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Violência contra as mulheres e direitos humanos no Brasil: uma abordagem a partir do Ligue 180

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Violência contra as mulheres e direitos humanos no Brasil: uma abordagem a

partir do Ligue 180

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Alinne Bonetti** Luana Pinheiro*** Pedro Ferreira**** Palavras-chave: mulheres; violência; direitos humanos

Resumo: A Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180, criada em novembro de 2005, pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres tem por objetivo orientar as mulheres em situação de violência sobre seus direitos e onde buscar ajuda, bem como de auxiliar o monitoramento da rede de atenção à mulher em todo o país. Esse serviço revela-se como um importante instrumento para uma análise do fenômeno da violência contra as mulheres, essa forma limite de violação dos seus Direitos Humanos. Por meio de uma análise quanti-qualitativa dos atendimentos realizados no período de 2007 traçaremos o perfil de quem procura o serviço e porquê o procura. A fim de se ter uma análise mais aprofundada, selecionamos os relatos feitos pelas denunciantes sobre duas categorias de violência doméstica: cárcere privado e tentativas de homicídio. Essa dupla abordagem - quanti e qualitativa - nos permitirá construir um retrato da violação aos Direitos Humanos das Mulheres no Brasil. Retrato esse que poderá ser objeto de análises sistemáticas propiciando o monitoramento das políticas públicas nessa área.

* Trabalho apresentado no XVI Encontro nacional de estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú – MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008 (Versão preliminar)

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Doutora em antropologia e, atualmente, colaboradora da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. ***

Mestre em sociologia, técnica de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), atualmente gerente de projetos da SPM.

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Violência contra as mulheres e Direitos Humanos no Brasil: uma abordagem

a partir do Ligue 180

Alinne Bonetti** Luana Pinheiro*** Pedro Ferreira**** 1. Introdução

Nos mais de 30 anos de mobilização feminista ininterrupta no Brasil, identifica-se como uma das suas conquistas a colocação do grave problema social da violência contra as mulheres como uma pauta pervasiva à toda a sociedade brasileira. Foi nos anos 1980 que a luta contra essa forma específica de violência tomou as ruas, tornando-se uma das suas principais bandeiras, a partir do já célebre slogan “quem ama não mata” (Barsted, 1995, Heilborn, 1996; Grossi, 1998 e 1993 e Bonetti 2007). Ao longo dos anos, esta bandeira de luta feminista, e das mulheres em geral, foi se consolidando cada vez mais, sendo foco de políticas públicas, de conferências internacionais e de pesquisas.

As primeiras experiências de políticas públicas não governamentais para combater a violência contra as mulheres podem ser identificadas nos SOS-Mulher, espaços criados e mantidos por organizações feministas que visavam o atendimento das mulheres em situação de violência (Montero e Sorj, 1984 e Gregori, 1993). Por pressão do movimento, em meados da década de 1980, foram criadas as Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres que se configuram, hoje, como as primeiras e, portanto, mais antigas e consolidadas experiências de políticas públicas voltadas para o combate à violência (Debert e Gregori, 2003; Vieira, 2007). O ápice deste movimento foi a promulgação da Lei Maria da Penha, em setembro de 2006, que representa um marco histórico na luta contra a violência por tipificar a violência doméstica e familiar contra as mulheres como crime (Bonetti e Pinheiro, 2007).

Ao longo dos anos, a violência tem sido tema recorrente das grandes conferências internacionais que envolvem questões relativas às mulheres. No entanto, foi somente em 1993, na Conferência de Viena, que a violência contra as mulheres passou a ser tomada como uma violação aos direitos humanos (Bonetti, 2000). Desde então se passou a difundir que a violência contra as mulheres é uma das mais perversas violações dos direitos humanos das mulheres porque, na maior parte das suas manifestações, ocorre dentro dos seus lares. O recurso aos direitos humanos retira essa violação do âmbito privado tornando-a pública e responsabilizando o Estado pela proteção igualitária dos seus cidadãos. Busca-se, assim, a garantia da cidadania plena das mulheres (Jelin, 1994).

Mesmo com a visível e bem-sucedida mobilização pelo combate à violência, ela continua a assolar as mulheres em todo o mundo e, em especial, no nosso país. Muitos estudos foram realizados sobre o tema, nas mais diferentes áreas do conhecimento, de modo a conhecer seus padrões, suas recorrências1. sendo o mais completo e citado o realizado pela Fundação Perseu Abramo em 2002, que apresentou cifras e estimativas aterradoras sobre o fenômeno da violência

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Doutora em antropologia e, atualmente, colaboradora da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. ***

Mestre em sociologia, técnica de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), atualmente gerente de projetos da SPM.

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Licenciado em Educação Física e coordenador do Ligue 180 da SPM.

1Levantamentos recentes sobre o tema podem ser encontrados em Grossi, Minella e Losso (2006) e Grossi, Minella e Porto (2006).

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contra as mulheres. Segundo a pesquisa, estima-se que a cada 15 segundos uma mulher é espancada no Brasil (Venturi e Recamán, 2004:25). No entanto, ainda é difícil contar com dados atualizados, universais e sistemáticos do país todo sobre o perfil da violência que acomete as mulheres brasileiras (Godinho e Costa, 2006) e o grau de violação dos seus direitos humanos.

Além de ser uma fundamental porta de entrada para a rede de atendimento a mulheres em situação de violação dos seus direitos, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, criada pelo governo federal em 2005, revela-se como uma promissora fonte de dados para se analisar o perfil atual da violência que acomete as mulheres no país. Mesmo sendo uma fonte de dados muito nova e em aperfeiçoamento, os dados de 2007, ainda com algumas inconsistências, fornecem importantes hipóteses para a análise do fenômeno da violência contra as mulheres.

Como procurar-se-á demonstrar ao longo deste texto, os dados apresentados trazem potenciais inflexões às explicações correntes sobre o fenômeno da violência contra as mulheres, já tornadas canônicas e incorporadas ao senso comum informado, fruto de intensa mobilização política no combate a este fenômeno. Para tanto, este texto foi organizado da seguinte maneira: na próxima seção será apresentado breve histórico da criação da Central e a evolução dos seus atendimentos. Na seção seguinte, será apresentado retrato dos atendimentos realizados em 2007. Já na seção 4 serão analisados mais aprofundadamente, a partir de uma análise qualitativa dos relatos feitos pelas atendentes, dois tipos específicos de denúncias recebidas pelo Ligue 180: os casos de tentativa de homicídio e de cárcere privado. Finalmente serão apresentadas as considerações finais, objetivando pontuar as novas perspectivas analíticas a serem trilhadas. 2. A Central de Atendimento à Mulher

A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 é uma central de atendimento telefônico da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres(SPM) da Presidência da República, que tem por objetivo receber denúncias ou relatos de violência, reclamações sobre os serviços da rede e orientar as mulheres sobre seus direitos, encaminhando-as para os serviços da rede quando necessário. A Central funciona pelo número de telefone 180, caracterizado como número de utilidade pública, podendo ser acessado gratuitamente de qualquer terminal telefônico (móvel ou fixo, particular ou público) 24 horas por dia, todos os dias, inclusive domingos e feriados.

O atendimento é realizado por atendentes capacitadas que utilizam um sistema informatizado composto por um banco de dados com informações sobre tipos de violência contra as mulheres, legislação sobre a temática do serviço, informações sobre a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, endereços e telefones de serviços que compõem a rede de atenção à mulher e um módulo de registros que permite a classificação dos relatos de violência e das reclamações sobre os serviços da rede.

2.1. Histórico

A Central de Atendimento à Mulher começou a funcionar, em caráter experimental, em novembro de 2005, de segunda a sexta-feira, de 07h00 às 18h40, a partir de um acordo de cooperação técnica entre a SPM e o Ministério da Saúde, que viabilizou a infra-estrutura, os recursos tecnológicos e os recursos humanos até abril de 2006. A partir de então, a Central passou a funcionar nas instalações atuais, com nova infra-estrutura, maiores recursos tecnológicos e ampliação de recursos humanos. O horário de atendimento foi expandido e o serviço passou a funcionar 24 horas por dia, ininterruptamente. O número de posições de atendimento também aumentou de 04 para 202. Ao longo do processo de implementação da

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Central, foram feitas mudanças operacionais no intuito de corrigir inconsistências geradas por problemas no desenvolvimento do sistema, de gerar relatórios mais específicos e com maior potencial de cruzamento de dados, de inserir novos indicadores para acompanhar o direcionamento das políticas públicas relacionadas ao enfrentamento à violência de gênero e de tornar as informações mais fiéis ao atendimento prestado.

Desde a sua criação, a Central tem apresentado um aumento significativo no volume de ligações recebidas e de atendimentos realizados (ver gráfico 1). Entre 2005 e 2007, houve um crescimento de 1.200% no total de atendimentos realizados, que passou de quase 15 mil, no primeiro ano de funcionamento do serviço, para cerca de 205 mil, em 2007. Essa evolução se dá não só em função das melhorias metodológicas e tecnológicas implementadas ao longo dos dois primeiros anos de funcionamento da Central (inclusive do aumento do horário e do número dos pontos de atendimento), mas também pela sanção da Lei Maria da Penha e pela divulgação massiva do serviço.

Gráfico 1

Evolução do número de atendimentos da Central de Atendimento à Mulher. Brasil, 2005 a 2007

Fonte: Central de Atendimento à Mulher/ Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

2.2. O que é coletado

A Central produz informações por meio da coleta de dados cadastrais das mulheres que procuram o serviço (faixa etária, escolaridade, estado civil, cor/raça, entre outros), bem como dos registros detalhados e padronizados de todos os atendimentos prestados. Os registros de classificação dos atendimentos produzem informações importantes para o entendimento do fenômeno da violência contra as mulheres e da resposta da população em face das ações e serviços ofertados pelo Estado. Os atendimentos podem ser classificados como:

i) Informação: é toda demanda que requer o repasse de informações técnicas relacionadas à temática do serviço e que são respondidas com base na consulta ao banco de dados;

ii) Denúncia/relato de violência: é toda demanda na qual há registro de informações relacionadas aos atos de violência relatados pelas pessoas que procuram a Central.;

iii) Reclamação: é toda demanda relacionada ao funcionamento inadequado dos serviços que compõem a rede de atendimento às mulheres;

iv) Elogio: é toda demanda relacionada à manifestação de satisfação das(os) usuárias(os) referente aos serviços que compõem a rede em todo o país;

v) Sugestão: é toda demanda na qual a usuária expressa o desejo de contribuir por meio de propostas de melhoria ou de ações no âmbito do combate à violência contra as mulheres;

de PAs corresponde à capacidade de atendimento do serviço.

14.870

50.444

204.978

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vi) Serviços: é toda demanda relacionada ao encaminhamento das(os) usuárias(os) aos serviços que compõem a rede de atenção às mulheres.

Em 2007, a maioria dos atendimentos realizados consistiu no encaminhamento de mulheres em situação de violência para os serviços da Rede de Atendimento à Mulher (57%) e na prestação de informações relacionadas à questão da violência, mas também a outros direitos das mulheres (32%). As denúncias ou relatos de violência, por sua vez, responderam por quase 10% do total de atendimentos realizados. Esses percentuais confirmam que, mais do que captar denúncias, o foco da Central é orientar e oferecer ajuda às mulheres em situação de violência, motivo pelo qual foi criada em 2005.

Tabela 1

Distribuição dos atendimentos realizados pela Central de Atendimento à Mulher, por tipo. Brasil, 2007

Tipo de Atendimento N° Abs %

Informação 66.176 32,30% Reclamação 904 0,40% Denúncia/Relato de Violência 20.050 9,80% Sugestão 138 0,10% Elogio 274 0,10% Serviços 117.436 57,30% Total 204.978 100,00%

Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

3. Retrato dos atendimentos realizados

Uma primeira questão a ser explicitada acerca dos dados relativos ao ano de 2007 é, como se poderá ver adiante, a sua não uniformidade. Esta se deve, em grande medida, ao fato de ser o Ligue 180 um serviço relativamente novo e que, portanto, tem buscado aprimorar a sua capacidade de retratar o mais fielmente possível a realidade das mulheres que buscam o serviço. Nesse sentido, muitas são as alterações e adequações necessárias tanto no banco de dados, quanto na forma de se coletarem as informações. Como se poderá perceber, há variáveis, como local de residência e raça/cor das mulheres, que passaram a ser recolhidas apenas em novembro de 2007, enquanto outras já constam da base desde o início do funcionamento da Central ou entraram no roteiro das atendentes em outro momento ao longo desses dois anos de funcionamento. Ainda que em alguns casos o tempo de coleta das informações seja bastante pequeno e, assim, imponha restrições para o uso dos dados como variáveis de análise e definição de perfis, decidimos incorporá-las porque já apontam para um padrão importante no delineamento da incidência da violência contra as mulheres, bem como para possíveis alcances das políticas públicas e, conseqüentemente, do Estado.

3.1.Perfil das mulheres atendidas pela Central em 2007

Em 2007, a Central de Atendimento à Mulher realizou quase 205 mil atendimentos, tal como demonstrado na tabela 1 acima. Isso não significa, porém, que foram atendidas 205 mil mulheres. Com efeito, uma única ligação pode conter uma ou mais demandas – denúncia e informação, por exemplo – e é isso que, de fato, ocorre. Assim, a este montante de atendimentos correspondeu um total de quase 125 mil ligações. Para os propósitos deste trabalho foram selecionadas apenas as ligações que resultaram em atendimentos dos tipos: informação,

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encaminhamento para serviços, elogios, reclamações, sugestões e denúncias. Construiu-se, então, um universo de análise que conta com cerca de 56 mil mulheres que foram atendidas na Central e para as quais se traçou o perfil apresentado a seguir. Antes de mais nada faz-se necessário ressaltar um importante aspecto metodológico que se refere à alta taxa de não resposta à demanda por informações, como estado civil, idade, entre outras. Se, por um lado, este fato está diretamente relacionado à juventude do serviço e à permanente necessidade de se trabalhar junto às atendentes para que possam coletar os dados da melhor maneira possível, por outro, não há como desconsiderar a natureza do fenômeno da violência contra as mulheres que envolve sentimentos como vergonha e medo e que, portanto, pode desestimular a identificação daquelas em situação de violência. Há, portanto, um reconhecimento de que sempre haverá um limite na redução das taxas de não resposta e que o trabalho de capacitação e sensibilização das atendentes pode produzir excelentes resultados, mas não será suficiente para eliminar tal situação3.

Inicialmente pode-se perceber que, em relação à faixa etária, há uma concentração na faixa de 20 a 40 anos de idade, que reúne cerca de 52% da população que procura a Central. Este dado remete a um padrão já conhecido no fenômeno da violência contra as mulheres, em especial aquele de caráter conjugal. Nesta faixa etária, as mulheres encontram-se no auge da sua fase reprodutiva e sexualmente ativas, sendo comum a recorrência de casamentos e recasamentos, seguidos de conflitos conjugais, o que é corroborado pelos dados relativos ao estado civil (ver

gráficos 2 e 4).

Muito embora a taxa de mulheres que não informaram seu estado civil seja bastante alta – correspondendo a um quarto do total, pode-se perceber um certo equilíbrio entre as variáveis que revelam um padrão de conjugalidade (casada/união estável, com 33%) e a de celibatarismo (viúva/divorciada/separada/solteira, com 31%). Assim, se se pode asseverar que a violência que acomete às mulheres tem vitimado aquelas mais jovens, esse dado também permite levantar a hipótese de que, por se tratar de uma geração que vive numa conjuntura histórica em que a luta contra a violência é pervasiva à toda a sociedade, essas mulheres se sentem legitimadas a denunciar as relações violentas em que se encontram, procurando ajuda.

Gráfico 2 Gráfico 3

Distribuição das mulheres atendidas Distribuição das mulheres atendidas na

na Central por faixa etária. Brasil, 2007 Central por nível de escolaridade. Brasil, 2007

Fonte: Central de Atendimento à Mulher/SPM Fonte: Central de Atendimento à Mulher/SPM

3 Tais taxas podem servir, assim, como indicadores importantes para o monitoramento do próprio serviço, mais especificamente em relação ao treinamento das atendentes. Um dos resultados desse primeiro estudo do material produzido pelo Ligue 180 será a sugestão de monitoramento dessas taxas e, naqueles em que houver uma incidência muito alta, reforçar a capacitação das atendentes. Em tempo, cabe salientar que o universo das atendentes merece um estudo qualitativo à parte, dada a sua extrema riqueza para se compreender, por um lado, o fenômeno da violência contra as mulheres e, por outro, as políticas públicas voltadas para esse tema em ato.

23,2% 1,3% 16,6% 52,1% 6,8% <20 20 a 40 40 a 60 >60 Não Informado 29,3% 33,8% 28,6% 6,8% 1,5% Analfabeto Superior Ensino Médio Ensino Fundamental Não Informado

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Os dados relativos à escolaridade são, também, extremamente significativos, apesar de a taxa de não informados ser muito alta. Neste caso, a Central coleta informações sobre o último nível de ensino que a pessoa cursou ou está cursando. O gráfico 3 abaixo traz duas informações importantes. A primeira delas evidencia que a taxa de analfabetas que procuram o serviço é insignificante se comparada à daquelas que são alfabetizadas, o que permite levantar a hipótese de que o serviço telefônico não chega àquelas mulheres que não tem inserção na cultura das letras, sendo um serviço mais acessível às mulheres educadas. Por outro lado, entre aquelas que contam com algum nível de instrução, há uma concentração nos níveis de ensino fundamental e médio que, juntos, respondem por 62% das mulheres. Já entre as que cursam ou já cursaram o ensino superior, a taxa é significativamente menor.

Gráfico 4

Distribuição das mulheres atendidas na Central, por estado civil. Brasil, 2007

26,7% 9,4% 32,9% 20,2% 9,5% 1,3% Não Informado Outros Casada/União estável Solteira Separada/Divorciada Viúva

Fonte: Central de Atendimento à Mulher/SPM

Cerca de um terço das mulheres atendidas na Central tinham como origem o estado de São Paulo, o que é coerente com a sua maior densidade populacional. O estado que menos originou ligações foi o Piauí, com apenas 0,1% das denúncias recebidas. Dentre os estados da região Sudeste, São Paulo é o que mais emitiu ligações, seguido pelo Rio de Janeiro, com 8,2%. Na região sul, o Rio Grande do Sul ocupa o primeiro lugar, com 5,6% do total de atendimentos de 2007. Na região Centro-Oeste, muito embora os números sejam pouco significativos, o estado de Goiás foi o que mais originou denúncias, com 3,7%. Tanta a região nordeste quanto a região norte seguem o mesmo padrão de montante de ligações pouco significativo. Dentro deste quadro, os estados com maior número de ligações foram Bahia e Pará com, respectivamente, 4,03% e 3,31% do total. Tomados, assim, isoladamente, esses números pouco dizem sobre a realidade da violência nesses lugares. No entanto, apontam para uma necessidade de maior divulgação do serviço e para hipóteses sobre a acessibilidade da população aos serviços de telefonia, bem como aos programas do Estado.

Finalmente, em relação à raça/cor das mulheres que procuram a Central cabe destacar que este é um dado coletado apenas a partir de novembro de 2007, ou seja, ainda pouco consistente, tanto em função do pouco tempo de “teste” da variável, quanto da própria dificuldade para a declaração do quesito raça/cor. Ainda assim, os dados apontam potenciais indícios para se pensar padrões, tanto da violência contra as mulheres, quanto da abrangência das políticas

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públicas. As diferenças verificadas na distribuição dos atendimentos por raça/cor das mulheres em muito reproduzem a própria distribuição populacional brasileira. No entanto, há uma prevalência pouco maior das populações preta e parda na distribuição dos atendimentos do Ligue 180, quando comparadas à distribuição da população feminina no país, em 20064. As hipóteses que podem ser levantadas nesta análise estão muito mais voltadas para as diferentes possibilidades de acesso aos serviços do Estado, segundo a cor ou raça dos indivíduos, do que a uma possível incidência maior da violência entre grupos de pessoas pretas ou pardas. Sabe-se que a violência institucional sofrida por mulheres negras nos serviços públicos é uma realidade e, talvez, a existência de um serviço telefônico e não presencial, facilite o acesso destes grupos.

Tabela 2

Distribuição das mulheres atendidas pela Central de Atendimento à Mulher, por raça/cor. Brasil, 2007

Raça/Cor* Nº Abs. % Branca 2.579 24,1 Negra 3.225 30,1 Preta 792 7,4 Parda 2.433 22,7 Amarela 82 0,8 Indígena 26 0,2 Não informada 4.794 44,8 Total 10.706 100,0

* Esta variável passou a ser coletada em novembro de 2007.

Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

3.2.Perfil das denúncias recebidas na Central em 2007

Tal como apontado anteriormente, as mulheres que ligam para a Central e dela recebem algum tipo de atendimento podem estar em busca de alguma informação, podem desejar fazer reclamações ou elogios sobre os serviços da rede, mas podem também desejar denunciar ou relatar algum caso de violência sofrida por ela ou por alguma conhecida de sua rede pessoal. Os atendimentos classificados como denúncias/relatos de violência são sistematizados, gerando dados que auxiliam a avaliação e proposição de políticas na área de violência contra as mulheres, bem como melhorias nos mecanismos de enfrentamento deste fenômeno. Tendo em vista a promulgação da Lei Maria da Penha – que tipifica a violência doméstica como crime – e a grande riqueza destes dados, optou-se, neste trabalho, por construir um perfil deste tipo de crime que possibilita publicizar informações úteis para orientar a intervenção pública na área, identificar elementos mais concretos para se esboçar o retrato da violência contra as mulheres no Brasil, mas também desconstruir alguns mitos e estereótipos sobre o fenômeno da violência que contribuem para sua naturalização e dificultam seu enfrentamento, levantando-se algumas hipóteses acerca da reconfiguração do fenômeno.

Inicialmente é importante destacar que a classificação da denúncia/relato segundo o tipo de violência sofrida se dá em dois níveis: i) tipo de violência: física, moral, psicológica, sexual, patrimonial e cárcere privado5; e ii) crime relatado: lesão corporal leve, grave e gravíssima,

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Ver Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2006, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 5

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ameaça, perseguição, estupro, entre outros. Metodologicamente também se faz necessário ponderar que a análise destas classificações deve considerar a complexidade dos relatos que a Central recebe e as diferentes possibilidades de entendimento do fenômeno da violência. Isso porque da forma como a Central trabalha hoje, uma ligação que contenha uma denúncia com mais de um tipo de violência relatada é classificada apenas na categoria entendida pela operadora como a que motivou a mulher a procurar o serviço em busca de ajuda. No entanto, normalmente ao lado de uma denúncia de violência física, há também relato de violência moral ou psicológica, por exemplo, mas o sistema só permite uma classificação. Assim, a tabela 6 a seguir apresenta a distribuição das denúncias segundo o tipo de violência entendido pela operadora como o mais “importante” da ligação de cada mulher atendida, o que, sem dúvida, traz como fundamento um julgamento construído a partir de valores que não necessariamente são os mesmos da mulher que relatou a violência sofrida.

Tabela 3

Distribuição das denúncias/relatos de violência recebidos na Central de Atendimento à Mulher, pelo tipo principal. Brasil, 2007

Tipo de Violência N° Abs %

Física 13.240 66,0% Moral 1.815 9,1% Psicológica 4.282 21,4% Sexual 434 2,2% Patrimonial 152 0,8% Cárcere Privado 123 0,6% Total 20.046 100,0%

Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

Como os dados apontam, o tipo de violência mais recorrente nas denúncias recebidas pela Central refere-se à violência física, que responde por dois terços do total. Em seguida, encontram-se os casos de violência psicológica, com 21%, violência moral, com 9,1%, violência sexual, com 2,2%, violência patrimonial, com 0,8% e cárcere privado, com 0,6%. Considerando-se que não é possível registrar mais de um tipo de violência e que a análiConsiderando-se dos relatos registrados na Central apontam, como se verá nas seções seguintes, que há quase sempre uma sobreposição ou acúmulo de violências sofridas, pode-se imaginar que estes percentuais são todos significativamente maiores e que a agressão física deve estar presente na quase totalidade dos casos recebidos no serviço. Por outro lado, a pouca menção a algumas categorias, como “violência sexual” trazem embutidas, ainda, valores e crenças sobre os papéis a serem desempenhados dentro de uma relação afetivo-amorosa. Assim, se um estupro cometido no espaço público – ou mesmo no espaço privado, desde que cometido por autores que não os companheiros – é reconhecido como crime, tende a ser denunciado e conta com protocolos de atendimento às vítimas, um abuso sexual no âmbito de um casamento ou de uma outra relação afetiva nem sempre é entendido como tal. Não são raros os relatos de violência sexuais entendidas durante anos como obrigações femininas no espaço matrimonial e que são visibilizadas enquanto violência apenas em situações nas quais se somam a agressões físicas, por exemplo, ou quando as mulheres procuram ajuda e são orientadas no corpo do Estado quanto à natureza destes fenômenos.

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Ao se analisarem os crimes mais freqüentemente associados a cada uma destas grandes categorias de tipos de violência verifica-se que o crime de lesão corporal leve responde por mais da metade do total de registros de denúncias/relatos de violência em 2007, seguido de ameaça, com aproximadamente um quinto deste total. A comparação entre os tipos de crime entre si indica que aqueles que representam situações-limites como lesão corporal grave e gravíssima, tentativa de homicídio ou cárcere privado que, recorrentemente, configuraram a violência doméstica sofrida pelas mulheres, têm incidência pouco significativa, quando comparados a outros casos com menor potencial de risco de morte, a exemplo de lesão corporal leve e ameaças. Durante o registro de denúncias/relatos de violência, são coletadas, também, outras informações quer permitem construir um perfil deste tipo de crime. Um primeiro dado importante é aquele que mostra que a grande maioria destes registros (93,2%) está relacionada a situações de violência doméstica e familiar e, conseqüentemente, dizem respeito diretamente à aplicação da Lei Maria da Penha6. A análise das informações sobre relação da vítima com o agressor confirma este dado, ao apontar que quase 75% dos relatos de violência tinham como autor da agressão um parceiro de relação afetiva, seja ele namorado, cônjuge ou companheiro. A segunda maior categoria, como mostra a tabela 4 abaixo, é a de “outros”, que em sua maioria são ex-maridos ou ex-companheiros, o que reitera a natureza do fenômeno.

Tabela 4

Distribuição das denúncias/relatos de violência recebidos na Central de Atendimento à Mulher, segundo relação da vítima com agressor. Brasil, 2007

Relação com o agressor Nº Abs. %

Namorado/Cônjuge/Companheiro 11.166 74,7 Amigo 519 3,5 Vizinho 279 1,9 Irmão 252 1,7 Filho 232 1,6 Desconhecido 139 0,9 Pai 121 0,8 Outros 2.247 15,0 Total 14.955 100,0

Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

A freqüência com que ocorre a violência também é outro dado que chama atenção, uma vez que 61% dos relatos trazem a informação de que a violência praticada é diária e 16% de que é semanal. Somente 7,8% procuram ajuda no primeiro ato de violência, o que reforça algumas das características freqüentemente associadas ao fenômeno, como o medo ou a vergonha em buscar ajuda e a dificuldade de romper com uma situação cotidiana e recorrente, seja pelo tão proclamado ciclo da violência, seja pela falta de melhores perspectivas fora da relação.

Outra importante questão a ser mencionada refere-se à variável uso de entorpecentes (drogas e/ou álcool) pelo agressor. Apesar de quase 57% dos relatos/denúncias indicarem a utilização de álcool e/ou drogas por parte dos agressores, deve-se considerar que mais de um terço das agressões (34,3%) não ocorriam sob o efeito de qualquer uma destas substâncias7. Há, portanto, uma diferença entre os percentuais de uso e não uso de drogas que é inferior ao que se

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Este dado passou a ser coletado em maio de 2007. 7

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poderia esperar segundo aquilo que é difundido pelo senso comum, ou seja, que a violência ocorre porque o agressor está bêbado ou sob efeito de outras drogas, não tendo plena consciência e responsabilidade pelos seus atos. Essa reduzida diferença chama a atenção, por diferentes motivos. Por um lado, demonstra que, talvez, se tenha criado um “mito acerca do agressor adicto”, o que pode ter resultados perversos para a prevenção e combate à violência ao se desresponsabilizar, de certa forma, o agressor pelo crime, colocando o foco nas drogas lícitas ou ilícitas. Por outro lado, a presença dessa questão no roteiro das atendentes no Ligue 180 aponta para uma reprodução do mito, ponto que será tratado mais adiante.

Outro dado alarmante refere-se aos riscos relatados pelas mulheres que procuram a Central para registrar um relato ou denúncia de violência. Ainda que a maior freqüência de relatos estejam concentradas em crimes que poderiam ser considerados de menor intensidade ou gravidade no que se refere ao risco de morte (lesão corporal leve ou ameaças), mais de 36% das mulheres declararam estar correndo risco de morte, enquanto outras 36% alegaram estar correndo risco de espancamento e 1,3% de estupro. Se o risco é real ou não, não se poderá saber, mas a percepção elevada destes riscos demonstra os perversos impactos psicológicos que o fenômeno da violência acarreta entre as mulheres que se encontram nesta situação.

Por fim, cabe analisar o dado que se refere número de filhos da denunciante. Aproximadamente 80% das mulheres que registraram relatos de violência tinham ao menos um/a filho/a, sendo que 87% destas relataram ter até três filhos. Apesar de ser um dado não uniforme, pode-se perceber que o perfil das mulheres atendidas tem seguido o padrão nacional de queda no número de filhos: mesmo estando no auge da sua fase reprodutiva (como demonstraram os dados apresentados anteriormente), as mulheres em situação de violência têm tido poucos filhos. Por meio da análise qualitativa desses dados, verifica-se, ainda, que a maioria dessas crianças presencia os atos violentos praticados contra as mulheres, na maioria das vezes, as suas mães.

3.3.Encaminhamentos realizados pela Central de Atendimento à Mulher

Outro tipo de atendimento prestado na Central refere-se ao encaminhamento das(os) usuárias(os) aos serviços que compõem a rede de atenção à mulher. A relação dos diversos serviços existentes, com endereços e telefones de contato, está disponível no sistema de atendimento utilizado pelas operadoras e é atualizado de acordo com a relação de serviços cadastrados na Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

Em 2007, foram realizados 64.717 encaminhamentos tanto para serviços especializados no atendimento às mulheres em situação de violência, quanto para outros serviços que, apesar de não específicos, também atendem às mulheres vítimas deste fenômeno (ver tabela 5). Os serviços mais demandados na Central são as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), com praticamente 80% dos encaminhamentos, e os Centros de Referência, com 9,1%. O elevado percentual associado aos encaminhamentos às DEAMs se justifica por serem estas as instâncias responsáveis pelo registro dos Boletins de Ocorrência em casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres, além da maior disponibilidade desses serviços em relação aos outros. A orientação dada às operadoras do serviço é que sempre encaminhem as mulheres para o registro dos BOs, como forma de ampliar a efetividade da Lei Maria da Penha e assegurar os direitos a elas devidos.

Outros encaminhamentos são também realizados pela Central, mas não se referem aos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência e, por isso, não geram informações cadastrais como idade, escolaridade e estado civil das mulheres. Neste tipo de atendimento foram realizados, em 2007, 68.453 encaminhamentos emergenciais, sendo que 52% estavam

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direcionados ao número telefônico 190 da Polícia Militar. Esta elevada proporção se justifica pela mudança prevista na Lei Maria da Penha, que prevê a prisão em flagrante em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Tabela 5

Distribuição dos encaminhamentos realizados pela Central de Atendimento à Mulher, segundo serviços. Brasil, 2007

Serviço N° Abs %

DEAM 51.620 79,8%

Centro de Referência 5.899 9,1%

Delegacia Comum 1.088 1,7%

Conselhos estaduais/municipais da mulher 993 1,5%

Defensoria 653 1,0%

Coordenadoria 562 0,9%

ONGs feministas/de mulheres 204 0,3%

Serviços de saúde 136 0,2%

Juizados Especiais de Violência Doméstica e

Familiar/Varas Criminais Adaptadas 119 0,2%

Outros 3.443 5,3%

Total 64.717 100,0%

Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

3.4. Informações fornecidas pela Central de Atendimento à Mulher

Tal como demonstrado anteriormente, o segundo tipo de atendimento mais realizado pela Central é a prestação de informações, que respondeu por 32% dos 205 mil atendimentos efetuados em 2007, o que equivale a um total de 65.801 atendimentos relacionados a pedidos de informação. Dentre as orientações mais solicitadas, se destacam as relacionadas à Lei Maria da Penha que representaram 73% de todas as orientações fornecidas pela Central no ano e correspondem, na tabela 6 abaixo, à categoria “violência doméstica e familiar contra as mulheres”. Em seguida, respondendo por cerca de um quinto dos pedidos de informação, aparecem as demandas por orientações quanto a outros crimes cometidos contra as mulheres que não se enquadrem no escopo da Lei Maria da Penha. Cerca de 8% das informações prestadas dizem respeito a questionamentos acerca de leis e direitos da mulher entre os quais se destacam orientações sobre o que é uma relação estável, separação conjugal e guarda dos filhos. Outras informações respondem por menos de 1%. O que os dados apontam é que a Central tem de fato sido utilizada muito mais como um serviço voltado às mulheres que vivenciam uma situação de violência e, em geral, de violência doméstica e familiar, do que como um serviço que atende às mulheres de maneira mais ampla, tal como um “Disque mulher”.

Interessante observar que, no espaço temporal de um ano, foram fornecidas, só no Ligue 180, quase 48 mil informações sobre a Lei Maria da Penha (LMP), o que corresponde a uma média mensal de 4 mil atendimentos. Este número veio crescendo ao longo dos meses, tendo passado de um total de 266 informações nos meses imediatamente posteriores à promulgação da Lei, para mais de 7,5 mil, pouco mais de um ano depois. Tal constatação indica que todo o destaque conferido à LMP na mídia e nas ações de divulgação/sensibilização tem produzido resultados, tornando-a cada vez mais conhecida na sociedade em geral e, assim, um instrumento de maior peso para o efetivo enfrentamento da violência contra as mulheres.

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Tabela 6

Distribuição das informações fornecidas pela Central de Atendimento à Mulher, por tipo. Brasil, 2007

Tipo de Informação Nº Abs. %

Violência doméstica e familiar contra as mulheres 47.975 72,9

Outros crimes contra as mulheres 12.563 19,1

Direitos das mulheres 5.263 8,0

Informações Gerais 375 0,6

Total 65.801 100,0

Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

3.5. Reclamações recebidas na Central de Atendimento à Mulher

A Central recebe, ainda, reclamações de cidadãs(aos) quanto ao atendimento recebido não apenas nos serviços especializados de atendimento às mulheres em situação de violência (DEAMs, Casas-Abrigo, Juizados Especiais, etc), mas também em outros serviços que mesmo não específicos, atendem em grande número a mulheres vivenciado tal realidade (Delegacias de Polícia, número 190, Defensorias Públicas, entre outros). Durante todo o ano de 2007, foram recebidas apenas 904 reclamações sobre os serviços, o que equivale a menos de 0,5% do total de atendimentos efetuados pela Central (ver tabela 8). Isto não significa, obviamente, que o conjunto de serviços que atendem às mulheres em situação de violência esteja funcionando da maneira mais adequada, segundo as normas técnicas já produzidas pelo governo federal. De fato, há que se destacar a prevalência de uma cultura que não associa o bom atendimento nos equipamentos públicos a uma questão de acesso a direitos e, portanto, não estimula a denúncia e a reclamação aos órgãos competentes. Há, muitas vezes, uma noção de que o agente público ao efetuar um bom atendimento está “prestando um favor” à mulher e não garantindo o seu direito a um serviço de qualidade e eficiência. Configura-se, assim, um quadro de violência que soma a agressão doméstica e familiar (ou pública) àquela praticada pelo Estado e que pode ser denominada violência institucional.

Ademais, as condições de fragilidade e instabilidade vivenciada pelas mulheres não evidenciam o mau atendimento como a questão mais importante a ser resolvida no momento. Quando se analisam os relatos registrados nos mais diversos tipos de denúncias de violência recebidas na Central (como tentativa de homicídio, agressão física ou cárcere privado, por exemplo) é bastante recorrente a narrativa de que estas mulheres já procuraram os serviços existentes na cidade, em especial DEAMs ou delegacias comuns, e de que foram bastante mal atendidas. A reclamação não constitui-se em objeto da ligação da mulher ao Ligue 180, mas compõe um relato maior sobre a violência que sofre de seu companheiro/marido/namorado, não sendo necessariamente registrada como “reclamação”.

Ainda que os números sejam de pequena monta, importantes aspectos podem ser apreendidos da análise das informações produzidas. Inicialmente, cabe destacar que os serviços que mais apresentam registros de reclamação na Central são as Delegacias de Polícia, especializadas ou não no atendimento à mulher, seguidas do número 190, de atendimento telefônico da polícia militar: juntos, eles respondem por quase 70% do total de reclamações registradas. Os demais serviços mencionados não chegam a 5%, sendo que a categoria “outros” agrega 26% do total de reclamações, o que é resultado de mudanças na base de dados que impossibilitaram a identificação dos serviços alvo das reclamações entre janeiro e abril de 2007.

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Tabela 7

Distribuição das reclamações recebidas pela Central de Atendimento à Mulher, por serviço. Brasil, 2007

Tipo de Serviço Nº Abs. %

Departamento de Polícia 307 34,0

Delegacia da Mulher 225 24,9

190 94 10,4

Fórum 17 1,9

Defensoria Pública 9 1,0

Central de Atendimento à Mulher 7 0,8

Casa-Abrigo 4 0,4

Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar

contra a Mulher 3 0,3

Centro de Referência 2 0,2

Outros 236 26,1

Total 904 100,0

Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

A partir deste quadro, ressalta-se que o grande foco das reclamações encontra-se, portanto, no aparato da segurança pública, espaço mais procurado pelas mulheres quando é tomada a decisão, ainda que impulsiva ou temporária, de denúncia e de rompimento do ciclo da violência. Por serem em grande parte dos casos a porta de entrada ao aparato estatal amplia-se a importância de um bom atendimento, acolhedor e humanizado, e da prestação de um serviço de qualidade, em obediência ao disposto nas leis e normas vigentes. É exatamente em cima destes dois pontos que se concentram as reclamações recebidas pela Central. De modo geral, as queixas estão relacionadas à incorreta aplicação da legislação vigente (24%), especialmente no registro e providências quanto ao Boletim de Ocorrência, e ao atendimento inadequado, seja em função de maus tratos, despreparo, dificuldade de acesso, omissão, entre outros (40%). A categoria “outros” também agrega um conjunto muito amplo de tipos de reclamações recebidas (26%), o que aponta para a premência de se rever a classificação aqui adotada.

Tabela 8

Distribuição das reclamações recebidas pela Central de Atendimento à Mulher, por tipo. Brasil, 2007

Tipo de reclamação Nº Abs. %

Recusa em registrar Boletim de Ocorrência 152 16,8

Atendimento inadequado e maus tratos 146 16,2

Despreparo em casos de violência doméstica/familiar 129 14,3 Falta de providência sobre Boletim de Ocorrência 67 7,4

Omissão 46 5,1

Dificuldade de acesso 33 3,7

Infra-estrutura inadequada 5 0,6

Demora no andamento do processo 4 0,4

Ausência de profissionais 2 0,2

Outros 320 35,4

Total 904 100,0

Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

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Alguns relatos que serão apresentados na seção seguinte evidenciam o despreparo e a inadequação do atendimento recebido pelas mulheres, a partir da reprodução de estereótipos no atendimento, como a idéia de que a mulher não deve registrar ocorrência porque vai se reconciliar com o agressor ou de que briga entre casais são comuns e não constituem caso de polícia. Além disso, as autoridades policiais passaram, com a LMP, a contar com uma série de novas obrigações para os casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres, como a necessidade de se gerar um inquérito e de se realizar uma investigação sobre a denúncia, e, em muitos casos, ainda encontram-se resistentes à sua adequada e completa aplicação (Bonetti e Pinheiro, 2007). Os dados apontam, portanto, para a necessidade contínua de capacitação e qualificação dos profissionais e de divulgação da nova Lei de forma ainda mais intensa.

4. Situações-limite da violência contra as mulheres: os casos de tentativa de homicídio e de cárcere privado

Como já salientado anteriormente, os crimes de tentativa de homicídio e de cárcere privado foram de baixa representatividade dentre os registros ao longo do ano de 2007. No entanto, eles foram os eleitos para se empreender uma análise qualitativa acerca dos registros feitos pelas atendentes do Ligue 180 em grande medida devido ao fato de serem considerados situações-limites da violência contra as mulheres e uma violação máxima aos seus direitos humanos, uma vez que atentam contra as suas vidas. Acredita-se que uma análise mais detalhada dos meandros desses tipos criminais pode fornecer mais e melhores elementos para maior compreensão dos caminhos percorridos até se chegar a tais limites.

Inicialmente faz-se necessário empreender uma ressalva metodológico sobre o material coletado: as análises aqui apresentadas foram elaboradas a partir de relatos de segunda ordem, na maioria dos casos, ou de terceira ordem, em outros poucos: a denunciante-vítima que relata à atendente e a denunciante-amiga ou parente da vítima que relata à atendente. Os relatos que embasam este estudo não são, portanto, transcrições literais das falas das mulheres que denunciam a violência, mas são registros produzidos pelas operadoras da Central a partir do que escutam no atendimento. A maior parte das denúncias de tentativa de homicídio foram feitas pelas próprias vítimas do crime, o que significa que há apenas uma interferência entre vítima e relato. No caso do cárcere privado, a denunciante é, majoritariamente, alguma parente ou amiga da vítima e, nesse caso, tem-se mais uma interferência entre a que sofre a violência e o relato. Conta-se, assim, com diferentes filtros subjetivos até o registro final sobre o qual se trabalhou neste estudo. Contextualiza-se, assim, a interpretação aqui empreendida como de quarta ordem, tornando explícitas as limitações inerente ao material sob escrutínio analítico. Mesmo importantes, tais considerações metodológicas de modo algum invalidam os dados coletados. Para os casos de tentativa de homicídio e cárcere privado as informações são bastante consistentes e próprias para o tipo de análise aqui desenvolvida.

4.1. Os casos de tentativa de homicídio

Ao longo de todo o ano de 2007, foram recebidas, pela Central de Atendimento à Mulher, 211 denúncias de tentativa de homicídio, que corresponde a pouco mais de 1% do total de denúncias de violência contra as mulheres registradas no serviço. Ainda que pouco freqüentes no conjunto de relatos de violência, as informações que podem ser retiradas da análise das narrativas transcritas pelas operadoras da Central permitem construir um quadro das características mais recorrentes neste tipo de delito, produzindo dados de grande utilidade para orientar a construção de políticas mais eficientes e para avaliar aquelas já existentes.

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De modo geral, o que pode ser observado a partir de uma análise qualitativa das informações fornecidas à Central é que existe uma certa regularidade quanto a alguns aspectos que caracterizam os crimes de tentativa de homicídio. Primeiramente, pode-se perceber que em praticamente todos os relatos a tentativa de assassinato é uma etapa limite de uma sucessão de agressões físicas, patrimoniais, psicológicas e morais. Diversas são as formas pelas quais este delito se manifesta – seja pela tentativa de enforcamento, agressão com facas, pedaços de pau/ferro ou armas de fogo –, mas ele sempre é acompanhado de outras formas de violência, nas quais se destacam as agressões físicas, as humilhações, as ameaças constantes de morte e até mesmo situações de cárcere privado. Esta concomitância se revela tanto em períodos anteriores à tentativa de homicídio, quanto no próprio momento do crime. Os relatos apresentados ao longo desta seção evidenciam este fato.

Outro aspecto a ser ressaltado é que este crime é, em geral, cometido por meio do uso de armas brancas, em especial de facas e facões. Do total de relatos que continham a arma utilizada na tentativa de homicídio, cerca de 45% apontavam a utilização de facas, 31% o uso das mãos para enforcamento, 12% o uso de armas de fogo, 7% a agressão com paus, pedras e outras armas brancas e 6% correspondiam a tentativas de atear fogo na vítima. Em alguns casos, foram registradas tentativas nas quais os agressores, simultaneamente, utilizaram mais de uma arma, como facas e enforcamento, por exemplo, tal como apontam as seguintes narrativas:

“Cidadã informa que um mês após o casamento ele começou a agredi-la, as agressões são com facas e armas de fogo. Há quinze dias, tirou uma bala do pé esquerdo por causa de um tiro dado por ele”.

“Cidadã tem 40 anos e convive com seu companheiro há 3 anos (...) já sofreu 4 tentativas de homicídio; como tentativa de enforcamento, levou 2 facadas na perna hoje e ligou de dentro do táxi que a socorreu. Quebrou sua clavícula e fêmur. O agressor a prendeu no quarto e foi até seus amigos conseguir uma arma de fogo, mas ela conseguiu fugir”.

“Ontem o agressor chegou do serviço nervoso e cometeu uma tentativa de homicídio. Ele pegou a faca e jogou na cidadã, quase pegou na barriga da mesma, mas ela desviou e a faca pegou no sofá”.

“Relata que desde o inicio do casamento, há 4 anos, vem suportando o descontrole do marido que é muito ciumento e possessivo. Relata que quando estava grávida com 3 meses ele a agrediu fisicamente jogando-a na cama e subindo em cima de sua barriga, batendo muito no seu rosto. Relata que durante 2 anos ele não a agrediu fisicamente, mas não aceita a separação e diz que vai se matar se ela o deixar. Quando a agride ele chora pedindo perdão e promete não fazer mais (...) ele voltou a agredi-la nesta semana com socos, tentando matá-la com uma faca. Ela se protegeu, mas ele a pegou e tentou enforcá-la”.

Se a tentativa de homicídio pode ser entendida como o “ápice” de uma trajetória de agressões anteriores, cabe ressaltar que esta trajetória, para muitas mulheres, se constitui em uma realidade diária. Muitos são os relatos de agressões físicas, psicológicas e morais que se dão diariamente, ao longo de semanas, meses e até anos, e que desembocam no atentado à vida das vítimas. Um quinto das denúncias recebidas na Central apontam para esta freqüência da violência. Este número é certamente bastante superior, uma vez que nem todas as mulheres que procuram o serviço informam espontaneamente (ou mesmo quando perguntadas) a freqüência das agressões sofridas. Este dado é alarmante, pois ao mesmo tempo em que reforça a validade do ciclo da violência e das dificuldades de seu rompimento, também aponta para uma provável incapacidade da resposta do Estado frente ao problema; são vários os relatos de procura de ajuda sem qualquer tipo de apoio e vários são os relatos de não procura de ajuda por medo de que o

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agressor acabe por concretizar a tentativa de homicídio. Este medo não deixa de ser, em certo sentido, uma desconfiança nas instituições do Estado, pois não há certeza de que após a denúncia, haverá proteção à mulher ameaçada. Alguns destes relatos são apresentados a seguir:

“Sra relata que é agredida diariamente pelo seu esposo. Houve tentativa de homicídio quando o agressor usou a faca, só não aconteceu uma tragédia porque ela estava com a criança nos braços. Cidadã nunca registrou BO por temer perder a vida”.

“Sra relata que é agredida pelo seu companheiro há 1 mês todos os dias (...) Houve tentativa de homicídio, o agressor tentou decapitá-la com uma foice, no recuo da vítima, foi acertada nos seios. (...) Cidadã nunca denunciou por ser ameaçada e coagida pelo agressor”.

“Quando a ofendida foi aconselhada a denunciar, ela estremeceu: disse que jamais faria, não por ela, mas pela vida das filhas, netas e genros. A morte para ela seria um alívio”.

“Relata que ontem o agressor quis matá-la com uma faca e foi socorrida pelos vizinhos que tomaram a faca. Diz que chamou a polícia que não fez nada porque ele não havia agredido a mesma fisicamente, ou seja, tentou furá-la com uma faca, mas não conseguiu”.

Uma parcela muito expressiva das mulheres que denunciam a tentativa de homicídio relata que seus filhos presenciam cotidianamente as agressões, sendo, muitos deles, vítimas também de violências físicas e psicológicas. Esta é uma informação que é reportada de forma espontânea pelas mulheres que procuram a Central, sendo bastante freqüente. De fato, cerca de 50% dos relatos traz este dado, o que aponta para a grande magnitude do fenômeno. Algumas informam, ainda, que seus filhos têm apresentado comportamento violento em outros ambientes de socialização, como na escola e na comunidade em que vivem. Destacam-se, ainda, o grande número de relatos de mulheres que denunciam ser vítimas de tentativas de homicídios enquanto grávidas. Tem-se assim novas evidências de que o ciclo da violência se reproduz e se perpetua entre as gerações, podendo vir, inclusive, a ser percebido como algo natural, inerente ao relacionamento humano e, em particular, ao relacionamento afetivo entre um casal. A violência doméstica e familiar contra as mulheres ao mesmo tempo em que se constitui em uma clara violação de seus direitos humanos, representa também uma violação a um amplo conjunto de direitos assegurados legalmente a crianças e adolescentes, em particular pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

“Fala que os filhos vivem assustados, com medo, porque sempre presenciam as agressões e às vezes tem que fugir com a mãe, quando o agressor tenta matá-la”.

“Seus filhos de 2 anos e outro de 5 meses presenciaram as agressões. Diz que seu filho de 2 anos ficou agressivo e, na tentativa de proteger a mãe, diz querer matar o pai”.

“Os filhos presenciam tudo, andam sempre de cabeça baixa, são tristes e tem muito medo do pai (o agressor).”

Outro aspecto interessante que se manifesta de forma recorrente nos relatos se refere ao uso de drogas e/ou álcool pelos agressores. De fato, há uma percepção generalizada na sociedade de que “o homem bebe e quando chega em casa bate na mulher”. Por trás desta concepção, está a idéia de que a bebida ou outras drogas ilícitas funcionam como “detonadores” de um comportamento violento que não se manifestaria estando o marido/namorado/ companheiro em condições de sobriedade. Os dados coletados na Central permitem tanto uma interpretação que reforce este estereótipo, quanto uma outra que o questione. Do total de relatos que trazem informações sobre o uso ou não de drogas e álcool, 74% referem-se a tentativas de homicídio nas quais o agressor encontrava-se sobre o efeito de alguma destas substâncias, o que, de certa forma, permite levantar a hipótese de que tais drogas propiciam a manifestação de atitudes violentas. No entanto, os 26% restantes equivalem a um conjunto significativo de agressões, nas

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quais o uso de drogas não se constitui em fato que sirva como “atenuante” da intencionalidade do ato. Importante considerar os diferentes relatos:

“O agressor já colocou arma de fogo na cabeça da cidadã e levou a ofendida até um matagal para tentar matá-la. Faz uso de bebidas alcoólicas e se transforma, ficando muito agressivo”. “Tudo isso acontece semanalmente, quando o agressor está alcoolizado. Quando está lúcido é um ótimo marido. Ele compra flores, bombons e diz que nunca mais vai acontecer”.

“O mesmo agride a cidadã quando faz uso de bebida alcoólica, o que acontece raramente, mas quando ele está lúcido, não se arrepende, mas não a agride, nem xinga”.

“O mesmo faz uso de bebida alcoólica, (...) mas quando está lúcido é violento do mesmo jeito”. “O mesmo não faz uso de bebidas alcoólicas, nem drogas, mas é muito violento e agressivo”.

Finalmente, ainda que não se constitua em relatos tão recorrente quanto os demais, vale mencionar nesta caracterização o fato de que muitas mulheres acabam sofrendo tentativa de homicídio em função de pedirem a separação ou de se separarem de fato. Nesse caso, as narrativas que chegam à Central destacam o crime como resultado de uma não aceitação da separação que, em muitos casos, foi fruto de uma tentativa de romper com as constantes violências sofridas. Alguns destes importantes relatos são destacados a seguir:

“(...) convive há 6 anos, tem 2 filhas, relata que foi agredida fisicamente pela 1ª vez pelo companheiro com socos, tapas, murros, sendo ela também ameaçada com uma faca, ficando com marcas e dores por todo o corpo, e abalada psicologicamente. Há agressões morais, como difamação diariamente e acontecem também coações, ameaças de morte, alegando o agressor que só sairá da residência depois que acabar com tudo e todos. Cidadã já conversou a respeito da separação. Ele não aceita, e é quando ele fica mais agressivo”.

“Relata que está sendo agredida diariamente pelo companheiro há 2 anos, com socos, tapas, murros, empurrões, ficando com marcas nas costas, braços, cabeças e pernas. Há agressões morais como difamação e ameaças de morte, caso ela continue querendo separar-se”.

Ainda que estas informações não se constituam em uma amostra estatisticamente significativa do conjunto de mulheres que sofreram tentativas de homicídio no Brasil, em 2007, elas certamente constituem um conjunto importante de dados que permitem levantar uma série de hipóteses a serem mais profundamente investigadas em estudos futuros. Como uma primeira abordagem, os dados produzidos na Central mostram-se de grande valia como pontos de partida e de orientação para o desenvolvimento de políticas que enfrentem o fenômeno da violência contra as mulheres.

4.2. Os casos de cárcere privado

Foram selecionados os 123 casos de cárcere privado registrados ao longo de 2007 para a análise qualitativa. Ao se debruçar sobre esse material, algumas regularidades começam a surgir e a levantar as seguintes questões norteadoras: qual o motivo do encarceramento? Quem fez a denúncia? Qual a relação entre denunciante e vítima? Como fez a denúncia? Quem é o agressor? Qual a relação entre vítima e agressor? Há uso de armas? Se sim, quais são? Há uso de entorpecentes? Nas situações em que existem filhos, como eles são retratados nos relatos?

Frente a todos esses questionamentos feitos aos registros, um dos primeiros elementos a serem mencionados diz respeito a uma grande divisão interna dos dados. Dos 123 crimes de cárcere privado registrado, 17 deles dizem respeito a casos que envolvem relações de parentalidade: pais que encarceram filhas e as abusam sexualmente, filhas que encarceram mães idosas ou com problemas mentais com o intuito de se beneficiar das suas aposentadorias e apenas, dois deles dizem respeito a casos de cárcere privado com fins de exploração sexual.

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Nesses casos os denunciantes não são as próprias vítimas, mas pessoas das redes de sociabilidade e vizinhança dos encarcerados.

Os 106 registros restantes dizem respeito a casos de cárcere privado que envolvem relações de conjugalidade, sendo o marido ou companheiro o perpetrador do cárcere. Nos registros não são recorrentes os relatos sobre as motivações do crime. Temos um caso exemplar que revela que o cárcere passou a ser utilizado como um outro recurso de opressão, dentro de um quadro de relação violenta, como o caso de Dona Cremilda8 o interior do Paraná, que passou a ser mantida em cárcere privado após seu marido ter descoberto que ela registrara um boletim de ocorrência contra ele. Outros casos revelam que, frente a recusa da mulher em realizar o aborto, o companheiro passou a lhe bater e manter presa em casa. Esse é o caso de Dona Bibiana, do interior da Bahia, que, segundo relatou à atendente, “o motivo de deixá-la trancada é porque

quando estava grávida de cinco meses ele pediu-lhe para fazer um aborto e como ela não aceitou, ele prometeu que ela iria se arrepender”. Há, ainda, relatos que trazem as clássicas

motivações para crimes dessa ordem, como a proibição de que a mulher trabalhe fora de casa, como caso de Zenaide, da região metropolitana de Recife, PE, “o seu companheiro não aceita de

forma alguma que ela trabalhe for a e tenha uma vida social”.

Nos registros desses casos, a denúncia é feita por parentes femininas – mães, irmãs, primas – vizinhas ou amigas, ou pela própria denunciante, em momentos em que o agressor se descuida da guarda ou quando consegue despistá-lo. Para tanto utiliza-se de diferentes recursos: bilhetes para pessoas de confiança pedindo ajuda ou pelo telefone. Alguns relatos apontam este fenômeno:

“Cidadã de 46 anos relata que sua vizinha Soraia está sendo mantida em cárcere privado pelo companheiro José há mais de um mês. Ela informa que escreveu um bilhete e pediu para seu filho entregar para sua vizinha solicitando que ela ligasse para a polícia.”

“Cidadã relata que está sendo mantida em cárcere privado pelo seu esposo. No momento em que entrou em contato com a nossa Central estava muito nervosa, pois o mesmo havia saído um instante e nesse momento a mesma pegou o celular escondido e ligou para o 180”.

“Cidadã relata que está sendo mantida em cárcere privado pelo seu companheiro. A mesma estava nervosa, desesperada e implorou que lhe tirassem dessa situação. Não foi possível colher dados suficientes, pois a mesma teve de encerrar a ligação visto que o seu companheiro chegou em casa.”

Outro elemento recorrente desses registros são as menções a filhos pequenos que, ou assistem as cenas de violência e espancamento da mãe que antecede o encarceramento, ou também são vítimas do cárcere ou mesmo agredidos com a mãe. Ilustra esse fato o seguinte caso:

“Cidadã relata que sua amiga sofre violência física diariamente por parte do companheiro que é alcoólatra e violento há 10 anos. Relata que seus 4 filhos presenciam tudo. A filha mais velha, de 9 anos de idade, é agredida fisicamente pelo pai pois é acusada de ajudar a mãe a traí-lo. Ele a acusa e a ameaça de morte. Relata que nessa semana ele a levou para um matagal agredindo-a com socos, surrando-lhe e obrigando-a a confessar que o tem traído. Passaram a noite ali, na chuva, só voltando de manhã. Ao retornar para casa cortou as roupas íntimas da mulher para que não saísse de casa. Ela esta desde sexta sendo mantida presa em casa. Somente os filhos estão saindo, controlados por ele. Relata que os vizinhos informam que ela a obriga a trabalhar para sustentá-lo, pois é alcoólatra e não trabalha”.

O exemplo acima identifica um caso de cárcere privado que reúne diferentes elementos: desconfiança de traição por parte do marido, violência física contra mulher e filhos e uso de

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bebida alcoólica, o que parece se configurar em um caso clássico de violência doméstica e familiar. No entanto, como já mencionado anteriormente, o uso de entorpecentes pelo agressor nem sempre é uma certeza constante. Seguem alguns casos que fogem à regras:

“Cidadã de 26 anos é agredida fisicamente pelo esposo com socos e empurrões, convivem juntos ha sete anos e toda a semana ela é agredida por ele. A cidadã tem dois filhos que presenciam as agressões e estão traumatizados com a situação. O mesmo não faz uso de entorpecentes, faz tudo consciente”. (Interior da Paraíba)

“Cidadã Diva, de 42 anos, relata que o marido com quem vive há 6 meses comete contra ela a violência moral, com difamação, injúria, violência psicológica com ameaça de morte, diariamente. A ofendida diz que também é vítima de cárcere privado, pois o agressor não permite que ela saia de casa e tenha contato com a vizinhança. Os dois filhos do outro relacionamento presenciam as agressões e insistem para que a mãe termine o relacionamento com o padrasto. Ele não faz uso de entorpecentes” (interior de São Paulo).

Nesse último caso fica mais explicita a orientação de que as atendentes devem fazer a pergunta sobre o uso de entorpecentes, para verificar qualquer possibilidade de correlação entre a violência e o uso de substâncias tóxicas. Essa orientação se deve, em grande medida, à construção de uma imagem do agressor que bate apenas porque está sob efeito de determinadas substâncias. No entanto, a busca pelo uso de entorpecentes como uma explicação para a violência contra as mulheres pode retirar a responsabilidade do agressor, construindo-o como um doente, o que o eximiria de assumir e responder pelo crime cometido.

Mesmo os relatos sendo pouco uniformes no que diz respeito a informações para a maior compreensão do caso, eles trazem elementos que, juntamente com uma análise quantitativa, permitem compreender alguns dos meandros do crime de cárcere privado.

5. Considerações finais

O fenômeno da violência contra a mulher no Brasil é, ainda, uma das principais formas de violação dos direitos humanos das mulheres. Os dados coletados pelo Ligue 180 ainda revelam a persistência dessa cruel realidade. No entanto, ao se olhar mais atentamente para eles, para as nuances que apresentam, pode-se vislumbrar indícios de possíveis mudanças nos padrões da sua manifestação. Um deles diz respeito à percepção de uma possível transformação do conhecido “ciclo da violência doméstica”. Para uma pesquisa comparativa futura relativa ao tempo de duração de relações conjugais violentas, aposta-se na hipótese de que cada vez mais as mulheres passarão a pedir ajuda já nas primeiras manifestações de violência. Os dados acerca da faixa etária das mulheres agredidas, associados aos discretos relatos sobre o tempo de relacionamento que constam nos registros feitos pelas atendentes permitem aventar tal possibilidade, muito embora ainda não hajam dados consistentes para corroborar tal afirmação.

Mais do que certezas e novas verdades sobre a violência contra as mulheres, este primeiro ensaio analítico sobre os dados coletados no Ligue 180 buscou suscitar questões, ensaiar hipóteses, experimentar caminhos analíticos possíveis para se pensar esse fenômeno. Nesse sentido, esse texto pretende-se, despretensiosamente, servir como um pontapé inicial para as potencialidades analíticas que as informações recolhidas pela Central Ligue 180 representam. Trata-se, assim, de um convite a explorar as riquezas contidas nessa fonte periódica, pública e, cada vez mais, sistemática de produção de dados oficiais sobre o fenômeno da violação dos direitos humanos das mulheres no Brasil. Será a partir dela que conheceremos mais aprofundadamente as múltiplas faces desse fenômeno para, assim, podermos combatê-lo com mais vigor.

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6.. Bibliogafia

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Referências

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