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Grandes Projetos e seus impactos e significados na Região do Bico do Papagaio-TO

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Grandes Projetos e seus impactos e significados na Região do

Bico do Papagaio-TO

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Alessandro Medeiros Clementino♣♣ Roberto Luís M. Monte-Mór♦♦

Palavras Chave: fronteira; impactos sócio-ambientais; Bico do Papagaio, Tocantins; Amazônia

Resumo

A Região do Bico do Papagaio, norte do Estado de Tocantins, é parte integrante da Amazônia Legal. Confluência do cerrado com a mata amazônica, a região é banhada pelos rios Araguaia e Tocantins. A construção e a pavimentação da rodovia Belém-Brasília, nos anos 50 e 60, deram impulso à sua ocupação com atividades agropecuárias e extrativistas tradicionais.

Desde o início dos anos 1980, com acentuada intensificação a partir de 1994, o Governo Federal assentou cerca de 20 mil famílias na RBP, em projetos de reforma agrária, transformando os assentados em importantes atores sociais na Região. O espírito desses assentamentos, em plena Amazônia Legal, era baseado no cooperativismo e no respeito ao meio ambiente.

Por outro lado, articulam-se também grandes projetos relacionados às atividades agro-exportadoras, como a carne bovina, a soja e outros grãos. A Hidrovia Araguaia-Tocantins, hidrelétricas e grandes estruturas de irrigação são exemplos desse esforço.

Assim, confrontam-se na Região dois projetos de desenvolvimento: um baseado na pequena agricultura familiar, com forte ênfase sócio-ambiental e outro, com base na grande propriedade, no uso intensivo de capital e tecnologia e nas atividades agro-exportadoras.

O objetivo deste artigo é discorrer sobre o encontro de diferentes modelos de desenvolvimento econômico em uma das recentes áreas de fronteira do país.

*

Trabalho apresentado ao XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú- MG – Brasil, de 20- 24 de Setembro de 2004

♣*

Assistente de Pesquisa do Cedeplar/UFMG.

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Grandes Projetos e seus impactos e significados na Região do

Bico do Papagaio-TO

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Alessandro Medeiros ClementinoRoberto Luís M. Monte-Mór

1. Introdução

Este artigo discute e problematiza uma disputa entre modelos de desenvolvimento econômico, e seus conseqüentes referenciais de ação, em uma das recentes áreas de fronteira do país, a Região do Bico do Papagaio, extremo norte do Estado de Tocantins. Grosso modo, podemos contrapô-los da seguinte forma: um modelo hegemônico baseado em atividades agro-exportadoras, intensivas em capital e de alta produtividade, mas com elevado grau de impacto ambiental e de exclusão social das populações hoje ali assentadas; outro modelo, baseado na agricultura familiar, com menor impacto ambiental e que se propõe a integrar uma população tradicionalmente marginal à produção e consumo sistemáticos, mas com baixa produtividade e sem impactos maiores na economia e/ou balanço de pagamentos nacional via exportação. Neste dilema encontram-se, de um lado, pequenos agricultores, assentados rurais e uma grande variedade de grupos sociais migrantes e locais; de outro, grandes proprietários rurais, empreiteiras, investidores internacionais e gr andes grupos empresarias.

Na parte sul da Região do Bico do Papagaio (RBP)1, onde o pólo micro-regional da cidade de Araguaína tem um peso econômico e político mais forte e evidente, destacam-se a pecuária, as grandes propriedades e a presença de setores econômicos mais dinâmicos. Na parte norte, onde se destacam as cidades de Araguatins, Augustinópolis e Tocantinópolis, predominam atividades agropecuárias e extrativistas com base na economia familiar e de subsistência.

A ocupação da RBP pode então ser dividida em duas frentes, com características distintas. Uma baseada na pecuária extensiva, ao sul, e outra baseada na agricultura familiar, ao norte. O perfil dos migrantes para essas duas áreas é também distinto: a norte, migrantes pobres vindos do nordeste em busca de terras “vazias” para serem ocupadas, enquanto ao sul a penetração se deu por médios e grandes fazendeiros oriundos no mais das vezes de Minas Gerais, São Paulo e Goiás (Cedeplar, 2002).

Esses dois grupos apresentam demandas e posições políticas divergentes, além de objetivos diferentes: ao norte, o pequeno agricultor busca sua subsistência e de sua família, ficando o excedente econômico para uma fase posterior, por vir. Ao sul, o objetivo imediato é a

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Trabalho apresentado ao XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú- MG – Brasil, de 20- 24 de Setembro de 2004

♣*

Assistente de Pesquisa do Cedeplar/UFMG.

Professor e Pesquisador do Cedeplar/Face/UFMG.

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A Região do Bico do Papagaio, tal como aqui entendida, foi definida para fins de planejamento pela Seplan-TO e abrange 37 municípios. Popularmente, o Bico do Papagaio se refere principalmente à parte norte dessa região.

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realização do excedente econômico, do lucro, dado o perfil mais empresarial e capitalizado desse migrante.

Os confrontos entre fazendeiros e pequenos posseiros pelo controle da terra e dos recursos naturais na região geraram muitos conflitos e mortes ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, transformando a RBP num dos principais focos de tensão agrária do país. A violência na Região culminou com o assassinato de Padre Josimo, em 1986, religioso católico que atuava junto aos sem terra e assentados da Região organizando-os e defendendo-os em relação aos interesses dos grandes proprietários e à atuação do Estado, em seus diversos níveis. Sua morte teve grande repercussão na região, e mesmo nacional e internacional, mas apenas em 2003 um dos acusados pelo crime foi preso no sul do Pará.

No início dos anos 1980, como forma de afrouxar as tensões da luta pela terra, o governo federal iniciou um processo de regularização fundiária e assentamento de famílias de posseiros na Região. Para tanto, temeroso dos conflitos do passado, criou o GETAT – Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins, órgão diretamente ligado ao Conselho de Segurança Nacional a quem coube recolher terras devolutas e não-tituladas, dirimir conflitos de posse e promover a titulação e assentamento dos pequenos posseiros, o que, a despeito dessas iniciativas, não diminuiu significativamente os conflitos e tampouco serviu para aumentar a confiança da população local na atuação do poder público.

Na década de 1990, extinto o aparato militar, acentuou-se, já sob o comando do INCRA, um novo processo de reforma agrária (e regularização fundiária) na Região, principalmente no extremo norte da RBP onde os assentamentos rurais são predominantes. Entre os anos de 1988 e 2001, segundo o INCRA, 8203 famílias foram assentadas em 105 Projetos de Assentamento em toda RBP. Apesar de oficialmente recentes, muitos desses assentamentos têm uma história antiga; alguns, inclusive, remontam ao final dos anos de 1960. O grande número de Projetos de Assentamento fez dos assentados importantes atores sociais na Região.

A partir de 1980, à especificidade desse processo social que remonta à década de 1960, somou-se a questão ambiental, com todas as suas implicações. Não custa lembrar que a RBP se encontra na Amazônia Legal, sendo regida por legislação com forte ênfase ambiental. E para além do processo social e da questão ambiental, surgiu também um terceiro elemento: a pressão do capital empresarial exportador que pretende, por um lado, incorporar a Região ao “agribusiness” internacional, e, por outro, usar a Região como suporte para vários Grandes Projetos2 (que serão abordados mais adiante) que beneficiariam as atividades agro-exportadoras dos Estados de Mato Grosso, Goiás e Pará. O quarto elemento desse cenário seria as comunidades locais de pequenos agricultores, pescadores, extrativistas, índios e assentados, que vêm formulando e buscando, com ajuda de organizações não governamentais, religiosas e mesmo do Estado, alternativas para evitar sua exclusão pelo modelo de desenvolvimento que se monta para a Região.

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Convencionou-se chamar por Grandes Projetos, na Região, todas as obras e iniciativas normalmente voltadas para a implementação de uma infraestrutura que viabilize os negócios agro-exportadores e a atração de grandes capitais.

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2. Fronteiras Sólidas

Em 1969, escrevia Wim Wenders3: “Seria preciso que os filmes sobre a América fossem integralmente realizados com planos gerais, como é o caso da música sobre a América”. Dos grandes espaços vazios e desertos a serem ocupados, fixados pela tradição do western, ou da tardia correspondência desse imaginário, refletido nos road movies e no rock das décadas 1950 e 60 – do asfalto sendo vencido pelas rodas das motocicletas em Easy Rider às letras de

Van Morrison – a sociedade norte americana mostra sua forte relação simbólica com os

momentos iniciais de formação e de consolidação da nação. Do cowboy desbravador ao viajante sempre em busca de algo que nunca vem – permeado pelos grandes espaços abertos e suas possibilidades – vislumbra-se uma tradição, fortemente marcada e anunciada, que remete à história da ocupação do país, mais precisamente, da ocupação do oeste norte-americano.

O conceito de fronteira tem um sentido diverso, dependendo de quem o invoca e reflete, no mais das vezes, as marcas do tempo ou da orientação política-ideológica de quem o formula. Frederick Jackson Turner, historiador norte americano, criou uma espécie de tradição, ou paradigma, ao lançar mão de sua idéia de fronteira e de homem da fronteira. Para Turner a fronteira é o lugar que desafoga as sociedades marcadas por pressões econômicas e sociais. Em seu texto The significance of the frontier in American History (Turner,1996) contraria a idéia, vigente à época, de que a sociedade americana seria o resultado da aplicação dos melhores valores europeus a uma terra nova, com sua especificidade se assentando no fato de que, livre dos velhos valores feudais e aristocráticos, o novo território não oferecia obstáculos ao pleno desenvolvimento dos valores europeus mais modernos, como a democracia e o individualismo, que assim floresceriam com mais vigor, como se aquele território norte americano fosse uma espécie de folha em branco onde se construiria uma nova nação.

Para Turner (1996), ao contrário, a especificidade da sociedade norte americana se encontrava justamente na fronteira, mais precisamente no homem da fronteira. A idéia básica era de que homens livres em terras livres criariam uma sociedade livre. Com isso, a América deixaria de ser a realização dos melhores valores europeus e ganharia uma lógica interna própria. Para Turner, o homem da fronteira vive entre a “civilização” e a natureza, sendo duramente cobrado por essa última. Assim, ao adaptar-se às exigências da natureza, o homem “civilizado” se vê forçado a uma “primitivização”, para só depois, lentamente, retomar seu repertório cultural prévio emergindo então desse processo com uma marca americana.

A fronteira incentivaria a iniciativa individual e a democracia e seria o principal fator de conversão do colonizador europeu em americano. Escrevendo sobre a fronteira oeste americana, Turner (1996) enfatiza não apenas a “incorporação” de vastos territórios “vazios” – marcando sua indiferença com os nativos da Região, mas o efeito moral que esse processo exerce sobre os colonizadores e suas conseqüências na formação do imaginário e da identidade norte-americanos, bem percebidos por Wenders.

Um ponto importante e influente da tese de Turner (1996) é o papel da fronteira como parte estruturante da formação do território nacional, e as conseqüências e significações que esse processo guarda. Apesar de paradigmático, não é difícil perceber a incompatibilidade das noções turnerianas quando se tenta exporta-las para outras historicidades e espacialidades. No caso brasileiro, e especificamente na Amazônia, a dinâmica das fronteiras guarda outros

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significados e outras conseqüências. Para muitos, a fronteira amazônica não é o lugar da redenção, mas da tragédia que carrega na sua história e na sua especificidade a tradição perversa e violenta da elite e do Estado brasileiro. Para outros, apesar dos desencontros, um lugar de potencialidades humanas, econômicas e sociais.

Para Foweraker (1981), que pode ser considerado um herdeiro das noções turnerianas, a fronteira pioneira é um processo histórico específico de ocupação de novas terras e de conseqüente integração de regiões inexploradas à economia nacional. Segundo o autor, na história brasileira há uma estreita relação entre os ciclos econômicos, causados pela demanda mundial de alguns produtos, e a incorporação de novas áreas à economia nacional. O açúcar, o ouro, o algodão, o cacau, a borracha e o café, em diferentes momentos históricos, seriam exemplos desse processo.

A fronteira pioneira era associada, dessa forma, a uma causa externa; novas áreas eram incorporadas à economia nacional como resposta a uma demanda por produtos primários que tinha sua origem fora do país. Segundo o autor, essa lógica teria se mantido até 1930, quando redefinições políticas e transformações econômicas teriam mudado esse padrão. O rápido processo de industrialização e urbanização rompeu com um modelo de desenvolvimento cíclico e regional, expandindo o mercado interno e causando alterações no padrão de demanda.

Por outro lado, havia um excedente de mão de obra, decorrente não só do aumento populacional, mas também da ausência dos ciclos que empregavam parte significativa da força de trabalho, sobretudo rural. Dessa forma, em resposta a esses dois fenômenos – aumento da demanda por alimentos e excedentes de mão de obra – o processo histórico da fronteira pioneira emergiu pela primeira vez como resposta a fatores internos à própria economia nacional. Para sustentar sua hipótese, Foweraker (1981) afirma que o aumento da população no período foi seguido por um aumento proporcional na produção de alimentos. Como não houve aumentos significativos de produtividade, esse excedente de produção foi realizado pela agricultura nas áreas de fronteira, sobretudo do centro oeste e do norte do país, uma vez que o processo de incorporação do sul já havia se concluído.

Apesar de admitir que o processo histórico da fronteira no Brasil, no século XX, tem muitas especificidades, Foweraker (1981) afirma que o mais significativo desse processo é sua generalidade, seu traço comum, que se encontra no seu padrão de acumulação. Estudando os casos do oeste do Paraná (1945-70), sul do Mato Grosso (1955-75) e sul do Pará (1965-81), o autor ressalta três estágios comuns na história dessas três fronteiras, o que denotaria um mesmo padrão de acumulação, não obstante suas diferenças no tempo.

Assim, o tempo da fronteira seria composto por um primeiro estágio não capitalista, por um segundo estágio pré-capitalista, seguido por um terceiro estágio, o capitalista. No estágio não capitalista, predominam as atividades extrativistas e de subsistência, o isolamento da economia e as trocas diretas. No estágio pré-capitalista, há um aumento da migração, intensificação da atividade extrativa e da agricultura de subsistência. Ainda não existe, nesse estágio, mercado para o trabalho livre e aparecem os primeiros excedentes decorrentes do aumento do número de agricultores concentrados em uma mesma área. No estágio capitalista, há um intenso fluxo migratório – com o aparecimento, inclusive, de uma “indústria da migração” – e a incorporação da Região à economia nacional. Há aumento do preço e da concentração da terra, formando-se um mercado capitalista de terras e emergindo um incipiente mercado para o trabalho livre.

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Por esse raciocínio, nos dois primeiros estágios a acumulação não tem lugar, sendo a reprodução do trabalhador e sua família o objetivo primeiro. O terceiro estágio, o capitalista, seria marcado pela acentuação dos conflitos causados pela contradição inerente entre a pequena produção em retração e o capitalismo em expansão. Segundo Foweraker (1981), a violência na fronteira não pode ser explicada pela ausência da lei ou pela ineficácia administrativa do Estado: na verdade a lei, a violência e a burocracia se complementam para mediar a luta pela terra na fronteira e são partes do complexo processo econômico de ocupação e incorporação de novas áreas.

Após fazer as ressalvas necessárias a todo esquematismo ao dizer que os três estágios mencionados podem coexistir e mesmo se interpenetrar, Foweraker (1981) afirma que a penetração crescente do capitalismo na fronteira não completa a transição para o capitalismo, na medida em que desse processo não emerge um capitalismo universal, mas “áreas seletas” que se incorporam à lógica capitalista moderna ao lado de extensas áreas de coexistência entre as relações de produção modernas e arcaicas, muitas vezes combinadas em diferentes níveis.

Para Martins (1997), a idéia de um processo em que se alternam uma frente demográfica, de caráter extrativo e de subsistência e uma frente pioneira4, de caráter econômico e capitalista está implícita na sua argumentação de que, na fronteira amazônica, o encontro das duas frentes sempre marca um conflito, que acaba por expulsar e penalizar o pequeno agricultor. Esse conflito faz parte mesmo do processo de incorporação capitalista onde os pequenos agricultores da frente demográfica, após limparem a terra e tornarem as áreas prontas para a produção de mercadorias, são expulsos pela chegada do capital empresarial, seja através da violência direta ou pela dinâmica de desenvolvimento econômico que se instala. Usa-se o trabalho do pequeno agricultor, ou os serviços da peonagem, em tarefas próprias de uma acumulação primitiva para se alcançar a reprodução ampliada do capital, apesar da aparente contradição que esse processo encerra.

Outro ponto importante na tese de Martins sobre a fronteira é a violência perpetrada sobre o

outro, ou seja, todos aqueles estranhos às oligarquias locais e ao capital empresarial, cuja

associação “é o centro histórico de um sistema político persistente” (1994). Essa violência expressaria muito claramente uma peculiaridade da situação de fronteira no Brasil: ela reflete a modalidade do desenvolvimento capitalista em nossa sociedade que, diversamente do que ocorreu em outras sociedades capitalistas, depende acentuadamente da renda da terra para assegurar a sua reprodução ampliada que necessita e faz uso da violência sistemática como parte integrante de seu processo. Para Martins, portanto, a noção de fronteira como “ponta de história”, com uma dimensão modernizadora e transformadora da sociedade, chamada por ele de “fronteira fetichizada”, é contraposta a uma noção de fronteira que encerra o drama do encontro de forças desiguais, onde a vítima (pequenos agricultores, indígenas, sertanejos, migrantes em busca de terra) é o personagem principal. (Martins, 1997)

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Sawyer (1981), ao discorrer sobre a diferenciação entre frente demográfica e frente pioneira – recorrente na bibliografia sobre o tema no país – afirma que o processo de ocupação de áreas primitivas é marcada pela chegada de migrantes que se ocupam de limpar e preparar a terra (frente demográfica) e que, uma vez “amansada” a fronteira, ocorre a chegada dos empreendimentos capitalistas, em busca de oportunidades (frente pioneira).

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Se para Turner a fronteira pioneira norte-americana molda os melhores valores da sociedade americana, para Martins (1997) o processo histórico da fronteira no Brasil reflete vícios imemoriais. No entanto, uma noção comum nas duas concepções pode ser determinada, grosso modo, no entendimento da fronteira como o lugar para o qual podem ser dirigidas pressões demográficas e econômicas que têm origem nas regiões mais antigas da nação, muitas vezes por conta do encerramento do processo de apropriação de terras, ou pelo esgotamento e crise de um determinado modelo de desenvolvimento econômico.

Monte-Mór5 (2003b: 91), entretanto, ao falar sobre a fronteira no Brasil, introduz novas perspectivas, ao tratá-la como um “espaço de tensão e transformação – ou de nova formação

– podendo tanto marcar o avanço de uma territorialidade sobre outra quanto demarcar diferenças e heterogeneidades”. Este aspecto da fronteira vai ao encontro de um ponto

importante da argumentação deste artigo: reconhecer a heterogeneidade das fronteiras é entendê-las não apenas como o lugar da tragédia, da violência, da luta da civilização contra a barbárie, mas também como o lugar da interface, das trocas e das novas potencialidades ligadas a práticas quotidianas politizadas e que podem resultar em um terceiro espaço gerado a partir do “confronto de dualidades dicotômicas” e transcendendo as dimensões simplificadoras do espaço percebido e/ou concebido para se centrar em um espaço vivenciado, produzido a partir dessas novas práticas6.

3. O Estado de Tocantins: antecedentes e características

Já em 1821, o desembargador Joaquim Theotônio Segurado pregava a necessidade de se dividir o Estado de Goiás em dois, criando um novo Estado no norte, como solução para o isolamento político e econômico da Região. Numa atitude ousada, proclamou o Governo Autônomo do Tocantins que não durou mais que alguns dias, mas que serviu para espalhar e consolidar um sentimento separatista que, desde então, se transformou num movimento articulado.

Em 1920, o então Ministro da Viação e das Obras Públicas do Presidente Rodrigues Alves, José Pires do Rio, defendeu a separação do norte do Estado de Goiás e sua conseqüente transformação em um novo Estado como forma de viabilizar e dinamizar o desenvolvimento da Região.

A idéia da criação de um novo Estado a partir do norte de Goiás ressurgiu com toda força na década de 1970, sobretudo no contexto das discussões sobre a segurança nacional. Aquela Região era considerada uma área esquecida, com parca presença do Estado e com os grandes proprietários rurais exercendo este papel, dentro da tradição das oligarquias rurais brasileiras. Essa idéia se acentuou com um acontecimento histórico que deixou marcas profundas na Região: no início da década de 1970, deslocaram-se para lá militantes de diversos matizes “esquerdistas” dispostos a formar um núcleo de resistência armada ao Governo Militar

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O conceito de urbanização extensiva, desenvolvido por Monte-Mór (1994), pressupõe a extensão da práxis política urbana ao território como um todo, trazendo contribuições para se entender uma idéia que será retomada no tópico 5: a capacidade de articulação e politização de grupos sociais marginalizados, outrora social e politicamente desorganizados e sem representação legítima ou voz.

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O termo é tomado emprestado de Soja (1996), que por sua vez se apóia na abordagem da dialética da tríade desenvolvida por Lefèbvre (1991), ambos citados em Monte-Mór (2003a)

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instaurado em março de 1964. Esse episódio ficou conhecido como a Guerrilha do Araguaia e, no seu auge, estima-se que tenha aglutinado cerca de 1007 pessoas.

A Guerrilha do Araguaia mudou significativamente a maneira como as autoridades brasileiras se relacionariam com a Região a partir de então. Por outro lado, ajudou a criar uma tradição de organização popular e de articulação sócio-política que se mantém como um traço marcante da população da Região até os dias de hoje.

Após uma campanha bem sucedida que se seguiu a duas décadas de intensa negociação, o Estado de Tocantins foi criado em 5 de outubro de 1988, junto com a promulgação da Constituição, a partir do desmembramento do Estado de Goiás.

No norte do atual Estado de Tocantins se localiza a Região do Bico Do Papagaio – RBP – e que dá nome a uma microrregião8. Esse nome se deve ao fato de que o território de Tocantins – e também o outrora norte de Goiás - se afina ao norte pelo curso dos rios Tocantins e Araguaia, que separam aquele território dos Estados do Pará e do Maranhão, causando uma semelhança gráfica com o bico de um papagaio. Na RBP, sempre houve uma identidade regional alicerçada em um conjunto de atividades econômicas de subsistência, cultura cabocla e sertaneja e na paisagem marcada pelos Rios Araguaia e Tocantins, uma identidade que não prescinde de uma marca territorial definida. Essa identidade remonta aos primeiros anos do século XX.

O Estado de Tocantins ocupa 3,37% da superfície nacional e compartilha seus limites com os Estados de Goiás, Bahia, Piauí, Maranhão, Pará e Mato Grosso. É formado por 139 municípios e 18 Regiões Administrativas9. Por sua localização geográfica central – Palmas, a capital, se situa próxima ao centro geodésico do país – é considerado como o elo de ligação entre as regiões nordeste-norte e centro-oeste.

Banhado por dois rios importantes, o Araguaia (a oeste) e o Tocantins10 (a leste), caracteriza-se como uma zona de transição entre o Cerrado e a Mata Amazônica. Apesar do intenso desmatamento, causado pela natureza da ocupação que converteu matas e florestas em pastos e campos de plantio, a Região possui um rico ecossistema – sobretudo aquático – e belas paisagens. Por pertencer a uma área de encontro entre a Mata Amazônica (predominante no vale do rio Araguaia) e o Cerrado (predominante no vale do rio Tocantins), a diversidade biológica da Região é muito rica.

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Por conta do autoritarismo de então, as informações desse período são pouco confiáveis. Pode-se dizer mesmo que houve uma política de Estado que destruiu e escondeu sistematicamente informações. O número de militares empregados na campanha foi da ordem de 10 mil homens; o tamanho da logística para as operações é ainda desconhecida . Para mais informações, ver Portela (2002).

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A micro-região homogênea definida pelo IBGE é composta pelos municípios de Aguiarnópolis, Araguatins, Buriti do Tocantins, Darcinópolis, Luzinópolis, Nazaré, Sampaio, São Miguel do Tocantins e Tocantinópolis. Aqui, como dito anteriormente, por RBP nos referimos à região definida para fins de planejamento, composta de 37 municípios.

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Secretaria do Planejamento do Estado de Tocantins.

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O rio Araguaia tem suas nascentes na Serra dos Caiapós, divisa de Goiás com Mato Grosso. Percorre cerca de 2115 km até desembocar na margem esquerda do rio Tocantins, na divisa dos Estados de TO, PA e MA. Já o Rio Tocantins nasce no Planalto de Goiás e percorre 2400 km até sua foz, na Baía de Marajó, próximo de Belém.

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4. “É chão preto pra todo lado”

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O Estado de Tocantins nasceu sobre o signo do desenvolvimento. O discurso oficial que inspirou e executou a construção do Estado guarda inclusive muitas semelhanças com o discurso e os simbolismos da construção de Brasília.

Como ocorre há décadas, as atuais políticas públicas de desenvolvimento econômico para o Norte e o Centro-Oeste – sejam federais ou estaduais – centram-se no mais das vezes, nos aspectos de melhoria de infraestrutura – sobretudo transporte multimodal, armazenagem e energia. Isto ocorre porque o diagnóstico sobre as limitações ao desenvolvimento dessas regiões aponta, tradicionalmente, de um lado para as dificuldades de escoamento da produção para os centros consumidores nacionais e internacionais e de outro, para as dificuldades para receber insumos estratégicos.

O discurso oficial do Estado de Tocantins – que encontra respaldo em setores do Governo Federal – é bastante enfático. É possível ler no Mapa do Investidor que “...o Estado de

Tocantins apresenta características que são propensas para a produção agrícola de larga escala”; os grãos são considerados “pilares do desenvolvimento” e tratados como

prioridade.12

Dos programas Avança Brasil, Eixos de Desenvolvimento e Brasil em Ação, a Região do Bico do Papagaio é diretamente13 afetada, em escalas diversas, pelos seguintes projetos:

- Plataforma Multimodal de Aguiarnópolis.

- UHE Luís E. Magalhães, no Rio Tocantins, com sede no município de Lajeado e já executada.

- UHE de Estreito, no Rio Tocantins, com sede em Aguiarnópolis e em fase de planejamento. - UHE de Serra Quebrada, no rio Tocantins, com sede em Itaguatins e já planejada.

- UHE de Santa Isabel, no Rio Araguaia, com sede em Ananás e já licitada. - Projeto Sampaio.

- Hidrovia Araguaia -Tocantins. - Ferrovia Norte-Sul.

A Plataforma Multimodal de Aguiarnópolis, na divisa do Tocantins com o Maranhão, é um projeto de integração rodohidroferroviária. Seria parte central do Eixo Estruturado Mutimodal do Corredor Centro-Norte (que incluiria ainda a Ferrovia Norte-Sul, Hidrovia do Rio das Mortes e Araguaia-Tocantins e segmentos da BR 163, conhecida como

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A Secretaria de Planejamento de Tocantins elaborou um Mapa do Investidor, documento que representa a posição oficial do Estado quanto ao modelo de desenvolvimento considerado adequado para a Região. Após afirmar que o Estado conta com 4000 km de rodovias pavimentadas e que já tem planos para 9000 km, a frase que intitula esse tópico aparece em letras bem maiores que o texto, em forma de chamada.

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O cultivo da soja tem sido, nos últimos anos, o carro chefe da implementação do atual modelo agrícola das Regiões Centro-Oeste e Norte do país. A entrada da soja em uma frente costuma ser acompanhada por degradação ambiental, concentração de renda e aumento da pobreza efetiva. O impacto da soja nos Estados de GO, MG, MT, MS e TO gerou um movimento de contraponto a esse modelo de desenvolvimento. Para mais informações, ver Expansão Agrícola e Perda da Biodiversidade no Cerrado: Origens Históricas e Papel do Comércio Internacional e A soja no seu dia a dia, disponíveis em http://www.cebrac.org.br/forumnovo/docs/leiturabasica/ASojaNoSeuDia-a-Dia.doc

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Os Grandes Projetos para as Regiões Norte e Centro-Oeste são, quase todos, imbricados e afetam, de uma maneira ou de outra, regiões não contíguas a onde são implantados. Os Grandes Projetos citados aqui são uma pequena parte do que se prevê para a Região. Só no Estado de Tocantins há cerca de 50 Grandes Projetos – estaduais e federais – em fase de planejamento ou execução.

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Brasília) e contaria com uma estação aduaneira interior. Com grande capacidade de armazenamento, a Plataforma concentraria e distribuiria, via Porto de Itaqui, no Maranhão, a produção agro-exportadora, sobretudo das Regiões Norte e Centro-Oeste. Seria, assim, o centro da teia multimodal.

A atração de investimentos em Usinas Hidro-Elétricas (UHEs) faz parte da estratégia estadual de produzir grande excedente de eletricidade, podendo assim oferecer incentivos para a atração de negócios com alta demanda de energia e também exportar a energia gerada com o grande potencial elétrico da Região. Apenas as quatro usinas Hidro-Elétricas citadas gerariam juntas 4.367,5 MW, mas potencialmente outras poderiam ser construídas.

O Projeto Sampaio, que se desenvolve entre os municípios de Carrasco Bonito, Sampaio e Augustinópolis, no extremo norte da RBP, se estrutura a partir da implantação de um perímetro irrigado com as águas do rio Tocantins de cerca de 19.000 ha, destinados à produção de grãos e à fruticultura irrigada. Para viabilizar tecnicamente o Projeto, torna-se necessária a construção de duas barragens que funcionariam como reservatório de água para a irrigação.

O sucesso da soja no Eixo Araguaia -Tocantins chamou a atenção de produtores e investidores para as potencialidades da RBP se transformar na mais nova frente de expansão da soja no país. O Governo japonês – o Japão é grande consumidor de soja e interessado na diminuição de seus custos – é um dos principais parceiros do Projeto Sampaio. A Agência Japonesa para Cooperação Internacional – JICA – atua diretamente no Estado há vários anos. A Hidrovia Araguaia-Tocantins seria a principal estrutura de transporte do Eixo Multimodal Araguaia-Tocantins. Servindo diretamente os Estados de Goiás, Mato Grosso, Pará, Tocantins e Maranhão, a área de cobertura (ou influência) da Hidrovia foi estimada como sendo todo o Centro-Oeste e o Norte do país. Seu principal objetivo seria diminuir o custo de transporte da produção agrícola daquelas regiões citadas, especialmente da soja destinada ao mercado externo.

No já mencionado Mapa do Investidor, o Governo Estadual apresenta a Hidrovia como um canal para “exportar pelo Atlântico Norte”. Isso, porque a Hidrovia permitiria a chegada da soja ao porto de Itaqui, no Maranhão, via Plataforma Multimodal de Aguiarnópolis. Segundo estudos da JICA, a Hidrovia diminuiria em até 40% os custos de transporte para cada tonelada de grãos.

A Ferrovia Norte-Sul, em seu projeto original, corta o Estado de Tocantins de cima a baixo, entrando no Estado exatamente na RBP. É dividida em dois ramais: Ramal Norte – de Colinas em Tocantins até a Estrada de Ferro Carajás, em Açailândia, Maranhão – e Ramal Sul – ligando Senador Canedo, em Goiás, ao Porto da Vila do Conde, em Belém e de lá, ao Porto de Itaqui, no Maranhão. Sua área de influência é estimada, segundo o Mapa do Investidor, elaborado pela Seplan-TO em 1,8 milhão de Km2.14

Assim, o modelo de desenvolvimento oficial pensado para a Região está baseado nas atividades agropecuárias exportadoras – sobretudo a soja – e na atração de atividades econômicas intensivas em energia elétrica e que demandem grandes áreas. Além disso, o

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As informações sobre os Grandes Projetos citados podem ser encontradas nos sites www.eixos.gov.br e

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mercado da soja é um dos mais concorridos do mundo – muitos dos ganhos de produtividade/diminuição de custos não são absorvidos pelos produtores, mas abatidos no preço do produto – e sua dinâmica exige produção em larga escala, grandes investimentos em máquinas, preparação do solo e armazenagem. Demanda, por isso mesmo, um empreendedor com perfil empresarial, capitalizado e com acesso a créditos específicos – não raro, grupos de investidores transnacionais.

5. A indesejável irracionalidade histórica e a fronteira do humano

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Em outubro de 2001, presenciamos a fala de um maranhense, assentado do município de Sampaio, extremo norte da RBP: “Vamos amarrar a canoa na torre da Igreja”. Referia -se a uma das conseqüências do Projeto Sampaio – a inundação de três projetos de assentamento do INCRA, onde estão cerca de 180 famílias. A fala era, na verdade, eco de uma ameaça velada feita por um, entre tantos técnicos de muitos órgãos e instituições, que havia passado pela cidade.

Pela predominância das pequenas propriedades, pela quantidade de assentamentos rurais16 e por conta da legislação ambiental que rege a Amazônia Legal e pela própria história do Bico do Papagaio, com sua forte tradição de organização – associativismo, cooperativismo, sindicalismo e ONGs – vislumbrou-se, em diversos grupos sociais e políticos, a possibilidade de um modelo de desenvolvimento econômico que incorporasse larga parcela da população tradicionalmente marginal dentro dos incontáveis projetos de desenvolvimento econômico da Região.

Definir os grupos sociais e econômicos espalhados pelo Bico do Papagaio foge ao escopo desse trabalho. Não se pode deixar de dizer, porém, que a diversidade social é extremamente rica: índios, pequenos agricultores, assentados, pescadores, extrativistas, mineradores, artesãos, muitos sendo tudo isso ao mesmo tempo, além de trabalharem esporadicamente para outros fazendeiros e realizarem trabalhos braçais nas cidades próximas. O que importa dizer é que representam grande parte da população do Bico e têm perfil parecido: baixa escolaridade, origem rural, famílias numerosas, baixo índice de capitalização e uma identidade cultural comum.

As famílias que hoje estão assentadas conseguiram suas terras atravessando um processo turbulento. Depois, investiram tempo, energia e muitas vezes dinheiro tentando viabilizar suas atividades. Mulheres que vivem da extração e da quebra do coco babaçu dependem do acesso aos babaçuais e essa atividade, para além de sua importância econômica para as famílias, tem também uma natureza cultural e de afirmação de identidade. A pesca, realizada em boa parte do ano, é a principal atividade econômica de muitas famílias e uma atividade complementar para a maioria da população.

Boletins de Organizações que atuam no Bico – CPT, MAB, Rede Cerrado, Rios Vivos, APA, entre outras – e mesmo conversas na Região – espontâneas ou dirigidas – indicam claramente uma tensão e um medo crescentes. Assentados e pequenos proprietários temem desde a inundação de suas terras até a pressão de atividades de caráter agro-exportador que os forçariam, pela própria dinâmica do processo, a venderem suas terras. Pescadores temem

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Esse tópico flerta e, de certa forma, parafraseia temas tratados por Martins (1997,1994).

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Além dos 105 assentamentos instalados entre os anos de 1988 e 2001, estima-se que o Bico do Papagaio tenha atualmente cerca de 200 assentamentos rurais vinculados ao Governo Federal. Ver Balanço da Reforma Agrária, disponível em www.incra.gov.br

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desde a diminuição do número de peixes, por conta da contaminação dos rios pelos resíduos químicos associados à soja, até a impossibilidade de pescarem nos rios Araguaia e Tocantins, caso se construa a Hidrovia planejada.

Repassar, um a um, todos os medos e apreensões desses grupos seria uma tarefa estéril, frente a uma evidência que coloca a questão em termos mais claros e objetivos: eles não possuem espaço no modelo de desenvolvimento econômico pensado para a Região. Usando uma idéia de Martins, sua alteridade é negada.

Desde a década de 1960, foram criados e implantados muitos projetos de desenvolvimento econômico na Região Norte. Contextos mudaram, novas problematizações foram incorporadas, o desenvolvimento tecnológico permitiu que novas culturas agrícolas penetrassem no Cerrado e na Amazônia e a globalização dos mercados e a integração econômica e cultural internacional abriram novas possibilidades para a Região. Mas uma coisa pouco mudou: o desenvolvimento é pensado sempre de fora pra dentro, uma espécie de obsessão com a transposição de determinados signos de modernidade gerados em áreas externas, nacionais ou internacionais.

Uma certa arrogância de natureza técnico-científica, que poderia se enquadrar na tão falada crise da modernidade, associa toda e qualquer tentativa de desenvolvimento econômico que parta dos grupos e das realidades locais a uma irracionalidade econômica e a um atraso histórico. No centro de tudo, a idéia de que esses grupos precisam ser re-alocados – para as periferias das grandes cidades, para a próxima fronteira – para que os espaços que ocupam possam ser civilizados na esteira das atividades econômicas empresariais.

Seguindo um fio do pensamento de Martins, a multi-atividade da agricultura familiar brasileira, sua diversidade interna e suas potencialidades devem ser desafio, sobretudo, de políticas sociais, mais do que simplesmente de políticas econômicas. Reconhece-la não como uma atividade residual, como um projeto alternativo, mas como protagonista de um projeto econômico viável, dentro de um contexto em que sua existência não seja incompatível com as opções econômicas oficiais, além de respeitar a lógica desses grupos e apoiar políticas que os viabilizem, respeitando-os também como atores sociais relevantes, é algo que ainda não se viu.

Seria mais um caso na história brasileira em que grupos sociais (e étnicos) teriam sua

alteridade negada por não serem reconhecidos como iguais, na medida em que não

compartilham os mesmos projetos e mesmas aspirações dos grandes grupos econômicos, da burocracia estatal, ou mesmo do Estado e dos interesses a ele associados. No entanto, há fatores novos nesse processo.

No dia 13 de março de 2004, foram digitadas numa ferramenta de busca da Internet (Google) as seguintes palavras chaves: Assentados+ Bico Papagaio+Grandes Projetos. Durante duas horas, foi possível acessar mais de 250 páginas virtuais com informações relevantes sobre como os assentados estão se articulando e percebendo as conseqüências dos Grandes Projetos.

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De fato, a sociedade civil na RBP tem se articulado fortemente a partir de grupos de mediação17. As reações giram em torno do caráter excludente e de certa forma, autoritário, do modelo de desenvolvimento que se configura para a Região e os modos como organizações e grupos sociais regionais têm estruturado suas estratégias de resistência se conforma como uma novidade.

O Movimento pela preservação dos Rios Araguaia e Tocantins (MPTA) é emblemático dessa forma de atuar. Sem possuir uma identidade institucional clara e agregando uma série de outras ONGs – Rios Vivos, Rede Cerrado, Movimento dos Atingidos por Barragem, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu – conseguiu que a Justiça Federal contestasse o Relatório de Impacto Ambiental da Hidrovia e exigisse que o mesmo fosse refeito por um grupo de especialistas independentes. Conseguiu ainda que o Projeto da Hidrovia entrasse para a lista negra da AFIS – Amazon Financial Information Service18, um consórcio de especialistas financeiros internacionais (SERM - Safety & Environmental Risk Management, Control Risk Group e KLD Corporate Social Profile s) que visa difundir informações sobre potenciais riscos ambientais e sociais de empreendimentos que recebem ajuda financeira internacional.

Essas organizações têm absorvido os meios operacionais e tecnológicos que favorecem a comunicação entre atores nas diversas áreas e contextos em toda Região do Eixo Araguaia-Tocantins. Assim, estrutura-se uma rede de diferentes segmentos e grupos sociais que compartilham receios e apreensões sobre os Grandes Projetos. As chamadas tecnologias da informação19 são usadas para chamar a atenção para os impactos negativos dos Grandes Projetos, influenciar a opinião pública e promover a mobilização social. A Internet é o suporte estruturante dessa rede; seu baixo custo e crescente popularização permitiram a conexão e a articulação de diferentes grupos dispersos no espaço.

A simples existência de tantas organizações representativas, em algum grau, de grupos sociais sem voz e sem lugar já é, por si só, uma novidade. Agregado a isso, o fato de estarem conectadas deu a elas um poder e uma força sem precedentes. Apenas no Eixo Araguaia -Tocantins, envolvidas com as conseqüências dos Grandes Projetos, podemos listar: MAB, Centro de Direitos Humanos de Cristalândia (CDHC), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Alternativas para a Pequena Agricultura do Tocantins (APA-TO), CPT, Coalizão Rios Vivos, Fórum Carajás, Fórum da Amazônia Oriental, Rede Cerrado, Grupo de Trabalho Amazônico, Rede Brasil, Cebrac, Fórum Articulação Soja, entre outros.

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Existem muitas implicações sobre a atuação de grupos mediadores, algumas das quais minimizariam a importância dessas articulações na medida em que se poderia argumentar que os verdadeiros grupos sociais não seriam atores de fato do processo. No entanto, o que se percebe na RBP é uma forte mobilização popular seguida por um discurso que denota uma boa compreensão do contexto das lutas e dos interesses envolvidos. Mas sempre existe, é claro, a possibilidade de tutoria e conversão dos reais interesses dos grupos sociais envolvidos em interesses dos mediadores e de seus projetos políticos e sociais privados.

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A AFIS organizou uma "lista vermelha" de projetos altamente arriscados para financiadores do ponto de vista sócio-ambiental (www.redlisted.com). A Hidrovia Araguaia-Tocantins foi incluída na lista como projeto de risco por suas implicações ambientais e seus impactos sobre os povos indígenas e comunidades ribeirinhas. De acordo com o consórcio financeiro, as evidências de manipulação de informações do estudo de impacto ambiental (EIA/Rima) da obra e a paralisação judicial do processo de licenciamento ambiental, juntamente com a crescente oposição ao projeto por parte de comunidades indígenas e ribeirinhas, em especial os Xavantes do Rio das Mortes, constituem os principais riscos financeiros de se investir no projeto.

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6. Fronteiras Líquidas

“Um não sabe nada do Outro”, diz o personagem de Asas do Desejo, filme de Wim

Wenders20. No filme, que discute a formação da subjetividade e dos conteúdos de identidades dos personagens compostos em seus espaços, em seus tempos, a subjetividade é construída a partir do ambiente e da função do personagem na sociedade.

Há muitas formas de se entender a disputa pela elaboração e condução dos modelos de desenvolvimento socioeconômico para a RBP. A entrada poderia ser pela racionalidade econômica ortodoxa, pela tradição oligárquica e patrimonialista do Estado brasileiro, pela obsessão em se integrar e formar um espaço nacional organizado a partir de modelos econômicos hegemônicos, ou mesmo, no limite, pela aceitação de uma suposta evolução linear da sociedade, fundada no sucesso econômico e baseada em valores “universais” e modernos. No fundo, uma noção turneriana de que os espaços ainda não ocupados pela dinâmica econômica tradicional devam ser incorporados à lógica civilizadora do mercado.

Mesmo desqualificados pelos discursos oficiais, caracterizados como símbolos do atraso, estigmatizados como empecilhos e tendo sua identidade negada, os grupos sociais que se interpõem aos projetos oficiais pensados para a RBP conseguem cada vez maior receptividade às suas iniciativas de desenvolvimento socioeconômico – seja pelo fracasso histórico dos projetos hegemônicos, seja pela crescente preocupação sócio ambiental – baseadas no cooperativismo, associativismo e no fortalecimento dos laços entre as comunidades e órgãos e instituições de apoio nacionais e internacionais. .

Como escreveu Monte-Mór (2003b: 91), “certamente na Amazônia não se aplica o sentido

turneriano de fronteira, opondo civilização e barbárie, visto que não se pode mais pressupor a simples expansão de um sistema hegemônico sobre espaços vazios”. Os espaços vazios se referiam não tanto à ausência de povos ou de ocupação humana, mas à ausência da integração com o mercado. As comunidades locais não eram consideradas e sofriam um vácuo de representatividade.

Na RBP atual, a citação do parágrafo anterior se torna pertinente em muitos sentidos. Não que os grupos sociais ali presentes nunca antes tenham esboçado algum tipo de resistência ou tentativa de participação nas discussões sobre os seus destinos; pelo contrário, na medida em que a resistência e organização popular são traços marcantes daquelas comunidades. O elemento novo é a politização21 e articulação crescentes e o direcionamento das demandas sociais para fóruns, níveis e agendas de discussão ditas oficiais. Nas Justiças Estadual e Federal, na Imprensa, em Brasília, em Davos, no Banco Mundial, nas Audiências Públicas, no Parlamento Europeu, em diversas Universidades espalhadas pelo mundo, como também em Porto Alegre, Belém ou Mombai (Bombaim), na Índia, em todas essas instâncias de decisão e de formação de opinião, esses grupos sociais passaram a ter voz ativa, na medida em que a profissionalização e os ganhos de articulação geraram uma estratégia de atuação que busca um contraponto dentro mesmo de onde as decisões são tomadas.

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No filme de 1987, um anjo que tem por missão acompanhar o dia-a-dia de Berlim se apaixona por uma trapezista de circo, que lhe desperta o desejo de se tornar humano.

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O termo se apóia no conceito de urbanização extensiva desenvolvido por Monte-Mór (1994, 2003) que ressalta a extensão dos valores de cidadania e participação sócio-política juntamente com a urbanização do território nacional.

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Os resultados finais das estratégias de resistência dos grupos sociais locais da RBP só poderão ser compreendidos daqui a alguns anos. Se os Grandes Projetos se instalarem na Região e provocarem o estrangulamento das atividades de subsistência e da agricultura familiar, teremos conformado um cenário já descrito por Martins (1997, 1994), não só no que compartilha com Foweraker (1981), ou seja, a presença transitória dos colonos e outros “amansadores” da fronteira, mas também a violência recorrente de não se reconhecer o outro como sujeito com quem se deva dialogar.

Por outro lado, se os grupos sociais locais obtiverem sucesso em suas estratégias, essa fronteira se conformaria como espaço de conflitos socioeconômicos, espaço heterogêneo onde diferentes partes e interesses se veriam obrigadas ao diálogo, ao reconhecimento recíproco e à negociação em busca de denominadores comuns. Poderíamos entender então as trocas que se dariam a partir de uma concepção ampla da fronteira marcada pelas múltiplas interfaces, uma fronteira que marcaria limites menos rígidos e que, mais do que separar diferenças, as colocaria em contato.

Para finalizar, vale ressaltar que o ethos que permeia a elaboração das diretrizes oficiais para o desenvolvimento econômico das Regiões Norte e Centro Oeste guarda ainda muito dos vícios, da arrogância e dos equívocos de 40 anos atrás, como se muito pouco tivesse sido aprendido ao longo das sucessivas tentativas de implantação de Grandes Projetos, marcados sempre por certa espetacularização. Embora muito tenha mudado persiste, visivelmente, uma grande dificuldade em se olhar e ver as especificidades e complexidades das múltiplas realidades brasileiras.

Referências Bibliográficas

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cultura.) Trad. Roneide Venâncio Majer, SP: Paz e Terra, 1999.

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Tocantins. Belo Horizonte: Cedeplar, 2002.

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Martins, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. SP:Hucitec,1997

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Relatório: Expansão Agrícola e Perda da Biodiversidade no Cerrado: origens históricas e o

Referências

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