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Vista do Pensando a Relação entre Gênero e Cidadania, a partir de um Estudo de Caso da Página Feminina de A Gazeta

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Pensando a Relação entre Gênero e Cidadania, a partir

de um Estudo de Caso da Página Feminina d'A Gazeta

Gisely Valentim Vaz Coelho Hime

Docente do Programa de Mestrado Profissional em Jornalismo do FIAM FAAM Centro Universitário. Resumo

O século XX foi palco da organização tanto feminina, quanto da sociedade em geral, em prol de conquistas fundamentais no campo político-social. Profissão, instrução, direitos políticos tornam-se parte do vocabulário feminino, ao lado de antigos conceitos, como maternidade e cooperação, que, por sua vez, são revistos. Este artigo propõe-se a analisar tal evolução por meio de um estudo de caso da Página Feminina d'A Gazeta. A escolha justifica-se pois este vespertino paulistano tornou-se um dos jornais mais modernos da América Latina nos anos 1940, inovando no cenário jornalístico brasileiro, ao lançar, em 1929, uma seção destinada à mulher.

Palavras-chave

Mulher; Cidadania; Página Feminina; A Gazeta.

Abstract

The twentieth century was the scene of female mobilization and also society in general, in favor of fundamental achievements in the political and social field. Profession, education, political rights become part of the female vocabulary, next to old concepts, such as maternity and cooperation, which are reviewed. This article proposes to analyze these developments through a case study of the Página Feminina of A Gazeta. The choice is justified because this journal became one of the most modern newspapers in Latin America in the 1940s, innovating in the Brazilian journalistic scene, launching in 1929, a section aimed at women.

Keywords

Women; Citizenship; Página Feminina; A Gazeta.

Introdução

Ser cidadão, no Brasil, é uma categoria cercada de preconceitos. Num país em que o que conta são as relações, na terra do “você sabe com quem está falando?”, a igualdade implícita no conceito de cidadania ganha a conotação negativa de estar abandonado à impessoalidade das leis. Conforme analisa o antropólogo Roberto DaMatta, “no Brasil, o indivíduo isolado e sem relações, a entidade política indivisa, é algo considerado como altamente negativo, revelando apenas a solidão de alguém que, sem ter vínculos, é um ser humano marginal em relação aos outros membros da comunidade” (DaMatta, 1985, p. 65). E continua:

Seria isso que permitiria explicar os desvios e as variações da noção de cidadania. Pois se o indivíduo (ou cidadão) não tem nenhuma ligação com pessoa ou instituição de prestígio na sociedade, ele é tratado como um inferior. Dele, conforme diz o velho ditado brasileiro, quem toma conta são as leis (DaMatta, 1985, p. 66).

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cidadão comum, principalmente se se trata de uma cidadã.

Temos aqui o encontro de lutas intensas para agregar valor positivo a uma significação sócio-cultural. A exemplo do ocorrido no âmbito da cidadania, as mulheres enfrentam o preconceito da desvalorização, revelado no rótulo de frágeis, fúteis, menores. O século XX foi palco da organização tanto feminina, quanto da sociedade em geral, em prol de conquistas fundamentais no campo político-social. Vemos a mulher assumir novas posições no mercado de trabalho, atuando ao lado do homem nas mais variadas profissões. As inovações culturais e tecnológicas têm sobre ela um efeito transformador talvez ainda maior do que sobre ele. Se até pouco tempo só saía acompanhada em passeios a pé ou de carruagem, passa a ser vista ao volante de automóveis. Começa a frequentar cinemas, o que a expõe às novas atitudes das estrangeiras. Na década de 1930, chegam ao Brasil os ecos das vitórias feministas nos Estados Unidos e Europa. Em 1934, finalmente as brasileiras conquistam o direito ao voto. Ao mesmo tempo, registramos as lutas dos sindicatos e partidos políticos pela regulamentação do mercado de trabalho, por direito à participação política, por atendimento médico, escola. Em diversos momentos, cidadania e gênero tornam-se uma só questão. Os objetivos da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, fundada em 1922 e filiada à Aliança Internacional pelo Voto Feminino, são uma prova disso:

1. Promover a educação da mulher e elevar o nível de instrução feminina. 2. Proteger as mães e a infância.

3. Obter garantias legislativas e práticas para o trabalho feminino.

4. Auxiliar as boas iniciativas da mulher e orientá-la na escolha de uma profissão.

5. Estimular o espírito de sociabilidade e de cooperação entre as mulheres e interessá-las pelas questões sociais e de alcance público.

6. Assegurar à mulher os direitos políticos que a nossa Constituição lhe confere e prepará-la para o exercício inteligente desses direitos.

7. Estreitar os laços de amizade com os demais países americanos, a fim de garantir a manutenção perpétua da Paz e da Justiça no Hemisfério Ocidental (Teles, 1993, p. 44).

Profissão, instrução, direitos políticos passam a fazer parte do vocabulário feminino, ao lado de conceitos mais antigos, como maternidade e cooperação, que, por sua vez, começam a ser revistos. Por isso, acreditamos que tratar de gênero no século XX é tratar da cidadania e vice-versa. E daí a metáfora que forjamos para falar desse processo de transformação da mulher: a renovação do guarda-roupa. Ainda insegura, a mulher mistura peças arrojadas a um figurino clássico. Por vezes, acerta. Em outras, escorrega. Tenta de novo, arrisca. Olha no espelho e recomeça.

Nosso espelho será a Página Feminina d'A Gazeta. Este vespertino paulistano que se tornou, sob a direção de Cásper Líbero, um dos jornais mais modernos da América Latina nos anos 1940, inova no cenário jornalístico brasileiro, ao lançar, em 1929, uma seção especialmente destinada à mulher. A iniciativa faz parte do projeto de modernização editorial do veículo, que inclui ainda o lançamento, também pioneiro, de um suplemento esportivo – a

Gazeta Esportiva – e de um suplemento infantil – A Gazetinha –, este, saindo três vezes por

semana. O sucesso do suplemento esportivo é tão grande que, já no ano seguinte, ganha vida própria. Atendendo a vários pedidos, notadamente de leitores do interior do Estado, a empresa resolve aceitar assinaturas para a edição esportiva. Em 1931, com apenas três anos de vida, o suplemento em tamanho tablóide preenche dezesseis páginas.

Considerando que o jornalismo exerce grande influência sobre os espíritos, o vespertino busca abrir as portas para a discussões dos grandes temas da atualidade, estimulando o debate intelectual e levando ao povo informações às quais não tem oportunidade de acesso. Tenta, ao

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mesmo tempo, alimentar o espírito das elites e instruir a população de baixa renda, numa tentativa de promover a formação cultural da sociedade brasileira. Adepto da fórmula “saber é poder”, Cásper Líbero acredita que a construção do progresso do País está atrelada à formação cultural das elites. Por isso, promover a cultura significa, numa segunda instância, a promoção do espírito cívico.

Unindo-se ao ideário de toda uma geração, maravilhada com o que o homem ainda é capaz de inventar, Cásper acredita no progresso, como mola propulsora da sociedade no século XX. Sob este signo, desenvolve-se A Gazeta. E, a partir do momento em que começa a ser sinônimo de um jornal moderno, em constante evolução, funde o seu ideal de progresso ao ideal de progresso de São Paulo.

Devemos destacar que, nessa época, forja-se o lema “São Paulo não pára”. É a cidade do progresso, da modernidade. E essa imagem, pouco a pouco, vai sendo incorporada pel'A

Gazeta. Numa primeira instância, na postura administrativa, pelos investimentos na

modernização da empresa, manifestos na reforma e na construção de novas instalações mais adequadas às necessidades da produção jornalística, na compra de maquinário de última geração e no estabelecimento de uma política de recursos humanos. Numa segunda instância, pela postura editorial, que se revela na linguagem – pela exaltação de tudo o que representa desenvolvimento, avanço, modernidade –, na pauta – pelo tratamento privilegiado concedido aos temas vinculados ao progresso ou ao futuro, tais como urbanização, transportes, educação, industrialização, entre outros – e nas ações – pela vinculação do nome da empresa a eventos, campanhas e demais promoções que sejam signo de modernidade (aviação, cultura americana) ou que representem o futuro da Nação (estudantes). No entender d'A Gazeta, São Paulo é a locomotiva do País na construção de uma Nação maior e melhor. Para Cásper, a União Nacional com progresso só é possível tendo São Paulo à frente. Por isso afirma que o vespertino está “a serviço de São Paulo, do Brasil”. Para ele, estar a serviço de São Paulo é estar a serviço do Brasil.

A Gazeta passa a ser identificada como o jornal dos paulistanos, o que atende

plenamente aos seus objetivos. A soma da paixão por São Paulo à concepção de jornalismo enquanto instrumento a serviço dos interesses coletivos só poderia levar Cásper a ter como objetivo transformá-la no jornal por excelência dos paulistanos. E ele chega lá. O radialista Nicolau Tuma (1998), contemporâneo de Cásper, destaca que, o vespertino tornou-se leitura obrigatória para os paulistanos que não retornavam para casa, no final do dia, sem levá-lo debaixo do braço. Por sua vez, um jornalista do Correio Popular, em Campinas, ao visitar as novas instalações do jornal, em 1940, afirma:

[...] o visitante que chegasse à capital bandeirante e tivesse tempo só para visitar as instalações esplêndidas daquele rico vespertino e nada mais, levaria da cidade e do estado a impressão mais lisonjeira e alevantada de nossa cultura, da importância das nossas preocupações culturais, da importância das nossas fontes de publicidade e da onipotência dos nossos jornais (A Gazeta, 1940, p. 1).

E continua: “Mais duas ou três instalações iguais e São Paulo terá montado o melhor parque da indústria jornalística do continente” (A Gazeta, 1940, p. 1).

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1. Aproximando-se do Espelho: um Pouco Mais sobre A Gazeta da

Mulher

Lançada em abril de 1929 e a partir de então publicada todos os sábados, A Página

Feminina d'A Gazeta traz todos os ingredientes que compõem a imprensa feminina nos anos

1930. Tem moda, beleza, contos, novelas e romances, resenhas literárias, reportagens diversas, culinária e trabalhos manuais, comportamento e cinema, poesia e pensamentos.

Surge na esteira do sucesso do Concurso Mundial de Beleza, promovido no início de 1929 e que, em São Paulo, contou com o apoio do vespertino. Antecessor dos concursos de misses e, como estes, organizado por fases, escolheria a moça mais bonita de cada Estado, na seqüência, a mais bonita do País, que, por sua vez, disputaria, nos Estados Unidos, o título mundial.

Na verdade, a seleção começa por bairro. Ou seja, após escolher a moça mais bonita de cada bairro paulistano, passa-se à escolha da mais bonita da cidade e, aí sim, da mais bonita do Estado. Diariamente A Gazeta publica cupons, que devem ser recortados, preenchidos e novamente enviados ao jornal, assinalando a preferência popular. Uma curiosidade: Patrícia Rehder Galvão, a conhecida intelectual e jornalista Pagu, fica com o terceiro lugar no distrito da Liberdade, registrando 6.820 votos (A Gazeta, 1929, p. 4). Para promover o Concurso, A

Gazeta realiza chás dançantes, filmados pela Rossi Filme para posterior divulgação nos

cinemas, antes da projeção. A Miss São Paulo é escolhida a 4 de maio, no Teatro Municipal. Cásper Líbero faz a apresentação do evento, concorridíssimo na sociedade paulistana. Uma verdadeira noite de gala.

A festa maior, contudo, acontece alguns meses depois, em setembro, com a eleição da nossa Miss Brasil, Yolanda Pereira, para Miss Universo. O Brasil não cabe em si de contentamento. Na sua edição do dia 8, A Gazeta traz a cobertura completa do evento que foi um sensacional golpe de marketing – se pudermos falar em marketing nesses tempos! A tiragem alcança 200 mil exemplares e o papel se esgota. No dia 15, o vespertino dedica toda a sua primeira página à nova Miss Universo.

Além do aspecto promocional, de incentivo a vendas, o patrocínio do Concurso Mundial de Beleza deve ser visto também como a inserção d'A Gazeta no universo de transformações pelas quais passa a mulher no século XX, apresentando-se como sua intérprete. No caso do Concurso, devemos observar que se a beleza feminina sempre foi exaltada na História da Humanidade, sob os mais diferentes aspectos, inclusive o da prostituição que lhe agrega pioneiramente um valor de troca, com a entrada neste novo século, torna-se efetivamente mercadoria por intermédio, primeiro, das atrizes hollywoodianas e, posteriormente, das modelos. Mudanças comportamentais como essas e outras, tais como, inserção no mercado de trabalho, intensificação da produção intelectual feminina, crescente atuação política e gradativa negação da dedicação exclusiva ao lar são refletidas na Página

Feminina, em artigos e reportagens, nem sempre conscientes da profunda significação do que

retratam, mas preciosíssimos pelo seu registro.

No mês de lançamento, por exemplo, a proposta de retratar a mulher moderna é desenvolvida com excesso de timidez, apenas se deixando entrever em pequeninas notas e comentários – como se, com receio, iniciássemos a renovação de um guarda-roupa, por anos, clássico, tradicional, incluindo aqui e ali peças de vanguarda, extravagantes, talvez, mas ainda mescladas ao formal. Em outras palavras, neste primeiro momento, a Página Feminina reflete o processo de transformação por que passa a mulher e o questionamento da sua cidadania. Por esse motivo, optamos por tomar como base os dois textos principais da primeira edição, textos que trazem as estruturas fundamentais da imagem de mulher que nos apresenta A Gazeta neste momento. São eles A Moda, assinado pelo pseudônimo Cinderela – que apresenta as

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novidades de Paris, aproveitando para um comentário de hábitos e costumes –,

Quem dirá jamais com palavras bastante leves e espirituais o encanto das ruas de Paris? […] os “boulevards” chamam, seduzem como uma mulher inteligente e bela quando ama: isto é, irresistivelmente.

O homem pega o seu chapéu, sua bengala e sai. Vai pelas calçadas sem destino, “flanant”. […] Em Paris dir-se-ia que o gênio dos seus homens célebres, que a “coqueterie” de suas grandes damas ficou errando na luz e no ar e que vendo a beleza nas perspectivas seredeles é feita a alma dos “boulevards”.

E o passeante vai... […] embevecido em mil pequeninos nada, o olhar (...), na graça das mulheres que passam.

A graça da parisiense... o “chic”, palavra que para ela foi criada, e que nenhuma língua traduz... Mas afinal, em que consiste ele? […] É feito antes da linha flexível da silhueta, da harmonia dos pequenos acessórios, e principalmente da ciência profunda da escolha da “toilette”, segundo o tipo daquela que o traz. Esse é o segredo máximo da parisiense, o condão mágico de sua decantada fascinação.

Ela crê que se alguém lhe diz: […] “Como está formosa hoje”, então a satisfaz, porque neste caso o traje não se faz notar por si mesmo, porém completou harmoniosamente um perfeito conjunto de arte e beleza [...](A Gazeta, 1929, p. 4, grifos da autora).

e Chapeuzinho Vermelho, de Nuto Sant'Anna, responsável por uma crônica de costumes a cada edição. A partir deles, iremos desfilando as peças deste nosso guarda-roupa, pontuando com “acessórios” sugeridos por outros textos que figuram nestas quatro primeiras edições.

[…] À essa hora, rolando pelo asfalto, de salto alto, vai para a costura. À essa hora, à essa hora, uma voz sonora, uma voz em seu ouvido trêmula, murmura: “O frio, “gilette” de dois cortes, te corta a face em que o branco edelweiss dos Alpes nasce; o frio na perna a pele te arrepia, Ave Maria!; o frio te morde o braço, o frio te arrochea o regaço, o frio te tolhe o passo... […] E a costureira, “bibelot” de porcelana, quase a correr, assustadiça, branca de alvaiade, branca de caliça, no frio a anavalhar como os jiças de cana – arde por dentro, toda em medo, sua. E a voz, que a persegue, continua, entra-lhe pelos ouvidos, n'alma se lhe insinua. Diz. A voz diz: “Vai tão nua... E nada custa a gente ser feliz... Quase a correr? Por que tamanho medo costureirinha? Olha, trago um brilhante para o teu dedo! Para o teu ombro, um manto de rainha! Que linda não ficarás, tu que a graça resumes, toda envolvida em seda, cheia de brilhos e cheia de perfumes, nos meus braços a arder como uma labareda! Por que vais assim? Espera, ouve este choro, ouve esta prece, de quem te segue de joelho: aceita, ao menos, para os teus cabelos de ouro, um chapeuzinho vermelho...”

Na cerração, agora, poeira dourada pelo olho sem pálpebra do sol, movem-se as coisas numa fantochada, como bonecos de um grand-guignol...

E aquela voz de que tudo se enche, diz, rediz: “Ai, nada custa a gente ser feliz...”

Surda, séria, segue. Não a comove a voz atroz que insiste, que a persegue, que dela vai empoz, atroz, atroz...

No horizonte, à sua frente, uma chaminé sobe perpendicularmente: piteira de tijolo, de perfil bizarro, cor de barro, de que se evola o fumo de um cigarro... Ainda é agora maior seu grande medo. E a voz atroz, que soa, que atordoa, que lhe fala em segredo, caminha! Quase a correr, tremem-lhe as pernas! Corre. E vai a deixar, por onde passa, como uns andrajos da sua graça, uma esteira a fulgir dos seus aromas.

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Quase a ofegar alcança a tenda em que trabalha. Num susto, curiosa, ainda se volta: e vê à esquerda, a dois passos da oficina, a namorar-lhe o corpo moço de menina, dois olhos de gavião sob um chapéu de palha...

À tarde, volta. E a mesma voz dorida, o mesmo olhar ardente, toda uma confissão em que se arrasta uma vida, vai a segui-la apaixonadamente, mente, mente...

A voz já não a espanta; e a voz, agora, canta, como um hino que ressoa e que é todo um desejo: é bem uma flor o beijo, que se pode colher sem arrancar a planta...

Ouve-a calada. É uma estátua de nácar iluminado: brilha-lhe o bronze do cabelo belo; fulge-lhe as ancas, ancas sonoras de violoncelos; no beiço sangra-lhe o sangue das pitangas. E ambos os braços seus, sem mangas, são os braços de Vênus, que ela os achou, de tão perfeitos. O seu andar fez-se das curvas oleosas dos ofídeos; e a saliência dos seus peitos tem um impulso de broto, a meter os bicos no corpinho; e o seu corpo todo é um jardim de rosas, é um pomar de frutos ácidos, cheio de odor picante. E assim, tenra e solteira, implume passarinho, lá se vai a tentar, com a graça embriagante de um copo de cristal cheio de vinho...

Vai. De repente pára. Entra uma porta. É a sua. Porta pobre. Porta feia. Porta de quitanda. Em frente, um bando de meninas gira, em meio à rua, cantando a d. Sancha da Ciranda...

E por manhãs e tardes, na ânsia em que anseia, a mesma voz rouxinoleia, a mesma voz moendo continua – continua, flutua, e se insinua em seu ouvido, como um diamante viril, riscando a face nua da imaculada lâmina de um vidro...

Assim foi... Assim foi... Depois, um belo dia, flor que não volveu à loja em que floria, flor que ninguém sabe já por onde anda, flor que o sol tinha no olhar e nas faces a lua, flor que não tornou a entrar a porta da quitanda... Nem mais ouviu cantar, em sua rua, a dona Sancha da Ciranda...

Rolou para a calçada, ensangüentada, desfolhada, por não ter, para a livrar do perigo, um conselho, por não ter, para a sua defesa, um só espinho. Chapeuzinho vermelho tinha encontrado o lobo em seu caminho... (A Gazeta, 1929, p. 4, grifos da autora).

2. Guarda-Roupa Básico: Cinderela, Chapeuzinho e a Mulher-Flor

A construção da mulher contemporânea proposta pel'A Gazeta parte de três mitos fundamentais: Cinderela, Chapeuzinho e a Mulher-Flor. Nos meses iniciais da Página

Feminina, o mito de Cinderela destaca-se na assinatura da seção Moda – presença constante

em todas as edições – e também numa matéria sobre pés, enquanto símbolo da vaidade feminina. Diz o texto que é pelos pés que se começa a contemplar uma mulher. Valorizados pelos sapatos, devem ser diminutos:

(...) é uma necessidade vital para as damas. Nem se conhece mesmo na terra, damas que tenham os pés que passem ou ultrapassem o 35 da escala dos sapateiros... O número do sapato é primo-irmão do número de anos... É um número misterioso que só se conhece muito superficialmente e que, a cada passo, se contradiz com uma sem cerimônia espantosa... (A Gazeta, 1929, p. 4, grifos da autora).

E fazendo referência à Cinderela: “(...) O seu sapatinho encantado (...) foi a chave que lhe abriu a porta da felicidade. E porque era pequeno... E porque não cabia nos pés de mais

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ninguém...” (A Gazeta, 1929, p. 4, grifos da autora). A mulher identificada à figura de Cinderela remete-nos à série de imagens registradas pela literatura infantil, onde a menina é transportada sempre para a “janela da torre do castelo, de onde espia o mundo passivamente enquanto aguarda o príncipe encantado” (Whitaker, 1988, p. 37). Em contraponto, o homem aparece como o senhor dos boulevards parisienses, dos parques, dono do próprio nariz, errando sem destino... Como destaca Dulce Whitaker, ao menino é proposto “um mundo aberto a todos os tipos de preocupações, aventuras e fantasias” (Whitaker, 1988, p. 37). Dessa forma, enquanto os meninos são preparados para conquistar o mundo que, desde sempre, é o seu domínio, “no cotidiano da garotinha (...), todas as imagens que vão impregnando o imaginário da menina recordam-lhe sem cessar seu destino inexorável” (Whitaker, 1988, p. 37): o lar.

Esta oposição ilustra bem o discurso do antropólogo Roberto DaMatta. Segundo ele,

[...] qualquer evento pode ser sempre “lido” (ou interpretado) por meio do código da casa e da família (que é avesso à mudança e à história, à economia, ao individualismo e ao progresso), pelo código da rua (que está aberto ao legalismo jurídico, ao mercado, à história linear e ao progresso individualista) e por um código do outro mundo (que focaliza a ideia de renúncia do mundo com suas dores e ilusões e, assim fazendo, tenta sintetizar os outros dois) (DaMatta, 1985, p. 41).

Nesse sentido, a mulher estaria associada ao código da casa, compreendendo este enquanto “espaço marcado pela familiaridade e hospitalidade perpétuas que tipificam aquilo que chamamos de ‘amor’, ‘carinho’ e ‘consideração’” (DaMatta, 1985, p. 46). Por sua vez, o homem aparece ligado ao código da rua, enquanto espaço do cada um por si, de luta e malandragem, uma zona livre, onde se destaca a agressividade. Daí também a associação aos impulsos animais – lembremos do homem-lobo e do homem-gavião.

Destacamos aqui o sentido de agressividade utilizado por Dulce Whitaker, segundo o qual

[...] agredir significa originalmente mover-se em direção a alguma coisa, o que pode ser feito com ou sem violência. Para os psicólogos, indivíduos agressivos são aqueles que orientam rapidamente suas ações no sentido de obter satisfações relativas a seus objetivos e necessidades. Seu contrário é o indivíduo passivo, aquele que assiste ou espera que as coisas se encaminhem (Whitaker, 1988, p. 28).

Whitaker enfatiza que “as meninas (...) são ensinadas desde muito pequeninas a reprimir sua agressividade, devendo ser ‘meiguinhas’ mesmo quando não nasceram com tendências a desempenhar tal papel” (Whitaker, 1988, p. 28). Sendo assim, a valorização da “Mulher-Cinderela” contribui para a repressão da agressividade feminina, estimulando a mulher a se manter restrita ao domínio doméstico.

É exemplo do que Albert Hirschman (1992) chamaria de tese da perversidade – enquanto percepção da mudança como um processo incontrolável, o qual, no entanto, é preciso deter – e de tese da ameaça – enquanto percepção da mudança como um processo nefasto que colocará em perigo a ordem existente. A mulher é alertada para o perigo das ruas, domínio do homem, uma vez que é apresentada como a encarnação própria da fragilidade, prestes a ser devorada pelo lobo mau – o que de fato acontece na crônica de Nuto Sant'Anna. De qualquer forma, seja como Cinderela, seja como Chapeuzinho, o destino da mulher

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encontra-se nas mãos do homem: ou para a felicidade eterna ou para a desgraça total. E na desgraça total é construída a belíssima metáfora da mulher-flor, recorrente em vários textos. Em Chapeuzinho Vermelho, a mulher-flor representa a pureza, o ser intocado, frágil e sem defesas (sem espinhos). Por isso mesmo, a mulher foge, corre, teme. Não encontra ajuda. Não há o que fazer diante do perigo eminente. Assim, é deflorada, despetalada.

Mas a mulher-flor também seduz com o seu perfume. Atiça os homens com formas e cores. Enfeitiça-o. Acompanhando as palavras grifadas nos textos, percebemos que esta imagem é construída a partir da associação da figura feminina à idéia de sedução, beleza, atração irresistível, coquetismo, graça que embevece a todos, elegância, decantada fascinação. Diante disso, o homem fica, de certa forma, eximido de parte da sua responsabilidade no relacionamento amoroso: como se disséssemos que o lobo não é tão mau assim; pois, Chapeuzinho foi cutucá-lo com vara curta e, portanto, tem a sua parcela de culpa! Novamente nos vemos diante da duplicidade casa e rua. A mulher que seduz seguramente é a mulher da rua: pela descrição física – ancas fulgidias, ancas sonoras de violoncelo –, ousamos dizer, a mulher mulata, a quem se permite circular fora do domínio do lar. Permite-se, mas cobra-se. A mulata não tem direito à aura da “rainha do lar”. Não tem direito ao respeito, quase devoção, da sociedade. E, por tudo isso, mais uma vez se revela o discurso da ameaça: aquela que ousar se comportar como uma mulata, deverá arcar com o ônus social do seu comportamento. Por outro lado, à mulher idealizada, perfeita, um “bibelot de porcelana”, a essa mulher deve-se adorar como a uma rainha, deve-se cobrir de presentes e mimos.

3. Como se Renova um Guarda-Roupa

Mas se demonstra resistência em aceitar certas alterações no papel que a mulher desempenha na sociedade, A Gazeta, pouco a pouco, introduz a diferença ao revelar o que chamamos de “Nova Mulher”, a “Mulher Ação”, ao mesmo tempo que reforça as imagens de “Mulher Cinderela”, a “Chapeuzinho Vermelho” ou ainda a “Mulher-Flor”. Esta “Nova Mulher” é aquela que conquista novos espaços na sociedade, onde quer que se apresentem, como sublinha a reportagem A Moda e os Defeitos Físicos. Após um breve histórico, onde demonstra como a moda serviu outrora para dissimular defeitos, o texto destaca que, nos anos 30, a moda tende a liberar os movimentos da mulher para novas situações. E a seção A Moda, por Cinderela, completa: exige-se dos costureiros que acompanhem com elegância a multiplicidade de novas situações que a vida moderna propõe à mulher.

Esta nova figura de mulher revela-se também nas pequenas notas que entremeiam as reportagens da Página Feminina. Por meio delas, ficamos sabendo que Diana Strinckland deu “mais uma prova da resistência feminina” (A Gazeta, 1929, p. 4, grifos da autora). Há anos atravessou a pé a Bélgica e “agora”, de automóvel, a África. Na mesma época, era recebida, nos Estados Unidos, com grande entusiasmo, Lady Heath, aviadora inglesa, detentora do recorde de altitude em avião leve, 8.250 m. “Em maio de 1928, realizou o célebre raide de Cidade do Cabo até Londres (...); possui 200 medalhas esportivas e já tomou parte nos jogos olímpicos” (A Gazeta, 1929, p. 4). Além disso, registravam-se vitórias femininas nas eleições mundiais, “enquanto no Brasil ainda se procura resistir tenazmente à invasão feminista” (A Gazeta, 1929, p. 4, grifos da autora).

Ora, a luta pelo direito ao voto é, como destacamos no início deste artigo, uma das principais lutas da mulher neste momento, em todo o mundo. Ao valorizá-la, a Página

Feminina, de certa forma, aceita a diferença quase instaura, aos poucos, no modelo vigente

das relações de gênero, compreendendo que não pode impedir o processo de mudança. É a mulher exercitando a agressividade que lhe é negada e se arriscando a ganhar o domínio da rua. Temos assim “peças extravagantes” invadindo aqui e ali o tradicional guarda-roupa

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feminino dos anos 1930.

Em sua obra O Cotidiano e a História (1992), Agnes Heller analisa como do confronto permanente entre a moral dominante e as morais individuais nasce a possibilidade de mudança. O confronto gera condições favoráveis para a percepção da dualidade da moral, no sentido da não identificação da moral dominante com a moral absoluta. O indivíduo que percebe na estrutura da vida cotidiana aquelas instâncias que impedem o seu desenvolvimento genérico é capaz de desmontar a cadeia de composição da moral dominante e buscar novos canais de interação com o meio e os homens. É um processo simultâneo de desfetichização do mundo e de engajamento na realidade. Nesse sentido, o processo de desalienação passa fundamentalmente pelo desprendimento dos velhos modelos e implica mudanças concretas na vida cotidiana. Dessa forma podemos explicar o aparente conflito de morais que se espelha na seção feminina d'A Gazeta.

Roberto DaMatta ressalta que “a mulher é básica porque ela permite relacionar e, quase sempre, sintetizar antagonismos e conciliar opostos” (DaMatta, 1985, pp. 108-109). Ao longo da História, a mulher tornou-se o campo de realização dos antagonismos. Na imagem da

Página Feminina, a mulher é a deusa intocável, dos “braços de Vênus”, e a mulata

desfrutável, das “ancas de violoncelo”. “Como fez Nossa Senhora conciliando o humano com o divino, o sagrado e o profano” (DaMatta, 1985, pp. 108-109), a mulher é o sexo frágil que gera e alimenta famílias inteiras, acumulando jornadas de trabalho e engolindo em seco desejos, sonhos, paixões, em nome dos desenhos, sonhos e paixões dos outros.

A diferença, contudo, sempre fez parte da história da mulher, apesar de somente destacada neste século pelas lutas feministas, em cuja essência se esconde a questão de cidadania. Como bem destaca Antônio Flávio Pierucci, “somos diferentes. É preciso reconhecer” (Pierucci, 1990, p. 26). Contudo, o “múltiplo jogo das diferenças” foi sendo dia-a-dia escondido pela “’mesmice’ construída em cada lado da oposição binária” (Pierucci, 1990, p. 26) – a oposição homem-mulher.

Maria Odila L. da Silva Dias afirma:

Não há porque considerar a oposição masculino/feminina tal como se apresenta hoje, como uma carga de definições culturais herdadas do passado, como se fossem necessárias e fixas ou inatas. Trabalhar no sentido de vencer essas polaridades, tanto das relações de gênero como de categorias de pensamento, implica lidar com os problemas teóricos de mudança, ruptura e descontinuidades históricas (Dias In Costa & Bruschini, 1992, p. 42).

Consideramos esta afirmação fundamental para se começar qualquer discussão no campo das relações de gênero. De fato, como bem demonstra Simone de Beauvoir, na Segunda Parte da obra O Segundo Sexo (1980), ao longo da História da Humanidade, o posicionamento da mulher na sociedade alterou-se consideravelmente. Tais alterações corresponderam a elaborações e reelaborações sócio-culturais da figura feminina, pontuando de altos e baixos o processo de dominação/opressão do homem sobre a mulher.

A compreensão dessa mobilidade é um dos princípios básicos da construção da figura feminina enquanto objeto de estudo, principalmente sob as perspectivas lançadas pela História Nova Francesa, a partir dos anos 1930. Conforme destaca Maria Odila,

[...] esses historiadores preferiam ater-se à história dos seres vivos e concretos e à trama do seu quotidiano, uma conjunto emaranhado de suas múltiplas funções, atividades, preocupações, atitudes variadas que se

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entrerrelacionavam em conflito, acabando por constituir um modus vivendi. Este, sim, seria o tema do historiador social, do historiador das mentalidades (Dias In Costa & Bruschini, 1992, p. 46).

De fato, uma das grandes contribuições dos historiadores dos Anais foi a valorização desse complexo de relações em que se inserem os seres vivos, ou melhor, a partir das quais se definem, muitas vezes, os seres vivos. Heleieth Saffioti concorda com Beauvoir – e nós, com ela – na formulação do gênero enquanto uma maneira de existir do corpo e deste, enquanto campo de possibilidades culturais recebidas e reinterpretadas. Mas ressalva que tal formulação é insuficiente para definir uma mulher. “Esta definição só se processa através da atividade desta mulher na sociedade” (Saffioti In Costa & Bruschini, 1992, p. 190), afirma. E “isto equivale a dizer (...) que o gênero se constrói-expressa através das relações sociais” (Saffioti In Costa & Bruschini, 1992, p. 190).

Por isso, ousamos afirmar que é no campo das diferenças que gênero e cidadania se encontram. Somente a partir do momento em que se reconheça a diferença como instrumento que permite a plena realização do indivíduo na sua especificidade, que tanto as lutas engendradas pelas mulheres, quanto os movimentos de cidadania conseguirão agregar valor positivo à sua significação sócio-cultural. Nesse sentido devemos trabalhar pela construção de uma sociedade em que as pessoas – homens e mulheres, todos cidadãos – se sintam incluídos sempre, excluídos jamais. Daí retornarmos à nossa metáfora inicial – a renovação do guarda-roupa –, para enfatizarmos a importância de estarmos sempre de porta-abertas para a inclusão de novas peças, como também o cuidado que deve cercar a decisão de jogar fora as antigas. Uma olhadela atenta ao espelho e à nossa volta evitarão, por certo, possíveis enganos. Muitas vezes, desastrosos!

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1980.

COSTA, Albertina de Oliveira & BRUSCHINI, Cristina (org.). Uma Questão de Gênero. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Ventos/Fundação Carlos Chagas, 1992.

DAMATTA, Roberto. A Casa e a Rua: Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil. São Paulo, Editora Brasiliense, 1985.

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Paz e Terra, 4ª edição, 1992.

HIRSCHMAN, Albert O. A Retórica da Intransigência. Companhia das Letras, 1992.

PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. Tempo Social; Rev. Social. USP, São Paulo, 2 sem., 1990.

TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve Histórica do Feminismo no Brasil. SP: Brasiliense, 1993. Col. Tudo é História, p. 44.

WHITAKER, Dulce. Mulher & Homem - O Mito da Desigualdade. São Paulo, Editora Moderna, 1988.

Entrevista concedida pelo radialista Nicolau Tuma na Escola de Comunicações e Artes da USP, aos

alunos de pós-graduação da disciplina de História do Radiojornalismo, em 9 de junho de 1998.

Periódicos:

A Gazeta, 28 de fevereiro de 1929. A Gazeta, 14 de março de 1940.

Referências

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