Levando a vida na flauta: uma proposta de musicalização na flauta doce
Clarice Cabral Universidade de Brasília clarice.cabral@gmail.com Maria Cristina de Carvalho Cascelli de Azevedo Universidade de Brasília criscarvalhocazevedo@gmail.com Resumo: Este relato de experiência se propõe apresentar uma proposta de musicalização na flauta doce concretizada na elaboração de um Caderno Musical: Levando a Vida na Flauta. Este se fundamenta em princípios pedagógico-‐musicais de autores da Educação Musical como Swanwick (2003), França (2013), Koellreutter (1987), Schafer (1991), Castro (2004), Weiland, Sasse, Weichselbaum (2008). O Caderno Musical visa conciliar a execução instrumental, a criação e a introdução a leitura musical de forma lúdica e coletiva em que o professor assume o papel de mediador e motivador do conhecimento musical para o desenvolvimento da autonomia e da musicalidade do aluno. O material didático foi elaborado para aulas coletivas de musicalização pela flauta doce nas comunidades atendidas pelo projeto de extensão Musicar. O texto a seguir relata o Programa Musicar, seus objetivos e ações, o Caderno Musical e os critérios de seleção e organização das atividades, o relato das aulas realizadas no (CEDEP) comunidade do Paranoá – DF e uma análise da experiência musical das crianças com o material didático proposto.
Palavra-‐chave: material didático, extensão universitária, musicalização na flauta doce.
Introdução
No início do curso de graduação tive oportunidade de participar do projeto de extensão da UnB, quando pude colocar em prática e refletir sobre minha experiência com o ensino de flauta doce. Na minha vivência como professora de música, trabalhei em uma escola particular onde ministrava aulas de musicalização e flauta doce. Contudo, no projeto, vivi a experiência de elaboração do Caderno Musical Levando a vida na Flauta para musicalização pela Flauta Doce. Este visa sistematizar uma proposta pedagógico-‐musical de musicalização para crianças de 6 a 10 anos. O trabalho no projeto de extensão complementou ainda a minha formação docente no Estágio Supervisionado em Música do curso de Licenciatura e vive-‐versa. Diante da relevância dessa experiência, neste relato
apresento a experiência de elaboração e de prática do material didático com as crianças da apresento a minha experiência na elaboração do Caderno Musical e no projeto MUSICAR.
O texto está estruturado da seguinte forma: apresentação do programa Musicar; Caderno Musical com princípios e elaboração; e Considerações Finais.
1 O Programa Musicar
O Musicar: música para comunidade, aulas e recitais é um programa de Extensão de Ação Contínua que integra projetos pedagógico-‐musicais (oficinas e recitais didáticos) para a Comunidade do Paranoá e entorno do Distrito Federal. A ação de extensão é prevista no PPC dos cursos de Música da Universidade de Brasília e tem mobilizado a participação de cerca de 15 a 18 alunos bolsistas e voluntários. A ação de extensão contabiliza créditos para os alunos segundo regulamentação interna da universidade. Esse programa, além de atividades de oficinas e recitais, visa também a pesquisa e a formação docente de professores da Educação Básica e graduandos dos cursos de Música. O programa concilia atividades e práticas musicais para crianças, jovens e adultos com a formação de professores de música. Os projetos visam o desenvolvimento de metodologias inovadoras de ensino e aprendizagem da música: ensino coletivo de instrumentos, teoria musical integrada a aula de instrumentos, prática de conjunto coletiva, aprendizagem criativa e elaboração de material didático.
O Musicar visa à experiência musical em todas as suas dimensões -‐ estética, afetiva, social e cultural. Assim, o fazer musical fundamenta a proposta pedagógico-‐musical dos projetos em que se privelegia escutar música, tocar um instrumento e criar, tanto no repertório formal quanto informal. A aula de música, sob a perspectiva do programa, representa uma opção de integração entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento sistematizado erudito ou popular.
Por outro lado, o contato direto com a comunidade, sua vivência musical, suas necessidades e demandas, possibilita qualificar a formação dos professores e graduandos do curso de licenciatura. A prática docente concreta e contextualizada é fundamental para a compreensão dos problemas pedagógicos da Educação Musical, e possibilita pesquisas e inovações pedagógicas. Portanto, o Programa Musicar se justifica pela necessidade de
integrar a Universidade e a Formação de Professores de Música à realidade cultural, musical e social das comunidades do Distrito Federal e entorno. Elas têm manifestado de diversas formas a sua vocação musical, o que pode ser observado na abertura crescente de escolas alternativas de música, ONGs, OCIPs; na formação de grupos musicais; e na presença da música em escolas de Educação Básica. É importante destacar a relevância do ensino e aprendizagem musical para o desenvolvimento social, cognitivo e afetivo de crianças, jovens e adultos. A ação de extensão ainda se justifica pela aprovação da Lei 11769/2008 que torna obrigatório o conteúdo música nos estabelecimentos de ensino do país. Diante desse desafio, os cursos de formação de professores de música têm se empenhado na qualificação de profissionais em diferentes contextos educativos e comunitários.
O programa Musicar congrega cinco Projetos de Extensão de Ação Contínua (PEAC): CRIAMUS: criatividade e música; MÚSICA E PRÁTICA DE CONJUNTO; BATUCAGEM; ACADÊMICOS DO RITMO; NA RODA COM O VIOLÃO e TECLADO EM GRUPO. A ação pedagógico-‐musical Levando a vida na Flauta é uma das atividades do projeto CRIAMUS: criatividade e música que apresento a seguir.
1.1 CRIAMUS: criatividade e música
A proposta pedagógico-‐musical do CRIAMUS está fundamentada em teorias de ensino e aprendizagem da música que discutem a relação entre o conhecimento musical formal e intuitivo para desenvolver a musicalidade (SWANWICK, 1993, 2003; GREEN, 1997, 2001;). Nessa perspectiva, as metodologias são discutidas e reformuladas para integrar práticas formais e informais de ensino e aprendizagem musical (GREEN, 2001) de forma lúdica e associadas aos saberes e competências musicais dos alunos. O projeto objetiva, principalmente, a criação musical como eixo central e orientador de práticas de apreciação, execução e composição (SWANWICK, 1993, 2003; FRANÇA e SWANWICK, 2002; GREEN, 1997, 2001). O projeto contempla ainda uma diversidade de repertórios para ampliar o universo musical dos estudantes e a introdução da linguagem musical como meio de expressão e de registro das experiências sonoro-‐musicais dos alunos. A grafia, alternativa e
formal, privilegia o fazer antes do ler e escrever e, está integrada à composição e à performance.
2 O Caderno Musical Levando a Vida na Flauta – princípios e elaboração
O Caderno Musical foi pensado para instigar o aluno a ter curiosidade para aprender além do contexto de sala de aula. Ele integra as atividades das oficinas com um roteiro de estudo e repertório musical. A produção do material didático foi discutida nos encontros de orientação do MUSICAR, quando ficaram estabelecidos critérios para elaboração dos cadernos musicais: 1) Integração da teoria musical com o repertório; 2) disponibilização de áudio para modelo e acompanhamento do repertório musical, estimulando o estudo e a autonomia do aluno em casa; 3) Integração de atividades de apreciação, execução e criação musical; 4) disponibilização de exercícios para estudo e fixação de conteúdos pelos alunos; e 5) linguagem simples e de fácil entendimento a partir do estímulo visual com figuras e quadros.
A estrutura do Caderno Musical Levando a Vida na Flauta foi organizada em três partes: 1) Introdução Básica; 2) Músicas; 3) Um pouco de Teoria. A primeira parte apresenta os seguintes tópicos: 1) o que é música; 2) o que é flauta doce; 3) vou contar uma história; 4) conheça a sua flauta; 5) conheça mais de música; 6) as notas musicais; 7) A nota SOL; 8) A nota Lá; 9) A nota Si; 10) A nota Dó; 11) A nota Ré. Nessa parte, a flauta doce é apresentada de modo lúdico e associada à metáforas na relação entre o “som suave e doce” e comer “um doce bem gostoso”. Cada nota na flauta é apresentada visualmente em um desenho da flauta doce com a sua representação visual no pentagrama musical. A notação musical é introduzida de forma alternativa em quadriculados que sugerem movimentos ascendentes e descendentes. Os quadrados representam ainda a duração dos sons: cada quadrado simboliza a unidade de tempo e são utilizados o dobro e a divisão do tempo.
“Músicas”, segunda parte do caderno, apresenta um repertório musical fácil para iniciantes como “A barquinha”, “Asa Branca”, “Ode a Alegria”. Essa seção oferece um espaço para o aluno compor sua própria música denominado “Agora é hora de você compor”. Logo em seguida, é disponibilizada a relação de faixas do CD: “Para Treinar (faixas do CD)”. A
terceira e última parte do caderno, introduz a teoria musical – “vamos ler e escrever música?”: 1) notas musicais; 2) a pauta musical; 3) a clave de sol; 4) o ritmo musical; 5) As figuras dos ritmos musicais. Cada tópico é seguido de uma proposta de exercício.
O Caderno Musical finaliza com referencias bibliográficas e agradecimentos ao PROEXT 2013 que fomentou o projeto em 2014.
2.1 Princípios pedagógico-‐musicais e conteúdo musical
A elaboração do caderno musical visou a compreensão musical, por meio de atividades de composição, apreciação e performance que estimulassem a criança a aprender de forma lúdica os conteúdos melódicos, rítmicos e de técnica instrumental na flauta visando a performance individual e em conjunto.
Nesse sentido, o material didático produzido na área de Educação Musical foi objeto de pesquisa para analisar como os conteúdos e as atividades musicais vêm sendo propostas. Dentre os materiais pesquisados, o livro didático “Trilha da Música” de Cecília França (2013), por exemplo, apresenta orientações para o professor e atividades lúdicas para o aluno em que são apresentados os elementos da música, a introdução a leitura musical e propostas de atividades para escuta e composição musical. De forma semelhante, os livros de Castro (2004) – “Cada Dedo Cada Som” – e de Weiland, Sasse e Weiselbaum (2008) – Sonoridades Brasileiras – apresentam atividades de musicalização na flauta doce em que também a integração execução, apreciação e criação musical são valorizadas.
Do material de França (2013) e Castro (2004) foi adotado o modelo de movimentos sonoros com as notas musicais em “degraus” para representar a variação de alturas como são apresentados na Figura 1 e 2.
FIGURA 1: Exercício de iniciação a leitura musical
Fonte: Trilha da Música, de Cecília França
FIGURA 2: Exemplo de exercício de iniciação a leitura musical Ré Dó Si Lá Sol
Fonte: Caderno Musical Levando a Vida na Flauta, exercício 15, p. 12.
As grades para o aluno compor suas melodias e executar na flauta seguem o modelo da Figura 3.
FIGURA 3: Exemplo de exercício de composição musical
Ré
Dó
Si
Lá
Sol
Fonte:Caderno Musical xxxxxxx Levando a Vida na Flauta, p. 16
No ensino e aprendizagem da flauta, a entoação melódica tem como base o cantar. Nesse sentido, as atividades propostas devem ser entoadas e executadas ritmicamente pelo professor para imitação da criança. O desenvolvimento da voz infantil se fundamenta pela prática e a repetição, o professor deve ser um “bom modelo vocal”.
O desenvolvimento de imaginação sonoro-‐musical é fundamental para trabalhar a criação musical e o gesto musical como abordam autores como Swanwick (2003), Murray Schafer (1991) e Koellreutter (1987). A pesquisa e a experimentação sonora, a criação individual e coletiva, a apreciação de obras de tradições e estilos musicais diversos, o canto, a performance instrumental na flauta são atividades que devem acompanhar o Caderno Musical. É importante também que sejam contempladas atividades relacionadas à experiência musical ativa, notação gráfica não convencional sem excluir a notação tradicional. No trabalho com crianças, especialmente, na Educação Infantil e Ensino Fundamental os conteúdos musicais devem ser explorados de uma maneira instigante e devem integrar temas transversais e outros de cultura geral e artística.
O texto do caderno musical dialoga com a criança, estimulando-‐a a se posicionar expressiva e criticamente em relação às experiências realizadas. Chamadas específicas como “Agora é sua vez” direcionam o foco para atividades coletivas capazes de promover o desenvolvimento sócio-‐emocional da criança.
3 A Experiência Musical com as Crianças
A elaboração do Caderno Musical foi pensada antes da interação com os alunos e baseada nas nossas experiências no curso de graduação e nos conteúdos e princípios pedagógicos trabalhados nas disciplinas e no projeto Criamus. Na atuação com a comunidade, a presença de criança mais novas, com menos de seis anos, influenciou a condução das aulas e a utilização do Caderno Musical. Assim, as turmas foram divididas: uma de musicalização com os pequeninos, em que as atividades eram baseadas no material didático de França (2013), e nas oficinas ministradas pela educadora na Universidade de Brasília. Como por exemplo: as músicas Maria Fumaça e o Menino Toca Choro.
melodias conhecidas como o tema We wil rock you do grupo Queen foram utilizadas, conforme Figura 4
Figura 4: Tema We will rock you( Queen)
Dó Si Lá Sol
Fonte: Caderno Musical Levando a Vida na Flauta, p. 11
Com a turma das crianças a partir de seis anos, as atividades apresentavam as mesmas características, mas um olhar direcionado para a visualização e execução dos ritmos e das músicas do caderno. A turma mais avançada iniciava no primeiro horário e, depois, os alunos ajudavam nas atividades com os menores. Assim, por meio dessa metodologia, as crianças trabalharam temas de pássaros como o do Bem te vi, do Barquinho. Na performance dessas músicas todos ajudaram a desenhar o cenário. A apresentação de 2014, na época de Natal, foi encerrada com a canção Noite Feliz. Após o canto, cada criança apresentou uma letra enquanto falava uma mensagem: F( felicidade), E(Esperança), L ( liberdade), I (Igualdade), Z( Zelo), N( natureza), A( amor), T ( Ternura), A( Alegria), L(lealdade). Todos, um por um e de cada vez, mostravam a letra, falavam a palavra como inicial correspondente a letra até formar a Frase completa: FELIZ NATAL.
Considerações Finais
Diante do exposto e da vivência docente, o Caderno Musical foi relevante para orientar o aprendizado e desenvolvimento dos alunos, mas também, como “espelho” ou modelo para o trabalho do professor. Contudo, ele não pode ser a única referência ou limitar a ação do professor de música. O Caderno Musical é mais um orientador e mediador do processo de ensino e aprendizagem musical na flauta: uma proposta de sequência
pedagógica. O professor deve ter liberdade para alterar ou ampliar sua atuação docente de acordo com as características da turma e do contexto educacional. Nesse sentido, o ensino e aprendizagem musical é continuamente avaliado e refletido, pois se uma ou mais atividade não funcionar como o planejado, o professor tem liberdade para alterar sua metodologia e escolher outros caminhos para maior aproveitamento da aula.
O Caderno Musical não pretende “engessar” a aula, mas orientar e somar à prática docente. A contribuição do material didático pôde ser observada nas aulas e no rendimento do aluno. O Caderno Musical, com suas atividades e processo de desenvolvimento musical, poderá orientar outras propostas didáticas e sugerir critérios de avaliação.
Referências
CASTRO, Tereza. Cada dedo cada som. Tereza Castro; Ilustrações Sílvia Amélia. Belo Horizonte: Mega Consulting, 2004.
FRANÇA, Cecília Cavalieri. Turma da Música . Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2013.
FRANÇA, Cecília Cavalieri; SWANWICK, Keith. Composição, apreciação e performance na educação musical: teoria, pesquisa e prática. In Em Pauta. Porto Alegre: Pós-‐Graduação em Música/UFRGS. v.13, n.21, dez 2002, pp.5-‐41
GREEN, Lucy. How popular musicians learn: a way ahead for music education. Brookfield: Ashgate, 2001.
GREEN, Lucy. Pesquisa em Sociologia da Educação Musical. In Revista da ABEM v.4, Salvador, 1997, pp.25-‐35.
KOELLREUTTER, Hans-‐Joachim. Introdução à estética e à composição musical
contemporânea. ZAGONEL, Bernadete (org). 2ª Ed. Porto Alegre: Ed. Movimento, 1987. SCHAFER, M. R. O ouvido pensante. São Paulo: Unesp, 1991.
SWANWICK, Keith. Permanecendo fiel à música na educação musical. ENCONTRO ANUAL DA ABEM, II, Porto Alegre. Anais…. Porto Alegre: ABEM, 1993, pp.19-‐32.
SWANWICK, Keith. Ensinando música musicalmente. São Paulo, Editora Moderna, 2003. WEILAND, Renate; SASSE, Angela; WEICHSELBAUM, Anete. Sonoridades brasileiras: método para flauta doce soprano. Curitiba: De Artes, UFPR, 2008.