• Nenhum resultado encontrado

Ironia e tédio em “Persée et Andromède”, de Jules Laforgue

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Ironia e tédio em “Persée et Andromède”, de Jules Laforgue"

Copied!
10
0
0

Texto

(1)Ironia e tédio em “Persée et Andromède”, de Jules Laforgue Andressa Cristina de Oliveira Doutora em Letras - UNESP/FCL/Ar Professora do Centro Universitário Anhanguera - Unidade Pirassununga e-mail: profandressa@ig.com.br. Resumo. Abstract. Jules Laforgue é um poeta simbolista francês, autor de Moralités Légendaires, obra em prosa que retoma mitos pertencentes a patrimônios diversos e os parodia de forma irônica e poética. Analisa-se, aqui, a novela intitulada “Persée ou Andromède ou le plus heureux des trois”, na qual retoma o mito grego de Perseu e Andrômeda, fazendo uma inversão semântica, isto é, transformando ironicamente o herói grego em dândi e, também, fazendo de Andrômeda uma jovem não idealizada para o amor. O poeta insere Andrômeda e o Monstro, um terceiro personagem que morre, ressuscita e se transforma em um belo príncipe, em uma atmosfera carregada de monotonia, tédio e melancolia, tão ao gosto dos poetas simbolistas franceses. Ao parodiar esse mito grego de forma irônica, percebe-se que Laforgue pretendia atingir os dândis e os intelectuais e artistas franceses do final do século XIX, juntamente com mitos, lendas e obras literárias que lhes eram tão caros.. Jules Laforgue is a French Symbolist poet who wrote the work on prose Moralités Légendaires. Here, he retakes myths that belong to several traditions and do parody in an ironic and poetic way. We analyze the narrative “Persée ou Andromède ou le plus heureux des trois”, in which he retakes Greek´s myth of Perseo and Andromeda by doing a semantic inversion, changing ironically the Greek hero into a dandy and Andromeda into a young lady that is not idealized for loving. The poet puts her and the Monster, a third character that dies, resuscitates and becomes a handsome prince, in an atmosphere charged of monotony, spleen and melancholy, such as the inclination of the French Symbolists poets. By paroding this Greek myth in an ironic way, we see that Laforgue intended to hit the dandy and the French artists and intellectuals from the end of nineteenth century, besides the myths, legends and literary works that they appreciated.. Palavras-chave: Jules Laforgue, Perseu, Andrômeda, ironia, tédio.. Em “Persée et Andromède ou le plus heureux des trois”, uma das novelas da obra Moralités Légendaires, o poeta simbolista francês Jules Laforgue retoma a tradição greco-romana para compor suas moralidades. O século XIX foi um período de revivescência do helenismo. Em crise de inventividade, muitos escritores refugiaram-se nesses mitos, porém, empregando-os de maneira pessoal. Segundo Rivière (apud BALAKIAN, 1985), “a Grécia dos poetas [de então] não tem nada de clássica. É uma terra de sonho aonde vão brincar com as ninfas”. Vemos, ainda, com Balakian (1985), que os simbolistas os transformaram na população ambígua de seus sonhos, enfatizando a irrealidade deles no mundo diário, em vez de suas mensagens sempre renováveis. Toda vez que aparecia uma dessas personagens era sinal de. Key-words: Jules Laforgue, Perseo, Andromeda, irony, spleen.. que o poeta havia abandonado o mundo em que respirava e se transportara para a paisagem imaginária e atemporal da mitologia, misturando aí seus sentidos mortais com os sentidos sobrenaturais dessas figuras.. Sabe-se que Laforgue queria ser original a qualquer preço. Uma vez declarou que gostaria de tirar “o sublime da eternidade”, isto é, retratar o atual, o momentâneo, o instantâneo. Assim, confessa em carta à irmã, Marie, que “não quer contar a história de um amor entre dois seres como aconteceria em 1885, mas de um casal de humanos insaciáveis, sagrados, ilógicos, desinteressados e sozinhos na Terra” (apud DURRY, 1971). Seria o projeto de um romance que ele não realizou, mas, a partir do qual, escreveu a novela “Persée 113.

(2) et Andromède”. O mito de Perseu e Andrômeda Na mitologia grega, Perseu é filho de Dânae, princesa de Argos, e de Zeus. O pai da princesa, prevenido por um oráculo de que um dia seu neto iria matá-lo, isolou sua única filha e a tornou prisioneira em uma torre de seu castelo. Porém, Zeus apaixonou-se pela princesa, transformou-se em chuva de ouro e, por meio de uma estreita fenda do cárcere, a alcançou. Assim foi gerado Perseu. Irado, o rei Acrísio jogou filha e neto ao mar. Estes, por sua vez, foram salvos por um pescador, Díctis, da ilha de Serifo. Até a juventude de Perseu, todos viveram harmoniosamente junto do pescador e de sua mulher. Um belo dia, o rei de Serifo, Polidectes, apaixonou-se por Dânae, casou-se com ela e teve de levar Perseu à corte. Não deixava de vigiá-lo constantemente, pois temia que ele acabasse querendo o trono da ilha. Após algum tempo, sabendo que Perseu era ambicioso, o rei encontrou uma solução: organizar uma expedição na qual cada homem que dela participasse trouxesse o melhor que conseguisse. Em sua ingenuidade, Perseu havia prometido trazer o que o rei pedisse, mesmo que fosse a cabeça de uma Górgona. As Górgonas são três irmãs monstruosas – Euríale, aquela que caminha a passos largos, Estenó, a poderosa, e Medusa, a rainha – filhas de Forcis e de Cetó, irmãs das Graias e, portanto, divindades pré-olímpicas. As duas primeiras eram imortais, enquanto Medusa, a mais famosa das três, era mortal. Sua aparência era terrível: o rosto emoldurado por serpentes, presas parecidas às de um javali entre os dentes, asas de ouro e mãos de bronze. Seu olhar era tão penetrante que petrificava quem a olhasse de frente. Astucioso, Polidectes ordenou que Perseu trouxesse a cabeça da mais temida das Górgonas, Medusa, achando que se veria livre do jovem para sempre. Vale ressaltar que, até então, ninguém havia se salvado em um combate contra a Górgona. Indiretamente, o rei ficaria livre de Perseu sem ter de sujar suas próprias mãos ou arriscar sua reputação. Mas Perseu foi ajudado pelos deuses. Hermes e Atena forneceram–lhe os meios de cumprir a sua leviana promessa. Conforme conselho desses deuses, ele procurou as filhas de Forcis, Ênio, Pefredo e Dino, as Gréias, que não tinham, para uso das três, mais do que um olho e um dente. Desse olho e desse dente Perseu se apoderou, não lhes entregou enquanto não lhes indicaram o caminho para a casa das Ninfas que possuíam sandálias com asas, um saco de formato especial, chamado kibisis e o capacete de Hades, que tinha a propriedade de tornar 114. invisível quem o usasse no momento. As ninfas lhe entregaram tais objetos, e Hermes lhe deu uma espada de aço muito resistente e cortante. Assim prevenido, Perseu procurou as Górgonas, Esteno, Euríale e Medusa. Elas dormiam. Perseu pairou acima delas, graças às sandálias aladas. Atena segurou acima da cabeça de Medusa um escudo polido de bronze, como se fosse um espelho e, assim guiado, Perseu decapitou o monstro, sem olhar diretamente para ele. Do peito de Medusa saltou um cavalo de asas, Pégaso, e um gigante, Crisaor. O herói colocou no saco a cabeça da Górgona e partiu. As irmãs da morta perseguiram-no, mas em vão. O capacete de Hades o tornava invisível (GUIMARÃES, 1999). Ao voltar a Serifo para entregar seu troféu a Polidectes, Perseu passa pela Etiópia e avista uma bela jovem, inteiramente nua, acorrentada a um rochedo. Entre soluços, a prisioneira explica-lhe que estava ali por ordem do rei e aguardava a chegada de um monstro marinho que iria devorá-la. Perseu quis saber mais sobre ela, que revela ser a princesa Andrômeda, filha de Cefeu e Cassiopéia. Esta era uma mulher extremamente bela, vaidosa e orgulhosa que certo dia, comparou-se às Nereidas as quais, indignadas, pediram a Netuno que vingasse a ofensa. Assim, o deus mandou um monstro marinho devastar o litoral da Etiópia, fazendo embarcações naufragarem, casas e templos caírem, exterminando plantações, animais e vidas humanas. Assustado, o povo rebelou-se contra o rei, acusando-o de ser o responsável por tantas misérias. Sem saber o que fazer, Cefeu consultou o oráculo, que lhe disse que deveria sacrificar sua filha Andrômeda, a mais bela virgem do reino, para que tudo voltasse ao normal. O rei decidiu entregar a vida de sua filha pelo bem-estar de seus súditos. Perseu prometeu a Cefeu livrar-lhe a filha se ele consentisse em dá-la como esposa. Cefeu concordou. Perseu matou o monstro e desposou Andrômeda. No entanto, Fineu, um irmão de Cefeu, que era noivo da moça, sua sobrinha, conspirou contra o herói. Mas Perseu, descobrindo a conspiração, voltou contra os inimigos a cabeça da Górgona, e os transformou em pedra. Quando se foi da Etiópia, Perseu levou Andrômeda para Argos, depois para Tirinto onde lhes nasceram diversos filhos e uma filha (GUIMARÃES, 1999). “Persée et Andromède ou le plus heureux des trois”, de Jules Laforgue. Como nas outras novelas, o mito, aqui, é retomado de forma paródica, irônica e poética. Acredita-se que.

(3) Laforgue a tenha escrito entre outubro de 1886 e março de 1887, após ter conhecido Leah Lee. A novela divide-se em três partes, das quais podemos dizer que, na primeira, há o retrato de Andromède entediando-se horrivelmente, desejando conhecer outras pessoas, outros mundos e presa em uma ilha com o Monstro que a criou. Na segunda parte, a jovem refugia-se em um canto secreto, onde arrumou um espelho aquático e, na terceira parte, surge um Persée que possui armas divinas para raptar Andromède, e, ao intervir, o Monstro acaba sendo morto. Triste por ter perdido seu amigo, ela dispensa Persée. Após ela arrepender-se de sua curiosidade e reconhecer seus sentimentos pelo Monstro, o mesmo ressuscita, transformado em príncipe. Assim, os dois partem juntos para a Etiópia. Laforgue retoma a lenda de Andromède de maneira inusitada: não é dito por quê ela se encontra na ilha deserta em companhia do Monstro. O que se vê, desde o início, é a paisagem que remete ao tédio, tão ao gosto de Baudelaire e dos simbolistas a uma situação sem saída, reforçada pela presença do mar e pelas ladainhas de Andromède. A repetição de “o patrie monotone et immérité”, por exemplo, reforça esse Ennui, esse desejo de escapar da realidade. O narrador se questiona “Quand donc cela finira-t-il?”, remetendo ao pessimismo, a uma existência sem saída. No parágrafo inicial há um paralelismo entre as dunas e o mar (“jaunes grises dunes” e “la mer bornant la vue les cris”). Nota-se, também, o emprego abundante de interjeições e apartes do narrador, reforçando o tom irônico e dando musicalidade e ritmo ao texto (“Eh quoi!” “Eh”). O advérbio “indifféremment” é associado de maneira incomum à palavra “mer” (la mer est illimitée ce qui provoque l´indifferénce). O tom, aqui, é de queixa, tédio, monotonia, melancolia, como vemos explícito no vocabulário utilizado (“monotone”, “imméritée”, “indifféremment”, “indifférentes”, “bouderie”, “mourir”, “plainte”, “gemissements”, “gémir”...): O Patrie monotone et imméritée!... L’île seule, en jaunes grises dunes; sous des ciels migrateurs; et puis partout la mer bornant la vue les cris et l’espérance et la mélancolie [...] O patrie monotone et imméritée!... Quand donc cela finira-t-il? – Eh quoi! em fait d’infini: l’espace monopolisé par la seule mer indifféremment illimitée, le temps exprime par les seuls ciels em traversées indifférentes de saisons avec migrations d’oiseaux gris,. criards et inapprivoisables! – Eh que comprenons-nous à toute cette bouderie brouillée et ineffable? Autant mourir tout de suite alors, ayant reçu un bon coeur sentimental de naissance. […] Et c’est tout; ô patrie imméritée et monotone Jusque dans la petite anse aux deux grottes feutrées de duvets d’eider et de pales litières de goëmons, la vaste et monotone mer vient panteler et ruisseler. Mais sa plainte ne couvre pas les petits gémissements, les petits gémissements aigus e rauques d’Andromède qui, là, à plat-ventre et accoudée face à l’horizon, scrute sans y penser le mécanisme des flots, des flots naissant et mourant à perte de vue. Andromède gémit sur elle même. Elle gémit; mais soudain elle s’avise que sa plainte fait chorus avec celles de la mer et du vent, deux êtres insociables… (LAFORGUE, 1996, pp. 211-213, grifos nossos).. Andromède e o Monstro estão presos em uma ilha, onde não há nada para fazer a não ser contemplar o céu e as ondas do mar. Diferentemente do mito grego, o Monstro não está ali para devorá-la, mas é um amigo que lhe faz companhia. Nada melhor que o mar e uma ilha deserta para representarem os sentimentos reinantes entre os decadentistas do século XIX: é o retrato do desespero moderno, a idéia de desencantamento de Laforgue e de seus contemporâneos face ao mundo. Os decadentes rejeitavam o positivismo cientificista e sentiam viver em uma época de grande perversidade. Muitas vezes, esse desespero e desencantamento são traduzidos na obra de Laforgue por meio do pessimismo e da ironia. A fuga para isso está na busca de um mundo paralelo, de um senso de refinamento extremo. Isso é manifestado, sobretudo, por meio do emprego de uma linguagem quase barroca e um estilo superornamentado, como vemos nesse exemplo: Le Monstre Dragon, accroupi à l´entrée de sa grotte, l´arrière-train dans l´eau, se retourne, en faisant chatoyer son échine riche de toutes les joailleries des Golcondes sousmarines, soulève avec compassion ses paupières frangées de cartilagineuses passementeries multicolores, découvre deux grosses prunelles d´un glauque aqueux, et dit (d´une voix d´homme distingué qui a eu des malheurs): - Tu le vois, Bébé, je concasse et polis des galets pour ta fronde ; nous aurons encore des passages d´oiseaux avant le coucher du soleil (LAFORGUE, 1996, p. 214). 115.

(4) Essa atmosfera de tédio desesperado prevalece ao longo da primeira parte. Há apartes irônicos do narrador, sobretudo no que concerne à crítica em relação à sociedade vigente: “- Si du moins tu voulais me prendre sur ton dos et me transporter dans des pays où l’on trouve de la société. (Ah, je voudrais tant me lancer dans le monde!)” (LAFORGUE, 1996, p. 216); e, também, quando o Monstro lamenta sua condição, dizendo ser um Catoblepas, isto é, um animal fantástico: “Mais laissons cela; je ne suis encore qu’un pauvre monstre de Dragon, un infortuné Catoblepas” (LAFORGUE, 1996, p. 216). O tédio continua, sobretudo nas falas de Andromède, como em: “- O vols migrateurs qui passez sans me voir, ô hordes des flots toujours arrivant pour mourir sans rien m’amener, que je m’ennuie! Ah! Je suis bien malade cette fois-ci...” (LAFORGUE, 1996, p. 214), ou em: “Andromède se rejette à plat-ventre dans le sable qu’elle griffe et laboure le long de ses deux flancs légitimement affamés, et puis recommence ses petits gémissements, ses gémissements aigus et rauques” (LAFORGUE, 1996, p. 217). A primeira parte termina com uma alusão a Spinoza, quando o narrador compara o Monstro ao filósofo: “Le Monstre sourit débonnairement, et se remet à polir ses galets; - tel le sage Spinoza devait polir ses verres de lunettes” (LAFORGUE, 1996, p. 218). Lembremo-nos que a leitura da obra de Spinoza, assim como as de Schopenhauer, Hartmman, Taine e outros foi fundamental para a formação de Laforgue. Em uma carta de 12 de maio de 1882, Laforgue escreve a Charles Ephrussi: “Je possède une Imitation de Jésus Christ et l’Éthique du grand Spinoza, et je m’en nourris dans mon coeur solitaire, dédaignant les splendeurs de ce Bade” (apud SCEPI, 2000, p. 14). Alguns meses antes havia declarado ao mesmo correspondente: “Je lis une page de Spinoza ou de Hartmman, et je suis à mille lieues de toutes ces dorures. Il n’y a que l’Art” (SCEPI, 2000, p. 14). Dessa maneira, percebe-se que a antropologia crítica de Spinoza coloca o homem sob a dependência necessária de um Deus que é a Natureza. Sua filosofia baseia-se na ética cristã da renúncia. Em “Persée et Andromède”, Laforgue serve-se dessa ética e a transpõe livremente no terreno da moral existencial e da filosofia profana, resumindo suas leituras, como disse a Charles Henry em uma carta de maio de 1882, a uma “antologia da renúncia” e os assuntos de conversação possíveis à seguinte trindade, segundo outra carta escrita ao mesmo 116. amigo: “Causons vers – femmes - et renoncement” (apud SCEPI, 2000, grifos nossos). Se Laforgue compara seu Monstro a Spinoza, é para remeter, de antemão, à questão da aparência e da essência, visto que, externamente, o Monstro é feio e repugnante, mas, em sua essência, é bondoso e compreensivo e vai, na terceira parte da novela, tornarse um belo príncipe. Assim, percebe-se a alusão às teorias de Spinoza, que julgava que a essência estava além das aparências. Lembremo-nos, ainda, que o Monstro é um dragão, animal que faz parte do bestiário lunar. Segundo Durand (1969, pp. 359-360), L´animal lunaire par excellence sera donc l´animal polymorphe par excellence: le Dragon. Le mythe agro-lunaire réhabilite et euphémise le Dragon lui-même. Ce dernier est l´archétype fondamental qui résume le Bestiaire de la lune: ailé et valorisé positivement comme puissance ouranienne par son vol, aquatique et nocturne par ses écailles, il est le sphynx, le serpent à plumes, le serpent cornu ou le « coquatrix ». Le « monstre » est en effet symbole de totalisation, de recensement complet des possibilités naturelles, et à ce point de vue tout animal lunaire, même le plus humble, est assemblage monstrueux. On peut dire que tout merveilleux tératologique est merveilleux totalisant et que cette totalité symbolise toujours la puissance faste et néfaste du devenir [...]. En l´animalité l´imagination du devenir cyclique va chercher un triple symbolisme : celui de la renaissance périodique, celui de l´immortalité ou de l´inépuisable fécondité, gage de la renaissance, enfin quelquefois celui de la douceur résignée au sacrifice.. Na segunda parte da novela, há uma longa descrição da aparência de Andromède, que é mais uma heroína de Laforgue que não se ajusta à Beleza Ideal. Para os decadentes, o sofrimento e o desespero permanecem, sobretudo, na impressão de que o Ideal se tornou impossível de encontrar. Além dos usuais apartes do narrador, vemos associações incomuns em “espadrilles de lichen” e “hanches droites et fières” e uma comparação inusitada dos olhos de Andromède com os pássaros e com as águas. Vemos, também, que Andromède tem “deux soupçons de seins”. Ses pieds parfaits dans des espadrilles de.

(5) lichen, un collier de coraux bruts enfilés d’une fibre d’algue au cou [...]. Elle n’a pas la face et les mains plus ou moins blanches que le reste du corps ; toute sa petite personne, à la chevelure roux soyeux tombant jusqu’aux genoux, est du même ton terre cuite lavée. (Oh, ces bonds ! ces bonds !) Tout armature et tout ressort et toute hâlée, cette puberté sauvageonne, avec ses jambes étrangement longues et fines, ses hanches droites et fières s’amincissant en taille juste au-dessous des seins, une poitrine enfantine, deux soupçons des seins, si insuffisants que la respiration au galop les soulève à peine [...] et ce long cou, et cette petite tête de bébé, toute hagarde dans sa toison rousse, avec ses yeux tantôt perçants comme ceux des oiseaux de mer, tantôt ternes comme les eaux quotidiennes. Bref une jeune fille accomplie (LAFORGUE, 1996, pp. 219-220).. Andromède admira-se em um espelho d’água, e esse é seu único segredo. É um raro momento no qual o tédio e o desespero dão lugar à leveza, à diversão, à satisfação, à alegria e, sobretudo, ao tom irônico da descrição. Au milieu de cette plate-forme les pluies ont creusé une cuvette, Andromède l’a pavée de galets d’ivoire noir et y entretient une eau pure; et c’est là son miroir, depuis un printemps, et son unique secret au monde. Pour la troisième fois aujourd’hui, elle revient s’y mirer. Elle ne s’y sourit pas, elle boude, elle cherche à approfondir le sérieux de ses yeux; et ses yeux ne se départent pas de leur profondeur.[…] Alors elle se prend à sa rousse toison, elle essaye vingt combinaisons de coiffure, mais qui n’aboutissent qu’à des choses surchargés pour sa petite tête (LAFORGUE, 1996, pp. 220222).. Percebe-se, aqui, que o espelho d’água remete ao mito de Narciso, tão caro aos simbolistas e decadentes, já que é uma representação deles mesmos, de seu individualismo, do egotismo e da fuga da brutalidade da vida cotidiana. Narciso remete à imagem do homem que se volta para si mesmo, em um gesto introspectivo e de isolamento, tal qual Laforgue e seus contemporâneos em suas ‘torres de marfim’. As nuvens que prenunciam a chuva que vai estragar o prazer da personagem chegam e Andromède canta de maneira melancólica. A ironia aqui é. caracterizada, sobretudo, por meio de uma linguagem carregada de símbolos e hermética, pois a palavra “bobo” nos remete à leitura do hipotexto, evidenciando, mais uma vez, como é importante a participação do receptor para que esse tipo de significação aconteça. A palavra “nuées” é repetida para reforçar a volta do tédio no personagem: Les nuées arrivent, les nuées crèvent dans une grande rumeur de déluge. Andromède dégringole la falaise, et reprend son galop vers la mer, et piaule dans l’averse: Ah! qu’il fût un remède Au bobo d’Andromède! Hissaô! Au bobo. Des larmes lui ruissellent sur sa poitrine enfantine, tant cet air est triste. Et l’averse est déjà loin, et le vent ébouriffe ses cheveux, et tout est rafales[…] (LAFORGUE, 1996, p. 222, grifos nossos).. Segundo Durry (1971), na versão original da novela constava a palavra “sexe” no lugar de “bobo”. Literalmente, “bobo” é uma onomatopéia para uma pequena dor, um pequeno machucado, o diminutivo que caracteriza a linguagem infantil. Talvez, aqui, o poeta faça uma referência indireta a Perseu, que ainda não foi abordado na novela. Lembremos que Dânae, sua mãe, foi fecundada por Zeus sob a forma de chuva de ouro, dando à luz, assim, a Perseu. Porém, percebe-se que Laforgue vai além da simples alusão ao mito grego: ao longo da novela, o narrador, quando fala de Andromède, repete “ô puberté, puberté” para evidenciar ao leitor que a mesma ainda é jovem, enfim, uma adolescente que acaba de chegar à puberdade. É uma neurótica que se agita sem cessar ou contorcendo-se na areia ou percorrendo febrilmente os caminhos de sua ilha. É uma presa do desejo desconhecido, difuso, que não tem contato com outros seres além do Monstro e o instinto natural já se propaga em seu ser. Então, para ela, admirarse no espelho d’água era uma pequena dor, era ver o reflexo de sua ânsia por algo novo, de conhecer pessoas e lugares diferentes. A chuva havia estragado seu espelho d’água, o que faz com que Andromède voltasse ao estado de tédio, de desespero e de melancolia ao contemplar o mar. Há, várias vezes, a repetição da palavra “mer” e palavras incomuns associadas a ela. Podemos, ainda, mais uma vez, fazer uma associação à relação entre Zeus e Danae na frase “mais la vilaine pluie a troublé la pureté de son triste miroir”. 117.

(6) Mais la vilaine pluie a troublé la pureté de son triste miroir [...] Que faire? Sinon recontempler la mer si bornée et cependant si seule ouverte à l’espérance... Et encore, que son tourment à elle est petite fille, en face de cette solitude à perte de vue! D’une lame, la mer peut l’assouvir à mort; mais elle, petite chair grele, apaiser et réchauffer la mer! [...] (LAFORGUE, 1996, p. 225-226, grifos nossos).. Ressaltemos, aqui, as numerosas referências à água. Vemos, com Chevalier e Gheerbrant (2004, pp. 15-22), que as águas [representam] a infinidade dos possíveis, contêm todo o virtual, todas as promessas de desenvolvimento, mas também todas as ameaças de reabsorção. Mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver totalmente, salvo por uma morte simbólica, é retornar às origens, carregar-se, de novo, num imenso reservatório de energia e nele beber uma força mova: fase passageira de regressão e desintegração, condicionando uma fase progressiva de reintegração e regenerescência. [...] A água é o símbolo das energias inconscientes, das virtudes informes da alma, das motivações secretas e desconhecidas.. Para Durand (1969), a água é o símbolo da inversão e da intimidade, do retorno dos valores. Dessa maneira, analisando as posições desses dois estudiosos, podemos ver o papel que a água desempenha nessa novela de Laforgue, já que, no desfecho, o Dragão vai ressuscitar, transformar-se em belo príncipe, voltar a ser o que fora outrora. Com a chuva, a cabecinha de Andromède é preenchida por ritmos maternais que o Monstro cantava em sua infância, a lenda La Vérité sur le cas de Tout, pequeno poema sagrado que remete às leituras de Laforgue sobre a teoria do Inconsciente de Hartmman, ao Amor, ao Ideal. Vê-se, aqui, uma referência explícita ao capítulo 1 do Evangelho de São João, no qual está escrito “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (BÍBLIA SAGRADA, 1986, p.232). Laforgue associa, ironicamente, o “Verbo” à idéia de Amor, Ideal e Inconsciente. Se para o apóstolo João tudo foi feito por meio do Verbo, para Laforgue essa função é desempenhada por meio da tríade Amor - Ideal - Inconsciente, principalmente por este último. O poeta crê que o Inconsciente é um ‘anjo da guarda’, aquilo que rege o mundo sem que nada possa escapar dele (DURRY, 1971, p. 89). 118. Au commencement était l’Amour, loi organisatrice universelle, inconsciente, infaillible. Et c’est immanente aux tourbillons solidaires des phénomènes, l’aspiration infinie à l’Idéal […] L’impulsion d’Idéal est donnée depuis toujours et depuis toujours, dans l’espace infini, va s’objectivant en innombrables mondes qui se forment […] L’inconscient initial, lui, n’a à s’occuper que de monter plus haut, il a ses travaux particuliers, qu’il surveille sur quelques mondes plus vivaces, plus sérieux;[…] (LAFORGUE, 1996, p. 227).. De acordo com Peyre (1974, p. 173), Laforgue nutriu-se [...] da filosofia de Hartmman de uma maneira bem exagerada, mas, isso, pelo menos, o conduziu à melancolia menos egocêntrica, ao lamento, ao inconsciente metafísico do qual o gênio se faz intérprete. Há um curioso e belo artigo, publicado cinco anos após a morte do poeta, nas Entretiens politiques et littéraires, em fevereiro de 1892, no qual ele fala das teorias de Hartmman sobre o inconsciente como “l’Afrique intérieur [...] où il imagine de mines riches, des gisements, des mondes sous-marins qui fermentent inconnus. Ah! C’est là que je voudrais vivre, c’est là que voudrais mourir!” (apud PEYRE, 1974, p. 174). Na terceira parte da novela, a atmosfera permeada pelo tédio ainda permanece. De acordo com Durry (1971), para Laforgue, o tédio não era um acidente, mas um estado de espírito, a vida desnudada, vista de maneira clara. Esse é um mal das pessoas extremamente cultas e inteligentes, tal como era o poeta. Esse Ennui é uma experiência fundamental, pois suscita a criação poética. De essência metafísica, ele provém de um excesso de inteligência. O pensamento/espírito toma consciência da natureza de maneira muito rápida, analisa o tempo e o espaço com muita acuidade e tem conclusões desesperadoras. O tempo passa com monotonia, não há momentos privilegiados. Ele é uma sucessão de momentos que se repetem, sempre idênticos, e não permite nenhum progresso, nenhum amadurecimento, nenhuma realização interior. Ele faz com que a falta de esperança predomine. As palavras “silence et horizon” são repetidas à exaustão para remeter ao tédio, ao desespero, a uma existência sem saída, sem perspectiva, sem acontecimentos diferentes. Silence et horizon; l’horizon des mers est tout déblayé pour le couchant..

(7) - Si nous jouions aux dames, soupire Andromède visiblemente énervée. [...] Silence et horizon! Après toutes les folies de cette après-midi, l’air est dans l’accalmie et se recueille devant la retraite classique de l’Astre. […] Là-bas, à l’horizon miroitant où les sirènes retiennent leur respiration. (LAFORGUE, 1996, p. 232, grifos nossos).. De repente, eis que chega o terceiro personagem, Persée. Suas intenções não são edificantes como no mito grego, mas sua chegada faz cessar momentaneamente a atmosfera entediante e desesperadora que prevalece ao longo da novela. O Monstro prevê que ele tem a intenção de matá-lo e de levar Andromède consigo. [...] Oh! Bénis soient les dieux qui envoient, juste au moment voulu, un troisième personnage. Il arrive comme une fusée, le héros de diamant sur un Pégase de neige dont les ailes teintes de couchants frémissent, et nettement réfléchi dans l’immense miroir mélancolique de l’atlantique des beaux soirs!... Plus de doute, c’est Persée! […] C’est Persée, fils de Danaé d’Argos et de Jupiter changé en pluie d’or. Il va me tuer et t’emmener. Mais non, il ne te tuera pas! (LAFORGUE, 1996, pp. 234-235).. O grande Perseu é retratado, ironicamente, pois, como um homem risível, um sedutor cínico de gosto terrivelmente vulgar. Não é caracterizado como herói e, aqui, há uso abundante de particípios presentes para caracterizar a inação do personagem, que é, talvez, assim como Hamlet, uma caricatura dos decadentistas contemporâneos de Laforgue. O interessante, aqui, é notar o que Laforgue faz com o herói mítico: o personagem fora do comum, que é capaz de realizar façanhas sobre-humanas, geralmente de grande valentia, torna-se um afetado, um dândi. Para Baudelaire (1980, p. 806, tradução nossa), o dandismo é, antes de mais nada, a necessidade ardente de constituir uma originalidade contida nos limites exteriores das conveniências. É uma espécie de culto de si mesmo, que pode sobreviver à busca da felicidade que deve se achar no outro, na mulher, por exemplo; que pode sobreviver até mesmo a tudo o que chamamos de ilusões. Enfim, é o prazer de surpreender e a satisfação orgulhosa de nunca se surpreender.. Um dândi pode ser um eterno entediado, um homem sofredor [...] O caráter de beleza do dândi consiste sobretudo no ar frio que se origina na firme resolução de não se emocionar; dir-seia um fogo latente que se faz adivinhar, que poderia mas que não quer brilhar.. Lembremos que, no mito grego, Persée liberta Andromède, decapita a Medusa, é descrito como um herói valente, corajoso e grandioso. Ele é desmitificado, dessacralizado no momento em que Laforgue faz uma abordagem caricata e irônica, sobretudo no que concerne à ironia verbal, como vimos anteriormente com Muecke (1995), visto que caracteriza a inversão semântica, isto é, dizer uma coisa para significar outra. Somente seu nome permanece o mesmo, pois o poeta o usa para criticar os modelos estéticos vigentes em sua contemporaneidade: Miraculeux et plein de chic, Persée approche, les ailes de son hippogriffe battent plus lentement; - et plus il approche, plus Andromède se sent provinciale, et ne sait que faire de ses bras tout charmants. […] Mais le voilà qui repart sans un mot et, ayant pris du champ, s’élance et se met à décrire des ovales en passant et repassant devant elle, caracolant au ras de la mer miraculeusement miroir, rétrécissant de plus en plus ses orbes vers Andromède, comme pour donner à cette petite vierge le temps de l’admirer et de le desirer. Singulier spectacle, en vérité!... “[...] il est imberbe, sa bouche rose et souriante peut être qualifiée de grenade ouverte, le creux de sa poitrine est laqué d’une rose, ses bras sont tatoués d’un coeur percé d’une fleche, il a un lys peint sur le gras des mollets, il porte un monocle d’émeraude, nombre de bagues et de bracelets; de son baudrier doré pend une petite épée à poignée de nacre (LAFORGUE, 1996, pp. 236-237, grifos nossos).. Lembrando Scepi (2000), na obra de Laforgue, mais uma vez, o discurso da ironia ‘brinca com as entidades’ e conspira para liquidar o mito. Persée, retratado como grande herói na mitologia grega, aqui, é reduzido a um príncipe “miraculeux et plein de chic”, que traja um “monocle d’émeraude, nombre de bagues et de bracelets”. Ele é o protótipo do artifício, do dândi. Vemos, ainda, um aparte irônico do narrador, quando diz “singulier spectacle, en vérité!”, referindo-se ao comportamento artificial de Persée. A grande 119.

(8) originalidade da obra de Laforgue deve muito à sua curiosa mistura de afetação e sinceridade, ao uso de máscaras, ao jogo de palhaço. É o que faz com seu Persée - que é a representação de uma de suas máscaras. Ce jeune héros arrête son hippogriffe devant Andromède et, sans cesser de sourire de sa bouche de grenade ouverte, il se met à exécuter des moulinets de son épée adamantine [...] le jeune Chevalier noue ses mains en étrier et, les inclinant devant la jeune captive, dit avec um grasseyement incurablement affecté: - Allez, hop! à Cythère! (LAFORGUE, 1996, p. 237, grifos nossos).. Perseu, além de ser caracterizado ironicamente como dândi no exemplo acima, deseja partir para Cítera, que foi uma ilha dedicada a Vênus, ao amor, portanto. Quando Andromède vai se despedir do Monstro, ele intervém, lançando uma labareda de fogo em Persée. Este, por sua vez, diz que não vai matá-lo, mas petrificálo. No entanto, o encanto não se realiza: a Górgona Medusa fecha os olhos, pois reconheceu o Monstro dos tempos de outrora: Ah! je ne te ferai pas le plaisir de te tuer devant elle [...] Je vais te... méduser! [...] Persée l’empoigne par cette chevelure dont les noeuds bleus jaspes d’or lui font de nouveaux bracelets et la présente au Dragon, en criant à Andromède: Vous, baissez les yeux! Mais, ô prodige! Le charme n’opère pas Il ne veut pas opérer, le charme! Par un effort inouï, en effet, la Gorgone a fermé ses yeux pétrificateurs. [...] Persée attend toujours, le bras tendu, ne s’apercevant de rien. (LAFORGUE, 1996, p. 239). Persée mata o Monstro e, em um gesto cruel e totalmente afetado, anda em cima de seu cadáver até que Andromède decide intervir. Na intervenção do narrador, há a presença da lua para reforçar o glossário simbolista. [...] il pique des deux (oh! tandis que justement là-bas la pleine lune se lève sur le miraculeux miroir atlantique!) et fond sur le Dragon, pauvre masse sans ailes. [...] Il le pique à gauche, il le pique à droite, [...] lui enfonce si merveilleusement son épée au milieu du 120. front, que le pauvre Dragon s’affaisse et, expirant, n’a que le temps de râler: - Adieu, noble Andromède [...] Le monstre est mort. Mais Persée est trop excité, malgré l’infaillibilité de sa victoire, et il faut qu’il s’acharne sur le défunt! Et le larde de balafres! Et lui crève les yeux! Et le massacre, jusqu’à ce qu’Andromède l’arrête. - Assez, assez; vous voyez bien qu’il est mort (LAFORGUE, 1996, p. 240-241).. Para Persée, Andromède não possui a Beleza Ideal, pois ele diz “Ah! par exemple, il faudra que nous nous fassions belle!”, sugerindo que ela não se cuida, que não é bela. Andromède, sentindo-se culpada da morte do Dragão e percebendo que sentiria falta de seu convívio, rejeita Persée, dizendo “- Allez-vous en! Allez-vous en! Vous me faites horreur! J’aime mieux mourir seule, allez-vous en, vous vous êtes trompé d’adresse” (LAFORGUE, 1996, p. 243). Vemos, assim, mais uma vez, a busca do Eterno Feminino, da mulher ideal nas novelas de Laforgue. E vemos, também, a paródia e a ironia recaindo sobre a figura do dândi. Ressaltemos que no final do século XIX, a figura do dândi já estava em decadência, não tinha o mesmo valor estético da primeira metade do século. Com a partida de Persée, Andromède volta a viver em uma atmosfera de tédio: a presença do mar e do horizonte mais uma vez reforça essa existência melancólica e monótona: “Andromède reste là, tête basse, hébétée devant l’horizon, l’horizon magique dont elle n’a pas voulu, dont elle n’a pu vouloir [...]”. Esse desespero, esse Ennui que permeia todas as moralidades de Laforgue, lembra o fato de o poeta não aceitar os valores de sua contemporaneidade, dominada por uma sociedade cientificista, positivista, mecanicista e burguesa. Andromède lamenta a perda do Monstro e amaldiçoa sua curiosidade, seu desejo de conhecer pessoas e lugares diferentes. Poderíamos dizer que é uma representação de Eva, tentada a provar do fruto proibido. Após a morte do Monstro, reconhece que tinha uma vida perfeita, que tinha um grande companheiro: Elle se souvient comme il lui fut un bon ami, gentleman accompli, savant industrieux, poète dissert. Et son petit coeur se tord sous le menton inerte du Monstre méconnu [...] Tu devais bien voir que ce n’était chez moi qu’une crise passagère, cette langueur et cette curiosité fatale. Oh, curiosité très funeste! (LAFORGUE, 1996, p. 244)..

(9) Andromède reconhece os sentimentos que nutre pelo Monstro. A ressurreição e a transformação deste traz-nos, de modo irônico, a lembrança do conto maravilhoso A Bela e a Fera, pois o monstro se torna um belo homem, decidido a “rendre heureuse qu’il n’y aura ni mot ni minute pour nommer son bonheur” (LAFORGUE, 1996, p. 248). O Monstro ascendia da raça maldita de Cadmo, o qual era filho de Agenor, rei da Fenícia, e irmão de Europa; matou a serpente consagrada a Marte e, com isso, fez com que ele mesmo e seus descendentes passassem por todo tipo de infortúnio: os deuses o condenaram a ser um Dragão de três cabeças para proteger os tesouros da terra até que uma virgem o amasse de verdade, da maneira como ele era. [...] O dieux de justice, prenez la moitié de la vie d’Andromède [sic], prenez la moitié de ma vie et rendez-moi la sienne, afin que je l’aime et le serve désormais avec fidélité et gentillesse. O dieux, faites cela pour moi, vous qui lisez dans mon coeur et savez combien au fond, je l’aimais [...] En achevant ces mots mirifiques, le Dragon, sans crier gare! s’est changé en un jeune homme accompli (LAFORGUE, 1996, pp. 245247).. Esta passagem contém alguns anacronismos que produzem a sensação de absurdo e provocam o riso: “Oh! pauvre, pauvre Monstre [...] ce vilain héros d´Opéra comique”. Também, quando o Monstro e Andromède partem em viagem de núpcias, comenta o narrador: “Ils voguèrent, évitant les côtes semées de casinos. Oh! Voyage de noces sous le soleil comme à la belle étoile!” (LAFORGUE, 1996, p. 248). E ele conclui sua história declarando que os personagens chegaram no terceiro dia à Etiópia, terra natal de Andromède. Nesse momento há um inesperado aparte, no qual intervém um diálogo entre duas personagens, M. Amyot de l’Epinal e a princesa d’U.E, pelo qual se percebe que o narrador é M. de l´Epinal.. O leitor se dá conta de que essa história de Persée e Andromède acaba de ser contada e que ambos refletem sobre ela e sobre as constelações de Persée et Andromède e le Cygne, que é a constelação de Lohengrin e Parsifal. Ah! Ça, mon cher monsieur Amyot de l’Epinal, vous nous la baillez belle avec votre histoire! s’écria la princesse d’U.E. (en ramenant un peu son châle, car cette splendide nuit était fraîche). Moi qui avais donné tout autrement mon coeur à cette aventure de Persée et Andromède!” [...]. Et puis, cher monsieur Amyot [...]. Ce couple de nébuleuses, là-bas, près de Cassiopée, ne l’appelle-t-on pas Persée et Andromède? [...] - Chère U..., cela ne prouve rien. [...] près de la Lyre, qui est ma constellation, n’est-ce pas le Cygne qui est la constellation de Lohengrin et [...] Parsifal? (LAFORGUE, 1996, pp. 248249).. E o texto se fecha com a questão da princesa de U.E. sobre a moralidade, e o interesse disso reside no fato de que esta é a única novela da obra Moralités Légendaires na qual essa questão é abordada. A moralidade é um gênero dramático semi-religioso dos fins da Idade Média, que se desenvolveu na seqüência dos mistérios e milagres, e é caracterizado por maiores qualidades de abstração e de elaboração de caracteres. Sabemos que a intenção de Laforgue não é cotejar a literatura desse período, muito menos os contos morais do século XVIII. Ele se apropria do conceito de moralidade e transforma seu propósito e seu efeito, transpondo-o burlescamente ao servir-se do mito grego. Eis a abordagem da moralidade em “Persée et Andromède”: “[...] Allons, rentrons prendre le thé. Ah! À propos, et la moralité? J’oublie toujours la moralité...” (LAFORGUE, 1996, p. 249). Apesar de Laforgue não ter a intenção de retomar o gênero dramático medieval, a pergunta sobre a moralidade é respondida com um mote irônico, destacando-se que tal como no título da novela, o mais feliz dos três era o Monstro, pois teve paciência, resignouse, obteve o amor sincero de uma virgem e transformouse em um belo homem, pronto para reconquistar o que lhe era de direito. O mesmo não podemos dizer de Persée, que chegou todo cheio de si e de pompa, achando que tinha conquistado Andromède, que já a tinha para si, apesar de a mesma não corresponder aos seus ideais de Beleza. Eis a moralidade, que também remete ao mito da Bela e da Fera: Jeunes filles, regardez-y à deux fois Avant de dédaigner un pauvre monstre. Ainsi que cette histoire vous le montre, Celui-ci était digne d’être le plus heureux des trois (LAFORGUE, 1996, p. 250).. Dessa maneira, com a leitura da novela “Pan et la Syrinx ou le plus heureux des trois”, podemos concluir que o poeta francês Jules Laforgue serve-se de um mito grego - o de Perseu e Andrômeda - para parodiá-lo, dessacralizá-lo, retratá-lo com ironia e colocá-lo em uma atmosfera plena de tédio, melancolia e monotonia. Com esse tipo de retomada, sua intenção é zombar dos dândis 121.

(10) parisienses do século XIX, de seus contemporâneos intelectuais e artistas ironizando mitos e gêneros que lhes eram caros e destituindo a mulher de sua posição idealizada. Referências Bibliográficas BALAKIAN, A. O simbolismo. Tradução de José Bonifácio A. Caldas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985. BAUDELAIRE, C. Oeuvres complètes. Paris: Éditions Robert Laffont, 1980. BIBLIA SAGRADA. Trad. Antonio Pereira de Figueiredo. 9.ed. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britanica Publishers Inc, 1986. CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 17.ed. Trad. Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2002. DURAND, G. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris : Bordas, 1969. DURRY, M. J. Jules Laforgue. Paris: Éditions Pierre Seghers, 1971. (Collection Poètes d’aujourd’hui). GUIMARAES, R. Dicionário da mitologia grega. São Paulo: Cultrix, 2004. __________, J. Moralités Légendaires. Paris: Fleuron, 1996. MUECKE, D. C. A ironia e o irônico. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1995. PEYRE, H. Qu’est-ce que le symbolisme? Paris: PUF, 1974. SCEPI, Henri. Poétique de Jules Laforgue. Paris: PUF, 2000. Recebido em 29 de junho de 2007 e aprovado em 01 de agosto 2007.. 122.

(11)

Referências

Documentos relacionados

No entanto, para aperfeiçoar uma equipe de trabalho comprometida com a qualidade e produtividade é necessário motivação, e, satisfação, através de incentivos e política de

Os maiores coeficientes da razão área/perímetro são das edificações Kanimbambo (12,75) e Barão do Rio Branco (10,22) ou seja possuem uma maior área por unidade de

E se, no que toca à viticultura, a aposta nas castas autóctones da região, como a Azal, Avesso ou Lou- reiro seria inevitável, a Quinta da Lixa alberga já, nas suas

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,

Embora o "annealing" afete a tensão no escoamento, qy, Y oung 191 diz também que o ponto de tensão no escoamento para o polímero é muito difícil de ser definido.

Era de conhecimento de todos e as observações etnográficas dos viajantes, nas mais diversas regiões brasileiras, demonstraram largamente os cuidados e o apreço

Para cada tipo de cultivo, convencional ou orgânico, a incidência de frutos amostrados com a presença do ácaro da leprose e a freqüência de amostras de ácaros positivas

Os dados descritos no presente estudo relacionados aos haplótipos ligados ao grupo de genes da globina β S demonstraram freqüência elevada do genótipo CAR/Ben, seguida