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MULTIFUNCIONALIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL: A BUSCA PELA SUPERAÇÃO DO MEDO NA SOCIEDADE DE RISCO

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REPATS, Brasília, V.6, nº 2, p 231-252, Jul-Dez, 2019

MULTIFUNCIONALIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE

CIVIL: A BUSCA PELA SUPERAÇÃO DO MEDO NA

SOCIEDADE DE RISCO

THE MULTIFUNCTIONALIZATION OF CIVIL LIABILITY AS A

MECHANISM FOR COMBATING FEAR IN THE RISK

SOCIETY

Larissa Gabrielle Braga e Silva

*

Rodrigo Antônio Ribeiro Storino

**

RESUMO- Na pesquisa estudou-se a necessidade de multifuncionalizar a

responsabilidade civil para adequação as necessidades da globalizada sociedade contemporânea. O tema possui relevância na ampliação protetiva dos direitos fundamentais, efetivando responsabilidade civil holística própria da sociedade de risco. Questiona-se neste artigo científico se a multifuncionalização da responsabilidade civil é capaz de diminuir o medo das pessoas na sociedade de risco. A partir de pesquisa teórico-bibliográfica debateu-se criticamente a temática mediante consulta de autores que abordam as teorias da sociedade de risco e da multifuncionalização da responsabilidade civil, as quais serviram de marcos teóricos para pesquisa. A conclusão foi que na atualidade não basta combater o dano, compensando-o com o ressarcimento a posteriori. É necessária responsabilidade civil que se antecipe, combatendo o risco e o perigo, de modo a evitar os danos, em especial os coletivos e os individuais massificados. Assim, coaduna-se com a fluidez e agilidade da sociedade contemporânea a multifuncionalização da responsabilidade civil, para além de compensar, prevenir e punir os causadores de ilícitos. A delimitação do problema ocorreu a partir do método dedutivo, partindo-se de concepções macroanalíticas da sociologia e do direito civil, para delimitação de sua influência na seara da responsabilidade civil multifuncional. Utilizou-se ainda procedimento técnico de análise crítica das funções preventiva e punitiva da responsabilidade civil, bem como análise comparativa entre o perfil da responsabilidade clássica na sociedade industrial e da responsabilidade contemporânea própria da sociedade de risco.

Palavras-Chave: Responsabilidade Civil Multifuncional; Sociedade De Risco; Danos,

Perigos E Riscos.

* Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara/MG. Professora da Una Divinópolis/MG. Advogada. Larissab.silva@gmail.com

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ABSTRACT: The research studied the need to multifunctionalize civil liability to fit the

needs of globalized contemporary society. The issue has relevance in the protection of fundamental rights, making holistic civil liability of the society at risk. It is questioned in this scientific article if the multifunctionalization of civil responsibility is able to diminish the fear of the people in the society of risk. From a theoretical-bibliographic research, the topic was critically discussed through consultation with authors who discuss theories of risk society and the multifunctionalization of civil liability, which served as theoretical frameworks for research. The conclusion was that at present it is not enough to combat the damage, compensating it with a posteriori reimbursement. Civil liability is required to anticipate, combating risk and danger, in order to avoid damages, especially collective and individual mass. Thus, the multifunctionalization of civil liability, in addition to compensating, preventing and punishing the perpetrators of illicit crimes, is in line with the fluidity and agility of contemporary society. The delimitation of the problem occurred from the deductive method, starting from macroanalytical conceptions of sociology and civil law, to delimit its influence in the area of multifunctional civil responsibility. It was also used a technical procedure of critical analysis of the preventive and punitive functions of civil responsibility, as well as a comparative analysis between the profile of the classic responsibility in the industrial society and the contemporary responsibility proper to the society of risk.

Key-Words: Multifunctional Civil Liability; Society Of Risk; Damages, Dangerous And

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INTRODUÇÃO

O Objetivo geral desta pesquisa é o de analisar a necessidade de multifuncionalizar a responsabilidade civil contemporânea para atender os anseios da sociedade de risco no arrefecimento do medo que lhe é peculiar.

O tema possui relevância científica na busca de ampliar a proteção dos direitos fundamentais ao efetivar responsabilidade civil que conceda resposta holística as necessidades da sociedade de risco.

Há também densa relevância prática para contribuir na diminuição do medo que impera no psicológico dos cidadãos da sociedade contemporânea.

Justifica-se ainda a pesquisa sob o ponto de vista teórico no intuito de conceder fundamentação jurídica e sociológica para aplicação articulada e integrada da multifuncionalização da responsabilidade civil, inclusive na seara jurisprudencial.

No primeiro capítulo serão abordados os contornos da sociedade de risco, com a descrição da passagem da modernidade simples para modernidade reflexiva.

O segundo capítulo será dedicado a análise comparativa da responsabilidade civil meramente compensatória da sociedade industrial com a responsabilidade civil multifuncional da sociedade de risco.

No terceiro capítulo será estudada a função preventiva da responsabilidade civil e sua correlação com o princípio da precaução.

O quarto capítulo conterá interpretação crítica quanto a aplicação da função punitiva da responsabilidade civil, bem como sua contribuição para evitar e sancionar de forma proporcional o ilícito em massa.

Nesta temática questiona-se neste artigo científico: a multifuncionalização da responsabilidade civil é capaz de diminuir o medo das pessoas na sociedade de risco? A pesquisa pressupõe a título de hipótese científica a resposta afirmativa a pergunta problema, pois com a multifuncionalização da responsabilidade civil o direito proporciona integral proteção aos seus cidadãos, não só ressarcindo os danos causados de forma proporcional a sua gravidade, como também prevenindo a prática de outros danos e condutas ilícitas. Dessa forma, a sociedade juridicamente protegida terá a redução do medo que a caracteriza.

A partir de pesquisa teórico-bibliográfica foi possível debater criticamente a temática posta, mediante a consulta de autores que abordam direta ou indiretamente

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o assunto da formação da sociedade de risco, o qual serviu de marco teórico para esta pesquisa.

A delimitação do problema ocorreu a partir do método dedutivo, partindo-se de concepções macroanalíticas da sociologia e do direito civil contemporâneo, para delimitação de sua influência na seara da responsabilidade civil, como ponto nodal a sua necessária multifuncionalização.

Neste prisma, utilizou-se do procedimento técnico da análise crítica das funções preventiva e punitiva da responsabilidade civil. Realizou-se ainda análise comparativa entre o perfil da responsabilidade civil clássica na sociedade industrial e da responsabilidade civil contemporânea própria da sociedade de risco.

2. OS CONTORNOS DA SOCIEDADE DE RISCO

No auge do desenvolvimento tecnológico a sociedade moderna deparou-se com inúmeros desafios no contexto dos riscos produzidos pelo desenvolvimento fabril em larga escala. Os avanços tecnológicos cujo escopo se assentou na produção em escala e na facilitação da vida do homem, além de não servir à solução de problemas cruciais da humanidade como a fome e a desigualdade, produziu uma série de consequências que afetam o meio ambiente de forma globalizada.

Curioso refletir que a mesma tecnologia que segrega por limitações dos grupos hegemônicos ao seu acesso, produz invariavelmente riscos que interligam pessoas, cidades, situações. Impossível descurar da característica difusa destes mesmos danos que ocorrem em determinada localidade mas atingem contingentes de pessoas que se situam a consideráveis distâncias geográficas. O mundo é globalizado fazendo com que os matizes de solidariedade transcendam os ímpetos humanos dotados de acentuado egocentrismo.

Beck (2011) explica que com a distribuição e o incremento dos riscos, surgem situações sociais de ameaça. Estas acompanham, na verdade, em algumas dimensões, a desigualdade de posições de estrato e classe sociais, fazendo valer entretanto uma lógica distributiva substancialmente distinta: os riscos da modernização cedo ou tarde acabam alcançando aqueles que os produziram ou que lucram com eles. Eles contêm um efeito bumerangue, que implode o esquema de classes.

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Emerge assim na sociedade de risco, em pequenos e em grandes saltos- em alarmes de níveis intoleráveis de poluição, em casos de acidentes tóxicos etc.-, o potencial político das catástrofes. Sua prevenção e seu manejo podem acabar envolvendo uma reorganização do poder e da responsabilidade. A sociedade de risco é uma sociedade catastrófica. Nela, o estado de exceção ameaça converter-se em normalidade. (BECK, 2011, p. 28).

Riscos da modernização emergem ao mesmo tempo vinculados espacialmente e desvinculadamente com um alcance universal; e segundo, quão incalculáveis e imprevisíveis são os intricados caminhos de seus efeitos nocivos. Nos riscos da modernização, portanto, algo que se encontra conteudístico-objetiva, espacial e temporalmente apartado acaba sendo causamente congregado e, desse modo, além do mais, colocado simultaneamente numa relação de responsabilidade social e jurídica. (BECK, 2011, p. 33).

Em oposição à evidencia tangível das riquezas, os riscos acabam implicando algo irreal. Num sentido decisivo, eles são simultaneamente reais e irreais. De um lado, muitas ameaças e destruições já são reais: rios poluídos ou mortos, destruição florestal, novas doenças etc.

De outro lado, a verdadeira força social do argumento do risco reside nas ameaças projetadas no futuro. São, nesse caso, riscos que, quando quer que surjam, representam destruições de tal proporção que qualquer ação em resposta a elas se torna impossível e que, já como suposição, como ameaça futura, como prognóstico sincreticamente preventivo, possuem e desenvolvem relevância ativa.

No contexto da sociedade de risco, a responsabilização deve assumir papel multifuncional, o que exige do operador do Direito posturas ativas consolidadas no presente com vistas ao futuro: “tornamo-nos ativos hoje para evitar e mitigar problemas ou crises do amanhã, para tomar precauções em relação a eles- ou então justamente não”. (BECK, 2011, p. 40).

E a sociedade de risco tem a característica de solidarização dos riscos e quebra do paradigma da estratificação de classes:

Isto fica ainda mais claro se tivermos em conta o feitio peculiar, o padrão distributivo específico dos riscos da modernização: eles possuem uma tendência imanente à globalização. A produção industrial é acompanhada por

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um universalismo das ameaças, independente dos lugares onde são produzidas: cadeias alimentares interligam cada um a praticamente todos os demais na face da Terra. Submersas, elas atravessam fronteiras. O teor de acidez do ar carcome não apenas esculturas e tesouros artísticos, mas há muito corroeu também os marcos de fronteira. Mesmo no Canadá acidificam-se os mares, mesmo nos extremos acidificam-setentrionais da Escandinávia morrem as florestas. (BECK, 2011, p. 43).

Assim, os próprios produtores dos riscos também passam a sofrer as consequências negativas de sua atividade que priorizam o lucro e subalternam a vida. A ideia básica por trás disso é das mais simples: tudo o que ameaça a vida neste planeta, estará ameaçando também os interesses de propriedade e de comercialização daqueles que vivem da mercantilização da vida e dos víveres. Surge, dessa maneira, uma genuína contradição, que sistematicamente se aprofunda, entre os interesses de lucro e propriedade que impulsionam o processo de industrialização e suas diversas consequências ameaçadoras, que comprometem e desapropriam inclusive os lucros e a propriedade (para não falar da propriedade da própria vida). (BECK, 2011, p. 46).

A sociedade de risco também é conhecida pela importância e valorização do conhecimento e da mídia. Todavia, há ainda a utilização destes para escancarar as disparidades existentes entre os produtores e os consumidores dos riscos. “A sociedade do risco é, nesse sentido, também a sociedade da ciência, da mídia e da informação. Nela, escancaram-se assim novas oposições entre aqueles que produzem definições de risco e aqueles que as consomem”. (BECK, 2011, p. 56).

Mas não se pode olvidar que a sociedade de risco enseja a transposição de fronteiras e a necessidade de posturas de efetiva responsabilidade a fim de se evitar catástrofes e grandes desastres. Nas palavras conclusivas de Beck, “as sociedades de risco contêm em si uma dinâmica evolutiva de base democrática que ultrapassa fronteiras, através da qual a humanidade é forçada a se congregar na situação unitária das autoameaças civilizacionais”. (BECK, 2011, p. 57).

3. A MODIFICAÇÃO DE PERFIL DA RESPONSABILIDADE CIVIL: TRANSIÇÃO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL PARA A SOCIEDADE DE RISCO

O Estado Liberal protagonizou a exacerbação do indivíduo em detrimento do coletivo, o estado absenteísta tinha por função proteger a liberdade econômica e a

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não violação das liberdades civis. O Estado Social, por sua vez, pauta-se no protagonismo estatal promotor das garantias e direitos sociais. O Estado Democrático de Direito herança somativa das eras sociais e liberais nasce para ser plural, para atender demandas urgentes de uma sociedade cada vez mais complexa e repleta de contradições, sequiosa por efetivas resoluções.

As instituições jurídicas influenciadas pela historicidade sofrem alterações, o que ocorreu com o instituto da responsabilização civil. Hodiernamente, a responsabilidade aquiliana tinha o condão de ser reparatória de danos patrimoniais e morais.

Leciona Nelson Rosenvald sobre a responsabilidade civil na era industrial e no contexto da estado social:

Na modernidade simples que se afirma na revolução industrial do século XVIII e se consolida institucionalmente com as codificações dos oitocentos, a responsabilidade civil se coloca como uma resposta aos riscos próprios de uma sociedade dividida em duas classes. A burguesia demandava o livre trânsito de capitais e titularidades, o que correspondia ao anseio de autonomia contratual e aquisição de propriedade – fundamentando o direito civil patrimonial e o Estado Mínimo. No palco de desigualdades sociais, a responsabilidade civil era incapaz de propiciar soluções efetivas em termos de cidadania, pois a exigência de demonstração da prova diabólica da culpa tornava-se um perverso filtro capaz de conter o êxito de demandas indenizatórias. [...] No final do século XIX surge uma reação jurídica aos riscos concretos da sociedade industrial[...] que propicia em certos casos uma libertação da responsabilidade civil do fundamento moral da culpa, deferindo-lhe um significado ético de compromisso do Estado com a proteção de vítimas com a simples afirmação de uma realidade de causalidade entre o risco inerente a uma atividade e os danos por ela desferidos [...] imputa-se objetivamente a obrigação de indenizar pelos eventos lesivos. [...] o transcurso do século XX confere ao cidadão maior acesso ao sistema judiciário para a proteção diante dos efeitos danosos derivados de condutas humanas. Porém, o ordenamento jurídico ainda se ancora em uma perspectiva reativa, patrimonialista e individualista. [...] a reação a comportamentos indesejados só se verifica opôs a consumação do dano, em um modelo disperso de pretensões de cunho econômico, isoladamente reclamadas por cada demandante. (ROSENVALD, 2014, p. 9).

No bojo da sociedade de risco qual seria a acepção mais adequada de responsabilidade civil? Estar-se-á diante de um constitucionalismo marcado pela constituição cidadã cujos plurais tons caminham para a reflexão e flexibilização de seus conceitos e de suas funções, dessa forma, a responsabilidade civil pode e deve assumir os significados e significantes de punição, reparação e prevenção.

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Na dicção de Rosenvald: “para aqueles que buscam segurança de seus corpos e suas extensões, cabe ao direito prospectivamente afirmar que a tutela da intangibilidade existencial e patrimonial não autoriza sermos expostos a danos, riscos ou ameaças que excedam aquilo que se justifique em sociedade. E pontua novas tendências da responsabilidade civil:

1. Imputação objetiva de danos, situada no parágrafo único do artigo 927 do CC/02 e se conecta com o princípio da solidariedade, impondo obrigação de reparação como impositivo de de segurança social em face do risco intrínseco de determinadas atividades;

2. Tutelas inibitórias: utilizadas quando as circunstâncias apontem a ameaça a situações existenciais

e patrimoniais de terceiros. Trata-se de atuação preventiva, independente da consumação do dano. 3. Função precaucional da responsabilidade civil: ponderação de bens indica a necessidade de antecipação de riscos.

4. Causalidade puramente jurídica e diluída: responsabilização em situações entre um fato e um risco hipotético ou entre um dano e uma atividade exercida indistintamente por um grupo de agentes, sem

que se saiba de onde partiu a lesão.

5. O direito civil considera a legitimidade de figuras jurídicas refinadas tais como o dano estético, dano existencial, perda de uma chance.

Figura 1: Novas Tendências da Responsabilidade Civil. (ROSENVALD, 2014, p.11-12).

Refletir sobre a evolução da responsabilidade civil é o mesmo que perquirir em qual sociedade se quer viver? Qual a sociedade se quer deixar para os filhos? As respostas a tais questionamentos cingem-se em uma lógica que congrega liberdade e ética uma vez que o instituto jurídico para alcançar a eficácia que se lhe pretende deve abarcar amplas funções assumidas pelo tal. Serão, pois, funções que devem coexistir: reparatória, punitiva, educativa e, sobretudo, função preventiva tanto de danos quanto de riscos.

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A busca é pela segurança, e neste sentido, a lei deve induzir os cidadãos a prática de comportamentos desejáveis, ela, então, se despede de seu caráter de neutralidade para alcançar o ideal de segurança na sociedade de risco. Rosenvald (2014, p. 18) pondera: “ com o advento da teoria do risco, “responsabilizar” se converteu em reparação de danos. Na contemporaneidade, some-se à finalidade compensatória a ideia de responsabilidade como prevenção de ilícitos”.

E as diretrizes para o hoje e o amanhã bem se assentam nas palavras de Nelson Rosenvald:

O direito não pode ser excludente, nem tampouco a responsabilidade civil. Em seu genuíno alcance e preocupação já não mais se inclui privativamente a vítima no centro de suas atenções, porém, a todos que potencialmente podem vir a sê-lo. [...] O ordenamento jurídico deve induzir comportamentos meritórios, especialmente os deveres positivos de evitar e mitigar danos-reduzindo as suas consequências. Objetivando tornar mais equilibrada e solidária a existência humana. Este viés preventivo, apoiado em uma concepção antropocêntrica e conectada ao significado da dignidade da pessoa humana, é o que de melhor o direito pode entregar a uma sociedade em que prevalece o discurso do risco e do medo. (ROSENVALD, 2014, p. 12).

Conclui-se que a junção de todas as funções assumidas pela responsabilidade civil devem encontrar respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, mas o brilho maior é o da aplicação de sua acepção preventiva a substituir o medo pela segurança, a contribuir para uma sociedade do hoje e do amanhã que soube pensar e agir de forma altruísta, em defesa tão somente da vida, de todos.

A anedota do Escorpião e o Sapo narra uma história sobre um escorpião que pede a um sapo que o leve através de um rio. O sapo tem medo de ser picado durante a viagem, mas o escorpião argumenta que se picar o sapo, o sapo iria afundar e o escorpião iria se afogar. O sapo concorda e começa a carregar o escorpião, mas no meio do caminho, o escorpião, de fato, ferroa o sapo, condenando ambos. Quando perguntado por que o escorpião havia picado, o escorpião responde: que esta é a sua natureza e que nada poderia ser feito para mudar o destino. Talvez, também haja lugar para a evolução da natureza humana, na construção de uma responsabilidade coletiva que genuinamente seja promotora de paz, saúde, dignidade e fraternidade.

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4. A FUNÇÃO PREVENTIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

O Estado Constitucional Democrático tem a missão de transformar, para melhor, a vida de seus cidadãos. Isso significa que o Estado deve intervir nos acontecimentos sociais para proteção da coletividade, na busca de equilibrar as relações sociais entre pessoas de poderio jurídico e econômico distintos.

O objetivo é a formação de uma sociedade livre, justa e solidária. Para tanto, os direitos fundamentais se dividem em individuais e coletivos. Essencial entender os direitos fundamentais como princípios em contraposição às políticas (DWORKIN, 2002, p. 36), pelo que estes direitos não podem ser violados para o alcance de interesses dos indivíduos e do Estado.

O desafio é substituir o perfil individual pelo coletivo solidarista, protegendo de modo prioritário as pessoas e não o capital. Essa filosofia é ressaltada por Zygmunt Bauman, o qual considera o indivíduo o maior inimigo do cidadão, pois:

Enquanto este é uma pessoa que tende a buscar o seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade, o indivíduo tende a ser cético em relação ao 'bem comum'. Qual é o sentido de interesses comuns senão permitir que cada indivíduo satisfaça seus próprios interesses? O que quer que os indivíduos façam quando se unem, e por mais benéficos que seu trabalho conjunto possa trazer, eles o perceberão como limitação à sua liberdade de buscar o que quer que lhes pareça adequado separadamente, e não auxiliarão (BAUMAN, 2001, p. 47).

O Estado Democrático deve não só proteger os direitos fundamentais, bem como agir na sua promoção, encontrando nestes os limites para suas decisões. No que tange aos direitos fundamentais coletivos, deve o Estado pautar-se pelos princípios da máxima efetividade e da proteção preventiva. Desta lógica advém no campo do direito civil a função preventiva da responsabilidade civil.

A função preventiva da responsabilidade civil se consubstancia no conjunto de determinações estatais tendentes a fazer cessar danos individuais ou sociais, bem como coibir perigos e riscos detectados. Devido a natureza de seu objeto, esta função também é denominada de precaucional ou dissuasória.

O Estado deixa sua inércia típica da função compensatória de lado, passando a atuar positivamente na indução das pessoas a realização de atitudes esperadas e

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desejadas. A coação para boas práticas comportamentais sociais configura atuação preventiva aos danos, perigos e riscos.

O instituto jurídico dos danos passaram por profunda modificação a partir da inauguração do Estado Democrático brasileiro de 1988. Até então os danos cingiam-se a instituto individual relacionado a direitos patrimoniais.

A nova summa divisio inaugurada no capítulo I, do Título II, da Constituição da República de 1988, entre direitos fundamentais individuais e coletivos, teve como repercussão a ampliação do instituto dos danos, os quais além de individuais, foram também previstos sob a ótica coletiva.

Neste diapasão, enquanto os danos individuais são divisíveis, possuindo titulares determinados; os danos coletivos, também chamados de sociais, são indivisíveis, de titularidade da coletividade ou grupo.

Os danos sociais são danos transindividuais no qual se analisa a repercussão da conduta danosa face o todo atingido. Com Reis Friede e Luciano Aragão, os danos sociais visam a proteção da ordem econômica e social1, infringindo, quando violados, o bem-estar e a justiça social (FRIEDE; ARAGÃO, 2016, p. 18). Desta forma, o dano social tem como fundamento a dignidade da coletividade2 e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa3.

Noutro giro, o instituto dos danos tiveram outra ampliação, advinda de classificação diversa da apresentada entre danos individuais e coletivos. Neste sentido, os danos deixaram de ser meramente patrimoniais, abarcando também os danos morais.

O direito civil á época do Estado Liberal e da sociedade industrial ocupava-se unicamente da tutela do patrimônio, pelo que os danos causados a estes direitos eram chamados de danos patrimoniais ou materiais.

Com a instalação do Estado Democrático e da sociedade de risco, o direito civil constitucional passou a tutelar de forma prioritárias as pessoas. Surgem os direitos existenciais, também chamados de direitos da personalidade, os quais tutelam os

1 Artigos 170 à 192 da Constituição Federal de 1988 tratam da Ordem Econômica. Artigos 193 à 232 da Constituição Federal de 1988 normatizam a Ordem Social.

2 Artigo 1º, III da Constituição Federal de 1988. 3 Artigo 1º, IV da Constituição Federal de 1988.

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interesses inerentes as pessoas. A violação destes direitos da personalidade tem como efeito jurídico a ocorrência do dano moral.

Trata-se de classificação específica entre danos com naturezas autônomas prevista no artigo 5º, X da Constituição Federal de 1988 e no artigo 186 do Código Civil. Por isso, não há que se confundir as distintas classificações entre danos individuais/sociais e danos materiais/morais.

Nesta senda, tanto os danos individuais podem ser materiais e/ou morais; quanto os danos sociais também podem, a depender da violação realizada, assumir roupagem material e/ou moral. Em violado o patrimônio da coletividade, configurado o dano material coletivo. De outro lado, violado o bem-estar e a dignidade social, configura-se o dano moral coletivo.

Há necessidade de irmos além para entendimento de que as classificações acima expostas não se confundem com as funções da responsabilidade civil, as quais podem ser compensatória, preventiva e/ou punitiva, a depender da necessidade apresentada no caso concreto analisado.

Um exemplo auxilia a elucidação do exposto. Suponha-se que um administrador público desvie para seu patrimônio particular verbas da merenda escolar de um município, deixando os alunos sem alimentação, e consequentemente sem aulas, por alguns meses. Sob o enfoque do grupo atingido, temos um dano social. Sob a ótica da dignidade social deste grupo, o qual teve desatendido, sem qualquer justificativa, o seus direitos fundamentais a educação e alimentação, tem-se que essa violação a direito da personalidade é geradora de dano moral coletivo. Ademais, o patrimônio público foi atingido com o desvio da verba pública, pelo que também há dano material coletivo. Noutro giro, analisando o caso sob o aspecto das funções da responsabilidade civil, o ressarcimento feito pelo administrador aos cofres públicos municipais do valor desviado, bem como a reparação do dano moral coletivo destinado a fundo relacionado a educação, representa a função compensatória da responsabilidade civil. Já o afastamento imediato do administrador após a descoberta dos fatos representa a função preventiva da responsabilidade civil, destinada a evitar danos sociais semelhantes, bem como afastar o risco de novos desvios, o que ocorreria caso este continuasse ocupando o cargo. Ainda a determinação da perda definitiva do cargo e o pagamento de valor indenizatório extra ao dano social causado,

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destinado a um fundo social, representa a materialização da função punitiva da responsabilidade civil.

A aplicação da multifuncionalidade da responsabilidade civil em casos de danos sociais graves atende aos anseios coletividade e dissipa o medo marcante da sociedade de risco. De outro lado, atuações desarticuladas e monofuncionais que se restrinjam a compensação dos danos, em especial quanto aos danos sociais e danos individuais massificados, representam verdadeiro estímulo a prática de ilícitos, em desatenção ao projeto de Estado Democrático e de sociedade de risco.

Retornando a função preventiva da responsabilidade civil, destaque-se que esta busca não só evitar novos danos, como também dissuadir perigos e riscos. Nessa seara, os princípios da prevenção e precaução desenvolveram-se para adequada tutela dos perigos e riscos.

O princípio da prevenção esta diretamente relacionado ao perigo, ou seja, quando já conhecida uma situação perigosa, o direito determina atitudes preventivas do Estado e da sociedade para evitar o dano iminente.

De outro lado, o princípio da precaução esta diretamente relacionado ao risco, situação protetiva anterior ao princípio da prevenção, pois na precaução o perigo ainda se apresenta como potencial, e não em concreto. Da mesma forma, o direito determina atitudes precaucionais do Estado e da sociedade para evitar o potencial dano futuro.

O fundamento ético para aplicação dos princípios da prevenção e precaução é oriundo da doutrina de Hans Jonas, que defende que diante das incertezas que marcam a sociedade contemporânea "é necessário dar mais ouvidos à profecia da desgraça do que à profecia da salvação" (JONAS, 2006, p. 77).

Ademais, nas palavras de Ulrich Beck, "por trás dos muros da indiferença, grassa o perigo. Isto obviamente não significa que, em decorrência dos crescentes riscos civilizacionais, brote a harmonia"(BECK, 2011, p. 56).

O fundamento jurídico constitucional para aplicação dos princípios da prevenção e precaução encontra-se nos artigos 3º, I; 5º, XXXV; e 6º, caput; todos da Constituição Federal de 1988, o que se amolda com o objetivo da construção de uma sociedade solidária apta a afastar o medo de seus integrantes.

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Há ainda fundamentos jurídicos infraconstitucionais para aplicação destes princípios, os quais estão diretamente relacionados a função preventiva da responsabilidade civil, na Carta do Rio de Janeiro da ECO 92, a qual prevê expressamente em seu princípio 15, a necessidade de respeito ao princípio da precaução; e no artigo 6º, I, do Código de Defesa do Consumidor, onde consta proibição de fornecimento de produtos e serviços perigosos ou nocivos, garantindo-se o direito básico de garantindo-segurança ao consumidor.

Diante do medo que permeia a sociedade de risco, a responsabilidade civil operou mutação para ampliar sua proteção. Por isso, com a adoção dos princípios da prevenção e precaução, não é necessário aguardar a ocorrência de dano para incorrer em responsabilidade. Muito pelo contrário, detectado o perigo ou o risco, já há possibilidade de responsabilização dos seus causadores.

Neste sentido, ensina Tereza Ancona Lopez:

Que a noção de responsabilidade civil viu seu campo expandido com o aparecimento da "sociedade de risco" e, neste momento, é somente a teoria da responsabilidade civil que poderá definir e tutelar os "novos riscos" causadores também do novo tipo de dano, aquele muito grave e irreversível (LOPEZ, 2013, p. 10).

Portanto, o risco e o perigo assumem na sociedade contemporânea o contorno de verdadeiro dano, ensejando a aplicação de medidas preventivas e acautelatórias que façam cessar a ameaça ao direito, cumprindo com a função preventiva da responsabilidade civil.

Esta multifucionalização da responsabilidade civil é a oferta do direito civil que atende os contornos da sociedade de risco, pelo que analisada neste capítulo a função preventiva, restando a função punitiva e sua aplicabilidade no direito brasileiro como objeto do capítulo seguinte.

5. O PUNITIVE DAMAGE E SUA (IN)APLICABILIDADE AO DIREITO BRASILEIRO

A responsabilidade civil pode assumir faceta punitiva na sociedade contemporânea quando identificados comportamentos, dolosos ou por culpa grave, geradores de riscos, perigos ou danos, sociais ou individuais com potencial de massa.

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Essa conformação multifuncional da responsabilidade civil é a que atende aos ditames de um Estado Constitucional pluralista, no qual a Constituição é obra cultural e interpretada de forma aberta, ou seja, por todos. Nesse sentido os ensinamentos de Gustavo Zagrebelsky, citando a doutrina de Peter Häberle:

A cultura como a constituição é acompanhada de uma ideia das mais criativas e inovadoras da teoria de Peter Häberle, aquela da 'comunidade aberta dos intérpretes constitucionais', em que os intérpretes não são apenas aqueles que aparecem nos livros de direito constitucional, mas todos aqueles que operam na direção da cultura e produzem resultados constitucionalmente relevantes (ZAGREBELSKY, 2006, p. 14).

Com Eugênio Facchini Neto, a função punitiva relaciona-se com a necessidade de aplicação de punição na esfera civil a prática de condutas que violem gravemente o sentimento ético-jurídico de uma coletividade (FACCHINI NETO, 2003, p. 163-164).

A atuação punitiva no direito civil não representa novidade. Muito pelo contrário, desde os tempos mais remotos, nos quais a comunidade valia-se da vingança privada, passando pelo Código Hamurabi, que consagrava o princípio do "olho por olho, dente por dente", mais tarde adotado pelo direito romano na Lei de Talião, percebe-se a atuação punitiva do direito civil.

Na sequência histórica, o direito romano adotou a lei das XII tábuas o princípio da responsabilidade patrimonial no cumprimento das obrigações civis, o que a época representou o fim das penas civis corporais. Ressalte-se que até este momento histórico não havia separação entre o ilícito civil e penal, sendo o caráter punitivo diretamente relacionado ao ilícito como gênero, permanecendo a possibilidade de imposição de punição por atos civis por constrição patrimonial.

Nas lições de Carlos Roberto Gonçalves, o direito romano a época da Lei das XII Tábuas esboçou diferenciação entre pena e ressarcimento "com a distinção entre os delitos públicos e privados. Nos delitos públicos a pena econômica imposta ao réu deveria ser recolhida aos cofres públicos e, nos delitos privados, a pena em dinheiro cabia à vítima" (GONÇALVES, 2003, p. 5).

Esta ideia originou a separação entre os ilícitos civis e penais, que de fato ocorreu no direito romano com a Lei Aquília, a qual fracionou o ilícito, delegando ao direito civil a função ressarcitória e ao direito penal a função punitiva. Neste momento

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da história, o direito civil deixou de ter função punitiva, pois a Lei Aquília estabeleceu a estrutura fundante da responsabilidade civil clássica, pautada na discussão da culpa e na compensação do dano causado.

Esta modificação da responsabilidade civil operada no direito romano de limita-la a função compensatória seguiu até a Idade Contemporânea, sendo fonte de inspiração do Código Civil Francês, o Código Napoleônico, criado no pós-revolução francesa.

Esta contextualização é importante para compreendermos que aquele regramento se compatibilizava com o Estado Liberal que se formava, o qual pretendia atuações estanques de cada poder, diante de uma sociedade estratificada e estática, que não aceitava que o Estado se imiscuísse nas relações entre as pessoas. A mera função compensatória da responsabilidade civil servia bem a esses interesses, pois fortalecia o Estado como ente soberano detentor do poder, afastando a vingança privada; bem como favorecia a burguesia, a qual, em caso de danos a partir de seus contratos, deveria apenas compensa-los, sem outras repercussões mais graves.

Destaque-se que esta sistemática da responsabilidade civil francesa foi, nas lições de José Aguiar Dias, " a mais extraordinária obra da jurisprudência de todos os tempos". Assim, agiu o Poder Judiciário de modo a atender os anseios da sociedade, a época da sociedade industrial e liberal.

Nesse contexto de Estado Liberal, a função punitiva da responsabilidade civil surgiu de forma tímida na Grã-Bretanha e Estados Unidos da América, para afirmar a necessidade do Estado respeitar os direitos fundamentais de primeira dimensão dos seus cidadãos, ou seja, direitos civis e políticos.

Assim como os contornos da responsabilidade civil francesa, a função punitiva britânica e norte americana também foi moldada pela jurisprudência.

Sua origem inglesa, segundo Thomas Koenig, ocorreu em 1763, nos casos Huckle v. Money e Wilkes v. Wood. Em ambos os casos, a vítima, opositora ao regime do Rei George III, sofreu indevidas intervenções em sua liberdade individual e privacidade, tendo recebido indenização que além de compensar o dano sofrido, continha valor superior a este como forma de punição, para que os funcionários do Rei não mais violassem os direitos dos cidadãos (KOENIG, 2001, p. 14).

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Já nos Estados Unidos, segundo Paula Meira Lourenço, o leading case do punitive damage ocorreu em 1784, no caso Genay v. Norris, no qual o médico foi civilmente punido por dolosamente colocar veneno no copo do paciente, causando intensas dores a este (LOURENÇO, 2002).

Tal postura restrita da responsabilidade civil, em regra meramente compensatória, em uma sociedade massificada, foi fator contributivo para perpetração de ilícitos, sociais e individuais homogêneos, advindos do capitalismo e geradores de desigualdades sociais.

Noutro contexto, diante do Estado Democrático, de uma sociedade de risco açoitada pelo medo, fluída com os avanços tecnológicos, globalizada, os interesses sociais se modificaram. O Estado passou a intervir nas relações entre seus cidadãos para promoção e proteção de seus direitos fundamentais.

O direito civil se tornou constitucional e a responsabilidade civil multifuncional. Nesta lógica, a tort law norte americana, que se coaduna com a responsabilidade civil extracontratual brasileira, encontrou no punitive damage um dos caminhos para dissipar o medo que marca a sociedade. Por isso, nos Estados Unidos, em 1996, pelo Juiz da Suprema Corte John Paul Stevens, no paradigmático caso BMW of North America, Inc v. Gore, foram fixados novos parâmetros para a utilização da função punitiva, no intuito de promover o legítimo interesse do Estado em punir civilmente condutas ilegais e evitar suas repetições.

A multifuncionalização da responsabilidade civil é mecanismo jurídico da atualidade, de Estados Democratas, de sociedades tecnológicas, do mundo globalizado e fluído. Ainda que o Brasil esteja inserido nesse contexto, discute-se intensamente em sede doutrinária a possibilidade de aplicação multifuncional da responsabilidade civil, em especial da função punitiva, no direito brasileiro.

O autor Nelson Rosenvald ensina que, em que pese a necessidade de multifuncionalização da responsabilidade civil, fato é que a função punitiva, por impor pena, ainda que civil, deve respeitar o princípio da legalidade estrita. Desta forma, diante da ausência legislativa neste sentido, o instituto não pode ser aplicado ao direito brasileiro (ROSENVALD, 2014, p. 77). No mesmo sentido, Marcelo de Oliveira Milagres e Luísa Ferreira Vidal sustentam que "a admissão da pena civil nesse cenário, sem qualquer parâmetro para sua incidência e estipulação pela atual redação

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do Código Civil, ensejaria violação do princípio da reserva legal consagrado no artigo 5º, XXXIX, da CF/88" (MILAGRES; VIDAL, 2014, p.166).

De outro lado a autora Caroline Vaz ressalta que os danos punitivos visam proteger direitos fundamentais individuais e coletivos, devendo assim ser interpretados de acordo com o princípio da máxima eficácia, aplicável a partir do artigo 5º, parágrafo 1º, da Constituição Federal, pelo que a multifuncionalização da responsabilidade civil, inclusive a função punitiva, converge com os valores trazidos pela Constituição Federal de 1988, devendo ser aplicada no direito brasileiro (VAZ, 2009, p. 88).

Reforçando essa linha de raciocínio aduz André Gustavo Corrêa Andrade que a dicotomia entre direito penal e civil reflete a mesma divisão entre direito público e privado, apenas em menor escala (ANDRADE, 2008, p. 183-185). Por isso, trata-se de dicotomia que não se amolda ao Estado Democrático brasileiro, o qual deve atuar de forma conglobada para atingir seu objetivo de promover direitos fundamentais. Nesta lógica, assim como o direito penal possibilita o ressarcimento da vítima, o direito civil também pode punir, já que atuações estanques são ineficazes no atual contexto da sociedade de risco.

Parece possível a aplicação da função punitiva da responsabilidade civil no direito brasileiro, pois analisando o modelo neoconstitucional brasileiro verifica-se a autorização de implementação direta dos direitos fundamentais na solução de casos concretos. Ausência legislativa nesse sentido, não impede que a jurisprudência brasileira, assim como feita na França, Grã-Bretanha e Estados Unidos da América, implemente os valores constitucionais diretamente, criando as balizas para adequada punição no direito civil.

E mais, os direitos fundamentais possuem como norte os princípios da máxima amplitude, máxima eficácia e priorização de proteção preventiva. Desta forma, em que pese ausente lei expressa tratando do punitive damage no direito brasileiro, certo é que este instituto se amolda a sistemática proposta pelo Constituinte para os direitos fundamentais na prevenção e punição de danos sociais e danos individuais massificados.

Ademais, no que tange a seara coletiva, a punição é revertida em favor da sociedade, já que por força do artigo 13 da Lei 7.347/85 a indenização destina-se a

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fundo coletivo, afastando-se de plano a crítica de que o dano punitivo causaria enriquecimento sem causa por parte da vítima.

O punitive damage representa eficaz ferramenta para integral reparação dos ilícitos sociais e individuais massificados, devendo ser aplicado ao direito brasileiro.

CONCLUSÃO

Pelo exposto, a multifuncionalização da responsabilidade civil é capaz de diminuir o medo das pessoas na sociedade contemporânea, implementando o projeto de Estado Democrático e de sociedade de risco.

O instituto da responsabilidade civil representou ao longo da história reflexo do escopo social. Sua mutação, em regra iniciada de fato, pela jurisprudência, evidenciava as necessidades da sociedade que a conformava.

Nesse contexto, a responsabilidade civil foi inicialmente utilizada para afastar a vingança privada, buscando organização mínima para pacificação social através da figura soberana do Estado.

Noutro giro, na sociedade industrial, escalonada, hierarquizada, própria de Estado Liberal, a responsabilidade civil foi também estratificada, restringida a sua vertente compensatória, para restituir o dano, evitando o enriquecimento ilícito dos causadores de danos.

A sociedade atual, globalizada, fluída, própria de um Estado Democrático, o qual interfere nas relações de seus cidadãos para implementação de direitos fundamentais, tem como ponto característico o medo proveniente dos perigos e riscos desse processo relacional de caráter mundial.

Por esta lógica, a responsabilidade civil deve se adaptar as novos anseios para continuar sendo a ferramenta protecionista da sociedade. Para tanto, não basta combater o dano, compensando-o com o ressarcimento a posteriori. É necessário um instituto jurídico que se antecipe, combatendo o risco e o perigo, de modo a evitar os danos, em especial os danos coletivos e os individuais massificados.

E mais, para se coadunar a fluidez e agilidade da sociedade contemporânea, necessária a multifuncionalização da responsabilidade civil, para além de compensar, prevenir danos, nem que para tanto tenha de punir seus causadores.

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Esta atuação multifuncional contribui para a sedimentação da sociedade de risco, formadora de cidadãos, de caráter solidário, preventivo de danos, atuando sobre os riscos e perigos, como forma de atenuar o medo advindo do processo de globalização.

O Brasil, com seu projeto de Estado Democrático, orientado pelos princípios da dignidade da pessoa humana, reparação integral, proteção coletiva preventiva e máxima efetividade dos direitos fundamentais, tem arcabouço jurídico compatível com a aplicação multifuncional da responsabilidade civil.

Portanto, a hipótese científica da pesquisa foi confirmada, pois com a multifuncionalização da responsabilidade civil o direito proporciona integral proteção aos seus cidadãos, não só ressarcindo os danos causados de forma proporcional a sua gravidade, como também prevenindo a prática de outros danos e condutas ilícitas. Dessa forma, a sociedade juridicamente protegida terá a redução do medo que a caracteriza.

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REFERÊNCIAS

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Referências

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