a distribuição dos benefícios dos investimentos na área. Assumindo uma parcela pouco significativa das moradias produzidas e utilizando, sobretudo, sua representação nos conselhos, os movimentos passaram a integrar o jogo do controle da distribuição dos ativos políticos do governo, juntamente com lideranças e grupos partidários que compõem sua base (op. cit. 2015, pp. 308-309).

O MCMV de “pacote de salvamento” se desdobrou, a partir das concessões financeiras, na política pública do Brasil, levando o segmento habitacional como um dos fatores dominantes, promovendo a casa própria, viabilizando o acesso ao mercado e subsídios. E foi através dessa política mais a distribuição dos benefícios pelas autoridades locais, que os moradores dos conjuntos habitacionais Zé Kéti e Ismael Silva, na cidade do Rio de Janeiro, alcançaram o sonho da casa própria.

PARTE III – ESPAÇO (E O) SIMBÓLICO: A ETNOGRAFIA

“Chegou... Chegou a dona do lugar Chegou... Pelo modo de pisar Se vê que é iaiá de ioiô” (Ismael Silva, “Dona do Lugar”). Ismael Silva e Zé Keti

Olha, gente, é uma emoção muito grande estar aqui. E eu acho que tem três razões fundamentais para que essa cerimônia aqui no Residencial Zé Keti e no Residencial Ismael

Silva sejam importantes. A primeira, são 998 famílias, e é uma coisa que nós precisamos reconhecer. Uma das coisas mais importantes que o nosso país tem é justamente as famílias que representam a proteção, o acolhimento, e a criação das crianças e dos jovens deste país. Nós sabemos que muitas vezes, as mulheres hoje são chefes de família. Por isso é importante assinalar que para nós há uma prioridade dada às mulheres, porque a mulher representa a criação dos filhos. Quando for o homem, que for o representante da criação dos filhos, será ele, mas, na grande maioria

das vezes, a titularidade, ou seja, em nome de quem fica o imóvel, é em nome da mulher, pelo fato de ela representar a família. E uma coisa importante no Minha Casa, Minha Vida, é que é feito para as famílias, para as pessoas que mais precisam, para aquelas que nunca tinham conseguido a sua casa própria. (...) [E] uma homenagem que nós estamos fazendo ao Zé Keti e ao Ismael Silva, dois grandes sambistas brasileiros, dois grandes sambistas, duas pessoas que falaram para a alma e para

o coração dos brasileiros. E ao falarem para a alma e para o coração dos brasileiros, deram voz ao povo brasileiro e aqui também nós fazemos hoje uma homenagem a eles” (ROUSSEFF, D. 2014,

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Discurso proferido durante a cerimonia de entrega dos residenciais Zé Ketti e Ismael Silva – Programa Minha Casa Minha Vida)13.

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Nascido José Flores de Jesus, no subúrbio do Rio, em 1921, no bairro de Inhaúma, de um lado está Zé Keti, que cantou o samba, a malandragem e as favelas. Cresceu com a música, ao som do cavaquinho de seu pai, Josué, e de seu avô, João Dionísio, que era pianista e flautista. E também, as influências externas, devido às reuniões musicais que seu avô fazia em casa, que contava com a presença de Pixinguinha e Cândido das Neves. Mas foi quando ainda era menino, que Zé Keti perdeu suas maiores referências: a primeira, seu pai, com sua morte em 1924; e quatro anos mais tarde, seu avô. Depois do último episódio triste, foi morar em Madureira, onde não só cantaria as lágrimas, mas se encantaria por um novo amor: a Portela. Ainda garoto, estudou até a escola primária, compôs sua primeira música aos 15 anos, e começa a trabalhar numa fábrica, até chegar a idade para se alistar para a polícia militar. Avançando a idade, e ao sair da polícia, consegue um emprego numa fábrica de sapatos, mas que não dura muito, pois a boemia lhe chamara. Nos anos de 1950, compõe A Voz do Morro, samba de grande sucesso e significado, talvez, um dos que falou e fala para ao coração do povo. Zé Keti, como muitos brasileiros, tinha uma meta de vida. Segundo Nei Lopes (2000), em seu livro sobre o sambista, o poeta buscava se realizar economicamente em seu trabalho, como negro e do subúrbio, vindo da periferia e tendo só o ensino básico, trabalhou como podia, para ter ascensão financeira. O poeta nos deixa em 1999, com seus planos e desejos realizados, ou nem todos, mas Zé Keti foi reconhecido como mereceu ser, foi o samba, foi a voz do morro e mostrou o seu valor.

Do outro lado da baía de Guanabara, em Jurujuba, Niterói, nascia Ismael Silva (1905 – 1978), o caçula dos cinco filhos de Benjamim e Dona Emília. Aos 3 anos, fica órfão de pai, tendo que se mudar com sua mãe para a cidade do Rio e deixando seus irmãos com parentes, pois, para Dona Emília, que agora chefe de família, seria mais fácil conseguir trabalho e dar boa educação ao filho menor. Foram para o bairro Estácio, onde Ismael cursou a escola primária, depois, foi morar em alguns bairros do subúrbio carioca, retornando ao Estácio ainda na adolescência. 13. Retirado de Planalto – Presidência da República, Discurso da presidente Dilma Rousseff na cerimônia de entrega dos residenciais Zé Keti e Ismael Sila. Disponível em:

<http://www2.planalto.gov.br/centrais-de-conteudos/audios/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma- rousseff-durante-cerimonia-de-entrega-de-998-unidades-habitacionais-dos-residenciais-ze-keti-e-ismael-silva-do-programa-minha-casa-minha-vida-21min33s> .

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Cresce no bairro, faz amigos, cria parcerias e faz escola. Compunha-se ali, no Estácio, um dos sambistas mais renomados da cidade do Rio de Janeiro, por ter configurado o samba e influenciado uma identidade cultural nacional, por ser responsável junto ao “pessoal da Estácio” pelo desfile de carnaval. Em 1928, o que era bloco dá outro significado à avenida: Deixa Falar, tendo como um dos fundadores Ismael Silva, se torna a primeira escola de samba da cidade, inaugurando um novo momento do samba e do carnaval. “São Ismael”, como o apelidou Vinícius de Moraes, por seu olhar doce e sua voz educada, foi o maior poeta que o Estácio já viu, eternizado por cantar e encantar, assim como Zé Keti, o coração dos brasileiros.

E foi na tarde de 30 de junho, de 2014, que a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, num discurso comovente, apresentava Ismael Silva e Zé Keti, na cerimônia de inauguração dos conjuntos habitacionais do MCMV, para as novecentas e noventa e oito famílias beneficiadas. Os dois sambistas que fizeram história no cenário cultural carioca, agora, “trazidos” para serem o lar de famílias que não tinham casa, moravam de aluguel, ou, em áreas de risco. Advindos do subúrbio carioca e que fizeram sucesso nas primeiras décadas dos anos de 1900, os compositores foram escolhidos para “guardarem” essas famílias, – divididos em dois condomínios de 998 blocos prediais, com apartamentos de dois quartos, sala, cozinha, banheiro e uma pequena área de serviço, totalizando uma área de 43m² – sendo homenageados pelo Governo Federal. Os dois deram voz ao coração e à alma e, agora, se tornariam o nome do conjunto habitacional onde se situava a casa daqueles que precisam, daqueles que sonharam em ter sua casa própria, das famílias e das mulheres, como as mães de Ismael Silva e Zé Keti, que criam seus filhos com o intuito de lhe darem um futuro melhor e uma vida digna. As canções dos sambistas falam na alma, ao transmitir suas realidades que compõem e se mesclam à realidade dos moradores do MCMV, seja na trajetória ou no lugar que, agora, se define como um espaço múltiplo de histórias que compõem os conjuntos habitacionais.

De 2015 a 2016, quando comecei a fazer visitas mais regulares e a conhecer mais os moradores e, que por coincidência, todos residiam no residencial Zé Keti, pude ir percebendo a transformação dos corpos e do espaço que habitavam. Entre os dois condomínios, havia um enorme pátio, uma espécie de “área de lazer”, que servia de área comum aos dois residenciais, com banquinhos de praça, um tanto convidativo a uma socialização. As manifestações nesse espaço, fizeram com que o

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Estado intervisse ainda mais e modificasse a rotina dos que ali viviam. Morar na área central da cidade pode ser um privilégio, mas, também, pode ter suas desvantagens.

O lugar-central

Os conjuntos habitacionais, Ismael Silva e Zé Kéti, construídos num espaço simbólico e cheio de história, são as únicas unidades do PMCMV localizadas na região central da cidade do Rio, no bairro do Estácio.

Bairro histórico e considerado o berço do samba, no Estácio viveu Ismael Silva, o sambista que é eternizado no bairro: por estar na praça, no samba e hoje ser o nome da moradia de famílias. O bairro é também onde se situa uma das favelas mais antigas do Rio de Janeiro, o Morro do São Carlos, que é plano de fundo dos conjuntos habitacionais. Nas proximidades, diferente de outras unidades do programa, há fácil acesso e mobilidade, hospitais, transporte, o Batalhão de Choque da Polícia Militar, e se encontra próximo, até mesmo, da sede da prefeitura da cidade. O São Carlos, pacificado em 2011, com a instalação da UPP que tinha como objetivo “implantar a ordem e instalar a paz”, se torna um espaço intermediário para as relações entre os moradores da favela e os novos moradores do bairro. De início, essas relações eram marcadas pelo conflito, intensamente, depois, se criaram diálogos, articulações e resistência. A localização dos conjuntos habitacionais foi bem articulada, facilitando o acesso e o deslocamento dos moradores pelo centro da cidade, que foram privilegiados por morar naquela área, segundo as palavras de Dilma Rousseff:

[...] É muito importante a participação do governador e do prefeito. Por que? Porque aqui é uma região central, é uma região ultravalorizada. Então, é extremamente importante esse ato de transformar esta área, que tem imenso valor imobiliário, numa área para a população brasileira que, para nós, tem imenso valor. Para nós, a população que aqui vai morar é uma população extremamente valorosa. Primeiro, porque é população lutadora: muitos aqui perderam suas casas nas enchentes, nos desastres naturais; outros jamais, nem seus pais, nem seus avós tiveram casa própria; outras moravam de favor com os parentes; outras pagavam aluguel que não cabia no bolso direito. Então, por essas razões eu digo: mesmo considerando o valor imobiliário que aqui seria obtido, tem mais valor para nós a moradia de 998 famílias, tem mais valor (op. cit. ROUSSEFF, D. 2014).

A região central da cidade do Rio, nos seus primórdios, era constituída por camadas que segregavam seus habitantes. Ocupar essa região foi tido como um ato importante para o desenvolvimento da cidade e criou gêneros culturais que, de certo modo, constituíram a identidade nacional. Em uma palestra14 sobre a região central 14. Sociabilidades cariocas em praças e mercados. Evento aconteceu no Museu Nacional (UFRJ), na data de 18 de novembro de 2011.

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da cidade do Rio de Janeiro, intitulada Imagens, reflexos entre judeus cariocas, o professor Daniel Bitter utilizou o conceito de porosidade, desenvolvido por Bruno Carvalho (2013). Essa noção, me levou a refletir sobre a ideia de “valor” exaltada no discurso da ex-presidente ao qual me referi acima. O valor atribuído à população que ocuparia o conjunto habitacional e o local onde ele estava situado, me levou a pensar sobre as sobreposições que acompanharam o desenvolvimento urbano da cidade do Rio, com suas dicotomias e controvérsias. A noção de porosidade me parece interessante para pensar nessa configuração espacial da cidade e das relações que a compõem. Quando falamos nessa porosidade, olhamos para as dicotomias: privado X público, centro X periferia, colocando em evidência também o dualismo que está subentendido na ideia de “valor” acionada pelo discurso da presidente Dilma. Nesse caso, mais do que fronteiras claramente demarcadas entre espaços distintos, fica evidente a fluidez que marca a construção desses espaços na cidade. Esta porosidade, ou fluidez, não é necessariamente positiva. No caso dos moradores do MCMV, pode ser qualificada como uma mistura amarga e doce, que revela a complexidade das formas de ocupação urbana no Rio de Janeiro e como as manifestações e intervenções feitas na cidade afetam o espaço da moradia.

Relações: espaço ocupado, corpo construindo

“Se o espaço se desloca geograficamente […], os seus habitantes o transportam simbolicamente para onde vão” (Velloso, M. 1990, p. 3).

De sonhos a tragédias, agora é Estácio. Mas antes, de onde se deslocaram os sonhos dos habitantes dos conjuntos habitacionais do MCMV?

Tem gente advinda de todo lugar. De gente removida à gente que não tinha lugar para morar. Tem gente já com “uma casa, uma vida”, que está ali só para alugar. Tem gente da favela e gente que viu sua casa desmoronar. Tem gente que veio da mata antes da cidade pisar. Tem gente que foi chamada de “invasor”, por ocupar o espaço vazio de outro lugar. Tem gente que veio de perto, desceu o morro dos fundos para trocar de teto. E tem gente que esperou muito tempo, no alento, para esse sonho realizar. O mais interessante é a cartografia da “gente” que habita Ismael Silva e Zé Keti. Se a casa se define como “a construção cultural de uma dada

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sociedade”, o espaço de moradia do MCMV, aqui estudado, é um espaço

palimpsesto (CARVALHO, 2013), um espaço contendo múltiplas camadas, que sofre

um processo de reescrita.

E dessa reescrita que vou me permitir aqui, ao trazer algumas experiências que pude vivenciar junto aos moradores de Zé Keti, ou mesmo, suas histórias que me foram compartilhadas. Como a de Dona Flora e de todos os moradores que, advindos de territórios onde as “ações da natureza” tiraram suas casas, através de eventos trágicos, esperaram tanto tempo no alento, para enfim terem um lar novamente.

A exemplo, o Morro do Bumba, Niterói, que em abril de 2010, devido às chuvas torrenciais que atingiram várias regiões do Estado – ocasionando desastres, deslizamentos de terra e mortes –, centenas de pessoas ficaram desabrigadas. Famílias que perderam parentes, amigos e suas casas, sem saber para onde ir. Alguns foram se abrigar com parentes e conhecidos próximos, outros, se abrigaram em igrejas, até esperar alguma ação do Estado. E esperaram por muito tempo. Tanto, que alguns moradores desistiram da espera e voltaram para reerguer suas casas no mesmo lugar onde haviam a perdida, em meio aos escombros. O que podiam fazer essas pessoas? Não tinham para onde ir, muito menos pagar aluguel – e com o passar do tempo, famílias tiveram o Aluguel Social15 cortado, logo, não

tinham para onde recorrer, já que a única verba que tinham não teriam mais –, perderam tudo, não obtinham retorno de nada, nenhuma resposta das autoridades. Recorrer ao risco pareceu a única solução. Para Dona Flora16, seus filhos e outras

famílias do Morro do Bumba, a espera de quatro anos, os levou a serem beneficiados e a ganharem um apartamento do MCMV, em outra cidade, outra vizinhança e outros caminhos.

Marisol também foi removida, de uma forma diferente, não pelo risco, – pois, todas as famílias e pessoas viveram em risco – mas pelo trajeto. Indígena, originária de Pernambuco, fazia parte da ocupação da Aldeia Maracanã17, Antigo Museu do

Índio, com mais outros indígenas de diferentes etnias. Depois de diversas 15. Aluguel Social é um benefício do governo, de caráter temporário, para atender pessoas e famílias desabrigadas, advindas de áreas de risco e/ou removidas de algum local. Informação disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/seasdh/exibeconteudo?article-id=1519686> . Acesso em: jul de 2017. 16. Todos os nomes, aqui apresentados, de pessoas que conversei e tive contato durante a pesquisa são fictícios.

17. Antigo Museu do Índio, no bairro Maracanã, que se transformou numa aldeia indígena urbana, resistindo desde o século passado, com indígenas de diversas etnias.

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intervenções truculentas do Estado, desde 2010, por conta de obras urbanas para os megaeventos que ocorreriam na cidade, os indígenas foram retirados, alguns resistiram (e resistem!), não tendo para onde ir em meio ao caos na cidade. No entanto, em 2014, a prefeitura do Rio decide por desterritorializar os indígenas para várias unidades do PMCMV, separando parentes e etnias, – sem saber que, no fim, juntaria aliados. E foi assim, que para o Zé Keti e Ismael vieram Marisol, Jurema e Duarte. Indígenas de etnias distintas, mas que se tornariam além de aliados, uma família.

Esses três conheci no ano de 2016, e também, Maurício, que vivia em Ismael Silva. Juntos participavam de um projeto no Morro do São Carlos de fazer uma horta comunitária, num espaço que ficava “no topo” dos residenciais. Comecei a ir, uma vez na semana, de manhã para ajudar na construção da horta. Da construção as relações. Assim, a partir das conversar tidas ao manusear a terra, se percebera o laço a aliança criada ali entre os moradores. A terra pode ser conflito mas também é união. Enquanto estávamos no terreno, no alto do Morro algumas pessoas ficavam nos observando e, às vezes, “mexiam” e perguntavam o que plantávamos, ou, “cuidado com o que esses índios vão plantar aí, hein? (ao tom de risos)”. Duarte olhava para cima, ria e comentava, calmamente, sobre o ocorrido – que era corriqueiro: “Fica tranquila, esses aí já deram trabalho, mas agora são tudo amigo. Morar aqui requer fazer alianças, senão somos atacados por todos os lados. De algum temos que ficar para haver um equilíbrio”. Um “equilíbrio” que precisou ser articulado, para encontrar uma maneira de se viver bem naquele lugar.

Depois de uma manhã na horta, vamos à casa de Duarte. Chegando, Marisol prepara um suco de frutas para todos os presentes. O edifício onde vivem Marisol, Jurema e Duarte – que inclusive, moram no mesmo andar –, no começo chamava a atenção dos outros moradores. Pois, a prefeitura distribuiu de forma que só houvessem os indígenas habitando, com o discurso de que, “já que eles estão vivendo na cidade, fora de suas terras, colocá-los num mesmo condomínio e prédio pode ajudar a ter lembranças da sua terra”, me contava Jurema enquanto descansávamos da ida à horta. “Como se fosse apagar toda a história”, completa ela, com ar de deboche. Não se apague história nenhuma assim, com “benefícios”, “massageando”, até porque, “quem apanha não esquece”. Não se consegue apagar nem a história do antigo morador, que muitos que ali moram não conheceram mas que o espaço faz questão de rememorar.

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O antigo morador

Em 2003, foi anunciada a sua expulsão, que foi sendo postergada pelos anos até que, em 2010, foi concluída totalmente. Implodia o Complexo penitenciário Frei Caneca, com seus 176 anos, já sem atividades, o morador mais antigo do Estácio. Antes conhecido como Casa de Correção da Corte, o Complexo Penitenciário Frei Caneca, construído na época do Império (1850), era tido como uma prisão modelo elaborada a partir de um projeto de ordem e civilização. No local deveriam ser executadas penas de prisão que incluíam o trabalho dos presos, assim, o complexo penitenciário era considerado uma das “obras mais úteis e necessárias ao país pela influência do sistema penitenciário sobre os hábitos e a moral dos presos” (BRASIL, 1836, p. 28).

Inicialmente, a Casa de Correção da Corte surgiu como uma proposta da Sociedade Defensora da Independência e Liberdade Nacional (1831-1835), em um período marcado por revoltas e levantes após a época do Império. A Casa de Correção foi construída em forma circular para que permitisse a visibilidade de quem a administrava como uma forma de vigilância e controle total do espaço, a partir do modelo panóptico. Algo que veio a se tornar referencial nos projetos arquitetônicos de penitenciárias. Observar, saber de tudo para, então, cuidar de tudo, da privação da liberdade de quem ali habitava, passando de Casa de Correção da Corte ao presídio Frei Caneca. A presidente Dilma Rousseff se referiu ao presídio em seu discurso de inauguração dos conjuntos habitacionais do MCMV:

[…] aqui era um presídio, aqui as pessoas eram presas. Há 200 anos isso acontecia aqui. Muitos presos passaram por aqui, inclusive presos políticos, por exemplo: um grande escritor brasileiro, Graciliano Ramos, esteve preso aqui no complexo Frei Caneca; um líder como Luís Carlos Prestes e sua mulher, Olga Benário, que foi morta depois, pelo Hitler, pelos nazistas. Então, aqui era um lugar onde a privação da liberdade era regra. E hoje eu cumprimento o governador Pezão, o ex-governador Sérgio Cabral, cumprimento o nosso prefeito trabalhador, porque vocês têm um prefeito trabalhador, o nosso prefeito trabalhador Eduardo Paes, por ter transformado um lugar que era presídio num lugar de alegria, de moradia de famílias, de criação de crianças e de oportunidade para todos vocês” (op. cit. ROUSSEFF, D. 2014).

E foi graças às autoridades do Rio de Janeiro que as 998 famílias ocuparam um espaço que antes era composto por grades do presídio e hoje, constituía sua casa própria. O espaço que foi posto abaixo, carregava rebeliões, encontros políticos e históricos, memórias do cárcere que podiam ter partido junto com os escombros do antigo morador do local. Mas seu portal de entrada permaneceu e passou a fazer parte da história de um novo lugar e de outros indivíduos, que poderiam nem imaginar o que se passou ali antes de se mudarem para aquele local. Porém, a porta pode ser uma ponte do imaginário para a realidade.

Referências

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