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Diário intensivo - a questão do adolescente em conflito com a lei em contexto

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Diário intensivo - a questão do

adolescente em conflito com a lei

em contexto

Resumo

Este texto apresenta anotações referentes a um único dia de trabalho de campo, especialmente intenso, nas periferias de São Paulo. Neste dia de março de 2009, transitei entre diferentes ambientes relacionados à questão do adolescente autor de ato infracional: duas unidades de internação, uma entidade social, duas escolas públicas, uma casa de família, duas delegacias de polícia e um bar de favela. Adensando a descrição desses ambientes institucionais, familiares, criminais e de sociabilidade, com foco nas relações entre eles, procuro fazer emergir um olhar específico acerca do problema do adolescente em conflito com a lei, seus dispositivos de atendimento e as dinâmicas sociais – extremamente paradoxais – que os condicionam. Ao invés de apresentar uma interpretação autoral do problema, entretanto, trata-se aqui apenas de expor a complexidade empírica em que ela se apresenta, contemporaneamente, descrevendo minuciosamente sua operação cotidiana.

Gabriel de Santis Feltran

Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (DS/UFSCar), pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)

Autor para correspondência:

gabrielfeltran@gmail.com F e lt ra n

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Apresentação

Violência é o maior medo dos paulistanos. O Datafolha, que comemora 25 anos, refez sua primeira pesquisa, sobre os maiores medos dos habitantes de São Paulo. A comparação revela que de 1983 para cá o horror da violência substituiu a alta do custo de vida no topo do ranking das preocupações do paulistano. Em 2008, o principal temor é que jovens da família se envolvam com drogas (Folha de São Paulo, 4 de maio de 2008).

Essa matéria de capa, num jornal de domingo, assinalava ao mesmo tempo o grau de relevância e algumas das dificuldades enfrentadas no estudo contemporâneo da “violência”, em São Paulo. Relevância pois, com base em pesquisa quantitativa, assinalava-se ali a centralidade do tema entre a chamada opinião pública, especificamente na metrópole paulista. Mais do que o custo de vida ou o desemprego, as respostas espontâneas à pesquisa teriam situado a violência em primeiro lugar nas preocupações contemporâneas do paulistano. Entretanto, olhando para os dados com um pouco mais de calma, a forma de enunciar o problema já indica sua inconsistência, pois a inteligibilidade da manchete se funda na naturalização de nexos entre conceitos muito distintos, que pretensamente caracterizariam a “violência”. Tratar-se-ia de uma noção diretamente vinculada às drogas e aos jovens e, simultaneamente, oposta às famílias. Em poucas linhas, ainda, as palavras medo, temor e horror constroem o modo como esses nexos devem ser valorados.

A “violência” seria, então, constitutiva da associação das categorias jovens e drogas, causando horror às famílias, evidentemente construídas a partir de um ideal normativo. A matéria não chega lá, mas o senso comum sobre o tema codifica também, e em qualquer cidade brasileira, os territórios urbanos em que esta violência se funda: as periferias da cidade e, sobretudo, suas favelas. São, portanto, os jovens pobres da periferia seus causadores. São eles que causam horror às boas famílias. O que a matéria coloca em evidência, portanto, é a correlação direta entre o problema da violência e a questão do menor, da delinqüência juvenil. É essa correlação, e a tentativa de compreendê-la para além dos marcos atuais do debate, que estimulou a apresentação do texto que segue.

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Seria desnecessário dizer que, imersa em estereótipos, essa naturalização dos elementos que comporiam a questão da violência, em São Paulo ou em qualquer cidade brasileira, está longe de ser ratificada pelos estudos sobre o tema. Demonstra-se neles, ao contrário, que drogas e violência nem sempre andam juntas: o tráfico e o consumo de drogas nas classes médias, sabidamente elevado, é praticamente isento de relações violentas (GRILLO, 2008); sabe-se também que os jovens são sobretudo as principais vítimas de violência, mas não os principais praticantes de crimes violentos (NEV, 1999); e que são múltiplas, e muitas vezes não polarizadas, as relações entre família, Estado e crime, bem como entre os universos legal e ilegal (TELLES, 2011). Outros trabalhos vêm demonstrando que “crime” e “violência” também precisam ser compreendidos em suas especificidades, na medida em que territórios de periferia urbana, em São Paulo, têm apresentado taxas de redução de violência – sobretudo homicídio – intensas, que no entanto se devem mais a mudanças internas ao “mundo do crime” (FELTRAN, 2010, HIRATA, 2010) do que às políticas de segurança;Além disso, é preciso atentar par os qualificativos da noção de violência (doméstica, política, de gênero, étnica, religiosa etc.), pois boa parte deles não se associa

preferencialmente aos pobres, aos jovens ou às drogas 1.

Esses argumentos que complexificam – e muito – a questão apresentada na matéria, entretanto, não parecem influir diretamente sobre o debate público. As bipolaridades seguem operando nele: ora os jovens das periferias seriam bandidos a serem banidos do convívio social, ora seriam vítimas da tragédia social brasileira, que se repõe persistentemente mesmo em tempos de bonança econômica. Os programas televisivos pedem, portanto, mais repressão; os defensores de direitos humanos denunciam os abusos cotidianos; e as políticas públicas sobre o tema, mediando esses pólos, ajustam-se a cada contexto específico se modificando ano a ano. A síntese entre defesa de direitos e repressão, voltada aos mesmos sujeitos, parece eleger agora a Assistência Social como lócus de aplicação de controle de conduta e punição a adolescentes e jovens inscritos em mercados ilícitos. Seja a punição exemplar, a reforma do caráter ou a ideia vaga de construção da cidadania (que deveria ser um estatuto de partida para pensar o problema, e não sua finalidade), aposta-se que os adolescentes infratores estão no centro do problema que os designa. E que é a partir desse problema formulado que se deve atuar – para fazer defesa de direitos, ou para punir.

1 O que remete o debate aos temas da associação entre crime e pobreza e à

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A seguir, parto de outro pressuposto. Argumento que é preciso refletir sobre como se constrói a questão pública do adolescente autor de infrações, considerando-a uma representação e, portanto, nosso objeto de reflexão. Assim, seguimos os mesmos conselhos que a literatura recomenda para o trato da representação da

violência urbana2. A proposta é que a noção de adolescente autor de

ato infracional, bem como os dispositivos utilizados para atendê-lo,

dispam-se, nesse artigo, de suas funções como mote de luta política, conjunto de operações técnicas ou diagrama de entendimento, e passe a ser tratada como uma representação social, no sentido durkheimiano. Essa noção será, portanto, o objeto sobre o qual a descrição a seguir pretende refletir.

A descrição empírica minuciosa será, a seguir, a aposta para subsidiar essa reflexão. Na primeira parte do artigo, transito entre a porta do CAJo e duas Unidades de Internação (UI). Na segunda, entre um restaurante e duas escolas do bairro. Na terceira, entre uma casa de família numa favela, duas delegacias de polícia e um bar. Tento descrever com minúcia a experiência nesses ambientes. Argumento, assim, que é preciso voltar à descrição para que vislumbremos a complexidade contemporânea da questão e dos dispositivos de atendimento, em seus novos condicionantes institucionais, familiares, políticos e administrativos. Pois essa complexidade não me parece mais caber na arena de debates cristalizados que, há décadas, vem opondo de modo bipolar esquerda e direita, defensores do ECA e menoristas.

Para reconstruir a questão do adolescente infrator mais radicalmente, de modo a desativar temporariamente o jogo de

referências cognitivas a partir dos quais ela vem sendo pensada3, é

2 E que desnaturaliza as relações preconcebidas entre as noções de violência urbana,

e de criminalidade violenta, não para colocá-las em oposição binária, mas para diferenciar os estatutos em que se situam e, então, utilizá-las nas análises de modo mais produtivo. A noção de criminalidade violenta, mais precisa e descritiva, indicaria o conjunto dos atos ilegais e ilícitos nos quais se utiliza da força física de coerção (violência), ou da ameaça de sua utilização. A violência urbana é entendida, diferentemente, como uma representação social, ao mesmo tempo responsiva e fundadora dos debates públicos, e que, portanto, não opera preferencialmente como categoria de análise, ou conceito, mas sobretudo como objeto a estudar. Machado da Silva (1993; 2003; 2004) e Misse (2006b) trabalham esta distinção e advertem sobre os problemas analíticos que sua indiferenciação produz. Sobre a distinção entre atos ilegais e ilícitos, ver Misse (2007). Telles parte desta discussão (entre outras) para avançar um conjunto amplo de análises das relações sociais tecidas o formal e o informal, o lícito e o ilícito, o legal e o ilegal, que caracterizariam as dinâmicas capitalistas recentes (Ver TELLES, 2011 ou TELLES e HIRATA, 2007).

3 Nas pistas do que sugerem teoricamente Deleuze e Guatarri (1996), e

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portanto preciso suspender seus sentidos usuais. Proponho aqui, para seguir nessa direção, não uma outra configuração analítica e normativa do problema, desenhada por mim a partir de minha pesquisa. A proposta aqui é muito menos pretensiosa: sigo o conselho dos bons etnógrafos que, para compreender o que se passa, questionam os modos de construção de suas próprias categorias de entendimento, e apostam, ainda que num primeiro momento, na descrição densa do mundo que os interessa. Ao invés, portanto, de apresentar minhas concepções do problema do adolescente em conflito com a lei, apresento, a seguir, um diário de campo vivido em torno desse problema. Minha esperança é que cada leitor, em face desse material, extraia dele suas próprias consequências analíticas. A ideia, assim, não é a de propor um modo novo de compreender o problema – social, político, teórico e analítico – do adolescente que comete infrações, mas a de problematizar radicalmente os modos usuais de compreensão da dinâmica social em que esses adolescentes vivem.

Até por isso, o diário de campo que apresento, a seguir, não está trabalhado formalmente, nem analiticamente. Trata-se de material narrativo, inteiramente descritivo. A intensidade do que se vive em campo, e a solidão dos momentos de relatar o vivido, são metodologicamente os passos necessários da produção da reflexividade sobre a qual se fundam, na pesquisa social, os juízos analíticos. A tentativa aqui é a de alargar essa reflexividade, expandir um pouco o círculo dessa construção de conhecimento, convidando o leitor a elaborar suas próprias análises a partir das inúmeras cenas descritivas que seguem, encadeadas por minha narrativa de um único dia de trabalho de campo. Esse é o sentido central da exposição desse texto.

Há, entretanto, ao menos mais duas intenções complementares que justificam a apresentação do material abaixo. A primeira é a de explicitar os modos cotidianos a partir dos quais diferentes instâncias e sujeitos da questão do adolescente em conflito com a lei travam suas relações. É a esse conjunto de discursos, atores e lugares de locução que chamo aqui de dispositivo, seguindo o legado foucaultiano. Se as entidades de defesa, famílias, unidades de internação, atendimentos, seus profissionais, sua terminologia e seus modos de atuação são conhecidos de quem lida com esse tema há tempos, as relações contemporâneas entre eles nem sempre têm sido problematizadas. Transitar, como nesse diário, entre a sociabilidade cotidiana nas periferias urbanas, os meninos dali incriminados por serem considerados autores de infrações à lei, suas famílias, amigos e espaços de moradia, bem como as entidades sociais que lidam com

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eles, tem o sentido de colocar essas relações em evidência; nelas, explicitam-se os modos como se formulam as interações cotidianas do atendimento realizado por entidades sociais, equipamentos públicos e programas sociais, que nada mais são do que a formulação das interfaces gerenciais do conflito social e político que se estabelece, hoje, entre uma parcela reduzida dos jovens das periferias urbanas e o Estado. Os sentidos da lei nesse dispositivo aparecem, da mesma forma, em sua operação cotidiana – ou seja, expressando tanto o conflito como sua reposição em termos de gestão.

A segunda intenção complementar dessa narrativa é a de abrir a “caixa preta” da atividade de pesquisa acadêmica, propiciando que ela se problematize entre sujeitos sociais os mais diversos. Explicitar os modos pelos quais constrói-se a perspectiva a partir da qual se fala parece ser uma necessidade premente do momento atual, que ilumine as balizas a partir das quais se desenrola tanto o debate intelectual quanto, e sobretudo, o embate político acerca do conflito social contemporâneo – no qual os adolescentes e jovens das periferias têm aparecido frequentemente.

Manhã

Um dia de março de 2009, 06h15min da manhã. Acordo num seminário de religiosos católicos, num bairro da periferia sul da cidade

de São Paulo4. Quarto dia de campo daquela semana, haveria ao

menos mais sete dias de trabalho antes de voltar para casa. Antes de tomar banho, pensei em escrever mais um pouco sobre o dia anterior. Desisti, tinha muita preguiça. Comecei a ouvir as preces no quarto ao lado; eles rezam em grupo toda manhã, fazem cânticos à noite. Tomei banho em silêncio. Saí para tomar café numa padaria de esquina, sem falar com ninguém. Andei até a avenida central do bairro, ligação importante entre a zona sul e o ABC. Todo dia a mesma padaria, no mesmo horário. É quarta feira, já posso brincar com o garçom sobre o jogo da noite: Ronaldo está no Corinthians. Pão na chapa, toddy gelado, suco de laranja. Quando terminei, eram apenas 07h20min. Voltei para o seminário, e aí sim liguei o computador para relatar um pouco mais sobre o dia anterior, ainda que meio telegraficamente, para transformar em texto depois.

4 Todas as referências a lugares, nomes próprios, organizações e pessoas são

fictícios, ou foram expressamente omitidos. Agradeço anonimamente, entretanto, a todos os que me acompanharam pelas vivências desse dia.

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08h15min. Caminhei meia quadra até o Centro de Atenção ao Jovem (CAJo), meu ponto de gravitação desses dias de investigação. Li o jornal rapidinho, conversei um pouco com a Luciana, da recepção, sobre nossas crianças – ela também tem filhos, um de 4 anos, outro de 9 meses. Falei um pouco com Marcel, um educador social, sobre o Everton, um rapaz de 16 anos que ele atende há um ano, e que conheci recentemente, cuja história pretendo trabalhar com mais calma algum dia. Falei depois com o Junior, psicólogo da entidade, que tinha lido algo da minha tese e se interessava em fazer pós-graduação. Ele me mandaria uma mensagem, para pensarmos do assunto. A essa altura, Laura já assumira a mesa da recepção, e me contava que não tinha ido à faculdade na noite anterior – a chuva tinha interrompido a avenida de acesso. Perguntei onde ela estudava, faz Rádio e TV na Belas Artes, faculdade de elite de São Paulo. Conversamos sobre os contrastes da cidade – o curso é num bairro nobre, custa R$ 1.200,00/mês, ela é bolsista do Prouni. Há bolsistas de empresas também. Disse não ter vergonha de dizer que é bolsista, conversa com todo mundo na sua sala. Ouve histórias sobre viagens à Europa e volta de ônibus para sua casa na zona sul, à noite. Trabalha no dia seguinte pela manhã. Silas chegou em seguida, com um cavaquinho, e o assunto mudou para o Samba no Beco, que estava rolando todo primeiro sábado do mês, numa favela próxima dali. Laura também faz parte do grupo. Cabeça feita a menina, admirável. Vi também a Rochelle, recepcionista de outro núcleo do CAJo, em bairro vizinho. Eu a conheço há anos e acompanho sua história. Acaba de ter seu primeiro filho, vai sair da casa dos pais. Ela disse esperar uma visita ali, mas eu sabia que seria difícil, naqueles dias.

Estava com frio nos pés, saí da sede do CAJo para tomar um sol. Lá fora, um menino (Maicon) fumava um cigarro e aguardava o Jorge, outro educador social da instituição, que o iria levar – com um grupo de adolescentes – à Junta Militar para alistamento. Maicon, 17 anos, dizia estar disposto a se alistar, mas Jorge me disse, depois, que na hora de preencher a ficha todos marcaram que não tinham interesse. Maicon já tem um filho, de 2 anos, que mora com a mãe no Recife. Ele chegou a viver lá por um ano (levaram-no para lá, para ver se parava de “aprontar”, mas a tentativa durou pouco. A avó da criança também está lá. Maicon voltou; não vive com a mãe do seu filho porque não quer: a família dela é que não permite. “Já aprontei muito depois que ele nasceu”, ele explica, resignado. No último sábado viu o menino, a família dela o trouxe até São Paulo. Eles também têm família aqui. Já voltou para lá outras duas vezes, seu pai, o avô, o levou. Agora trabalha numa “mecânica diesel”, registrado, está bem ali. Tem ensino médio e cursos de mecânica. Está

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preocupado porque faltou duas vezes ao trabalho em seguida, para se alistar, embora na última vez tenha levado uma justificativa por escrito, elaborada pelo CAJo.

Está “assinando” Liberdade Assistida (LA) até o final do ano. “É bem articulado esse moleque, pensei... só 17 anos e tanta história”. Um amigo dele passou por nós; conversaram sobre a namorada nova, uma branquinha, há quatro meses está com ela. Decidiu caminhar com esse amigo para mais longe, para fumar outro cigarro, falar com mais privacidade. Entrei novamente no CAJo. Joaquim, o responsável legal da entidade, diretor, chegava para trabalhar. Pedi que ele assinasse minha carteirinha de Educador Social Voluntário, que tinham feito para mim no dia anterior. Esse documento formalizava meu vínculo com a entidade, e me permitiria acesso às Unidades de Internação para adolescentes, acompanhando os educadores contratados.

9h. Chegou ao portão a Rita, irmã de uma funcionária antiga do CAJo, que por ter ficado desempregada recentemente, beirando os 45 anos, começou a fazer bicos como motorista. Eu e Lourdes, outra educadora social, entramos no carro e saímos para a primeira visita do dia. No caminho, conversamos tranquilamente sobre os casos a visitar. Lourdes começou contando do Wesley, depois do Camilo e, por último, do Samy. Mas a ordem das visitas era diferente: primeiro iríamos para a unidade em que estavam internados Camilo e Samy, depois do almoço a do Wesley. Vi pendurado no retrovisor interno do Gol branco um terço de plástico, cor-de-rosa, e o reconheci. Ver o terço nos fez relembrar, ainda no carro, as histórias de outro dia de trabalho de campo. Quem havia presenteado Rita a filha de um empresário, dono de uma transportadora no Rio Grande do Sul, que se tornara noia. Era uma mulher de quase 30 anos, gaúcha, internada numa clínica de recuperação para dependentes químicos em um município da grande São Paulo. Havíamos visitado essa clínica alguns meses antes, também em trabalho do CAJo; a história era fantástica – a menina virou hippie na adolescência, viajou o Brasil inteiro de carona, atrás de “chapação”. Disse ter ido cada vez mais fundo, até chegar ao ponto de injetar cachaça na veia. Antes disso, disse ter cheirado “um caminhão inteiro” que o pai tinha vendido. Depois disso, passou oito meses na crackolândia, na região da Luz, centro de São Paulo. Internada, numa clínica muitíssimo precária, vivia só de doações (que ali se chamam “providência”). Converteu-se então à atividade religiosa – católica, embora falasse de Jesus o tempo todo, talvez mais como se fosse pentecostal. Lembramos, no carro, juntos, que a menina só falava de Jesus: “um vício substituiu outro”, foi o

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comentário síntese. Lembro ainda de ela me mostrar uma foto da filha, loirinha, uns cinco anos; e de nos contar que já não a via há dois. Lembro também dela se ajoelhar em frente a uma imagem de santo – um dos quartos da casa/clínica era uma capela – e de pedir para que todos entrássemos ali, e nos ajoelhássemos também. Eu não o fiz, fiquei em pé na porta; os demais a seguiram, e rezaram juntos. Alteridade. Na saída, lembro-me ainda de a ver pegar um saco de papel e tirar dele dois terços cor-de-rosa, dar um para cada um de nós. As memórias são parte do dia. Refazem a narrativa. Não me lembro onde deixei o meu. Mas voltamos à realidade: Lourdes recomeçou a contar os casos que visitaríamos, mais ou menos nos seguintes termos: 1. Camilo, um menino de 16-17 anos, superprotegido. O pai tem uma pequena empresa de alarmes residenciais e comerciais no bairro do CAJo, “é um playboyzinho do bairro”. “Sem malícia, usado pela molecada, manipula a mãe para conseguir as coisas”. Ela me diz que Camilo não foi para o crime por necessidade material mas por molecagem, seduzido pela aventura, a adrenalina, para fazer uma moral. A mãe é hiperpresente, liga para a unidade de internação todos os dias, preocupadíssima com detalhes da vida dele. O menino teve uma unha encravada (não é modo de dizer, foi isso mesmo, confirmado na visita) e a mãe ligava todos os dias para saber da recuperação, falava com a médica responsável pela unidade para ter notícia. Tia, tio, todo mundo é muito preocupado com ele, que é irmão mais velho de duas meninas. “Imaturo”, “infantil”. Boletim de Ocorrência (BO): roubo de carro.

2. Samy, todo o oposto, exceto a idade. Viveu muito tempo em situação de rua; o pai não existe, a mãe é alcoólatra. Vivia no centro da cidade, embora a mãe fosse de uma favela da zona sul. “Muita cola”, “muita droga” etc. Não recebeu nenhuma visita da mãe em sete meses internado. Diziam que a mãe o espancava muito, esse teria sido o detonador de sua ida para a rua. Os vizinhos dizem que ela sai cedo para “manguaçar” e tranca os dois filhos pequenos (que Samy nem conhece) no barraco. A situação vem sendo acompanhada pelo Conselho Tutelar da região em que vive. Segundo Lourdes, aliás, a situação tem sido muito mal acompanhada, por uma conselheira principiante e descontextualizada. O menino teria problema de depressão profunda, teria também outros problemas psiquiátricos [faz sinal de doidinho, com a mão girando ao lado da cabeça]. Toma remédios tarja preta, e toda quinta-feira passa no psicólogo da unidade. BO: pequenos roubos enquanto vivia na rua.

3. Wesley, irmão mais velho de sete filhos, mora numa favela de Santo André. A educadora me diz que ele foi pego logo no início

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do período em que começou a infracionar, tem só 14 anos. Vai cumprir um ano de internação em abril. A mãe é presente, todos gostam dela; ela parece ser pessoa boa de conversar. Lourdes diz que vai visitá-la na quinta. Segundo a educadora, o problema que se instala na família é que o olhar está demasiadamente voltado para esse menino, e os outros mais novos já começam a também sinalizar entrada no crime. Lembrei da Maria [uma de minhas interlocutoras de pesquisa, que teve dois dos três filhos assassinados e o terceiro preso, e disse que isso, dos irmãos seguirem o mais velho quando ele começa a “dar trabalho” e ter muita atenção, é comum]. BO: roubo de loja no centro da cidade. Há uma particularidade nesse caso: a própria vítima, a dona da loja que ele roubou, criou um vínculo de relação com o menino; interessou-se pelo percurso dele, foi atrás da família, doou coisas para ele e para os irmãos, visitou a favela, conversou com os educadores etc. Nunca ninguém tinha visto isso. Cogitou-se, por alto, que ela tinha alguma história parecida na família.

Conversando sobre as histórias a visitar, não reparei no caminho que seguíamos, sempre pela zona sul, mas justamente no ponto em que se pode tomar o rumo do ABC. A Rita sabia o caminho, não me preocupei com ele, estava perdido como sempre. Sou um errador de caminhos contumaz. A Unidade de Internação visitada é uma unidade-modelo da Fundação CASA, inaugurada em 2008. Tudo era concreto novo e cobertura de poliuretano, grama cortada e tinta amarela. Tudo era jardim limpinho, prédio reluzindo. Os primeiros atendidos chegaram em setembro do ano passado [2008]. Havia ali, na verdade duas unidades, uma ao lado da outra, a primeira para primários e a outra para reincidentes. Não há reincidentes graves e gravíssimos ali. “Ah, as classificações...”. O entorno tem favelas dispersas, a unidade compõe a paisagem, a produz. Só então lembrei-me daquela região, que visitara com pesquisadores amigos algumas vezes, anos antes. A urbanização era diferente, sem a UI. E, de todo modo, parece mais recente que a do anel consolidado das periferias paulistanas: há ainda, por ali, muitas áreas livres, e poeira vermelha nas beiradas das ruas asfaltadas. A UI fica no alto, é vista por todo o bairro, onde quer que se esteja. Ao seu lado, há um campinho de futebol, onde meninos de 10 ou 12 anos jogam bola com coletes azuis e vermelhos, de escolinha. Déjà vu, a impressão exata era a de um bairro de Ribeirão Preto, onde fiz pesquisa intensa por uma semana, em 2007. Ali avistávamos um presídio feminino, aqui uma Unidade de Internação, “periferia é periferia...”, diriam os Racionais. A mesma gramática visual, fiquei pensando. Os moleques jogam bola no campinho, do lado da favela e da cadeia. Espera-se que estejam do outro lado do muro, onde quer que estejam.

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Preparação para entrar: deixo minhas coisas com a Rita, no carro. Não tinha levado máquina fotográfica, mas comentamos que eu poderia ter fotografado, por fora. Não levo nada comigo além de documentos (a carteirinha de educador social voluntário e o RG), uma caneta e uma folha de papel dobrada em quatro, no bolso, para a necessidade de alguma anotação. Lourdes nos apresenta, eu sou do CAJo também, sinto-me confortável tendo um estatuto de educador. Ela pergunta por Pedro, na portaria, enquanto vemos os vigilantes da parte de fora da unidade, fardados, tomando sol do lado externo da muralha. O frio da manhã se dissipava, tirei minha blusa. “O Pedro tá lá dentro”, o guarda diz. Não conseguimos vê-lo, por detrás da chapa de ferro. Ele pega os nossos documentos por um pequeno retângulo. Pergunta duas vezes de onde estamos vindo, onde trabalhamos. CA-Jo.

Dez minutos e o sol parecia agora pesado, calor enquanto aguardávamos do lado de fora. Ninguém nos manda entrar, funcionários entram e saem da enorme porta de ferro. Uma mulher de avental decide, enfim, nos chamar. Aguardamos sentados mais uns cinco minutos, agora num pátio pequeno, cercado de grades, sempre à vista dos seguranças vestidos de preto. Para entrar há uma cancela com duas grades, como uma gaiola. Uma técnica com sotaque forte – pernambucana, ou cearense – nos recebe. Já conhecia Lourdes, diz que logo vem nos atender. Nesse meio tempo aparece um homem alto, grisalho, expressão de gente boa, que vem comentar com Lourdes sobre o caso do Samy. Claramente, ele se interessa pelo rapaz, mobiliza-se por ele. Diz da visita que fez a sua casa, dos irmãos trancados, da situação “muito difícil”, dos encaminhamentos possíveis, daquilo que ele tem tentado. É um professor da Fundação CASA, dou-me conta. Lourdes responde burocraticamente, não permite que ele se empolgue; não traz informações novas, quem acompanha o caso mais de perto é outro educador do CAJo. O professor insiste: conta que Samy escreve bem, que mesmo com todo o sofrimento que a vida lhe impôs, é um rapaz inteligente. Percebo novamente seu interesse profundo nessa história. Mas a conversa não ultrapassa as raias do atendimento técnico, Lourdes se porta fazendo-o entender que são dois profissionais discutindo um caso. Como que desaprova a empolgação do técnico. Eu fico observando, como se conhecesse um pouco da história pelo briefing do carro, como desejando que eles conversassem mais – não para me darem material de pesquisa, mas para que decidissem (esperança vã) tirar logo aquele menino dali. Era essa minha vontade.

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Uma senhora de avental branco, comprido, como de médicos em hospitais, chama-nos finalmente para entrarmos. Passamos então por uma revista pró-forma, o cara pergunta se tenho celular, digo que não e ele mal encosta em mim. Mais uma grade dupla ultrapassada, vigiada por outros dois seguranças uniformizados de preto, e entramos no convívio. Corredor com salas de aula dos dois lados, todos os 44 internos em sala. Algumas com 5 ou 6 alunos, duas com uns 15. Primeira cena que realmente me impressionou, no dia: ver todos os meninos vestindo um uniforme bege, de moleton, como um grande pijama, e chinelos de dedo. Tinha me esquecido dessas unidades, são prisões. Cabeça raspada, mão para trás, cabeça baixa, “com licença senhor”, todos iguais. Cena de reformatório, de filme, todo um universo padronizado, pardo, na unidade-modelo. É disso que se trata. Vigilantes no final do corredor, uns 3 ou 4, sem uniforme – seriam bedéis? Algo assim. Muita ordem e asseio, lembrei dessa palavra da época em que estudei numa escola pública, entre 1983 e 84, na qual tocava o hino nacional, e rezava-se o pai-nosso antes de hastear a bandeira, precedendo o momento em que a aula iria começar. Época do autoritarismo. Passou? Ambiente pré-moldado de concreto, paredes de tijolões pintados de branco, mais concreto nas vigas e grades amarelas. Os bedéis sabem que estamos ali para falar com uns rapazes, já se adiantam e os vão chamar, tirá-los da aula.

Os meninos saem, quase ao mesmo tempo. Outro momento de impressão forte: Camilo é uma criança, daqueles meninos magrelos, branquinhos, muito criança mesmo, e tenta deixar crescer um bigodinho muito ralo, que mal começa a brotar. Samy sai logo depois de sua sala de aula; é bem diferente: um rapaz de 1,65m, muito forte, negro, rosto sério, lembrando muito, para mim, um rapaz de Sapopemba que conheci adolescente e cujo percurso acompanho desde 2005. Ambos nos cumprimentam formalmente, embora já conhecessem a Lourdes. Andamos até o fim do corredor – eu, Lourdes, a educadora com sotaque nordestino e os meninos, até entrarmos todos na mesma sala de atendimento.

Percebi, só nessa hora, que a conversa seria com os dois meninos ao mesmo tempo; achei estranho. Ainda mais, que a conversa de Lourdes com eles seria acompanhada pela técnica da unidade. Estava destruída, portanto, qualquer possibilidade de criação de vínculos de confiança entre Lourdes e os meninos. Lourdes sabia disso. O CAJo havia sido muito crítico de medidas tomadas pela Fundação CASA, historicamente. Penso que, por isso, embora os técnicos do CAJo sejam bem recebidos, há recomendações para não deixá-los sozinhos com os adolescentes nas UIs em que eles não são

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conhecidos, evitar conversas privadas. Um atendimento de todos juntos evita problemas para a Fundação, pensei comigo. Claro, claro, um evento como esse é situação típica para enunciação de discursos prontos, estereotipados, teatrais. Foi o que aconteceu.

Camilo sempre falou bastante, durante a conversa. Tentou falar gírias forçadamente, e fazer pose de mau, enfim, na concepção dele, mimetizar um ladrão. Mas ele é tão criança que soa falso; o moleque não impõe respeito. Lourdes tem um roteiro de perguntas que recita mecanicamente, fala de cursos que seriam oferecidos lá fora, caso ele se interessasse pelo atendimento de Liberdade Assistida do CAJo, ao sair da internação. Pergunta do que ele gosta, tentariam achar um curso adequado. Ele fala de astronomia. Faz-se um silêncio de dois segundos. A conversa vai seguindo, até que se diga claramente: astronomia não tem. Mas há alternativas. Chega-se em eletricista. O menino segue articulando um discurso típico, de não voltar mais para o crime, de valorizar a mãe, de agradecer pelas visitas, de trabalhar, buscar seus objetivos etc. etc. Aquilo me desanima, já ouvi tantas vezes isso! A conversa seguia: agora Lourdes dava uma liçãozinha de moral, valorizando a mãe dele. Ela reconhece quando ele diz alguma coisa mais relevante, diferente do usual, embora eu ache tudo clichê. Naquele momento, eu tomava distância do diálogo para ver os dois meninos, um ao lado do outro, e o abismo entre eles. Um playboyzinho falando sem parar, que ia pedir uma moto para a mamãe, e um menino que tinha morado a vida toda na rua, cuja mãe não visitou nenhuma vez, quieto. Ele devia sentir raiva, eu pensava.

O fato de Camilo querer uma moto foi tema entre os educadores. O menino está fazendo a cabeça da mãe para que ela lhe dê uma, assim que sair da internação. A mãe concordou; acha que se não der, ele vai precisar roubar. Lourdes fez outro raciocínio: tentou persuadir a mãe, na última visita domiciliar, a não dar a moto e a pensar que, caso desse, iria piorar a situação do filho; porque os amigos iriam colar nele para usar a moto, se aproveitar dele, fazer crimes com a moto, tomar multas etc. Sem contar que o menino sequer tem idade para ter carta, poderia ser pego novamente pela polícia, já passou por internação, enfim... Lourdes concluiu, em conversa com a mãe, que com a moto o rapaz estaria mais próximo da vida do crime; porque é justamente nesse circuito que se valoriza mais o fato de ter uma moto. E mais, que o menino poderia se sentir presenteado, recompensando por dar trabalho. Lourdes sabe que esses objetos estimulam um ciclo – eu apronto, pressiono minha mãe e ganho o que quero – que só se estrutura a partir do aprontar. Vivendo

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também ali na zona sul, não muito distante das favelas, e trabalhando há mais de dez anos com esses moleques, Lourdes sabia o que dizia. Eu tinha certeza disso.

Samy não falava nada. Permanecia de cabeça baixa, situação muito constrangedora. Soltava monossílabos quando perguntado. Logo no começo da conversa com ele, antes de perguntar qualquer coisa, Lourdes havia dito o que ele estava interessado em saber – para onde ele iria, saindo dali. A partir daí, à minha vista, ele não queria prosseguir, esperava apenas o momento em que iríamos embora. “Samy, nós estamos vendo para você, provavelmente, quando você sair (o menino levanta o rosto, interessado) uma estadia na Casa Chico Xavier (um abrigo, provavelmente kardecista, pelo nome)”. A notícia estava dada: o rapaz já entendera que não voltaria para a casa da sua família, da sua mãe, o que seria sua vontade. Sabendo de seu destino imediato, sua expressão desmanchou. A cabeça abaixou-se, entre decepcionada e resignada. Não disse mais nada, só voltou a olhar para baixo. Lourdes também se abalou com o caso e a presença do menino, tentou uma piadinha para descontrair: “olha para mim, Samy, eu estou te dizendo que a gente vai te acompanhar, que você vai sair daqui, vamos estar juntos de você, te dar uma força... olha pra mim” – ele olha, ela dá um sorriso: “você não vai sorrir?” Ele pensa um segundo, a boca chega a preparar o sorriso mas, mesmo sem intimidar ninguém, não vê motivo para isso. Segue sério, e abaixa a cabeça.

Esse rapaz não teve visita nenhuma, está desde o começo da unidade internado, há sete meses. Passa pelo psicólogo todas as quintas, toma dois remédios psiquiátricos dos quais não se lembra o nome. Disse que desde que mudou a medicação, sente-se melhor. Tem cara de quem ouve educadores e técnicos – da rua, de albergues, abrigos, igrejas, judiciário, Fundação CASA, CAJo e etc. falarem desde que nasceu. Não aguenta mais, está na cara. Esse tipo de violência institucional, pesada, que vi ali recair sobre uma pessoa, deixou-me marcado. E eu estava lá aquele dia. E todos os dias é assim. Evidentemente, naquela situação, não havia como acessar minimamente alguma interação com os meninos que merecesse esse nome. Era um teatro, de papéis muito marcados, desempenhado por todos. Eu disse, ao fim, que era importante um trabalho consorciado entre a técnica da unidade e os do CAJo, todos concordaram. Participei do teatro. Acabou a conversa, que ao todo teve uns quinze minutos. Os meninos voltaram para as salas de aula, cabeças baixas, pedindo licença aos senhores presentes.

Antes de sair, Lourdes fez comentários gerais com a Bernadete, avaliando que não tinha sido bom fazer a conversa com os

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dois juntos. Que o contraste era demais, um sem família e outro com família demais, um com muita estrutura para recebê-lo, outro nada. Bernadete concordou. Passamos novamente pelas grades, todas, e saímos da Unidade. Entramos rapidamente na vizinha, dos reincidentes, onde ficava a sede administrativa. Lá estava o cara chamado Pedro, que Lourdes buscara no início. Pele escura e cabelos espetados, camisa, costeletas bem feitas, estilo moderno, lá pelos seus 45 anos. Lourdes queria discutir o caso do Camilo com ele – Pedro concorda que ele tem que ir embora logo, para não ficar escolado, porque ele está “andando com uns molequinhos mais barra pesada”, e ele vê que ele não tem malícia para dar conta deles. Melhor ir para a rua logo, porque esse trabalho de amadurecimento não vai se dar dentro da unidade. A frase, nitidamente de alguém experiente, era o cúmulo do paradoxo, para quem acredita na “reintegração”. Ir para a rua logo, para não ficar “escolado” no crime, é a constatação da finalidade da internação, na perspectiva de quem a conhece por dentro. Fantástico como elemento de reflexão.

Lourdes entrega para Pedro, então, o relatório técnico do CAJo sobre o caso do Camilo, para ser anexado ao seu processo. Segundo ela, o juiz sempre leva esses relatórios técnicos em consideração. Todos concordam com o que ela diz sobre o rapaz. Em seguida, a técnica pergunta por alguém, uma secretária, que guardaria na sua gaveta as cartas e desenhos do Samy, porque ela poderia levá-los à casa dele, no bairro do CAJo. Já havia esquecido disso, na última visita. Ao saber disso, fiquei com o coração ainda mais apertado, esse menino sofre demais. A secretária não estava, as cartas permaneceriam na gaveta mais um mês. Saí de lá pondo na cabeça que tentaria eu mesmo agilizar a entrega dessas cartas, no dia seguinte, no CAJo; poderia pedir, por telefone, que enviassem o endereço da casa do menino para essa secretária. [Não fiz isso, depois]. Lourdes comentou comigo que também saiu abalada com o rosto do menino, a recusa em sorrir. É um trabalho difícil, o dos técnicos.

Pedro estava de saída para uma audiência, de um caso que “deu ETJ”. O executivo, o judiciário. A sigla significa que o juiz, ao analisar o relatório conclusivo, pediu que a Equipe Técnica do Judiciário (assistentes sociais, psicólogos, médicos, psiquiatras etc) revisasse o processo, e fizesse conversas com a equipe técnica da Fundação Casa. No caso de meninos acompanhados pelo CAJo, se “desse ETJ” a equipe técnica do próprio CAJo poderia estar presente na audiência. Tudo fazia sentido, para mim – o técnico, o jurídico, o político – não são esferas autônomas – elas estão em relação. Era hora de ir embora. Pegamos nossos documentos pela frestinha apropriada

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da guarita blindada, e saímos. Rita espantou-se com a rapidez da nossa volta, está acostumada a visitas que demoram mais. Acho que a visita toda levou, no máximo, uma hora e pouco.

11h15min. Resolvemos seguir direto para outra Unidade da Fundação Casa, relativamente próxima dali, e deixar o almoço para o final das visitas. Melhor, já que estávamos adiantados no roteiro. Meio complicado para chegar, nos perdemos um pouco. Ao pararmos o carro, a Rita se lembrou que, da última vez que esteve ali, havia uma roda de rapazes acendendo um cigarro de maconha, e riu sozinha. Foi contando, enquanto ria, que havia dois papagaios por perto, na casa ao lado. E que enquanto ela esperava, foi vendo os papagaios se animarem com a brisa, e começarem a falar sem parar. Rimos todos, brincando com isso durante um tempo. Achei que ríamos demais, mais do que faríamos em outra situação. Pensei que rir era um modo de enfrentar essas situações, esses lugares, esses desencontros.

A unidade a visitar já era, por fora, muito distinta da anterior. Mais integrada à paisagem, não parecia um presídio. Ficava numa rua residencial, havia moradia do outro lado da rua, por fora era apenas um muro com portão fechado, de ferro, entre árvores. Lourdes conta que houve uma fuga nessa unidade há alguns meses, os moleques derrubaram o portão e saíram pela frente. Chegamos à porta, e esperamos menos que da outra vez. Repetimos três vezes CA-Jo para o vigilante, inclusive depois de entrar. Ele, evidentemente, não sabia do que se tratava. Uma revista leve, leve, nem notou a caneta no meu bolso da calça. Preocuparam-se com celular, nada mais. Ou não se preocupam, em geral, fiquei pensando. Passado o portão, há sempre os vigilantes e reaparece a cara de cadeia do lugar. Mas aqui, superada essa primeira etapa da visita, aparece uma entidade social, com cara de creche de periferia – tudo organizado de modo simples e prático, aquela tinta brilhante até a metade das paredes, que permite lavá-las, os cartazes espalhados pelas paredes, os desenhos dos meninos nos muros, os folhetos de projetos de ONGs e igrejas por todos os lados, as mulheres – tias, cozinheiras, senhorinhas, assistentes sociais, auxiliares de enfermagem etc. – circulando e sorrindo, e brincando umas com as outras. Chamam esse modelo de unidade de internato, é muito distinto dos outros.

Lourdes nitidamente gosta mais desse estilo arquitetônico e de atendimento, me diz que ali é uma boa unidade. Eu concordo, pelo que vejo. Há vigilantes aqui e ali, mas de fato os meninos estão muito mais livres. Vestem-se com as roupas deles, os cabelos cortados como querem. Camisas de time, de grupos de rap, ganhadas de políticos, eles andam sozinhos para todos os lados. Reaparece, entre dois

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funcionários do meu lado, o assunto da rebelião e da fuga recente, foi a primeira da história da Unidade. Segundo Lourdes, foi porque vieram uns meninos mais barra pesada, que tinham até envolvimento com o PCC, reincidentes, que “tocaram o terror”.

A fuga repercutiu no debate interno dos técnicos a respeito da impossibilidade de juntar primários, Reincidentes Graves e Gravíssimos (RG e RGG). Diziam que, por mais que, no discurso seja melhor juntá-los, na prática “eles” desvirtuam as unidades “mais livres”. Ouvi e acatei, com a cabeça. O cenário em que estávamos era muito acolhedor para uma UI, especialmente se comparado a outras. Sentamo-nos à vontade do lado de um bebedouro. Uma técnica (assistente social) chamada Carol passou sorrindo, e nos cumprimentou com beijinhos. Disse que acharia uma sala para falarmos. De avental branco, andou para lá e para cá, arrastou umas cadeiras, achou uma salinha, fechou a porta e começou a conversa com a Lourdes. A conversa seria de confiança, então eu fui apresentado, novamente, como alguém do CAJo que estava acompanhando as visitas. Carol falou o que sentia, que Wesley regrediu muito. Que era ótimo que falássemos com ele agora. Lourdes já concordou, de pronto, e contou que o fato de ele estar revoltado se deve, possivelmente, à última intervenção de outra técnica da unidade, Joana, que havia dito ao rapaz: “olhando no seu olho eu vejo que você não está pronto para sair”.

O menino teria ficado revoltado com isso. A mãe se revoltara, igualmente. A revolta, tão conhecida da bibliografia especializada. Essa seria a causa da regressão de Wesley, Lourdes diz com confiança. Carol já se coloca imediatamente em concordância – “imagina eu, como fiquei!?”. Ambas parecem já ter certa intimidade, Lourdes demonstra conhecer as disputas internas entre os funcionários da entidade, e Carol se alia a ela. Comentam que ainda bem que Joana está de férias. A visita foi marcada nessa data estrategicamente, sabendo que Lourdes teria terreno mais livre para trabalhar com Wesley sem a presença de Joana na Unidade. O cenário de confiança entre técnicos da Unidade de Internação e do CAJo foi, portanto, inverso ao do caso anterior.

A conversa prossegue. Carol indica os motivos pelos quais considera que Wesley anda regredindo – ele teria comentado com outros moleques que ela (Carol) gostava dele, e por isso o ajudaria a subir o conclusivo (faria o relatório conclusivo da medida socioeducativa ser encaminhado ao judiciário, solicitando sua liberação). Joana, desafeto de Carol, teria ouvido Wesley contar essa história, ou ficara sabendo por alguém, e teria vindo tirar satisfação

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com Carol. Outros meninos, igualmente, sentiram-se prejudicados: consideraram que deveriam, também, ter o mesmo privilégio. O clima de favorecimento de um menino sobre os outros, mediado pela conduta de Carol, teria gerado esse impasse. Carol imediatamente, então, chamou Wesley para dar-lhe uma bronca, falar para que ele ficasse quieto, que assim ela não o poderia ajudar. Ele reagiu, como manda o proceder, querendo saber quem tinha contado para a Joana o que ele próprio havia comentado. Para ele, era isso que importava – quem caguetou?

Carol não sabia (tinha recebido a história pela Joana) e, mesmo que soubesse, não poderia dizer. Ainda assim, Wesley resolveu tomar providências para recuperar-se no episódio, e acusou Junior, um menino mais fraco que ele, de tê-lo delatado; Junior havia sido atendido por Carol naqueles dias, era um suspeito. Junior teria “atrasado a dele”. Carol comenta, enquanto narra a controvérsia, que Junior “é frágil, meio inseguro...” mas que está no convívio e que, ameaçado, veio falar com ela tremendo, literalmente. Wesley poderia fazer mal para ele, tem tamanho e disposição para tanto.

Lourdes só registrou o que se dizia, guardou munição, e preparou-se para a conversa com o menino. Eu registrei todo o movimento também – aquilo tudo me interessou: o modo como a lógica dos meninos impregnava a ação dos técnicos, como as fofocas circulavam, as relações entre os meninos e as técnicas da unidade, as relações entre técnicos da unidade e de fora (CAJo), enfim, também eu estava mergulhado no universo daquelas relações intensas, internas. É diferente fazer pesquisa em instituição total; todos são obrigados a conviver todo dia, a cada dia essas relações devem ser atualizadas. Fora dessas instituições, pode-se passar semanas sem ver alguém, ali não. O ritmo de atualização das relações interpessoais, fora das unidades, é mais espaçado, mais cruzado por outras vivências, outras pessoas. É muito intenso ali dentro.

Registrei também, nesse momento, o poder que os relatórios dos técnicos das unidades têm na definição do tempo de internação, na medida em que são eles que pautam a decisão do juiz. Ter a pauta é ter a política. Os técnicos experientes sabem bem como preparar esses documentos, os termos a utilizar, os modos de justificar os progressos, as formas de encaminhar a decisão judicial esperada. Uma outra técnica, de função semelhante, já me havia dito antes que manipulava deliberadamente os relatórios para amenizar coisas que o juiz normalmente consideraria agravantes, omitindo fatores considerados importantes, para manter ou evitar a internação. Nesse caso, sabia-se

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tanto da ausência do pai, quanto do fato da mãe ter tentado suicídio recentemente. Não se relatou assim.

A disputa por essa tentativa de conquistar autonomia técnica do atendimento frente ao judiciário tem justificativas. O técnico está próximo do adolescente (esse o argumento de validação do discurso) e sabe o que seria mais adequado para ele. Altíssima discricionaridade da primeira burocracia, que é a linha de frente da guerra da assistência social contra o crime. Exposta a situação, mudamos finalmente de sala, para receber Wesley. Enquanto aguardávamos, uma dirigente da unidade entrou e perguntou para Lourdes a respeito do Eder, um rapaz do bairro do CAJo que já havia estado internado ali. Pedia notícias como se pede de um aluno antigo, estava chateada pelo fato de ele ter sido recapturado. Eu conhecia o Eder, tinha encontrado com ele algumas vezes em seu bairro, estive com sua família uma vez. Escrevi várias notas de campo sobre minhas impressões a respeito dele. Eder havia ficado um ano internado naquela unidade, criou laços ali. Lourdes e a dirigente comentaram sobre o problema que Eder tinha no pênis – ele tem 17 anos, gonorréia crônica e também HPV em estágio avançado; Lourdes contou que a enfermeira disse que nunca tinha visto um caso tão grave, que eram feridas de puro pus, que o pênis estava para cair. Comentaram a possibilidade de cirurgia. Fiquei imaginando o quão grave seria isso, na vida de qualquer homem. Lembrava o quanto Eder tinha me impressionado pela fluência, esperteza, quando o conheci.

Nisso, entrou na sala em que estávamos, de sopetão, um menino grande, corpulento, meio gordo, muito novinho, era o Wesley. Mais uma vez, a imagem da narrativa sobre o menino não correspondia à imagem que se apresentava ao vivo. O rapaz entrara de forma atabalhoada, atravessando a conversa de Lourdes com a técnica, sem pedir licença (coisa que se deve fazer o tempo todo na maioria das unidades de internação), e já chegou falando alto, espaçoso. Carol, a dirigente e Lourdes protestaram imediatamente; o rapaz ficou sem jeito. Carol mandou ele nos cumprimentar direito, e ele veio até nós. Lourdes nem se levantou para cumprimentá-lo, e fiz o mesmo, justamente para me alinhar às técnicas, à sua atitude disciplinadora. Elas saíram em seguida; ficamos Lourdes, eu e ele. O menino se sentou numa cadeira com pés de ferro, na nossa frente e começou a ouvir Lourdes, que o conhecia há tempos, dar-lhe uma bronca.

Enquanto ela falava, ele repetia: tô suave, senhora, tô suave!, o que a enervava mais. “Escuta, agora você vai ouvir; primeira coisa: pára de falar tô suave. Se está tão suave é que está querendo ficar aqui mais tempo, não é?” - e segue tentando frear o menino. Ele quer falar

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algo, mas ela não deixa, continua sua bronca. Sem exagero, ela deve ter falado sem parar durante 20 minutos, muito tempo mesmo. Só lição de moral, contrastando o tempo todo o comportamento esperado numa unidade de internação, para que alguém saia logo dali, e o comportamento que Wesley vinha apresentando. Ela explicava, em tom de bronca, que aquilo deveria ser, para ele, a reta final do período de internação (ele já estava há mais de um ano ali). Mas que o [relatório] conclusivo poderia voltar, caso ele continuasse daquele jeito. Que ele já tinha atrasado a vida dele com a tentativa de fuga, o que tinha prejudicado muito seu processo. Por isso mesmo, se vacilasse o relatório conclusivo poderia ser negado.

Na conversa, Lourdes demonstra conhecer todas as histórias que tinham vindo à tona, mas não falava delas diretamente; era um discurso para bom entendedor. E o rapaz demonstrou, com a cabeça, saber do que ela estava falando. Lourdes enumera os vacilos: vacilou ao abrir a boca sobre o apoio que a Carol podia dar a ele; vacilou ao não admitir isso e ainda querer achar um culpado; vacilou depois, ao acusar o Junior de delação, sem prova; vacilou ainda porque levantou a voz para a Carol; e vacilou por entrar na sala daquele jeito. Lourdes avisou para ele, em tom irônico, que ele não tinha amigos ali. Que prestasse atenção. Que na hora que ele devia ser macho, e negar um convite para ir fazer um crime, ele não bancava. Mas na hora de acusar ou bater em outra pessoa mais fraca, e sem prova, ele queria ser macho. Falou que ele estava morrendo pela boca. Uma senhora bronca.

O rapaz tentou argumentar no começo, interromper Lourdes, mas ela não deixou. Depois ele desistiu, foi murchando, murchando, murchando, parecia ouvir e sacar que seu comportamento estava atrasando mais sua vida. Num certo momento, resolveu reclamar: “tudo é eu, tudo é eu”, disse. Lourdes pegou o mote e disse – então, vamos entender por que é tudo você? “Porque está falando muito, está na boca de todo mundo, e quem está quieto aí, aqueles de quem ninguém fala deles, já saíram”. Deu um exemplo de um menino que tinha saído no mesmo dia, porque tinha ficado na moral, na humildade, quietinho. “Tá vendo? O B.O. dele era o mesmo que o seu, só que ele ficou 6 meses e você já está há um ano e ainda com chance de ter o conclusivo negado!”

O menino acenou positivamente, com a cabeça. Nesse momento, Lourdes contou para ele a experiência que ela teve como técnica de unidade de internação da FEBEM. Contou que todos os movimentos do menino são vigiados: o jeito de andar, de falar, de se vestir, com quem anda, a participação nas atividades propostas, o

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discurso sobre família, trabalho, etc. Que tudo isso é decisivo para a elaboração do relatório final – um documento que produz consenso entre funcionários do pátio, da pedagogia e dos técnicos (assistentes sociais, psicólogos, advogados, às vezes médicos, enfermeiros etc.) sobre um determinado interno. Percebi, nesse momento, que Lourdes falava para ele, mas para mim também. Ela me fazia notar como as coisas funcionavam ali, me ensinava.

O menino pareceu sentir o baque, assumir que ela estava certa. Tanto que em seguida se denunciou, disse que estava com mau comportamento também na escola. Ouviu mais dez minutos de sermão sobre a escola e a importância dela para ele conseguir um trabalho. O moleque ouviu bastante. Concluída sua intervenção, Lourdes chamou Carol, que entrou, para que conversássemos todos juntos. Deram, juntas, mais umas puxadas de orelha em Wesley. Ele, nesse momento, esforçou-se para mostrar que não queria ouvir, sentia que tinha a técnica sob controle, na medida em que ela se interessava por ele. Carol é uma mulher muito bonita, 35-40 anos, sempre de avental aberto, silhueta sensual. Os meninos devem adorar estar com ela, e falar dela entre eles. No final da conversa com Wesley, tanto Lourdes quanto Carol amenizaram o discurso. Era preciso cuidar do rapaz, que manifestava corporalmente ter compreendido o recado. E a mensagem principal era a de que ele não poderia falar da vida dele com seus pares, que não há confiança possível ali. O centro do argumento era: ninguém aqui é seu amigo. Nas horas em que isso era dito explicitamente, ele concordava com a cabeça. Eu pensava, ironicamente: “ué, mas não era para “ressocializar?”. Mais uma vez, o paradoxo à mostra. Wesley incorporava uma regra de vida, repetia: “aqui não tenho amigos”. Sobre o resto, não sei o que pensava.

Saímos dali cansados. Tivemos mais uma conversa rápida com a Carol, e despedimo-nos com beijinhos. Combinaram que Lourdes ligaria para a mãe do Wesley – como ligou de fato – para dizer para ela também dar uma puxada de orelha nele, no dia de visita (próximo sábado). Lourdes suspirou, ao sair do portão. Estava esgotada. Comentei que tinha ficado impressionado: se o papel dela era moralizar e disciplinar, parecia ter conseguido. Ela era menos crente nisso. Se havia, ainda, uma intenção subliminar de me mostrar como agir em casos assim, também tinha tido sucesso – aquilo foi, para mim, uma aula do funcionamento de uma unidade de internação, e de suas relações com o mundo técnico, a moralização e o judiciário.

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14h. Finalmente, estávamos de carro, procurando um restaurante. Lourdes, visivelmente cansada, mas tranquila, com a sensação de que tinha feito seu papel. Tinha amansado o menino e me mostrado como se faz. Tudo isso desgasta demais, eu disse. Conversamos sobre a intensidade desse trabalho. Lourdes comentou que não conversa disso com o marido, deve ser difícil para ela. Na verdade, seu marido sequer sabe que ela visita Unidades de Internação, “não deixaria”. Lourdes me diz que se sente melhor depois que começou a frequentar um Centro Espírita. Ela tem 32 anos, e desde os 18 trabalha em entidades sociais da área da infância: num OSEN, muitos anos, depois em abrigos. Em seguida, foi coordenadora pedagógica de uma creche, e coordenou um abrigo para moradores de rua, no Jabaquara, em uma entidade pequena. Depois passou dez meses na FEBEM, numa época em que havia muitas acusações de tortura justamente na unidade em que trabalhava. “Clima pesado...”. Há dois anos chegou ao CAJo, num edital de seleção, para atuar com as medidas em meio aberto. Ir às unidades é, quase sempre, o que eles chamam de trabalho de pré-medida, ou seja, de tentativa de criar um vínculo com o adolescente antes deles sairem em Liberdade Assistida (LA) ou Prestação de Serviços à Comunidade (PSC). Lourdes tem uma filha de 7 anos. Ficava evidente, para mim, que sua expertise era de saber trabalhar com todos esses públicos, fazendo serviço social. A mesma expertise vale, portanto, para marginalizados em geral. Pensei a respeito.

Fomos almoçar numa churrascaria enorme, no sentido de São Caetano. Choveu forte no caminho, o verão terminando. Sentamos à mesa, comemos muito bem, falamos de carne e vegetarianos, como sempre quando estou por perto. Lourdes permaneceu observando o ambiente, durante um tempo, e depois me disse que identificou uma mesa de “ladrões” atrás da gente. Disse não ter dúvida nenhuma. Os signos: tatuagens, correntes de ouro, relógios, modos de se vestir – camisas largas, manga curta, de botão –, além do horário em que almoçavam e da quantidade de celulares que tinham sobre a mesa (bem mais de um por pessoa). Eu não teria notado nada. Depois de ela ter dito, achei que havia algo de fundamento. No fundo, e era isso que lhe chamara atenção, havia uma mesa com outros dois homens, que Lourdes e Rita concordaram ser policiais civis: um cabeludo, um gordão de cavanhaque. Esses eu identificaria menos ainda, mas elas duas me deram vários outros signos distintivos – o fato de se sentarem na janela, longe dos outros e em lugar de visão panorâmica tanto de dentro quanto de fora do restaurante, as camisas largas para que não se notassem as armas que trazem junto ao tronco, os modos não padronizados de cabelo e barba, para facilitar que andem à paisana, as

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pochetes, entre outras coisas das quais não me lembro. Acreditei novamente, sempre acredito, a princípio; a crítica vem depois. Comemos bem, paguei só o que estourou da cota de R$ 50,00 que o CAJo destina para o almoço das duas, Lourdes me tinha como um convidado. Fomos embora jogando conversa fora, falando das nossas crianças, e da intensidade de viver tantos mundos. Vamos ficando amigos das pessoas que nos acompanham em dias assim.

Tarde

Chegamos de volta à sede do CAJo quase 16h, Rosana já me aguardava. Não pude, portanto, fazer aquela reuniãozinha rápida que todos os educadores da entidade fazem com Lourdes quando ela retorna das UIs, querendo notícias dos meninos, discutindo seus casos. Rosana faz doutorado em Ciências Sociais, e queria contatos em escolas públicas da periferia para o seu trabalho de campo. Ao encontrá-la, mudava de mundo. Falava agora dos professores parceiros, colegas, amigos em comum. Mudança brusca, para quem estava há dias convivendo mais estritamente nas periferias da cidade. Pessoas do CAJo me indicaram contatos na direção de uma escola enorme, ali num bairro vizinho. Fomos andando até lá, uns cinco ou seis quarteirões pelo bairro. Fui contando para ela sobre o que me haviam dito a respeito da ocupação da região, a consolidação do território, as clivagens entre os bairros operários e as favelas, os espaços intermediários no continuum entre esses pólos etc. De certa forma, minha intenção era traçar para ela mais ou menos um mapa do espaço social do lugar, o que depois achei muito pretensioso, porque o fato é que a Rosana queria estudar as escolas, coisa que eu nunca fiz por lá. Na realidade, eu nunca tinha entrado nessa escola, embora tivesse ouvido falar muito sobre ela – praticamente todo mundo do bairro passou por lá em algum momento.

Entramos juntos na enorme sede escolar. Passamos por um portão de ferro com um segurança, sem uniforme, sentado numa cadeira, tal qual o bedel das Unidades de Internação. Depois por grades de ferro azuis, no modelo exato daquelas que vi nas unidades, no mesmo dia. Impressionante. Depois entramos no convívio (isso já é ironia minha) e, andando pelos pavilhões – com uma quadra no centro e alas em dois andares em torno dela – que são exatamente iguais aos que existem nos presídios, chegamos à sala da diretoria. Não havia diretor. Procuramos o contato oferecido pelo CAJo, até encontrarmos

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uma senhora, que nos fez sentar. Em volta dela havia muitas pequenas mesas com mulheres atendendo pessoas, estética de secretaria de escola pública, que me lembrou minha infância outra vez. Assistimos à cena de uma aluna sendo escurraçada da sala. Impressionante a brutalidade. Outra chegou à porta e, ali mesmo, ante que dissesse algo, ouviu vindo de dentro da sala um grito forte que a mandava sair. Não tinha visto isso, até então.

Comecei a conversa – eu era o anfitrião de Rosana, embora totalmente perdido por ali. Era difícil mudar tantas vezes de ambiente. Estava desgastado, e o dia ainda seria longo. Apresentei-me, apresentei-a, usei a palavra pesquisador, as credenciais, etc. Aquela que nos recebia – vice-diretora – começou a olhar para os lados, enquanto eu falava, meio que pedindo a intervenção de alguma de suas colegas, presentes na sala. Uma delas a acudiu imediatamente, e bradou de sua mesa: “aqui não é permitido coletar dado nenhum de aluno! Nenhum, nenhum! Pesquisa não pode!”

Continuamos, samaritanamente, a explicar como

pretendíamos fazer, que seria tudo acordado, nada impositivo etc. A coordenadora pedagógica resolveu intervir, nessa hora, voltando-se diretamente para Rosana: “peraí, fala uma coisa: qual é seu objeto de pesquisa?” Rosana respondeu: “trajetórias escolares”. Ela ficou pensando, sentou-se à nossa frente e começou a anotar. “Seu nome!?”. Rosana tralalá. “Seu orientador!?”. Tal e tal. “Título do seu projeto!?”. E por aí foi, como se estivesse entrevistando um candidato em seleção para emprego (do mais baixo nível hierárquico possível). Dizia muito agressivamente coisas como “os últimos pesquisadores que passaram por aqui eu coloquei para fora, escurraçados!!”. Batemos boca, durante um tempo. Resolvi parar de falar. Ela prosseguiu: “Aqui vocês não sabem como é, tudo é culpa da escola, e os pesquisadores só encontram problema na escola! Os pais cobram muito, os professores são resistentes, qualquer coisa que fizermos têm que passar pelo conselho”. Eu disse: “ok, calma, não precisamos decidir agora, podemos passar o projeto pelo conselho, podemos vir à reunião do conselho conversar com eles, sem problema”. E disse mais: “para haver pesquisa é preciso ter um mínimo de confiança mútua, podemos fazer papéis de contrato etc., mas sem confiança não adianta”. Ela: “não estou vendo nada que me dê confiança em vocês”. Eu: “e o que te causa desconfiança?” Não respondeu. “Por que tem que ser aqui, e não em outra escola?” “Não tem que ser aqui, senhora, estamos conversando sobre as possibilidades”. “Acho muito difícil fazerem isso aqui, já adianto para vocês”. Clima de tensão, meio inacreditável. Rosana quietinha. Decidimos ir embora, Rosana trocou o endereço de

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email com a mulher, ela disse para Rosana enviar o projeto mas sabíamos que ela não encaminharia nada.

Saímos xingando a mulher. Que loucura de dia. Rosana comentou que estava chocada, que nunca conseguiria fazer a pesquisa dela... no caminho tentamos entender qual foi o motivo de tanta agressividade, inesperada. Não foi difícil achar algumas hipóteses: sabemos que há uma relação historicamente conflituosa dessa escola com o CAJo, e foi o CAJo que intermediou o contato. Que há medo de exposição por parte dos funcionários da educação, altamente corporativos (muitas irregularidades na escola?), que a relação deles com pais, alunos e mundo do crime local (há um ponto de venda de drogas dentro da escola, já me disseram até que são dois) é muito complicada, que eles podem ter tido experiências negativas com outros pesquisadores. Mas ainda assim, certamente há bastante coisa por trás do tipo de recepção que tivemos e que não pudemos avaliar.

Voltamos para o CAJo às 17h20min, comentamos com todos os que estavam por ali, finalizando o expediente, o tipo de recepção que tivemos. Surgiram desde brincadeiras e piadas, que nos davam “boas vindas” às escolas de periferia, até pedidos de desculpas por não terem ido juntos, o que nos ajudaria. No geral, e isso foi marcante, ninguém se assustou com o ocorrido; de certa forma era comum brigar na diretoria daquela escola, a palavra “escurraçado” era parte comum do vocabulário. Mas que não desanimássemos. Nesses casos, é como acidente de carro – “o motorista tem que voltar a dirigir logo, para não traumatizar”. Vamos então à outra escola próxima? Lá deve ser mais tranqüilo. E foi. Depois de esperarmos 15 minutos na fila de atendimento da secretaria, fomos atendidos pelo vice-diretor e Rosana explicou seu projeto de pesquisa. Ele acolheu bem a proposta, tranquilamente. Disse para ela retornar a ligação na semana seguinte para falar com o diretor e começar a trabalhar. Sem nenhum problema. Saímos aliviados, sentindo que o mundo seguia com algum parâmetro mínimo de civilidade... (Rosana está em pesquisa de campo nessa escola, desde então).

17h45min – Rosana voltou para sua casa, depois de agradecer a todos no CAJo e dizer que agora tinha dado certo. Silas a acompanhou até o ponto de ônibus. O CAJo fechou, eu fui para o seminário em que me hospedo. Cheguei cansado, seria o final do dia.

Referências

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