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Lenin e Trotsky e o debate marxista sobre as tarefas da revolução na Rússia

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Academic year: 2021

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Lenin e Trotsky e o debate

marxista sobre as tarefas da

revolução na Rússia

Carlos Zacarias F. de Sena Júnior

Em janeiro de 1905, uma multidão de operários de diversos ramos da indústria, 200 mil pessoas segundo estimativas da época, entre homens, mulheres e crianças, haviam marchado para o centro da cidade de São Petesburgo, na Rússia, com o objetivo de protestarem frente ao todo poderoso Tzar, Nicolau II, contra as duras condições de vida e trabalho que se abatiam sobre a maioria da população. Sob a liderança do padre George Gapon, a multidão caminhava pacificamente e sem armas (os que estavam armados, tinham tido suas armas recolhidas por ordens de Gapon), com muitos levando imagens de Nicolau II e entoando cantos religiosos e o “Deus salve o Tzar”. Os trabalhadores, que reivindicavam jornada de oito horas, salário mínimo de um rublo por dia, abolição da hora extra compulsória sem pagamento e liberdade de organização, não tinham idéia de que os acontecimentos que protagonizariam em s e g u i d a d a r i a m e n s e j o a u m p r o c e s s o h i s t ó r i c o d e transformações que ganhariam a Rússia e o mundo. Não obstante, marchavam pacificamente levando consigo as décadas de atraso de um país semi-feudal, oprimido por séculos de autocracia, miséria e fome.

No texto da petição que a multidão pretendia entregar a Nicolau II, constava muito mais do que meras reivindicações por melhorias nas condições de vida da classe trabalhadora, pois a Rússia era um dos países mais atrasados da Europa e um dos países em que as hierarquias da sociedade nobiliárquica, onde apenas na segunda metade do século XIX os servos se haviam libertado, prevaleciam sobre a maioria da população das cidades e dos campos. Desta maneira, ficava evidente que ao lado da Rússia moderna do proletariado que pretendia emergir

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com as suas reivindicações e manifestações de massa, repousava ainda um bocado de passado de um país arcaico, mergulhado no obscurantismo que dialeticamente vinha sendo superado, como aparece no texto da petição:

“Senhor – Nós, operários residentes da cidade de São Petesburgo, de várias classes e condições sociais, nossas esposas, nossos filhos e nossos desamparados velhos pais, viemos a Vós, Senhor, para buscar justiça e proteção. Nós nos tornamos indigentes; estamos oprimidos e sobrecarregados de trabalho, além de nossas forças; não somos reconhecidos como seres humanos, mas tratados como escravos que devem suportar em silêncio seu amargo destino. Nós o temos suportado e estamos sendo empurrados mais e mais para as profundezas da miséria, injustiça e ignorância. Estamos sendo tão sufocados pela justiça e lei arbitrária que não mais podemos respirar. Senhor, não temos mais forças! Nossas resistências estão no fim. Chegamos ao terrível momento em que é preferível a morte a prosseguir neste intolerável sofrimento.”1

Apesar de sua marcha pacífica e ordeira, Nicolau II parecia não ter interesse em conhecer o teor das reivindicações dos trabalhadores e terminou não tendo o privilégio de ler o texto da petição, talvez o último de uma longa era, pois a multidão conduzida pelo Padre Gapon nem chegou a se aproximar do imponente Palácio do Tzar. Cercada por “cerca de 20 mil soldados fortemente armados”, que atiraram indiscriminadamente nos trabalhadores a uma distância mínima de poucos metros, centenas ou talvez mais de um milhar de mortos levaram consigo para as sepulturas parte das cinzas de uma Rússia que começava a desaparecer. Foi um massacre e apesar de não se saber quantos haviam sido mortos naquele “domingo sangrento”, sabia-se, por certo, “que uma época da história russa havia concluído abruptamente e uma revolução começara”.2

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em resposta ao massacre do dia 9 de janeiro em São Petesburgo. Envolvendo cerca de um milhão de trabalhadores e atingindo mais de cento e vinte cidades, paralisando minas, ferrovias e inúmeras fábricas, o conteúdo das greves que sacudiram a Rússia em 1905 produziu muito mais do que algumas simples transformações nas relações entre a sociedade e a autocracia, ou entre os trabalhadores das fábricas e os patrões. Foi uma verdadeira revolução no sentido estrito do termo, pois a Rússia semi-feudal e majoritariamente camponesa deixava para trás toda uma era de obscurantismo e arcaísmo nas relações entre as classes e a história assistia, pela primeira vez, o nascimento de uma experiência inédita produzida pelos trabalhadores urbanos, os modernos proletários. Com efeito, os sovietes foram o resultado mais importante do ensaio de 1905, como organismos de duplo poder que dirigiram a revolução e produziram as transformações qualitativas exigidas pela maioria da população. Não obstante o novo ainda estivesse por nascer, o velho havia sido superado pela história, assim como o fora o Padre Gapon que dali por diante teria um papel muito menor do que o de outras lideranças emergentes da velha Rússia.

Os acontecimentos ocorridos no dia 9 de janeiro de 1905, que os historiadores passaram a chamar de “ensaio geral” da Revolução Russa de 1917, inauguraram um longo processo de entrada em cena da classe trabalhadora daquele país, que viveu momentos de fluxo e refluxo das suas lutas, até que pudessem tomar o poder em Outubro de 1917. Mais do que um “ensaio geral”, entretanto, os significados da revolução de 1905 na Rússia iriam além das transformações que ela produziu na terra dos Urais, pois daria oportunidade a que as principais lideranças dos posteriores acontecimentos de 1917, Lenin e Trotsky, produzissem reflexões que redimensionariam o marxismo esterilizado dos gabinetes da social-democracia européia.

As tarefas da revolução na Rússia

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ao uso que a história fez do “fantástico plano de Gapon” que culminou na conclusão revolucionária de 1905 e na formação dos sovietes.3 Trotsky, que em 1905 havia presidido o soviete de

São Petesburgo, o mais importante de toda o país, esteve empenhado em estudar a fundo as implicações de uma revolução num país tão atrasado como a Rússia. Em função disso, travou uma das mais profícuas polêmicas do interior do marxismo, polêmica esta que culminou na elaboração da teoria da “Revolução Permanente” que, curiosamente nas suas origens, opôs o futuro comandante do Exército Vermelho, ao líder máximo do Partido Bolchevique.

Os termos do debate ocorrido em torno dos acontecimentos de 1905 remontam a um dos principais postulados do materialismo histórico que defende que uma “organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter”.4

Neste sentido, quais as possibilidades de uma revolução socialista triunfar num tão atrasado como a Rússia que sequer tinha desenvolvido completamente relações sociais de produção do tipo capitalistas?

Para Lenin, que no curso dos acontecimentos de 1905 desenvolveu um texto em polêmica com os mencheviques, a conquista do poder pelo proletariado, colocada na ordem do dia, não implicava numa imediata transição para o socialismo, haja vista a impossibilidade de se saltar etapas.5 Lenin tinha

em mente que o que estava em jogo na Rússia era a revolução burguesa e suas tarefas democráticas e por isso propunha a consigna de “ditadura revolucionária e democrática do proletariado e do campesinato”. Mas Lenin advertia aos mencheviques que, apesar de suas tarefas democráticas, portanto burguesas, as forças sociais que se opunham ao tzarismo, e que, portanto, deveriam se perfilar para a “vitória decisiva” sobre a autocracia, não poderiam contar com a presença da grande burguesia e dos latifundiários, visto

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“que eles nem sequer desejam uma vitória decisiva”. Para o líder bolchevique, a burguesia russa era incapaz, “pela sua situação de classe”, de empreender uma luta decisiva contra o tzarismo, justamente porque “a propriedade privada, o capital e a terra”, eram um lastro demasiadamente pesado para esta classe. Neste sentido, Lenin entendia que a “única força capaz de obter ‘vitória decisiva sobre o tzarismo’”, só podia ser o “povo, isto é, o proletariado e o campesinato, se se tomar as grandes forças fundamentais e se se distribuir a pequena burguesia rural e urbana (também ‘povo’) entre um e outro”. Não obstante, a vitória da revolução na Rússia, para Lenin, não converteria “ainda, de forma alguma”, a revolução russa de burguesa a socialista. De acordo com o líder russo, que antevia os profundos significados das transformações que se começavam a produzir na Rússia, a “revolução democrática” não ultrapassaria “diretamente os limites das relações econômicos-sociais burguesas”, e embora se fizesse apesar da burguesia, teria “importância gigantesca para o desenvolvimento futuro da Rússia e do mundo inteiro”.6

O fato é que em 1905, enquanto combatia os primeiros passos do reformismo no seu país, representado pela corrente menchevique, Lenin raciocinava rigorosamente dentro dos limites das proposições do materialismo histórico de Marx e Engels que pressupunha que as transformações profundas nas sociedades só poderiam ocorrer em meio a condições materiais concretas, de maneira que “a humanidade só levanta problemas que é capaz de resolver”. Em todo caso, se a humanidade havia levantado o problema da tomada do poder pelo proletariado, não era o caso de as condições estarem efetivamente colocadas para uma revolução socialista na Rússia? Com efeito, caberia se perguntar sobre os limites e possibilidades de um outro postulado do materialismo histórico, também central da formulação marxiana e engelsiana e intimamente articulado com as condições objetivas legadas pelo passado, que dizia que eram os homens que faziam a história. Desta forma, foi justamente Trotsky que descobriu o caminho que traria a

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revolução das suas tarefas democráticas, para o socialismo, através da teoria da Revolução Permanente, contribuindo de forma original e inovadora para superar a letargia do formalismo que pesava sobre o pensamento marxista europeu.

S o b r e o a s s u n t o , T r o t s k y s e d e d i c o u a e s t u d a r o desenvolvimento do capitalismo na Rússia no início do século XX e as forças motrizes da revolução, para propor, que no que se referia às suas tarefas diretas e indiretas, a revolução russa seria uma “revolução ‘burguesa’, porque se propõe libertar a sociedade burguesa das correntes e grilhões do absolutismo e da propriedade feudal”. Contudo, pensava Trotsky, se a principal força condutora da revolução russa era a classe operária, a revolução era “proletária no que diz respeito ao seu método”.7

(p. 66) Ou seja, se em 1905 o proletariado russo havia avançado em nome dos seus próprios objetivos, quase todos eles contrapostos aos objetivos da própria burguesia que se limitava às tarefas democráticas da transformação, a revolução não poderia fazer retornar a “unidade da nação burguesa”, de maneira que, na “revolução burguesa sem uma burguesia revolucionária”, o proletariado seria conduzido “pelo desenvolvimento interno dos acontecimentos”, a assumir a hegemonia sobre o campesinato e à luta pelo poder do Estado”.

Não obstante, Trotsky não ignorava que o atraso do desenvolvimento russo poderia dificultar, ou mesmo impedir, o sucesso completo da revolução naquele país. Ou seja, para aqueles que apressadamente poderiam dizer “voluntarista” a formulação trotskiana, cabe mencionar que no seu estudo mais importante sobre o assunto, Balanços e Perspectivas, Trotsky partiu das forças da necessidade histórica, para propor que, apesar das condições objetivas legadas pelo passado, são os homens que fazem a história.8

Desta maneira, o presidente do soviete de São Petesburgo defendia a possibilidade de que a Rússia pudesse “saltar etapas”, tendo em vista que, de nenhuma maneira, uma sociedade atrasada, tendo diante de si um modelo

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histórico já pronto e desenvolvido, precisaria necessariamente percorrer o mesmo caminho da sociedade avançada. De acordo com Trotsky, isso ocorria em virtude da existência de uma outra lei histórica do desenvolvimento da sociedade descoberta pelo marxismo, qual seja, a lei do desenvolvimento desigual e combinado que aparece enunciada plenamente no seu texto sobre a História da Revolução Russa:

“As leis da História nada têm em comum com os sistemas pedantescos. A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processus histórico, evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de uma denominação apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas. Sem esta lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material, é impossível compreender a história da Rússia, como em geral a de todos os países chamados à civilização em segunda, terceira ou décima linha.”9

Neste sentido, quando pensava nas possibilidades de uma vitória do socialismo num país atrasado, Trotsky respondia a questão apenas de forma condicional, remetendo a outros aspectos que diretamente influenciariam nas possibilidades do socialismo vingar na Rússia. Com efeito, dizia Trotsky, caso o proletariado tivesse êxito em conquistar a hegemonia política sobre o campesinato, cujos interesses democráticos poderiam levá-los para o campo da burguesia, e dessa forma exceder “os limites nacionais da revolução russa, então essa revolução pode tornar-se o prólogo de uma revolução socialista mundial”.10 Ou seja, para o dirigente russo, as possibilidades

de o socialismo vingar na Rússia nas condições em que uma revolução proletária tomasse novamente aquele solo diziam

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respeito ao fato de que nenhum país poderia ser pensado isoladamente e nenhuma revolução poderia triunfar plenamente nos marcos e nos limites de uma só nação.

1917: a revolução permanente

Os resultados dos acontecimentos históricos que se abateram sobre a Rússia em 1917, deram razão aos postulados e vaticínios de Trotsky. Contudo, sem o gênio político de Lenin, a revolução de Outubro, muito dificilmente, teria logrado sucessor, isto porque se os resultados do embate entre Lenin e Trotsky em 1905-1907, não devem ser considerados como os mais importantes nos desdobramentos da Revolução de Outubro, não deixa de ser importante o fato de que foi da convergência de posições dos dois grandes líderes revolucionários que se produziu a melhor síntese que permitiu ao marxismo russo superar dialeticamente seus congêneres europeus. Trotsky parece ter sido vitorioso no que tange a efetividade prática de sua teoria da Revolução Permanente, mas sem a teoria do partido de Lenin, que lutara arduamente para edificar a ferramenta indispensável do Partido Bolchevique, inicialmente criticada por Trotsky, a revolução muito dificilmente teria t i d o s u c e s s o n a R ú s s i a . E s e T r o t s k y r e c o n h e c e u a superioridade da formulação leniniana do partido já em 1917, quando aderiu à organização bolchevique e dirigiu, junto com Lenin, a Revolução de Outubro, Lenin, à sua maneira, aderiu a formulação trotskiana da Revolução Permanente em abril de 1917, através das famosas Teses de Abril. Estas colocaram a tomada do poder pelos sovietes na ordem do dia para os bolchevques, que também passaram a ser exortados por Lenin a fazerem transitar a revolução da sua etapa burguesa para a etapa socialista.11

Para o líder bolchevique, após a revolução de fevereiro e os acontecimentos que se produziram na consciência dos trabalhadores russos em poucos meses, colocar a conclusão da revolução burguesa nos marcos de uma longa etapa, como havia

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pensado originalmente em 1905, seria esterilizar o marxismo que é, antes de tudo, “análise concreta de situação concreta”. Neste sentido, pensava Lenin, na circunstância em que uma guerra atingia a Europa e as possibilidades do socialismo na Rússia se ligavam umbilicalmente a vitória da revolução mundial, a revolução russa seria, apenas, “a primeira etapa da primeira das revoluções proletárias geradas inevitavelmente pela guerra”. Por isto, a tarefa urgente dos bolcheviques era lutar pelo papel dirigente do proletariado na revolução e “explicar ao povo a urgência de uma série de passos praticamente maduros em direção ao socialismo”.1 2

O sucesso da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, foi o resultado de um longo processo de amadurecimento de condições históricas que, de maneira desigual e combinada, prepararam o mundo para o socialismo. Evidentemente, que os desdobramentos daquela experiência que produziram a contra-revolução stalinista e a ascensão da burocracia, também estiveram relacionados a condições históricas muito particulares. Não obstante, como a nenhum marxista é dado o direito de raciocinar apenas sobre os termos em que os fatores objetivos criam as condições para a emergência das subjetividades, deve-se afirmar que ao lado das condições produzidas pela necessidade histórica, caminharam sempre os fatores da vontade e da agência humana. Sendo assim, da mesma forma que as derrotas posteriores da revolução mundial foram provocadas pela presença de direções stalinistas que estiveram à frente dos diversos processos, sempre a serviço da teoria do “socialismo num só país”, a vitória da revolução russa em 1917 deveu-se a existência de gênios políticos da estatura de Lenin e Trotsky, que estudaram a fundo as leis da necessidade histórica e os significados das revoluções para que pudessem incidir a fundo sobre a política de maneira a mudar o rumo da História.

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1 Apud BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. 9 ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 236.

2 Idem, ibidem, p. 237.

3 TROTSKY, Leon. A revolução de 1905. São Paulo: Global, s/d, p. 90.

4 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 25.

5 LENINE, V. I. “Duas táticas da social-democracia na revolução democrática”. In: Obras escolhidas. 3 ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1986, p. 406, v. 1.

6 LENINE, “Duas táticas…”, in: Obras escolhidas, Op. cit., p. 410-411, v. 1.

7 TROTSKY, A revolução de 1905. Op. cit., p. 72.

8 TROTSKY, Leon. 1905: resultados y perspectives. Madrid: Ruedo Ibérico, 1971. Alguns capítulos desta importante obra de Trotsky, ainda não traduzida em sua íntegra para o português, aparecem na edição brasileira da A revolução de 1905, da global citada anteriormente.

9 TROTSKY, Leon. História da revolução russa. A queda do tzarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 25, v. 1 (grifos no original).

10 TROTSKY, A revolução de 1905, Op. cit., p. 291.

11 Cf. LENINE, V. I. “Sobre as tarefas do proletariado na presente revolução”. In: Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, 1988, p. 14, v. 2.

12 LENIN, V. I. “VII Conferência (de abril) de toda a Rússia do POSDR(b)”. In: Id., ibid., p. 98.

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(www.pstu.org.br), em 2007, por ocasião da passagem dos 90 anos da Revolução Russa.)

Trotsky

fala

sobre

os

“Processos de Moscou” de

1936-1938 (Vídeo)

Discurso de Leon Trotsky, em inglês, para a Comissão Dewey, na Cidade do Mexico.

http://www.youtube.com/watch?v=DzNPXQo3_DY

Arqueomarxismo:

uma

apresentação

[A editora Alameda publicará no início de 2013 o livro

Arqueomarxismo: comentários sobre o pensamento socialista, de

Alvaro Bianchi. O blog CONVERGÊNCIA antecipa o lançamento e publica aqui a apresentação dessa obra.]

Alvaro Bianchi

Não quero deixar lugar a dúvidas: este livro, reunindo comentários a respeito do arqueomarxismo, é, de ponta a ponta, uma provocação. Os textos que têm nele lugar foram escritos algumas vezes com objetivos polêmicos explícitos e outras com a intenção de tornar públicas algumas ideias longamente

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elaboradas. Mas foram sempre provocações, procuravam mais ofender do que defender.

Ofender a quem? Certamente a um pensamento conservador falsamente ilustrado, que teima em desembainhar sua torta espada para atacar o espectro que o assombra. (Como se espadas pudessem enfrentar espectros!) Pois não é paradoxal que esse pensamento conservador o qual afirma que o marxismo é uma forma de arcaísmo e ainda mais uma forma derrotada pela história, viva organizando suas cruzadas na tentativa de vencê-lo mais uma vez? Mas também ofender certo marxismo que se converteu em ideologia de Estado ou que pretende sê-lo e para tal está sempre em busca de um novo guia genial, de um grande timoneiro, de um farol do socialismo.

Para que fique ainda mais claro esse caráter provocativo iniciarei definindo os termos que organizam este livro. Primeiro a noção de comentário. Seguindo livremente algumas ideias de Walter Benjamin quero distinguir um comentário de uma enquete. Uma enquete tem por objetivo escrutinar um objeto e emitir a respeito dele um juízo de fato ou mesmo de valor. Quando assume como objeto um pensamento político-social o escrutinador ideal comporta-se como o físico ideal diante de uma teoria: analisa sua consistência lógica, submete-a a testes, procura validá-la ou invalidá-la. Obviamente as técnicas de ambos são muito diferentes assim como os resultados que podem almejar. Mas é uma atitude típica que quero aqui destacar. O que caracteriza o comportamento do escrutinador é uma atitude ao mesmo tempo distante e desconfiada perante seu objeto.

Essa atitude na qual se sustenta a crítica já produziu grandes obras. Karl Marx fez um profundo exercício de enquete em Die heilige Familie oder Kritik der kritischen Kritik (A sagrada família, ou crítica da crítica crítica) esquadrinhando criticamente a filosofia alemã de sua época e principalmente a obra de Bruno Bauer. E retornou a esse gênero em Misère de la philosophie (Miséria da filosofia), uma avaliação implacável

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da obra de Joseph Proudhon Système des contradictions économiques ou Philosophie de la misere (Sistema de contradições econômicas ou Filosofia da miséria). Tais obras caracterizavam-se por um propósito negativo previamente anunciado. Foi contra Bauer e Proudhon que Marx escreveu. Seu distanciamento era o resultado de seu antagonismo.

Essa atitude crítica-negativa nem sempre foi assumida pelos escrutinadores. Sabe-se que muitas vezes o distanciamento e a desconfiança não passam de um programa, uma meta, um desejo. Mas frequentemente não são, senão, uma farsa. Um fingido distanciamento e uma simulada desconfiança são as máscaras às quais ao avaliador recorre para ocultar seus desejos, suas preferências, seus preconceitos, seu partido. O fato da enquete do pensamento político-social assumir uma forma similar àquela das ciências naturais torna a farsa mais fácil de ser executada e seu resultado mais plausível. O distanciamento transfigura-se, assim, em exterioridade e a desconfiança em repulsa; uma exterioridade e uma repulsa que se apresentam como o resultado de um empenho autodefinido como científico e não como algo que sempre esteve pressuposto.

A atitude assumida no conjunto de textos que compõem este livro não é a do escrutinador e sim a do comentador. Um comentário não tem as mesmas preocupações da avaliação. Não está interessado em analisar a consistência lógica de uma obra ou submetê-la a testes. Nem gasta seu tempo em validá-la ou invalidá-la. E sequer tem a obrigação de emitir juízos de fato ou de valor. O comentário parte do pressuposto de que a obra em questão já passou por tudo isso e sobreviveu às provas às quais foi submetida. O que se encontra diante dos olhos de um comentador é uma obra que resistiu ao tempo e que, por isso, não precisa mais ser avaliada ou submetida a um escrutínio crítico-negativo. O comentário, diz Benjamin, “difere da avaliação na medida em que se preocupa apenas com a beleza e o conteúdo positivo do texto.” (Benjamin, 2005, v. 4, p. 215). A atenção à “beleza e ao conteúdo positivo do texto” não

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extingue o caráter crítico do comentário. Comentar um texto não implica em uma atitude condescendente com ele ou com seu autor. Também não elimina as exigências de rigor e sobriedade próprias de uma atitude crítica. O comentário distingue-se fundamentalmente da avaliação na medida em que parte de um prejulgamento a respeito da relevância da obra e do autor em questão. Que horror! Uma prenoção! Pior ainda, um preconceito! Não é justamente disso o que um cientista, nos ensinou Durkheim, deveria se afastar? Mas quantas vezes o próprio Durkheim não expressou seus preconceitos para com o marxismo e o socialismo? É esta a diferença: o comentador não necessita tomar partido e sim reconhecer previamente o valor daquilo que assume como objeto, mas ele pode tomar partido. O comentador é um crítico sem culpas.

O próprio Benjamin nos deu um exemplo de comentário: aquele no qual tratando da obra poética de Bertold Brecht apresenta o conceito – Kommentare zu Gedichten von Brecht. Seu ponto de partida foi o reconhecimento do caráter clássico dos poemas de Brecht. A situação desse comentário era para Benjamin altamente “dialética”, uma vez que se tratava de tomar nas mãos uma coleção atual de poemas (há pouco publicados) e dar-lhe o tratamento de um texto clássico. Quem lê com desconfiança as críticas dos suplementos culturais da imprensa quotidiana que repetidamente anunciam um “novo clássico” para esquecê-lo na semana seguinte sabe quão arriscada foi a aposta de Benjamin. Mas sua aposta se confirmou: Brecht ainda hoje é lido e não deixará de sê-lo.

O fato de considerar os poemas de Brecht clássicos e de empenhar-se em mostrar sua “beleza e o conteúdo positivo do texto” não impediram Benjamin de criticar asperamente o poeta. A lírica de Brecht era contemporânea e desafiava as autoridades existentes e era isso que atraía o crítico. Ela também tinha um conteúdo político que se expressava poeticamente e era isso o que fazia o crítico tomar seu partido. Isso não impedia a Benjamin de perceber os limites

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dessa poesia e, particularmente, que condenasse a atitude do poeta perante o stalinismo e sua polícia política, a GPU (cf. p. ex. Benjamin, 2005, v. 4, p. 159). É essa modalidade de crítica anunciada por Benjamin que se quer aqui seguir.

Agora a noção de arqueomarxismo. Para alguns a palavra deve imediatamente trazer à mente algo muito antigo ou há muito deixado para trás. Para outros a lembrança dos exercícios de arqueologia dos saberes de Michel Foucault podem vir à memória. O que pretendo destacar com esse conceito não é nem uma nem outra coisa. O prefixo arqueo- deriva da palavra grega arkhé (ἀρχή) que quer dizer o princípio, o início do mundo, aquilo que começa e o que constantemente determina a marcha. O princípio, o início do marxismo deve ser evidentemente a obra de Karl Marx, mas não pode ser ele próprio, o qual, segundo narrou seu amigo Friedrich Engels, teria dito a Paul Lafargue que não era marxista: “Ce qu’il y a de certain c’est que moi, je ne suis pas Marxiste” (MECW, v. 46, p. 356).

Os marxistas vieram depois de Marx. Trabalharam a partir das pistas deixadas por suas obras, consolidaram ideias nelas presentes, abriram novos continentes para a pesquisa e a prática política. O marxismo, como movimento teórico e político necessitou, em seu próprio princípio, da intervenção de intelectuais e militantes socialistas que lhe deram forma e o converteram em uma força material, determinando desse modo sua própria evolução. As ideias desses homens e mulheres é o que se denomina de arqueomarxismo.

Vê-se como é insuficiente a recorrente exigência do retorno a Marx. Pois não há sentido em voltar a ele mais uma vez sem levar em conta as conquistas intelectuais e políticas que tiveram lugar após sua morte. A roda não precisa ser reinventada. Grandes inovações teóricas foram aí promovidas sobre um número variado de objetos. Particularmente no âmbito da crítica da política e da economia política o arqueomarxismo fez contribuições decisivas. Vladimir Lenin, Leon Trotsky, Rosa Luxemburg, Nicolai Bukharin e Antonio Gramsci formularam

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ideias importantes nessas áreas do conhecimento. Mas também foram relevantes as inovações registradas no âmbito da filosofia, particularmente por Karl Korsh e György Lukács, e da estética e da historiografia, pela obra de Walter Benjamin. Essas inovações permanecem até agora um marco. Hoje se pode afirmar um conhecimento mais aprofundado da obra de Marx. Alguns contemporâneos contribuíram até mesmo de modo decisivo para o desenvolvimento de pontos importantes da teoria econômica, social e política do marxismo. Mas quantos continuarão a ser lidos dentro de cinquenta anos ou mais, como os arqueomarxistas têm sido?

Os autores que são comentados neste livro foram muitas vezes identificados com um “marxismo clássico”. Com a noção de arqueomarxismo pretendo também afastar-me de um conceito de “clássico” que não consegue se livrar de uma carga fortemente conservadora, nem do compromisso com a ordem e a tradição.2 O compromisso dos autores comentados neste livro é, entretanto, outro: é um compromisso com a revolução social. Quando Lenin em Que fazer? afirmou que sem teoria revolucionária não existiria movimento revolucionário não estava se referindo exclusivamente a uma teoria para a revolução. Era o suficientemente cônscio do caráter inovador de seu empreendimento para não reconhecer o conteúdo transgressor de sua teoria.

A força do pensamento arqueomarxista está justamente em seu caráter transgressor. Lenin desafiou os pais do marxismo russo com sua teoria do partido; Trotsky estarreceu seus contemporâneos quando afirmou que era possível dar saltos no tempo histórico; Gramsci horrorizou a todos com sua batalha contra o economicismo; Benjamin espantou seus amigos quando decidiu explodir o continuum do tempo. O compromisso com a r e v o l u ç ã o i m p l i c a v a q u e s u a s p r ó p r i a s i d e i a s e r a m revolucionárias e subversoras de uma ordem teórica. Elas era anticlássicas. Toda tentativa de elevar esse pensamento à condição de clássico correspondeu a uma operação com vistas de

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retirar-lhes todo caráter de transgressão.

Quantas vezes, sisudos e bem comportados acadêmicos não anunciaram que Marx era um clássico, assim como Hegel e Nietzsche, Weber e Durkheim, Adam Smith e David Ricardo. Ao lado de tal ilustre companhia o barbudo de Trier poderia frequentar as aulas de filosofia, sociologia e economia das universidades como uma relíquia do passado, um exemplo de como se pensava antigamente. De fato, nas histórias canônicas dessas disciplinas lá está um bem comportado Marx, imobilizado ao lado de outros tantos, sem poder agitar os braços ao falar como soia fazer, sem poder pensar como de seu feitio, sem provocar como costumava. E quantas vezes o pensamento marxista não teve o mesmo destino, quantas vezes não foi citado para ser enquadrado e imobilizado ao lado de outros imortais do passado.

O que caracteriza o arqueomarxismo, entretanto, não é sua imortalidade, sua antiguidade ou o fato de ser ultrapassado e sim, justamente, o fato deste não pertencer exclusivamente ao pretérito, de não ter sido superado, de ter muito a nos dizer, de tratar de modo inovador e instigante problemas que são ainda os problemas do mundo contemporâneo. O lugar de uma relíquia é no passado ou em um presente artificialmente construído com vistas a simular o pretérito. O lugar do arqueomarxismo é no presente. Ele só faz sentido na medida em que puder continuamente provocar.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Selected writings. Cambridge, MA: Belknap, 2005, 4v.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected works. Nova York: International Publisher, 1976ss. (Citado como MECW).

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A

financeirização

da

burocracia sindical no Brasil

Alvaro Bianchi e Ruy Braga

Desde a eleição de Lula da Silva, em 2002, a relação do sindicalismo brasileiro com o aparelho de Estado modificou-se radicalmente. Nunca é demais rememorar alguns fatos. Em primeiro lugar, a administração de Lula da Silva preencheu aproximadamente metade dos cargos superiores de direção e assessoramento – cerca de 1.300 vagas, no total – com sindicalistas que passaram a controlar um orçamento anual superior a R$ 200 bilhões. Além disso, posições estratégicas relativas aos fundos de pensão das empresas estatais foram ocupadas por dirigentes sindicais. Vários destes assumiram cargos de grande prestígio em companhias estatais – como, por exemplo, a Petrobrás e Furnas Centrais Elétricas –, além de integrarem o conselho administrativo do BNDES. O governo Lula promoveu, ainda, uma reforma sindical que oficializou as centrais sindicais brasileiras, aumentando o imposto sindical e transferindo anualmente cerca de R$ 100 milhões para estas organizações.

Tudo somado, o sindicalismo brasileiro elevou-se à condição de um ator estratégico no tocante ao investimento capitalista no p a í s . E s t a f u n ç ã o , n ã o t o t a l m e n t e i n é d i t a , m a s substancialmente distinta daquela encontrada no período anterior, estimulou Francisco de Oliveira a apresentar, ainda no início do primeiro governo de Lula da Silva, sua hipótese acerca do surgimento de uma “nova classe” social baseada na articulação da camada mais elevada de administradores de fundos de previdência complementar com a elite da burocracia sindical participante dos conselhos de administração desses

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mesmos fundos.

Na opinião de Oliveira, a aproximação entre “técnicos e economistas doublés de banqueiros” e “trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência” serviria para explicar as convergências programáticas entre o PT e o PSDB e compreender, em última instância, o aparente paradoxo de um início de mandato petista que, nitidamente subssumido ao domínio do capital financeiro, conservou o essencial da política econômica estruturada pelos tucanos em torno do regime de metas de inflação, do câmbio flutuante e do superávit primário nas contas públicas.[1]

Ao mesmo tempo em que Oliveira avançava a tese da “nova classe”, apresentamos a hipótese de que o vínculo orgânico “transformista” da alta burocracia sindical com os fundos de pensão poderia não ser suficiente para gerar uma “nova classe”, mas seguramente pavimentaria o caminho sem volta do “novo sindicalismo” na direção do regime de acumulação financeiro globalizado. Apostávamos que essa via liquidaria completamente qualquer possibilidade de retomada da defesa, por parte desta burocracia, dos interesses históricos das classes subalternas brasileiras. Chamamos esse processo de “financeirização da burocracia sindical”.[2]

Assim como várias análises críticas do governo do Partido dos Trabalhadores o problema da hipótese da “nova classe” era explicar como se chegou até esse ponto. Não foram poucos os analistas que acreditaram que a Carta ao Povo Brasileiro, na qual Lula da Silva garantia a segurança dos operadores financeiros, teria modificado de modo radical o curso seguido até então pelo PT e seu candidato. A tese de uma transformação abrupta e imprevista só poderia encontrar apoio na ingenuidade do analista ou na sua incapacidade de enxergar as óbvias mudanças que se processavam nesse partido. A hipótese da “financeirização da burocracia sindical” enfrentava esse problema e localizava sua origem em uma burocracia sindical presente no partido desde seus primeiros passos no ABC

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p a u l i s t a e q u e a o l o n g o d o s a n o s 1 9 9 0 a s s o c i o u - s e gradativamente ao capital financeiro. A trajetória do PT só surpreendeu quem não quis ver ou ouvir.

A história recente da burocracia do Sindicato dos Bancários de São Paulo é exemplar. Como muitas entidades filiadas à CUT, a dos bancários de São Paulo alinhou-se com a administração Lula da Silva, transformando-se em porta-voz do governo na categoria. Em todas as situações nas quais os trabalhadores enfrentaram o governo, a diretoria dessa entidade procurou colocar-se na condição de amortecedor do conflito social, papel desempenhado pelos tradicionais pelegos sindicais. No jornal e nas revistas do Sindicato a propaganda do governo dá o tom.[3] O “Sindicato cidadão” deu lugar ao “Sindicato chapa-branca”.

Este não é, entretanto, um caso de simples adesismo. É possível dizer que a cúpula dos bancários de São Paulo foi o principal meio de ligação da aliança afiançada por Lula da Silva entre a burocracia sindical petista e o capital financeiro. Na verdade, como previmos, o cimento desse pacto foram os setores da burocracia sindical que se transformaram em gestores dos fundos de pensão e dos fundos salariais. O Sindicato dos Bancários de São Paulo forneceu os quadros políticos para essa operação. Enquanto os sindicalistas egressos das fileiras dos metalúrgicos do ABC ocupavam-se da política trabalhista e Luiz Marinho tomava assento no Ministério do Trabalho, os bancários de São Paulo voavam em direção ao mercado financeiro.

Pontos importantes de nosso argumento foram corroborados pela pesquisa de Maria Chaves Jardim que revelou a existência do que chamou de “elite sindical de fundos de pensão”. Os principais expoentes dessa elite seriam Luiz Gushiken, Ricardo Berzoini e Adacir Reis. Segundo a pesquisadora, “os membros dessa ’elite’ são oriundos do setor bancário de São Paulo, e fazem parte do núcleo formulador das políticas do PT; passaram pela FGV/SP, são de origem social de classe média, do sexo

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masculino, considerados brancos e heterossexuais.”[4] A esta lista seria possível acrescentar o nome dos ex-sindicalistas Sérgio Rosa e Gilmar Carneiro, este último também egresso da FGV.

As pretensões dessa “nova elite” eram antigas. Gilmar Carneiro, presidente do sindicato entre 1988 e 1994, declarou quando ainda era diretor do Sindicato dos Bancários, que ao fim de seu mandato poderia ser diretor do Banco do Estado do Rio de Janeiro do qual havia sido funcionário. Seu sonho não foi realizado, mas, logo a seguir, Carneiro transformou-se em diretor de um dos braços financeiros do Sindicato, a Cooperativa de Crédito dos Bancários de São Paulo. Seu predecessor Luiz Gushiken, presidente de 1985 a 1987, foi mais longe. No começo dos anos 2000, Gushiken mantinha a empresa Gushiken & Associados, juntamente com Wanderley José de Freitas e Augusto Tadeu Ferrari. Com a vitória de Lula da Silva a companhia mudou de nome e passou a se chamar Globalprev Consultores Associados. O ex-bancário retirou-se da empresa e coincidentemente esta passou, logo a seguir, a fazer lucrativos contratos com os fundos de pensão.[5] Tornou-se, assim, eminência parda dos fundos de pensão estatais sendo decisivo para a indicação do comando do fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, a Previ, da Petrobras, a Petros, e da Caixa Econômica Federal, a Funcef.

O sucessor de Gushiken e Carneiro, Ricardo Berzoini, tem também sólidos laços com o sistema financeiro. Foi ele o promotor da reforma da previdência, que além de retirar direitos dos trabalhadores abriu o caminho para instituição da previdência complementar. Os fundos de pensão estatais e privados foram os grandes beneficiados por essa medida. Berzoini tem sido recompensado. Levantamento feito pelo jornal

Folha de S. Paulo em 2009 constatou que 43 diretores de fundos

de pensão tem vínculos com partidos políticos, a maioria deles com o PT. Desses diretores 56% fizeram doações financeiras a candidatos nas últimas quatro eleições e o então presidente

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nacional do PT, Ricardo Berzoini, recebeu quase um terço delas.[6]

A conversão de dirigentes sindicais em gestores financeiros tem um caso exemplar: Sérgio Rosa. Este gestor começou sua carreira como funcionário do Banco do Brasil, integrando a diretoria do Sindicato dos Bancários de São Paulo na gestão de Luiz Gushiken. Em 1999, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, Rosa assumiu um cargo de diretor da Previ, representando os funcionários do banco. Com a posse de Lula da Silva, passou à posição de presidente da Previ, comandando o maior fundo de pensão da América Latina e o 25º do mundo em patrimônio. Após o final de seu mandato assumiu o comando da Brasilprev, a empresa de previdência aberta do Banco do Brasil. Em janeiro de 2011, aos 50 anos, Rosa aderiu ao “programa de desligamento de executivos” do BB e se aposentou.[7]

A financeirização da burocracia sindical é um processo que divide fundamentalmente a classe trabalhadora e enfraquece a defesa de seus interesses históricos. Na condição de gestores dos fundos de pensão, o compromisso principal deste grupo é com a liquidez e a rentabilidade de seus ativos. Muitos têm argumentado que os fundos teriam um papel importante na seleção de investimentos ecologicamente sustentáveis e geradores de empregos. Pura enganação.

Os fundos de pensão brasileiros têm atuado como uma linha estratégica do processo de fusões e aquisições de empresas no país e, consequentemente, estão financiando o processo de oligopolização econômica com efeitos sobre a intensificação dos ritmos de trabalho, o enfraquecimento do poder de negociação dos trabalhadores e o enxugamento dos setores administrativos. Isso sem mencionar sua crescente participação em projetos de infraestrutura, como a usina de Belo Monte, uma das principais fontes de preocupação dos ambientalistas brasileiros.[8]

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Tendo em vista a natureza semiperiférica de sua estrutura econômica, o Brasil apresenta importantes dificuldades relativas ao investimento de capital. A taxa de poupança privada é historicamente baixa e a solução para o investimento depende fundamentalmente do Estado. Os fundos de pensão atuam nesta linha, buscando equacionar a relativa carência de capital para investimentos. O curioso é que, no período atual, a poupança do trabalhador, administrada por burocratas sindicais oriundos do novo sindicalismo, está sendo usada para financiar o aumento da exploração do trabalho e da degradação ambiental.

Notas:

[1] Francisco de Oliveira. Critica a razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, p 147.

[2] Alvaro Bianchi; Ruy Ruy. Brazil: The Lula Government and Financial Globalization. Social Forces, Chapel Hill, v. 83, n.4, p. 1745-1762, 2005.

[3] O site do Sindicato dos Bancários de São Paulo parece uma peça de campanha eleitoral. Em 2011 podia se ler nele: “A estabilidade econômica, com crescimento médio de 3,6% da economia a cada ano desde 2002 e a criação, no mesmo período, de 10,8 milhões de novos postos de trabalho no mercado formal, reforçaram o poder dos trabalhadores e deram base para a política de valorização do salário mínimo e da correção da tabela do IR, entre outros avanços importantes garantidos durante os oito anos do governo Lula.”

[4] Maria Chaves Jardim. “Nova” elite no Brasil? Sindicalistas e ex-sindicalistas no mercado financeiro. Sociedade e Estado. Brasília, v. 24, n. 2, 2009.

[5] Ronaldo França. Ação entre amigos. Veja, n. 1912, 6 jul. 2005 e Fundos de pensão contratam antigos sócios de Gushiken. Folha de S. Paulo, 3 jul. 2005, Primeiro Caderno, p. 12. Há indícios de que a influência de Gushiken não diminuiu após sua

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saída do governo. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo: da “lista dos dez maiores fundos de pensão de estatais brasileiras, seis estão sob comando do PT e a maioria deles ainda é dirigida por apadrinhados dos ex-ministros petistas José Dirceu e Luiz Gushiken, que deixaram o governo há quase quatro anos, em meio ao escândalo do mensalão.” (Dirceu e Gushiken ainda dão as cartas nos fundos. O Estado de S. Paulo, 4 mar. 2009.)

[6] Ranier Bragon. PT tem diretores em 7 dos 10 maiores fundos. Folha de S. Paulo, 8 mar. 2009.

[7] Um relato minucioso da trajetória de Rosa pode ser lido em Consuelo Dieguez. Sérgio Rosa e o mundo dos fundos. Revista Piauí, São Paulo, n. 35 agosto de 2009.

[8] Aliás, o silêncio da CUT a respeito das greves operárias nas obras do PAC, especialmente em Jirau, sem mencionar sua completa inação após o anúncio da empresa Camargo Corrêa de demitir 4.000 trabalhadores, poucas horas depois de um acordo coletivo com a mesma empresa ter sido celebrado pela central, obviamente não são produtos de sua súbita inexperiência à mesa de negociação. Muito ao contrário: a iminência de grandes eventos como a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas do Rio, em 2016, aumenta exponencialmente a demanda por investimentos em infraestrutura que dependem fundamentalmente do capital estatal e dos fundos salariais. Desde que não hajam atrasos nas obras, o que implica, naturalmente, a “pacificação” dos canteiros e a supressão de movimentos grevistas, trata-se de l u c r o l í q u i d o e c e r t o p a r a a b u r o c r a c i a s i n d i c a l financeirizada. Ainda que às custas da crescente degradação das condições de trabalho nos canteiros de obras.

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Uma

crítica

a

Kurz:

objetivismo

teórico,

catastrofismo econômico e

impotência política

Valério Arcary

“Duas luvas da mão esquerda não perfazem um par de luvas. Duas meias verdades não perfazem uma verdade.” (Eduard Douwes

Dekker, alias, Multatuli — 1820-1887)

A elaboração de Robert Kurz chegou a ter alguma repercussão no Brasil nos anos 1990, e ainda hoje mantém uma pequena influência em círculos universitários e, curiosamente, em Fortaleza. Os seus argumentos merecem ser considerados e submetidos à crítica.

Argumentamos em outros textos que, no século XX, revoluções foram mais freqüentes que em qualquer outra época histórica. E continuam sendo cada vez mais prováveis. Em contrapartida, concluímos, também, que as transições ao socialismo revelaram-se muito mais difíceis do que foi elaborado na tradição marxista. Em outras palavras, ocorreram no que diz respeito à elaboração do marxismo clássico sobre a teoria da revolução, duas surpresas históricas.

S u r p r e s a s n ã o s ã o a c i d e n t e s h i s t ó r i c o s . [ 1 ] S ã o desenvolvimentos inesperados que contrariam prognósticos e exigem atualização teórica, mas confirmam uma tendência, revelam uma constante, sugerem um padrão. A atualização de uma teoria não diminui a sua força explicativa, apenas confirma a sua vigência. Teorias que não se renovam, dogmatizam-se. Nenhuma teoria com ambição científica permanece válida se não incorpora revisões impostas pelas transformações da realidade.

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Todavia, sempre que foram necessárias atualizações teóricas, o grau de dispersão política se eleva à enésima potência. Este texto defende duas teses programáticas fortes do marxismo que julgamos serem vitais: a centralidade da luta política marxista pela direção do proletariado, e a necessidade da conquista pelo proletariado da direção da luta de todos os oprimidos.

Esta é a dimensão subjetiva do desafio porque remete ao processo de formação da consciência de classe. Em outras palavras, ser marxista no início do século XXI é uma aposta estratégica que tem dois alicerces: a confiança histórica de que enquanto o proletariado existe e luta poderá redescobrir a grandeza social de sua força; e a confiança de que a luta política dos revolucionários pela direção do proletariado poderá abrir o caminho da revolução socialista.

Quarenta anos de revoluções interrompidas

Consideremos, primeiro, o curso inesperado da “longa marcha” da revolução mundial e, em seguida, as hipóteses de Kurz. A primeira surpresa foi o grau elevadíssimo de substitucionismo social nas revoluções do século XX. A maioria das revoluções proletárias foi derrotada (França/1871; Alemanha/1923; Espanha/1936; Grécia/1945; Bolívia/1952; Portugal/1975, entre outras) e a maioria das revoluções vitoriosas não teve como sujeito social a classe operária (Yugoslávia/1945; China 1949; Cuba 1959/1961; Vietnam 1975). O bloco de classes disposto a ações revolucionárias foi muito mais amplo do que a hipótese formulada por Léon Trotsky. E ele foi, entre os marxistas revolucionários da primeira metade do século XX, aquele que com maior audácia atualizou a formulação do marxismo do século XIX, na sua teoria da revolução permanente.

Em outras palavras, em sociedades agrárias ou muito pouco urbanizadas, os camponeses e massas populares não proletárias, empurrados pelas sequelas de crises e guerras devastadoras, cumpriram um papel revolucionário inesperado que o marxismo

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n ã o t i n h a p r e v i s t o . M a s , s e o p r o t a g o n i s m o s o c i a l revolucionário das classes oprimidas não proletárias significou que o bloco social revolucionário poderia ser mais amplo – e, portanto, mais forte – demonstrou, também, os limites de processos revolucionários liderados por movimentos nacionalistas.

Todas as experiências de transição ao socialismo foram, em poucas décadas, bloqueadas. As restaurações capitalistas foram lideradas, invariavelmente, pelos aparelhos burocráticos estatais. As vitórias nacionais revolucionárias dos anos do pós-guerra deram lugar a derrotas que enlamearam a bandeira do socialismo. Um processo tão complexo de dialética de vitórias e derrotas não poderia deixar de provocar perplexidades. O paradoxo da história foi que não faltaram revoluções nos últimos cem anos, mas em nenhuma sociedade transformada por processos revolucionários se abriu e se manteve uma transição ao socialismo.

As revoluções do século XX foram, em sua maioria, revoluções políticas que não transbordaram em revoluções sociais. Dialeticamente, foram revoluções sociais interrompidas. Revoluções políticas transformam a forma da dominação do Estado, mas não deslocam o controle do Estado das mãos da classe dominante, porque não desafiam o fundamento histórico da dominação. Revoluções sociais são aquelas que alteram as relações econômico-sociais porque desafiam as relações de propriedade.

E m o u t r a s p a l a v r a s , o s é c u l o X X f o i o s é c u l o m a i s revolucionário da história, mas só excepcionalmente as revoluções se radicalizaram até o limite do rubicão do assalto ao capitalismo. A maioria das situações revolucionárias evoluiu até à queda de regimes tirânicos, ditaduras odiadas ou governos execrados, entretanto, pouparam a burguesia que protegia seus interesses com esses regimes. Portanto, o intervalo histórico entre as revoluções democráticas e as revoluções anticapitalistas, ou entre os Fevereiros e os

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Outubros, por analogia com a revolução russa de 1917, não deixou de aumentar.

A tentação catastrofista da iminência da crise final

O que nos diz Kurz? Em nossa opinião, a fuga em frente preferida de todas as análises de inclinação objetivista na história do marxismo, incluindo uma parte da tradição trotskista. O centro da questão metodológica foi desviar o foco para a análise da crise do capitalismo, para afastar-se da espinhosa análise da crise do movimento operário. Defende que o novo quadro histórico se definiria pela tendência ao esgotamento da forma mercadoria e pela anulação do valor, quase simultaneamente a conclusões semelhantes, neste tema, desenvolvidas por Mészáros:

“Se, no início do século XX, a transformação do modo de produção capitalista (…) (imperialismo, economia de guerra, taylorismo, ideologização das massas, etc.), (…) talvez a ruptura de época, no final do século XX, exija uma transformação ainda mais ampla. (…) Só agora, passado o período de incubação dos anos 80, as novas forças produtivas pós-fordistas da microeletrônica e seus conceitos correlatos de racionalização (descritos em seu conjunto, de acordo com o referencial teórico escolhido, como segunda ou terceira revolução industrial) mostram seu verdadeiro potencial de crise: pela primeira vez, a riqueza material (e também ecologicamente destrutiva) é produzida antes pelo emprego tecnológico da ciência que pelo dispêndio trabalho humano abstrato. O capital começa a perder sua capacidade de valorização absoluta e alcança com isso aquele estágio, ex-trapolado logicamente por Marx, no qual a forma de sociali-zação do sistema produtor de mercadorias – que ‘repousa no valor’ – esbarra em seus limites históricos.” [2]

A h i p ó t e s e d e K u r z é i n s t i g a n t e , m a s f l e r t a c o m o catastrofismo, porque sugere a possibilidade de que uma crise sem saída estaria em gestação. A premissa implícita por trás

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desta hipótese é que as crises do passado foram insuficientes para colocar na ordem do dia a estratégia da revolução mundial. Nessa perspectiva as revoluções do século XX foram prematuras. Por um lado, defende que o capitalismo já teria mergulhado a civilização na barbárie. Contudo, por outro, concentra-se na análise das mudanças trazidas pelas inovações tecnológicas da micro-eletrônica, exaltadas como um terceira revolução industrial, sem se perguntar qual o grau de coerência entre os dois postulados.

Kurz não parece dar importância aos desdobramentos destas duas linhas de interpretação. Primeiro, não parece difícil admitir que o capitalismo ameaça a vida civilizada. A questão é precisar, rigorosamente, se a barbárie já abriu o caminho ou não. A hipótese sempre foi cara para todos os marxistas, desde Engels e Rosa Luxemburgo. Se isso aconteceu, correspondeu a uma mudança de época. Consiste em afirmar que o capitalismo do final do século XX, em algum momento, deu um salto de qualidade regresssivo, e impôs uma derrota histórica irreversível.

Segundo, se o capitalismo ainda estava desenvolvendo forças produtivas e não forças destrutivas, e os computadores e a telemática já permitem ir além do valor e garantir a socialização imediata, significa que aconteceu um importante progresso material e cultural e, portanto, parece exagerado caracterizar a sociedade contemporânea como um estágio de barbárie. A análise de Kurz anuncia os limites históricos do modo de produção capitalista, mas quase nada sobre as perspectivas da revolução:

“A crise da forma-mercadoria é, no entanto, filtrada pelo movimento do mercado mundial (…) luta essa que possibilita (e domina) as próprias forças produtivas que serão res-ponsáveis pela desvalorização da força de trabalho. Os capitais mais produtivos abatem concorrencialmente aqueles que não podem mais acompanhar o elevado padrão de produtividade, mobilizando para tanto vultosas somas de

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capital fixo. Os velhos perdedores e os novos retardatários só podem continuar no páreo à custa de baixos salários (ou ainda trabalho forçado ou escravo) (…) Podia parecer, à primeira vista, que o processo de crise transcorreria de maneira escalonada(…) e deixaria por último as nações mais fortes do ponto de vista do capital, capazes de sustentar por mais tempo o processo de simulação monetária através do endividamento do Estado e do sistema de crédito. Primeiro sucumbiram as economias do Terceiro Mundo e do socialismo de Estado, que passaram a ser exemplo de uma ‘modernização tardia’, fadada desde então ao fracasso no interior do hori-zonte burguês. Nos anos 90, porém, a crise parece avançar a p a s s o s l a r g o s e m d i r e ç ã o à s e c o n o m i a s n a c i o n a i s estabelecidas.” [3]

Estamos diante de uma análise que identifica nas novas forças produtivas a capacidade de abrir uma época histórica em que mudam os fundamentos do processo de acumulação do capital. Inaugura-se uma fase de desenvolvimento que se definiria, tendencialmente, pela anulação histórica do valor.

A nova época histórica teria como traços constituintes a crescente barbarização das relações sociais, como expressão dos limites do trabalho com a forma mercadoria. Em outras palavras, a proporção de valor agregado pelo trabalho vivo seria cada vez mais irrelevante, na medida em que a ciência e a tecnologia se emancipam como a principal força produtiva, e a queda da taxa média de lucro atingiria tal nível, que o horizonte histórico dos limites da acumulação estariam cada vez mais próximos.

Decorre desta análise, de uma radicalidade objetivista que surpreende, uma nova compreensão do papel dos sujeitos sociais na luta anticapitalista. Kurz desenvolve a crítica da esquerda a partir da ótica da necessidade de superar o politicismo. A crítica do politicismo é compreendida com uma superação da política. Mas a política não deve ser reduzida pela crítica marxista à sua dimensão mais cenográfica,

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mesquinha, ritualizada, espectacularizada. A fórmula anti-p o l í t i c a d e K u r z n ã o c o n s e g u e e s c o n d e r a t e n t a ç ã o propagandista.

A disputa pela direção do proletariado contra os aparelhos reformistas sempre foi o beabá do marxismo. Aqueles que estão em minoria e querem lutar para ser maioria não podem se permitir o luxo de escolher o terreno da disputa, porque a relação de forças não o permite. O terreno da política- as eleições nos sindicatos, as campanhas salariais, a organização de marchas, a participação nas eleições – é imposto aos revolucionários por essa necessidade. As ilusões da classe operária nas possibilidades de regulação do capitalismo não se explicam sem a presença ativa, esmagadora e opressiva de aparelhos burocráticos que dependem destas ilusões, e parasitam a insegurança dos trabalhadores sobre sua capacidade de luta. Estes aparelhos não podem ser derrotados sem ser confrontados. A alternativa seria uma opção de auto-exclusão de tipo “anarquismo” tardio, uma versão pós-moderna dos falanstérios de Fourier.

O enfoque anti-político leva a desaparecer da análise uma história centrada nos sujeitos sociais e na luta de classes. Kurz não procurou esconder o seu propagandismo, não há mediações, e o derrotismo se manifesta nas entrelinhas. Portanto, um pouco à maneira luckásciana, mas por um outro ângulo, menospreza os elementos subjetivos. A impotência política revela-se de forma desinibida.

Crise de direção ou aburguesamento do proletariado?

A segunda surpresa histórica foi a imaturidade do proletariado em afirmar a sua independência política e manter a vigilância e controle sobre as suas organizações. O grau de dificuldade d o p r o l e t a r i a d o r e m e t e à s u a c o n d i ç ã o d e c l a s s e , economicamente, explorada, socialmente oprimida e politicamente dominada.

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Muito maior do que o previsto pelo marxismo do século XIX, a debilidade subjetiva da classe operária se expressou na longevidade da influência da social democracia e do estalinismo, de longe os dois maiores aparelhos burocráticos que parasitaram a representação política dos trabalhadores no século XX. O substitucionismo social e, em conseqüência, o papel de organizações nacionalistas foi uma das pressões que levou uma parte do marxismo a dizer “adeus” ao proletariado. Outro aspecto da análise de Kurz é o deslocamento do protagonismo revolucionário das mãos do proletariado:

“Os remanescentes do velho radicalismo chegam a ponto de denunciar os prognósticos de uma transição iminente para a barbárie global como ‘falsa certeza’(…) Os náufragos críticos da sociedade foram de tal modo arruinados pela política e imbecilizados pela agitação, que só pode lhes parecer amalucada a tentativa de analisar uma revolução industrial (a microeletrônica), lançando mão de conceitos teóricos de crise. Eles tomam por supérfluas tanto uma definição de época, quanto uma nova historização do desenvolvimento interno do capitalismo, pois este, concebido em conceitos escolares, nunca deixou de ser o mal de sempre, imutável (…) Eles não ousam mesmo acusar de ‘objetivismo’, precisamente, a análise e a crítica das estruturas (real-mente) objetivadas, por terem desde sempre operado com conceitos burgueses irrefletidos de sujeito e vontade. Não chega a espantar, assim, que a demanda por uma supressão da forma-mercadoria e da forma-política, que no atual estágio da crise do sistema mundial plenamente desenvolvido deve ser formulada de maneira muito distinta que no passado, seja vista como reformismo ou fundamentalismo. “[4]

S e g u n d o K u r z , o p r o l e t a r i a d o s e i n t e g r o u d e f o r m a irreversível: uma nova atualização das teses “soixante-huitards” vaticinando o aburguesamento dos trabalhadores. Mas uma classe que é explorada não pode renunciar à luta. Pode, simplesmente, escolher quando sente confiança em si mesma para

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lutar. Esta disposição de luta foi sabotada durante décadas pelos aparelhos reformistas, em especial o estalinista, que semearam entre os trabalhadores a ilusão das negociações, pactos e concertações para evitar situações de confronto, enquanto faziam a gestão do mal menor. Mas há um limite histórico para a eficácia dos aparelhos como última linha de defesa do sistema.

Todas as grandes revoluções políticas da nossa época foram, também, revoluções sociais em processo, porque só a mobilização de massas em grande escala pôde garantir a vitória das revoluções democráticas. Mesmo quando classificadas como democráticas, pelas tarefas colocadas, as revoluções políticas merecem caracterizadas como revoluções sociais incompletas, ou interrompidas, pelos sujeitos sociais que foram convocados para o seu triunfo. A armadilha da história é que as revoluções democráticas são processos em disputa cujo desenlace é incerto.

Não eram vermelhas as bandeiras dos jovens que saíram às ruas de Túnis, do Cairo, da Líbia, do Bahrein, do Yemen, e de Aleppo na Síria. Inexistem organizações marxistas revolucionárias importantes no mundo árabe. A revolução voltou à primeira cena da arena mundial, porém, as massas populares em luta contra as ditaduras como as de Ben Ali, Mubarak, Gadhafi, Assad e os outros califas não fizeram reivindicações anticapitalistas. Entretanto, as situações revolucionárias abertas nesses países ainda não se encerraram.

Aonde os ditaduras foram derrubadas, a revolução democrática foi uma antessala de combates de classe cuja dinâmica histórica será, objetivamente, anticapitalista, porque a c o n t r a - r e v o l u ç ã o d a n o s s a é p o c a h i s t ó r i c a f o i , invariavelmente, burguesa. Mas este terrível aprendizado de que as revoluções democráticas foram revoluções inacabadas terá que ser feito no calor das lutas que virão, ou seja, com uma margem de improviso político elevado.

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[1] Acidente histórico é uma fórmula que remete, entre outros temas, a formas estatais ou regimes políticos que foram bloqueados, destruídos ou derrotados. Tenta explicar, em elevado grau de abstração, processos muito singulares, como as Missões Jesuíticas no Cone sul da América Latina no final do século XVII e início do XVIII, por exemplo. Pode ser considerado um acidente histórico uma evolução temporária, porém insustentável ou até mesmo anacrônica, de uma sociedade (ou de uma nação). O conceito surgiu nas Lições sobre a filosofia da história de Hegel, e foi usado, também, por alguns marxistas. Uma das polêmicas sobre o tipo de sociedade que surgiu na URSS com o regime estalinista é se aquela seria ou não um acidente histórico. O texto de Hegel pode ser e n c o n t r a d o e m : http://pt.scribd.com/doc/57456425/HEGEL-Em-Licoes-de-filosofia -da-Historia. Consulta em 13/12/2012

[2] KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis, Vozes, 1998. p.67-68.

[3] Idem.

[4] Idem, p.75-76.

Sociedade civil: a fera

amansada

Alvaro Bianchi

As últimas décadas do século XX presenciaram a emergência de novos movimentos sociais e de um renovado associativismo. Vinculado ao vigoroso ascenso dos movimentos sociais no final da década de 60, à luta pela expansão dos direitos fundamentais e à afirmação da identidade de atores sociais até

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então marginalizados, esse processo renovou as formas tradicionais de participação política introduzindo novas tácticas de mobilização popular e novas formas organizativas.

Novas formas de associação

De maneira genérica, podemos apontar três processos que ocorreram a partir do final dos anos 1960 e formatam o contexto no qual esses novos movimentos e organizações tiveram lugar: crise/crítica das formas tradicionais de organização política consubstanciadas nos partidos comunistas e social-democratas e nos sindicatos tradicionais; crise/crítica do Estado de bem-estar social e do seu potencial de controle e passivação das classes subalternas; crise/crítica dos regimes antidemocráticos da América Latina e do Leste europeu.

Tais processos, combinados de maneira desigual, deram origem a formas de associação e participação política que, rompendo com antigas instituições, inauguraram um novo ciclo de organização popular, introduzindo práticas sociais inovadoras, criando novos espaços de participação política, reinventando a solidariedade e produzindo formas originais de organização. A emergência de uma dimensão produtiva na sociedade civil tem alimentado as teorias ditas do terceiro sector, do sector não-lucrativo ou sector público não-estatal. Nessas teorias, é identificada a possibilidade de uma esfera que, definindo-se como pública porque voltada ao interesse geral, coloca-se à margem do Estado, retirando a sua força da sociedade civil. É esta a esfera dos novos movimentos sociais, as associações sem fins lucrativos e as organizações não-governamentais (ONGs) que, ocupando espaços que o Estado não pode ou não quer preencher, produziriam bens e serviços de interesse colectivo. O facto de tais organizações se definirem como autônomas não tem impedido que, cada vez mais, realizem parcerias e convênios com o Estado e o sector privado. Através de contratos e financiamento, os Governos transferem, assim, para

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as organizações da sociedade civil parte das suas funções. Noutros casos, o Estado cede instalações e serviços já existentes a esse sector, como no processo de reforma do Estado na Inglaterra de Margaret Thatcher ou no projeto de criação de organizações sociais e reforma do Estado de Luiz Carlos Bresser Pereira no Brasil. A relação poderia, ainda, envolver o sector privado que, através de «parcerias estratégicas» com organizações da sociedade civil, implementaria estratégias de desenvolvimento econômico e s o c i a l o u f o r n e c e r i a s e r v i ç o s n e c e s s á r i o s p a r a , principalmente, comunidades carentes. Por último, existem situações em que agências internacionais de financiamento, c o m o o B a n c o M u n d i a l e a U n i t e d S t a t e s A g e n c y f o r International Development (USAID), realizam acordos de cooperação com tais organizações para a implementação de projetos políticos, econômicos e sociais.

Da dependência financeira…

Essa estreita relação existente entre as organizações da sociedade civil, o Estado e o mercado coloca sérias dificuldades para se pensar a autonomia das primeiras em relação às demais. As pesquisas comparativas que têm sido realizadas indicam a inexistência de uma clara autonomia financeira. O estudo internacional dirigido por Lester Salamon indicou que, para um conjunto de 35 países, uma média de 35% dos recursos das organizações do chamado «sector não lucrativo» eram provenientes dos cofres públicos, 53,4% da cobrança de taxas e apenas 11,7% de filantropia. Na Irlanda e na Bélgica a participação do Estado nessas receitas chega a 77%. No Brasil a fraca participação do Governo –15% – é compensada pela elevada cobrança de taxas, geralmente como contrapartida dos usuários de serviços públicos, responsável por 77% do orçamento dessas organizações.

É preciso, entretanto, tomar com cuidado esses dados. Nos países chamados «em desenvolvimento» há outras fontes de recursos, como os financiamentos provenientes de agências

Referências

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