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Doença de Fabry Aspectos clínicos e estruturais

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Academic year: 2021

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Doença de Fabry – Aspectos clínicos e estruturais

Paulo Ricardo Gessolo Lins

Introdução

Doença de Fabry compreende os aspectos clínicos e manifestações patológicas da deficiência hereditária ligada ao cromossomo X da enzima galactosidase (ceramida trioxidase) – alfa-GAL A, resultando em acumulo intracelular de glicoesfingolipideos neutros com resíduos ricos em galactose na posição alfa, principalmente globotriasilceramida.Descrita por Fabry (1) e Anderson (2) como uma patologia com lesões cutâneas clássicas associada com proteinuria e doença renal, o qual Fabry descreveu como angiokeratoma corporis diffusum.

Fisiopatologia

Mais de 300 mutações já foram descritas em portadores da doença de Fabry no gene responsável pela produção intracelular da enzima alfa-GAL A (Gene Xq22.1) ou GLA. Essa enzima é responsável por parte do metabolismo das ceramidas, os quais são constituintes da membrana plasmática celular, membrana de organelas intracelulares e também são encontrados na circulação sistêmica como componente das apolipoproteínas(3). A alfa-GAL A catalisa a remoção de um resíduo de galactose ligado em posição alfa nos glicoesfingolipideos. (Figura 1)

Figura 1 - Via metabólica

Com herança ligada ao X, a deficiência da alfa-GAL A gera um acúmulo progressivo de glicoesfingolipideos neutros, principalmente aqueles com resíduos alfa-galactose, sendo o globotriasilceramida (Gb3). Outras patologias hereditárias conhecidas denotam de diferentes deficiências enzimáticas na via de metabolização dos glicoesfingolipideos (Figura 2)

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Figura 2 - Via de metabolização dos esfingolípideos – Em vermelho doença resultante da deficiência da enzima chave na via descrita.

O acúmulo dos glicoesfingolipideos, principalmente o Gb3, ocorre dentro dos lisossomos (organelas intracelulares presente em todas as células do corpo humano), gerando assim uma disfunção celular progressiva e cumulativa desde os primeiros anos de vida até a morte do indivíduo. (Figura 3) Virtualmente, todos os órgãos do corpo humano são envolvidos, porém o endotélio é um dos principais acometidos, gerando assim os conhecidos fenômenos vasculares isquêmicos precoces. (3)

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Figura 3 - Via metabólica com erro inato responsável pela doença de Fabry

No rim, esse acúmulo ocorre de forma universal. Devido a características próprias, o podócito é a célula que mais apresenta depósitos de Gb3 ocasionando assim grande grau de disfunção podocitária já nas primeiras décadas de vida expressos clinicamente por proteinúria sub-nefrótica e até nefrótica e consequente disfunção renal. (Figura 4) (3)

Figura 4- Eletrofotomicrografia de bíopsia renal de portador de Doença de Fabry - No detalhe, acúmulo de glicoesfingolipideos

Macroscopia

Descrições macroscópicas são raramente encontradas, porém os rins podem estar aumentados de tamanho globalmente devido ao acúmulo de material. Múltiplos cistos renais ou parapiélicos podem estar presentes em até 50% dos acometidos, a incidência destes cistos

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aumenta com a idade, no entanto não se correlaciona com atividade residual enzimática, tipo de mutação ou função renal. (4)

Exame de urina

A avaliação da urina de pacientes com doença de Fabry pode apresentar com grandes quantidades de glicoesfingolipideos, que em microscopia de fase / polarizada se apresentam como corpos ovais ou até cruzes de malta assimétricas. (Figura 4)

Figura 4 – A – Microscopia de fase de amostra urinária mostrando diversos corpúsculos ovais. B – Microscopia polarizada demonstrando corpúsculos de malta (4 gotículas organizadas simetricamente) C – Microscopia de fase e detalhe da microscopia polarizada de corpúsculo oval assimétrico com cruz de malta assimétrica, característicos da doença de Fabry.

Microscopia óptica

Os achados na microscopia ótica são considerados fáceis de correlação diagnóstica. O acometimento é predominantemente glomerular via presença de células aumentadas de tamanho e com presença de inúmeros vacúolos intracelulares. Dentre as células do tufo glomerular, o podócito é o que apresenta maior acometimento de vacuolização citoplasmática, entretanto o endotélio capilar, células mesangiais e inclusive células do epitélio parietal da cápsula de Bowman também podem estar acometidas. Esses depósitos e vacúolos também geram um importante espessamento da membrana basal glomerular com finos pontos da vacuolização.

Esses vacúolos classicamente aparecem como figuras negativas nas preparações com parafina pois os glicoesfingolipideos acumulados são removidos durante o processamento do material para emblocamento em parafina. Se o material for preservado fresco ou fixado somente em formalina, os vacúolos vão se apresentar birrefringentes, autoflourescentes e fortemente corados por métodos que utilizem o Sudan, oil red O e ácido periódico de Schiff.

Com relação ao compartimento vascular, também podemos encontrar os mesmos vacúolos nas células endoteliais e na camada muscular lisa, gerando inclusive espessamenos médio-intimais não compatíveis com a idade cronológica. Já citando o compartimento intersticial, também podemos presenciar os vacúolos nas células tubulares e presença de células gigantes espumosas.

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Em heterozigotas (mulheres portadoras do traço), os vacúolos também podem ser encontrados, porém em menor quantidade e grau de afecção.

A progressão natural da Doença de Fabry renal gera esclerose mesangial glomerular (padrão GESF like), espessamento e esclerose da parede vascular inespecífico, atrofia tubular e fibrose intersticial.

Os achados da microscopia por imunoflourescencia são escassos, muitas vezes sendo negativos ou demonstrando somente “trappings” glomerulares focais e segmentares de imunoglobulinas

Microscopia eletrônica

A microscopia eletrônica de transmissão demonstra lisossomos aumentados e preenchidos por material osmofílico, com membrana de forma lamelar a granular dando um aspecto descrito como “corpo de zebra”. Essas inclusões são especialmente vistas em podócitos, células do epitélio de bowman, epitélio tubular distal e miócitos vasculares, entratanto elas são descritas em virtualmente todas as células renais.

Transplante

Como o enxerto renal apresenta expressão genética da alfa-GAL A, o transplante renal corrige a insuficiência renal com grande eficácia, com boa função do enxerto e sobrevida em longo prazo. (5) Quando investigado via biópsia, esse enxerto pode demonstrar em menor intensidade, os mesmos vacúolos, porém isso é infreqüente e sem correlação com disfunção do enxerto.

Marcadores de Resposta terapêutica a TER (beta-agalsidase)

O tratamento com terapia de reposição enzimatica (beta-Algasidase) demonstra clareamento dos vacúolos em biópsias protocolares (6) além de melhora de sintomatologia e redução da progressão da doença renal (7).

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Apesar de já estar disponível uma terapêutica efetiva e eficaz, ainda é de grande dificuldade a análise de clareamento e resposta terapêutica a terapia de reposição enzimática. Grupos internacionais de especialistas sugerem sistemas de escores com contabilização de variáveis na biópsia (Grau de vacuolização podocitária, presença e forma da esclerose glomerular, aderências, colapso glomerular, fibrose intersticial, hialinose arterio-arteriolar. E inclusões tubulares e no endotélio vascular. (8)

Quadro clínico

O curso clínico da doença de Fabry acomete diversos sistemas, de forma variável e por vezes devastadoras, incluindo coração, rins e sistema nervoso (central e periférico). De acordo com o padrão de herança geneticamente condicionado e ligado ao X, os homens hemizigotos (ou seja, portadores do X com a mutação) apresentam uma condição clínica mais florida e proeminente em comparação a mulheres heterozigotas, as quais podem apresentar variações de espectros clínicos dependente do sistema de lyonização do cromossomo X.

Manifestações neurológicas

As manifestações neurológicas são as mais comuns e precoces na apresentação da doença de Fabry. Parestesias acrais, hipohidrose ou até anidrose, além de crises de dor neuropática podem surgir desde a infância / pré adolescência. Sintomas de disautonomia e redução da motilidade gastro-intestinal também podem estar presentes. Essas manifestações são acarretadas pelos depósitos de glicoesfingolipideos diretamente nos corpos axonais.

Depósitos de glicoesfingolipideos no endotélio vascular pode precipitar quadros cérebro-vasculares, principalmente em território de circulação vertebro-basilar, com manifestação de vertigem, nistagmos, náuseas e vômitos incoercíveis, cefaleia e até ataxia. Quadros demenciais já foram descritos pelo depósito de glicoesfingolipideos em vasos de pequeno calibre intracerebrais. Acidentes vasculares encefálicos, como hemorragias e infartos também podem ocorrer.

Manifestações oculares

Alterações corneanas são comumente descritas em pacientes com Doença de Fabry, tanto do sexo masculino como feminino. A anormalidade é descrita como córnea Verticillata e são referidas como espirais de material esbranquiçado emergindo do centro da córnea (padrão de roda de bicicleta), sendo vistas à partir de uma lâmpada de fenda. Glaucoma e catarata também podem ocorrer.

Manifestações pulmonares

O acúmulo de glicoesfingolipideos em parede vascular e do trato respiratório podem também ocasionar distúrbios do tipo obstrutivos, mimetizando quadros asmatiformes na infância, principalmente em meninos, porém sem a presença de reversão da obstrução espirométrica após uso de broncodilatador.

Manifestações cutâneas

Classicamente, os pacientes com doença de Fabry apresentam angioqueratomas, essas lesões são de característica papulosas pouco elevadas ou maculares, vermelho-escuras, de

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número variável. Tipicamente, elas se localizam em nadegas, região periumbilical, genitália e coxas. (Figura 5)

Figura 5 - Manifestações cutâneas - Angioqueratomas

Manifestações cardíacas

O depósito de glicoesfingolipideos em tecido miocárdico pode ocasionar presença de bradicardias e taquiarritmias, sendo potencialmente fatais. Doença valvar também pode ocorrer.

Já o depósito em endotélio / vasos coronários pode levar a quadros anginosos e até infarto agudo do miocárdio.

Manifestações renais

O espectro de manifestação renal da doença de Fabry é bastante amplo, sendo descrito desde defeitos de concentração até doença renal terminal. A manifestação mais típica é a abertura do quadro com proteinúria sub-nefrótica com hematúria discreta a moderada na segunda década de vida, podendo em alguns casos causar até síndromes nefróticas em casos esporádicos. A deterioração da função renal é insidiosa, se iniciando em hipertensão até apresentação em franca uremia, o tempo médio de evolução final dos pacientes com doença de Fabry é ao redor da quarta ou quinta década de vida.

Diagnóstico

O diagnóstico de homens afetados é eminentemente clínico, com a ajuda das alterações oculares específicas (córnea Verticillata). A confirmação laboratorial pode ser realizada a partir da demonstração de baixa ou ausência atividade da alfa-Gal A em leucócitos, tecidos orgânicos ou cultura de fibroblastos do paciente em questão. O diagnóstico em mulheres é mais trabalhoso, já que estas podem apresentar expressão variável da atividade da alfa-GAL A. Dosagem urinária de ceramida digalactosideos ou trihexosideos podem corroborar o diagnóstico em situações clínicas complexas, assim como a avaliação oftalmológica com lâmpada de fenda.

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Técnicas moleculares podem identificar defeitos genéticos já descritos (gene GLA) e avaliar possíveis carreadores do gene defeituoso assintomáticos. Esta situação é de extrema importância no contexto da doação renal intervivos entre familiares com doença de Fabry.

A figura abaixo ilustra as propostas de possibilidade diagnóstica nas diferentes situações clínicas:

Figura 6 - Proposta diagnóstica da Doença de Fabry nos diferentes sexos e pré-natal

Existem guidelines que propõem a investigação de doença de Fabry em todos os pacientes, principalmente homens, com doença renal terminal. Especialmente naqueles com miocardiopatia e histórico de acidentes vasculares encefálicos em idade jovem. (9,10)

Figura 7- Resumo das recomendações para investigação de doença de Fabry

CATEGORIA TECNICAS UTILIZADAS

Atividade da alfa-GAL A em leucócitos, plasma ou cultura de tecidos

Sequenciamento do gene da alfa-GAL A e idenficação da mutação culpada ou teste para todas

as mutações familiares já conhecidas

MULHERES

Sequenciamento do gene da alfa-GAL A e idenficação da mutação culpada ou teste para todas

as mutações familiares já conhecidas ( Medida da atividade enzimática não é confiável)

PRÉ-NATAL

Sequenciamento do gene da alfa-GAL A e idenficação da mutação culpada ou teste para todas

as mutações familiares já conhecidas ( Medida da atividade enzimática não é confiável) HOMENS

SITUAÇÕES ONDE DOENÇA DE FABRY DEVE SER LEMBRADA

Presença de angioqueratomas Hipohidrose ou anidrose

Hipertrofia ventricular esquerda de origem indeterminada em jovens adultos Acidente vascular encefálico (Isquêmico ou hemorrágico) sem origem determinada

em jovens adultos

Doença renal crônica de origem indeterminada em pacientes jovens adultos Presença de múltiplos cistos renais em seio renal descobertos incidentalmente Episódios intermitentes de dores neuropáticas de moderada a grande intensidade,

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Tratamento

Após o advento da terapia de reposição enzimática (TRE), a doença de Fabry passou de uma sentença de doença com evolução para quadros clínicos debilitantes e necessidade de terapia renal substitutiva para uma doença com terapêutica individualizada e com bons desfechos clínicos (renais, cardíacos e qualidade de vida em geral), tanto em ensaios randomizados quando meta-analises – sendo inclusive já indicado em pacientes portadores assintomáticos. (11-15)

A TRE disponível no Brasil é composta pela droga beta-galactosidade recombinante, a dose preconizada é de 1mg / kg de peso a cada 2 semanas indefinidamente, ou pela alfa-galactosidase recombinante. Além da TRE, todo paciente com nefropatia deve receber tratamento anti-hipertensivo, acompanhamento nutricional e nos casos com proteinúria, deve-se adicionar um inibidor da enzima conversora de angiotensina ou bloqueador do receptor de angiotensina.

Pacientes com doença renal terminal em hemodiálise ou diálise peritoneal podem ser candidatos a transplante renal, a sobrevida do enxerto é descrita como excelente, sem descrição repercussão clínica desfavorável da doença de Fabry no enxerto renal, principalmente nos pacientes que estão em TRE.

Referências

1- Fabry J. Ein beitrag zur kenntnis der purpura hemorrhagica nodularispurpura papulosa hemorrhagica hebrae. Arch Derm. 1898;43:187.

2- Anderson W. A case of “angio-keratoma”. Br J Dermatol. 1898;10:113-117.

3- Terryn W, Cochat P, Froissart R, et al. Fabry nephropathy: Indications for screening and guidance for diagnosis and treatment by the European Renal Best Practice. Nephrol Dial Transplant. 2013;28:505-517

4- Ries M, Bettis KE, Choyke P, et al. Parapelvic kidney cysts: A distinguishing feature with high prevalence in Fabry disease. Kidney Int 2004;66:978.

5- Mignani R, Gerra D, Maldini L, et al. Long-term survival of patients with renal transplantation in Fabry's disease. Contrib Nephrol 2001;229

6- Schiffmann R, Kopp JB, Austin HA, et al. Enzyme replacement therapy in Fabry disease: A randomized controlled trial. JAMA. 2001;285:2743-2748.

7- Germain DP, Waldek S, Banikazemi M et al. Sustained, long-term renal stabilization after 54 months of agalsidase beta therapy in patients with Fabry disease. J Am Soc Nephrol 2007; 18: 1547– 1557

8- Fogo et al. Scoring system for renal pathology in Fabry disease: report of the International Study Group of Fabry Nephropathy (ISGFN), Nephrol Dial Transplant (2010) 25: 2168–2177

9- Ichinose M, Nakayama M, Ohashi T, et al. Significance of screening for Fabry disease among male dialysis patients. Clin Exp Nephrol. 2005;9:228-232.

10- Rolfs A, Bottcher T, Zschiesche M, et al. Prevalence of Fabry disease in patients with cryptogenic stroke. Lancet. 2005;366:1794-1796.

11- Eng CM, Banikazemi M, Gordon RE, et al. A Phase 1/2 clinical trial of enzyme replacement in Fabry disease: Pharmacokinetic, substrate clearance, and safety studies. Am J Hum Genet. 2001;68:711-722.

12- Schiffmann R, Kopp JB, Austin HA, et al. Enzyme replacement therapy in Fabry disease: A randomized controlled trial. JAMA. 2001;285:2743-2748.

13- Beck M, Ricci R, Widmer U, et al. Fabry disease: Overall effects of agalsidase alpha treatment. Eur J Clin Invest. 2004;34:838-844.

14- Terryn W, Cochat P, Froissart R, et al. Fabry nephropathy: Indications for screening and guidance for diagnosis and treatment by the European Renal Best Practice. Nephrol Dial Transplant. 2013;28:505-517.

15- El Dib RP, Nascimento P, Pastores GM. Enzyme replacement therapy for Anderson-Fabry disease. Cochrane Database Syst Rev. 2013;(2):CD006663.

Referências

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