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OS SAMBAQUIEIROS E O MUNDO VEGETAL: MEIO AMBIENTE, UTILIZAÇÃO DA MADEIRA E ALIMENTAÇÃO

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OS SAMBAQUIEIROS E O MUNDO VEGETAL: MEIO AMBIENTE,

UTILIZAÇÃO DA MADEIRA E ALIMENTAÇÃO

Rita Scheel-Ybert[1]

[Resumo/Abstract]

INTRODUÇÃO

O meio ambiente no qual viviam as populações sambaquieiras do litoral brasileiro e sua dieta sem estiveram entre as principais preocupações dos arqueólogos, mas a má conservação dos restos vegetais sambaquis não permitia, até hoje, uma abordagem direta destes temas. No entanto, quase todos os síti apresentam numerosos fragmentos de carvão, que podem ser estudados segundo as técnicas da antracolog fornecer respostas a estas questões.

Antracologia é o estudo e interpretação dos restos de madeira carbonizados provenientes de arqueológicos ou de solos, onde eles estão relacionados ao testemunho de paleoincêndios, naturais ou de origem antrópica, ou a diversos aspectos da atividade humana (Scheel et al., 1996a, 1996b). A análise antracológica permite, a partir do mesmo material, abordar duas perspectivas importantes: estu etnoarqueológicos informam os usos que a população pré-histórica fazia da vegetação local, seja com combustível (calor, preparação de alimentos etc.), seja para a confecção de artefatos de madeira (habit utensílios, embarcações etc.), seja como alimentos. Estudos paleoecológicos indicam o tipo de vegetaçã existente em torno do sítio arqueológico ou do local de coleta e, por dedução, o clima regional.

A aplicação da antracologia à arqueologia brasileira é bastante recente (Scheel-Ybert, 1998, 1999, 2000, 2001). O estudo de sambaquis em dois setores do litoral brasileiro permitiu uma avaliação inédita interações entre os sambaquieiros e o mundo vegetal, procurando responder a três questões principais:

(1) como era o meio ambiente no qual viviam os sambaquieiros?

(2) é possível demonstrar se houve alguma influência antrópica sobre o meio ou, ao contrário, alguma influência do ambiente sobre estas populações?

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(3) como as populações sambaquieiras utilizavam os vegetais?

MATERIAL E MÉTODOS

1. PRINCÍPIOS TEÓRICOS

A coleta dos carvões para análise antracológica, idealmente, deve ser feita durante a escava arqueológica. A superfície do sítio deve ser amostrada o mais amplamente possível, para cada níve estratigráfico, pois um estudo qualitativa e quantitativamente confiável depende da análise de um grande número de carvões. De preferência, deve-se definir uma malha de amostragem, que pode ser regular ou aleatória (Figura 1). Em certos casos, a coleta pode ser feita também ao longo de perfis, por decapagem camadas sucessivas. Nos dois casos, as amostras do sedimento são recolhidas em baldes, o que permite conhecer o volume de cada amostra. A recuperação dos carvões é feita por peneiragem a seco dos sedime seguida de flotação ou de triagem manual. Quando possível, os sedimentos podem ser diretamente submetidos à flotação.

Figura 1:

Exemplo de uma malha de amostragem antracológica pré-definida: esquema do quadriculamento do Sambaqui da Ilha da Boa Vista I. A grade de 2 x 2 m foi estabelecida para a escavação arqueológica. Amostras de

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sedimento para análise antracológica foram retiradas em quadrículas alternadas, sempre no canto superior direito (quadrados pretos), e num perfil exposto pela trincheira N-S nas quadrículas I e J-9 (retângulo preto). A elipse cinza escuro representa a superfície do sítio; o círculo cinza claro representa a área de maior

concentração dos vestígios de habitação (segundo Barbosa et al. 1994).

A flotação é uma técnica extremamente interessante, sendo o método que implica menor es metodológico e maior eficiência. A capacidade de flutuação dos fragmentos de carvão é aproveitada p separá-los do material mais pesado, o que permite também a recuperação exaustiva de numerosos outros restos, úteis a outras disciplinas (sementes, moluscos, ossos, micro-fauna etc.). O princípio de funcionamento de “célula de flotação”, bastante simples, consiste em lavar o sedimento, depositado em uma peneira submersa numa cuba, em uma corrente de água turbilhonante (Figura 2). Os carvões, liberados do sedimento, são levados à superfície da água e em direção à periferia da cuba, caindo sobre uma peneira de malha fina onde os elementos sólidos são recuperados (Ybert et al., 1997).

Figura 2:

Célula de flotação. Observe a entrada de água, na parte de baixo do equipamento (flecha azul) e os carvões flutuando na superfície (flechas brancas). Estes carvões, levados pelo fluxo de água, serão recuperados na

peneira exterior à direita da foto. Foto Rita Scheel-Ybert.

Idealmente, a amostragem deve ser feita utilizando-se peneiras de malha de 4 mm, pois a identificação de carvões tropicais normalmente só é possível em fragmentos maiores que este limite. É fundamental que

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todos os fragmentos de carvão retidos pela peneira sejam coletados, pois a seleção dos fragmentos (maiores e/ou mais bem conservados) poderia introduzir um elemento de escolha subjetiva que induziria a err interpretação.

A peneiragem de amostras do sedimento proveniente da escavação é importante porque embora os

carvões concentrados

(fogueiras e depósitos associados) sejam os mais visíveis, as camadas arqueológicas apresentam frequentemente carvões dispersos, nem sempre percebidos a olho nu, mas que em geral revelam-se abundantes após peneiragem ou flotação dos sedimentos (Chabal, 1988; Heinz, 1990). Os carvões dispersos são provenientes da dispersão do material de fogões ou fogueiras, e por estarem geralmente presentes em todos níveis arqueológicos, fornecem os dados paleoambientais mais confiáveis. O estudo dos carvões concentrado por outro lado, fornece principalmente informações etnológicas. As fogueiras são geralmente raras e só podem ser estudadas de forma pontual, ainda que nos sambaquis estudados o seu conteúdo taxonômico se assemelhe ao que é encontrado nos carvões dispersos (Scheel-Ybert, 1998).

No laboratório, os carvões são observados em um microscópio óptico de luz refletida a fundo claro/fundo escuro, a partir da simples quebra manual dos fragmentos em três planos (transversal, long tangencial e longitudinal radial). Observações em microscópio eletrônico de varredura podem ser posteriormente, se isto é possível. Este é o principal método utilizado para a representação fotográfica d amostras (Figura 3).

Figura 3: Imagem em microscópio eletrônico de varredura dos três planos anatômicos de um carvão de Ocotea sp (Lauraceae) do Sambaqui Jabuticabeira II (JAII-6, Burial 12, Post 2), e esquemas representando a orientação

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destes planos em relação ao tronco da árvore. A. Plano transversal. B. Plano longitudinal tangencial. C. Plano longitudinal radial.

A determinação sistemática dos carvões é feita com base na estrutura anatômica da madeira, a qual pode ser comparada a descrições e fotografias de obras da literatura especializada (Détienne & Jacquet 1 Mainieri & Chimelo 1989; Metcalfe & Chalk 1950 etc.) e a amostras atuais carbonizadas. A diversidade da flora brasileira é extremamente grande, e a anatomia da madeira ainda é desconhecida para a maior parte espécies. Por isso, a constituição de uma coleção de referência de madeiras carbonizadas é indispensável.

Como nenhum tratamento químico é efetuado, é possível obter-se, após a determinação anatômica, uma datação de 14C no mesmo fragmento (Vernet et al., 1979). Isto é particularmente útil quando a quantidade carvões coletada na escavação é pequena, e é muito interessante pois um único material pode fornece informações preciosas aos arqueólogos: sua idade absoluta, indícios sobre a vegetação circundante ao sítio época de ocupação e informações sobre a relação dos povos pré-históricos com o meio vegetal (Scheel et al., 1996b).

2. METODOLOGIA EMPREGADA

Sete sambaquis foram estudados no litoral do Estado do Rio de Janeiro (Região dos Lagos), e u sambaqui no litoral do Estado de Santa Catarina (Figura 4).

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Figura 4:

Localização geográfica dos sítios estudados. 1-6: sudeste do estado do Rio de Janeiro; 7: sul do estado de Santa Catarina. (1) Sambaqui do Forte; (2) Sambaqui Boca da Barra; (3) Sambaqui Salinas Peroano; (4) Sambaqui Ponta da Cabeça; (5) Sambaqui da Beirada; (6) Sambaqui da Pontinha; (7) Sambaqui Jabuticabeira II. No mapa

de Santa Catarina, as estrelas representam a localização de outros sambaquis conhecidos.

No Estado do Rio de Janeiro foram estudados os Sambaquis do Forte, Salinas Peroano, Boca da Barra e do Meio, situados às margens do Canal de Itajuru, que liga a Lagoa de Araruama ao mar (município de Cab Frio); o Sambaqui da Ponta da Cabeça, localizado sobre o Morro do Itirinho, na extremidade sudoeste da Grande (município de Arraial do Cabo); e os Sambaquis da Beirada e da Pontinha, situados entre a La Saquarema e o mar (município de Saquarema). No Estado de Santa Catarina foi estudado o Sambaq Jabuticabeira II, situado a cerca de 1 km da margem sudoeste da Lagoa Garopaba do Sul e a cerca de 6 km d mar (município de Jaguaruna).

As amostras de carvão dos Sambaquis do Forte, Salinas Peroano, Boca da Barra, do Meio, da Beirada da Pontinha foram coletadas em perfis verticais, sempre no interior das trincheiras deixadas pelas e

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arqueológicas feitas previamente. As amostras do Sambaqui Jabuticabeira II também foram coletadas num perfil vertical, mas concomitantemente à escavação arqueológica. Diversas outras amostras de carvão f coletadas neste sítio durante a escavação, mas somente os resultados relativos à análise do perfil já e disponíveis. Todo o sedimento foi peneirado a seco no campo e, em seguida, os carvões foram recuperados com a utilização de uma célula de flotação. As amostras do sambaqui da Ponta da Cabeça foram obtidas durante a escavação arqueológica por peneiragem a seco de todo o sedimento e triagem posterior.

Os fragmentos de carvão foram analisados segundo a metodologia descrita anteriormente. A coleção d referência utilizada conta atualmente com cerca de 2000 amostras obtidas a partir de doações de xilotecas coletas de campo. A identificação dos carvões foi facilitada pela elaboração de um programa inform determinação antracológica, associado a um banco de dados anatômicos de amostras atuais e fósse (Scheel-Ybert et al., 1998).

RESULTADOS

1. MEIO AMBIENTE

O paleoambiente da Região dos Lagos, reconstituído pela primeira vez, era caracterizado pelas diversas fisionomias da restinga, pela mata seca característica da região de Cabo Frio, pelo mangue e, mais para o interior, pela Mata Atlântica. A floresta de restinga era provavelmente muito mais abundante do que atualmente.

Os sambaquieiros ocuparam os sítios da região de Cabo Frio entre cerca de 5500 e 1400 anos BP. Eles se instalaram na interface de três associações vegetais principais: a restinga, o mangue e a mata seca. O diagramas antracológicos (Figura 5) mostram que, durante todo o período de ocupação, a restinga abe predomina no Sambaqui do Forte, enquanto nos Sambaquis Salinas Peroano e Boca da Barra predominam a mata seca e a mata de restinga. Isto é consequência da localização geográfica de cada sítio, pois o Sambaqui do Forte está localizado na beira da praia, domínio fitossociológico da restinga, enquanto os outros dois sambaquis se situam na margem leste do Canal de Itajuru, sobre pequenas elevações cristalinas domina formações florestais. Isso demonstra que os espectros antracológicos refletem muito bem a vegetação local.

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Figura 5:

Diagramas antracológicos sintéticos dos Sambaquis do Forte, Salinas Peroano, Boca da Barra, Ponta da Cabeça, da Beirada e da Pontinha, na Região dos Lagos, Estado do Rio de Janeiro (segundo Scheel-Ybert,

2000).

Os diagramas antracológicos de todos os sítios estudados se caracterizam por uma diversidade florística muito grande (Scheel-Ybert 1998, 2000). Somente no Sambaqui do Forte, mais de uma centena de t identificados, dos quais a maior parte pertence aos diferentes tipos de vegetação atualmente existentes na região. As mirtáceas, típicas da restinga, são nitidamente predominantes em todos os casos.

Os diagramas antracológicos sintéticos dos sítios estudados no Estado do Rio de Janeiro mostram que o espectro taxonômico é sensivelmente o mesmo ao longo de toda a sequência, indicando que a vegetação n sofreu alterações nem de origem climática, nem de origem antrópica.

O Sambaqui do Meio representa um caso particular, pois neste sítio somente 9 micro-fragmentos carvões de origem pré-histórica foram encontrados, numa concreção na base do sítio. Todos os frag identificados correspondem a taxa típicos da restinga. Podemos deduzir que esta vegetação existia no entorno do sítio pouco após 5200 anos BP, mas nenhuma reconstituição ambiental mais precisa pode ser feita.

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provavelmente de fogueiras de carvoeiros datadas dos últimos 10 ou 20 anos. O espectro antracológico s aparenta muito ao que foi encontrado nas amostras arqueológicas dos outros sítios, mas a contribuição d pioneiros é muito importante, o que corresponde à vegetação atual. Estes dados foram utilizados para a realização de análises fatoriais de correspondência, nas quais foram baseadas todas as interpretaç paleoambientais (Scheel-Ybert, 2000).

No Sambaqui da Ponta da Cabeça, em Arraial do Cabo, a restinga aberta é predominante em relação mata de restinga e à mata seca desde ca. de 3300 até depois de 2000 anos BP. Este resultado também está acordo com o que podia ser esperado a partir da localização geográfica deste sítio, que apesar de situado sob uma colina cristalina está muito próximo à praia.

A restinga aberta também era predominante na região de Saquarema, onde se situam os Sambaqui Beirada e da Pontinha, durante todo o período estudado, ou seja, entre 4300 e 3800 anos BP e de ca. 2300 at após 1800 anos BP. As baixas porcentagens de elementos de formações florestais e do mangue nestes sambaquis indicam que estas formações eram menos exploradas, certamente porque estavam mais longe do sítios. A vegetação de Mata Atlântica se situava provavelmente do lado norte da Lagoa de Saquarema, e mangue nas suas margens.

Note ainda que as oscilações nas porcentagens relativas dos diferentes grupos vegetais no Sambaq Beirada e em alguns níveis do Sambaqui Salinas Peroano não devem ser levadas em consideração, pois são uma consequência do número excessivamente baixo de fragmentos de carvão disponíveis para o es antracológico nestas amostras.

Assim sendo, as únicas variações significativas observadas nos diagramas antracológicos se refe vegetação do mangue. Na região de Cabo Frio, estas variações podem ser atribuídas a oscilações climáticas que provocaram variações na salinidade da Lagoa de Araruama. Estes resultados sugerem que o clima desta área era mais úmido que o atual por volta de 5000 anos BP, tendo havido em seguida um período seco que durou até ca. de 2300 anos BP. Um breve episódio pluvioso entre 2300 e 2000 anos BP foi seguido por um nov período seco que permaneceu pelo menos até o final da ocupação desta área.

Na região de Arraial do Cabo, um aumento importante dos elementos de mangue foi observado na parte superior do diagrama, pouco antes de 2000 anos BP pode ser devido a um aumento real do mangue no

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ambiente ou, o que não invalida a primeira hipótese, a um aumento populacional no sambaqui. De fato, os 30 cm superiores do sítio são considerados como o apogeu da ocupação (Tenório et al., 1992), o que pode ter induzido uma extensão da área de captação de recursos. De todo modo, a presença de elementos de mangue neste sambaqui é muito importante, pois esta formação vegetal, que crescia provavelmente nas margens da Lagoa de Araruama, não existe mais na região. Esse resultado vem corroborar a hipótese de Cristina Tenó (1996) de que os sambaquieiros tinham uma relação particular com o meio de manguezal.

Em Santa Catarina, o Sambaqui Jabuticabeira II também estava estabelecido na restinga, provavelmente na floresta de restinga (Figura 6), e nenhuma variação significativa do ambiente no entorno do sítio foi registrada entre 2500 e 1800 anos BP. A coleta de madeira era feita essencialmente na floresta de restinga restinga aberta, e muito pouca madeira provinha da Mata Atlântica, provavelmente situada bem mais longe sítio, no interior das terras. O mangue não está representado no registro antracológico. Esta vegeta provavelmente já não existia na região, como é o caso atualmente. As condições climáticas da época eram mesmas que existem no presente, tipicamente subtropicais.

Figura 6:

Diagrama antracológico completo do Sambaqui Jabuticabeira II, Estado de Santa Catarina (Ni: número total de fragmentos estudados; Nsp: número de taxa identificados).

2. UTILIZAÇÃO DA MADEIRA

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aleatória de madeira morta. Isto é demonstrado grande número de taxa encontrados, tanto nas amostras d carvões dispersos quanto nos carvões concentrados provenientes de fogueiras, e pelo grande número fragmentos de carvão que apresentam traços de decomposição ou de ataque de larvas de insetos ocorridos antes da carbonização.

A boa correspondência entre os espectros antracológicos e a vegetação local indica que a lenha e coletada essencialmente nas proximidades do sítio. Nenhuma estimativa precisa pode ser feita, mas a áre captação de recursos não devia ultrapassar um raio de poucos quilômetros em torno do sambaqui.

Todos os nossos resultados sugerem que a madeira para lenha era coletada aleatoriamente, não havendo seleção de espécies. No entanto, as frequências importantes de Condalia sp na maioria dos sítios estudados são difíceis de explicar por critérios ambientais, pois Condalia buxifolia, característica da restinga, é atualmente uma planta muito rara.

O fato da vegetação local, durante a ocupação sambaquieira, ter sido muito semelhante à atual p descartar a hipótese de que essa espécie tenha sido muito abundante. É mais provável que ela tenha especialmente procurada por razões culturais, hipótese que pode ser apoiada por certas características dest taxon: a casca das raízes é medicinal e pode ser utilizada como sabão, e a madeira permitiria a extração pigmento azul.

Por outro lado, a hipótese de uma utilização ritual ou cerimonial também é possível. Isso explicari porque os fragmentos de Condalia são sempre vitrificados, sugerindo que essa madeira tenha sido sempre queimada verde.

3. ALIMENTAÇÃO

A coleta de vegetais era provavelmente muito importante na dieta dos sambaquieiros, apesar de vestígios diretos desta atividade serem raramente encontrados nos sambaquis.

Neste estudo, analisamos mais de 15.500 fragmentos de carvão, dos quais 4 % correspondem alimentares: fragmentos de coquinhos carbonizados, sementes e resíduos de tubérculos de monocotiledônea Uma grande variedade de espécies foi verificada. Alguns fragmentos correspondem a tubér Gramineae/Cyperaceae, outros a carás (Dioscorea sp). Outros ainda podem pertencer a Typha domingensis,

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determinação que ainda não pôde ser confirmada (Scheel-Ybert, 1998, 2001).

Embora os sambaquieiros tenham sido por muito tempo considerados quase que exclusivamen “comedores de moluscos”, a pesca tem sido reconhecida como predominante sobre a coleta de moluscos em sua dieta, mesmo quando os restos de conchas são aparentemente predominantes no sítio (Figuti, 1992, 1 Gaspar, este volume). A coleta de vegetais, embora implicitamente reconhecida, é frequentemente vista com uma atividade secundária e sua contribuição à dieta considerada como praticamente negligenciável.

No entanto, uma alimentação baseada na coleta de moluscos, pesca ou caça deixa muitos vestígi materiais no sítio arqueológico, ao contrário da coleta de vegetais. Nos sambaquis, o consumo de vegetais só era verificado pela presença de coquinhos, raras sementes, e objetos líticos que provavelmente serviram preparação de vegetais (Kneip 1977, 1994; Gaspar 1995; Tenório 1991; Tenório et al. 1992 etc.). Não podendo ser provado, o consumo de vegetais é geralmente subestimado em favor de dietas que deixam vestígios m visíveis.

No entanto, a conservação de restos vegetais sob um clima tropical úmido ocorre quase qu exclusivamente pela carbonização, e esta depende do material ser ou não exposto ao fogo, intencio acidentalmente, visando sua preparação ou consumo. Restos de coquinhos têm uma grande chance de queimados após separação da parte comestível do fruto, podendo mesmo ser reciclados como um comb adicional. Sementes, que são frequentemente torradas, podem ser conservadas se algumas delas caem na fogueira, por exemplo. Mas os tubérculos, além de serem mais frágeis, são geralmente consumidos cozidos água, e por isso dificilmente expostos diretamente ao fogo. Este é o caso também das folhas e frutos, consumidos cozidos ou frescos (Munson et al. 1971, apud Miksicek 1987). Em consequência, estes alimentos são raramente preservados por carbonização, e seus restos só excepcionalmente são encontrados em arqueológicos. A conservação de fragmentos de tubérculos carbonizados atesta que eles eram largamen utilizados pelos sambaquieiros. Isso indica que a coleta de vegetais era relativamente importante, e que o consumo pelos sambaquieiros era muito mais significativo do que se pensa geralmente (Scheel-Ybert, 199 2001).

Os tubérculos, uma fonte importante de amido, são abundantes na restinga. Na restinga aberta e n floresta de restinga, existem várias espécies de carás (Dioscorea spp). Nas zonas úmidas, ocorrem Typha domingensis e uma grande diversidade de gramíneas e ciperáceas que produzem tubérculos comestíveis.

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Além disso, sementes e frutos também faziam parte da alimentação dos sambaquieiros. O ambient restinga é extremamente rico, não só em leguminosas, que possuem frequentemente sementes comestíveis, como em numerosas espécies que produzem frutos durante todo o ano (Maciel, 1984). Exemplos destas últimas podem ser selecionados entre espécies das famílias mirtácea (gêneros Eugenia, Gomidesia, Myrcia, Myrciaria, Psidium - pitangas, cambuís, araçás), anacardiácea (Anacardium, Spondias, Tapirira - cajú, cajá, micome), anonácea (Annona, Duguetia - pinhas), bromeliácea (Ananas, Bromelia - ananás, gravatás), cactácea (Cereus), crisobalanácea (Chrysobalanus - bajuru), malpighiácea (Byrsonima - murici), morácea (Ficus - figo), passiflorácea (Passiflora – maracujá, sururuca), sapotácea (Pouteria, Sideroxylon - abil, sapotiaba), entre outras. Madeira carbonizada da maior parte destas espécies foi encontrada nos sedimentos estudados, o que prova sua presença a pouca distância dos sítios (Scheel-Ybert, 1998, 2000).

Um caso interessante é o de Sideroxylon obtusifolium (sapotiaba). Esse taxon, abundante na maioria dos sítios estudados, é atualmente muito frequente nas proximidades dos sambaquis. Esta associação perm emitir a hipótese de manejo desta espécie.

Note que, ao contrário da prática agrícola, que pressupõe a produção de vegetais com controle de todo o processo (preparação da terra, semeadura, cuidados com a roça e colheita), o manejo implica somente em cuidados especiais com uma planta ou grupo de plantas, as quais podem continuar a crescer em estado selvagem. Por exemplo, o abate seletivo de árvores, protegendo-se as palmeiras produtoras de frutos ou óleo tem por consequência aumentar a densidade destas palmeiras. Em outros casos o desenvolvimento de cer árvores pode ser encorajado, por exemplo limpando-se o terreno em torno delas. Queimadas controladas podem ser utilizadas para favorecer o crescimento de certas espécies alimentares. Plantas produtoras d tubérculos podem ser sistematicamente replantadas após a colheita (Harlan, 1987). Além disso, o manejo implica num conhecimento aprofundado do ciclo da planta, que só é colhida no momento apropriado.

A hipótese de um manejo de tubérculos pelos pescadores-coletores também não pode ser descartada, isso não indica necessariamente a existência de práticas agrícolas. A utilização de tubérculos, e em consequência uma alimentação rica em amido, é inteiramente compatível com um modo de vida baseado na pesca e na coleta, devido à grande riqueza do ambiente no qual viviam estas populações.

No entanto, não temos nenhuma indicação de utilização da mandioca (Manihot esculenta). Neste sentido, é importante assinalar que a mandioca é originária da Amazônia e típica de ambientes mais úmido

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cultivo deste vegetal pode só ter chegado ao litoral bem mais tarde. De todo modo, nossos resultados forne pistas interessantes para a investigação da existência de manejo, eventualmente de várias espécies produtoras de tubérculos e frutos.

4. SAMBAQUI JABUTICABEIRA II – UM SÍTIO FUNERÁRIO?

Os resultados obtidos no Sambaqui Jabuticabeira II confirmaram os obtidos no Estado do Rio de Janeiro e indicam que nesta região, também, houve uma estabilidade do meio ambiente que pode te consequências importantes na estruturação sociocultural dos sambaquieiros.

Todavia, meus resultados indicam que esse sambaqui tinha uma função diferente da dos sítios estudados na Região dos Lagos. Estes últimos eram sítios de habitação, e o material antracológico con numerosos vestígios alimentares carbonizados.

No entanto, estritamente nenhum resto alimentar foi encontrado junto com os carvões do sam Jaboticabeira II, nem mesmo fragmentos de coquinhos. Isso parece confirmar a hipótese dos arqueó responsáveis pela escavação, que pensam que esse sítio tinha uma função exclusivamente funerária (Fish et al., inédito; Gaspar, este volume).

DISCUSSÃO

Estudos paleoecológicos, e não apenas etnológicos, que se baseiam em carvões de origem arqueológica suscitam, aos olhos da comunidade científica, uma série de dúvidas. Em geral, acredita-se que cada c selecionava as madeiras apanhadas, já que o transporte da madeira do ambiente até o sítio arqueoló evidentemente, obra humana.

No entanto, diversos argumentos suportam a coerência paleoecológica dos estudos antracológicos, o seja, confirmam que os espectros antracológicos são um reflexo confiável da vegetação existente na época. Entre eles, podemos citar (Vernet, 1977; Chabal, 1988, 1992, 1997; Scheel-Ybert, 1998, 2000) a grande riqueza de taxa encontrada nas análises de sedimentos contendo carvões, a semelhança entre espectros antracológicos e forma de vegetação atuais, a possibilidade de reprodução das observações e a concordância entre diferent

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antracológicos e a boa correlação entre diagramas antracológicos e diagramas palinológicos da mesma regiã estes últimos obtidos a partir de sedimentos de lagos ou de turfeiras, que recebem uma chuva polínica natur Estes argumentos permitem considerar os restos de carvão como uma boa amostra da vegetação, o que significa que, para uso doméstico, as populações recolhiam, durante o período de ocupação do sítio praticamente toda a madeira disponível encontrada, sem selecioná-la (Vernet, 1973, 1977; Chabal, 1992, 1997).

Naturalmente, a madeira utilizada para fins específicos devia ser fortemente selecionada entre as espé disponíveis (material de construção, objetos manufaturados ou combustíveis de utilização especial, p. e cerâmica, metalurgia etc.). Os restos vegetais destas atividades não permitem de forma alguma uma representação do ambiente circundante ao sítio, mas podem fornecer excelentes informações paleoetnológicas.

A antracologia é uma disciplina nova no Brasil. Ela oferece à arqueologia resultados muito promi principalmente no esclarecimento de questões relacionadas ao entorno da área de habitação e à área de captação de recursos. A análise antracológica é particularmente útil se quisermos compreender as relações entre cultura e meio ambiente na pré-história, até a época atual, informação que interessa particularm arqueólogos, cujas pesquisas mais recentes se voltam cada vez mais para os aspectos sócio-culturais e ambientais dos sítios.

CONCLUSÃO

Os sambaquieiros que ocuparam o litoral brasileiro habitavam basicamente a restinga, privilegiando para sua instalação a proximidade de outras formações vegetais, principalmente as florestas costeiras e o mangue.

Apesar das variações observadas na vegetação de mangue, provocadas por oscilações climáticas pe menos na região de Cabo Frio, nenhum outro indício de mudança significativa no ecossistema vegetal observado durante o Holoceno Superior em nenhum dos sítios estudados. Nossos resultados mostram q vegetação de terra firme da região costeira (principalmente a restinga e a mata seca) se manteve estável durante pelo menos os últimos 5500 anos.

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O cortejo antracológico sendo praticamente o mesmo ao longo de vários séculos de ocupação, isso indica que a vegetação não sofreu alterações nem de origem climática, nem de origem antrópica. Estas formações vegetais, que são as mesmas que existem atualmente na região, provavelmente só começaram a sofrer uma alteração significativa a partir do período colonial, em consequência do extrativismo, da ocupação da faixa costeira e também, mais recentemente, do turismo.

A estabilidade ambiental teve certamente consequências muito importantes para as populaç pré-históricas. Ela pode ter sido um fator decisivo na manutenção do sistema sociocultural dos samb contribuindo para uma possível sedentarização e para a conservação de um modo de vida que se manteve po mais de 6000 anos.

A coleta aleatória de madeira morta nas proximidades do sítio fornecia a essas populações a maior parte da lenha utilizada.

A coleta de produtos vegetais era com certeza muito mais importante para a alimentação do sambaquieiros do que se acredita atualmente. Todos os sítios analisados apresentaram fragmentos de coquinhos carbonizados, sementes e resíduos de tubérculos de monocotiledôneas (gramíneas, ciperáceas e carás, entre outros), estes últimos encontrados pela primeira vez nos sambaquis. A possibilidade da existência de manejo de vegetais é aventada.

Além disso, nossos resultados sugerem uma certa complexificação da sociedade sambaquieira, m diferente do que havia sido estabelecido na arqueologia brasileira que considerava que os pescadores-coleto eram nômades e estavam organizados segundo os princípios que caracterizam os bandos. A prática de manejo, de ritos culturais de caráter religioso, a utilização de madeira por razões econômicas específicas ou a existência de sítios exclusivamente funerários são elementos que corroboram essa hipótese.

[1]

Laboratoire de Paléoenvironnements, Anthracologie et Action de l’Homme (UMR 5059). Institut de Botanique, 163 rue Auguste Broussonnet, 34090 Montpellier, France. E-mail: scheel@crit.univ-montp2.fr

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