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A Capa

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Academic year: 2021

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Acredito que sempre tentamos entender o desconhecido com base nas memórias afetivas.

Em agosto de 2016, eu fui estudar História da Arte por seis meses na Universidade de Coimbra, em Portugal, graças a uma bolsa de estudos com a qual fui contemplada. Foi a primeira vez que cruzei o Atlântico. Durante a minha estadia, eu juntava absolutamente todos os papéis que caíam nas minhas mãos e guardava dentro do meu caderno, onde anotava as lembranças que vinham junto — eles ilustravam a minha narrativa. Nas viagens que fiz dentro do velho continente, ficava ainda mais obcecada em recolher de tudo, na tentativa (vã) de reter aqueles momentos. Materializá-los. Minhas

tralhas e cacarecos, como já ouvi tanto. Mas que são e eram para

mim muito mais valiosos do que qualquer outro souvenir.

Ao mesmo tempo em que eu vivia tudo isso do lado de lá; aqui o país seguia em efervescência, atravessando um dos seus momentos políticos mais críticos e polêmicos. Em meio a esse turbilhão, Charlene Cabral, também aluna do curso de História da Arte na época, propôs um diálogo para além das fronteiras. Através da convocatória internacional que a artista intitulou Reflexive Mail/

Reflexivo Postal, que convidava qualquer pessoa a “fazer”

arte-postal, vi a oportunidade de deslocar a matéria ordinária e usual que eu compulsivamente acumulava e torná-la material de arte.

Eu ainda me questiono e me debato internamente com esse papel de artista. Desse ser que executa. Desse processo de transfiguração e transubstanciação poética. Então resolvi pedir ajuda.

Em Coimbra, eu morei em uma república estudantil com mais doze pessoas, entre turcos, indianos, tchecos, portugueses e brasileiros. Nossa casa se autodenominava Trapézio, devido à pintura de uma trapezista no alto do primeiro lance de escadas. Expliquei a proposta e pedi contribuições, que sob olhares de desconfiança e confusão vieram das formas mais diversas: Ananth separou um lindo postal do século XIX e dedicou-o a uma beautiful stranger; Emre ou Mert quis se livrar da sua carteirinha de estudante; Selman escreveu qualquer coisa em uma nota fiscal do mercado; e esses são os que consigo lembrar. Mas não me contentei, acrescentei mapas, um pequeno

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azulejo português com o desenho de dois pássaros, panfletos de museus de arte, a agenda cultural de Coimbra, cartões-postais do Algarve e conchas que recolhi por lá, folha das árvores de um outono a caminho, impressões de fotografias que fiz, envelope do chá que eu tomava toda noite, e até um dos panfletos dos correios portugueses, pois achei que seria um pouco irônico. Juntei tudo isso em uma caixa de papelão que comprei na própria agência da cidade e remeti como: Andressa Borba + Trapézio.

Essa proposta artística/política fez parte da pesquisa da minha colega e amiga Charlene, tanto que ela (d)escreve sobre a singela caixa “[...] meses da vida de alguém em forma de objetos coletados e da ação de compilação e envio gratuito desse material íntimo-social”.1 E creio que não poderia haver definição mais sincera e poética. A foto da caixa, inclusive, foi feita por ela.

Um relicário é um repositório de objetos sagrados ou de grande valor e apreço. Na História da Arte, também podem ser considerados recipientes onde se guardam relíquias de santos, que seriam evidências do seu caráter divino. De toda forma, ainda se mantêm os restos. Afinal, como disse o tão famoso e aclamado poeta português Fernando Pessoa — que também foi meu companheiro de viagem — “Viajar! Perder países!/Ser outro constantemente/Por a alma não ter raízes/De viver de ver somente!”.2 Se viajar é também perder e perder-se, e quanto mais se vê menos se tem — tempo, espaço, memória suficientes — todo o conteúdo da caixa se tornou, para mim, prova documental que me ajuda a comprovar que tudo aquilo era real. Registro de um sonho que vivi em conjunto, como todos deveriam ser.

ANDRESSA GERLACH

1

PINHEIRO, Charlene Cabral. Why are you doing mail art? dois momentos da arte

postal 1979 | 2016 e alguns trajetos da rede eterna. Trabalho de Conclusão de Curso

(graduação), UFRGS, Instituto de Artes, Bacharelado em História da Arte, 2017.

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Referências

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