1Endereço:UniversiddaedeBrasília,InstitutodePsicologia,Campus UniversitárioAsaNorte,Brasília,DF70910-900.
QuemsãoEles?
FranciscoMartins1eArílsonCorrêadaCosta UniversidadedeBrasília
RESUMO-OtextoapresentaanáliseserelexõesdesenvolvidasnoLaboratóriodePsicopatologiaePsicanálisedaUniversi-dadedeBrasíliaacercadaquestãodo(s)‘ele(s)’naobraOProcesso,deFranzKafka,eemumcasodedelíriodeperseguição. Investigou-seespecialmenteoestatutodopronome‘ele’naparanóia.Otrabalhomostraqueoentendimentodoque“é(são) ele(s)”éelementoessencialparaaelucidaçãodaquestãodaestranhezanapsicoseedaconstruçãodaatividadedelirante.O estudodadimensãoreferencialdalinguagemserevelaentãoparticularmenteimportante.Aolongodotextosãoapontadas algumasquestõesearticulaçõesentreaanáliseprocedida,apsicanálise,afenomenologiaeacomunicaçãolingüística,tendo comohipóteseessencialqueapsicoseconsistenaperdaereconstruçãonarcísicadafunçãoreferencialdalinguagem.
Palavras-chave:psicose;referência;delírio.
WhoareThey?
ABSTRACT-ThetextpresentsanalysisandrelectionsdevelopedatthePsychopathologyandPsychoanalysis LaboratoryoftheUniversityofBrasiliaontheissueofthe“he(they)”inFranzKafka’sworkTheProcessandon acaseofpersecutiondelusion.Theparticularstatusofpronoun“he”inparanoiaisinvestigated.Thepapershows thattheunderstandingofwhat“he(they)is(are)”isanessentialelementforelucidatingtheexperienceofthe strangenessinpsychosisandtheconstructionofthedelusionalactivity.Thestudyofthereferentialdimension oflanguagethenprovestobeofparamountimportance.Alongthetextonepointsoutsomeissuesandarticula-tionsbetweentheanalysiscarriedout,psychoanalysis,phenomenologyandlinguisticcommunication,havingas theessentialhypothesistheassumptionthatpsychosisconsistsonthelossandnarcissisticreconstructionofthe referentialfunctionoflanguage.
Keywords:psychosis;reference;delusion.
OSr.K.eele(s)
NaleituradeOProcesso nãotemostempoparaumarele-xãoquecrieumaatividaderepresentativaequenoscoloque naexterioridadedavidadeJosephK.Somossurpreendidos ou,melhorainda,jogadosrepentinamenteemummundoes-tranho,dechofre,semnenhumpreparo.OSr.K.,aoacordar, temanítidaimpressão,umacertezaqueseestabelecepasso apasso,dequeestásendocaluniadoporalguém.Acalúnia, rápido, muito rápido mesmo, começa a se efetivar como umaperseguiçãocomaresdelegalidade.Avisitasurpresa sofridaporJosephK.desencadeiaumaexperiênciadeterror. Avivênciaconstruídaapartirdosusto,,dodespreparoeda intrusãoviolentacolocaJosephK.frenteaumainstância desconhecida.Maisalémdacalúnia,daviolência,daexpe-riênciadaagressãogratuita,éterriicantequenãosejadada precisãoaessealguém,aesse“ele”incógnito.
“Eles”nãopronunciamaacusação.Asuaindeterminação eafaltadereferenciaissãooselementosutilizadosnanarra-tivadeKafkaparacriaraatmosferaparanóica.Esse‘ele’que permaneceigualmenteindeterminadonosingular,podendo serosistema,aempresa,oestado,qualquerpessoa,umami-go,uminimigo,éprofundamenteameaçador.Asperguntas queJosephK.seformulafrenteaogrupodedesconhecidos queointerpelasãosigniicativasnabuscadesereferenciar nesteestranhoeestranhadomundo:oqueéisto?,ondees-tou?,emquemomentoizalgoerrado?Conjuntamentecom outrasperguntas,taiscomo“quemsoueu?”,“seráqueeusou culpado?”,JosephK.concentrasuaangústianabuscadesse
‘Objetsinanimés,avez-vousdoncuneâme?’
Lamartine
‘ele’indeterminado,impessoal,faceàinstânciadesconhecida nainterrogativafundamental:quemsãoeles?
Deinitivamente o mundo está inseguro, afastado do aconchego dos que podem amá-lo. Deinitivamente passa aocorrerumapreocupaçãoextremadacom‘ele’,comuma concomitantedegradaçãodasituaçãodeinterlocução:todos podemviraser‘ele(s)’,desaparecendooalocutor.Emerge umdiscursoondeo‘tu’,osujeitoaquemsedirigeapalavraé virtualmenteum‘ele’,ocorrendoporissomesmoademolição destealocutor,crescendoo‘eu’eo‘ele’.
Emerge no livro de Kafka uma proximidade com o discurso tipicamente paranóico, na medida em que icam pairandosobreo‘eu’possibilidadesininitasdeafetaçãoe ataques.Contudo,nodiscursodoSr.K.,mesmosofrendoa perseguição,inquéritos,apresentaçõesemumjúri,enim,um processo,nãopodemosdizerqueoSr.K.estariapuraesim-plesmentesofrendodeumdelíriodeperseguição.Eleéum deliranteempotencial.OgênioliteráriodeKafkamantémem suspensoatéoinaldaobra,oobjetodoprocesso,osnomes dosperseguidores,osmotivos;enim,nadasabemossobre essadimensãoterceira,objetododiscursodoSr.K.
Nasfalasdenossospacientesparanóicosencontramos essamesmademoliçãodoprocessodeinterlocução.Elesfa-lammuitodesiedoobjetodoseudiscurso,viaderegra‘ele’ pessoa,coisa,objeto.O‘tu’tendeadesaparecer,namedida quenemsempreéconsideradocomodignodeinterlocução. Conhecemosdelongadataaquerelâncianaparanóiaeos riscosdeste‘tu’sertomadocomoumadversário.Diferen-tementedoSr.K.,osparanóicosconseguemdarprecisões acercadequemsão“eles”eatéconstroemumsaberacerca deumasériedeobjetos.Emoutraspalavras,elesconstroem todoummundonovo.
Nossa interrogação acerca desse ‘ele’ indeterminado leva-nos necessariamente a estudar a chamada função de referenciaçãodalinguagem.Istoé,apossibilidadequetema linguagemdenosenviaraomundoextra-lingüístico,sejaele real,efetivo,material,ouimaginário,possível.Estemundo extra-lingüísticoémediadonainterlocuçãoprincipalmente pelareferênciaaessaterceirapessoa,objeto,assunto,tema, coisa,viaderegraexcluídadainterlocução‘eu’-‘tu’.Nunca édemasiadoantesdeprosseguirmosnossoestudodarmaiores precisõesacercadareferênciaedospronomesemaçãona interlocução.
Oqueé‘ele’nalinguagem:aquestãodareferência.
O conceito de referência foi definido classicamente porFrege(1892/1978),queairmouseroreferentedeuma expressãooobjetoqueeladesigna.Aconcepçãofregeana enfatizaassimadistinçãoexistenteentresentidoereferência. Oreferentedeumaexpressãodizrespeitoaoobjetoreferido. Jáosentidodeumaexpressãoquerdizer,segundoDucrote Todorov(1972),amaneiraespecíicapelaqualelaconcei-tuaumobjetodeterminado.Fregeatém-seessencialmenteà realizaçãodeanálisesdeenunciados,deproposições,sobre seelassãoverdadeirasoufalsas.Foicomoadventodoscha-madosilósofosdalinguagemordinária,emespecialAustin (1962/1990),queumaprofundamentoacercadasrelações entre a interlocução e os efeitos pragmáticos desta, mos-trouaimportânciadareferênciaparamaisalémdaanálise
fregeana.Assim,emnossoestudo,tratamosdemostrarnão somenteseafalaédeliranteounão,mas,principalmente, emveriicarcomoomundoseconstituiuparaaquelesujeito. Ouseja,pelaanálisedosdiversoscomponentesconstituido-resdareferência,temosacessonãomaissomenteàscoisas queaparecemparaosujeito,masaosobjetosqueemergem, nascem,serealizameseconcretizamfaceaomesmoe,por conseqüência,aomundo.
UmaanáliseinspiradaemFregenosenviariaaelabora-çõesdachamadareferênciaabsoluta,istoé,interrogarmos sobresecadalexemaenviaaumdeterminadoobjetoexis-tentenarealidadeefetivaconcreta.Casonosinteressemos pelarealizaçãonãomaissomenteabsolutadareferênciamas tambémdeumareferênciarelativaàsituaçãoespecíicada enunciação, somos enviados à articulação da linguagem a pelo menos duas outras dimensões. Uma primeira, que chamaremosdereferênciarelativaaoco-texto(endofórica), eumasegundarelativaaocontexto(exofórica),ouseja,re-lativanãomaisaomeioambiente,masaoprópriodiscurso. Oquadro1procuraevidenciaraanálisegeraldareferência mostrando os envolvimentos principais quanto a algumas dimensõesdalinguagem.
Considerandoaquestãoespecíicatrazidapelomundo doSr.K.,bemcomoaimportânciadaquestãodo‘ele’,nos ateremos especiicamente à referência do tipo exofórica, aquelaconstituídapelachamadadêixisdiscursiva.Adêixis envolvenecessariamentetrêscomponentes:apessoa,otempo eoespaço.Adeiniçãodotermodêixisremeteaodomínioda subjetividadedoenunciado,evidenciando,assim,aorigem subjetivadoprocessodereferenciaçãoeofatodeque,nocaso dasexpressõesreferenciaisdêiticas,ocontextodoenunciado nãoéapenasexterno,extensionalouontológico.Pelocon-trário,ocontextodêiticofocalizaoaquieagoradolocutor, asituaçãoespecíicadoatodeenunciação.Talsistemade dêixis,baseadonofalante,échamado“sistemaegocêntrico”, noçãoelaboradaapartirdaconcepçãodeRussell.B.(1966) de que os particulares egocêntricos (aqui, agora, eu, isto) sãopalavrascujadenotaçãoérelativaaolocutor.Arelação estabelecidaentredêixisereferênciaremeteaofatodeque areferêncianãoéixaparaalgunsvocábulos,istoporque as coordenadas espaço-temporais e de pessoa são sempre
Quadro1.Ostiposdereferênciaeosseuselementoslingüísticos.
Referência
Absoluta Relativa(Dêixis)
Aocontexto ouexofórica
Aoco-texto ouendofórica
Osdiferentes tiposde referência envolvem análisedos componentes dalinguagem principalmente
enquanto
glossologia (lexemas, nomespróprios,
sintagmas nominais, expressões
deinidas)
interlocução (dêiticos principalmente)
relativasemudamemfunçãodaperspectivaquesetoma. O objeto denotado pelas expressões referenciais relativas sedeinecomodadodentrodocontextorelacionaldoato comunicativo. Cada vez que a situação de enunciação se modiica,areferênciaseveráigualmentemodiicada.Porém, amudançadasituaçãodaenunciaçãonãoalteraosigniicado dêiticoqueéconstanteeresidenaindicaçãodasrelações comocontextoespecíicodoatodiscursivo.Areferência é ixada pela série de índices particulares denominados dêiticos,expressõescujoreferentesópodeserdeterminado emrelaçãoaosinterlocutoresedentrodocontextodaenun-ciação.Areferênciaévistacomoestandoemdependência dasituaçãodeenunciaçãoetantoasemânticalógicaquanto a semântica lingüística coincidem em airmar que “sendo o domínio (range) referencial das expressões referenciais ixadopelosentidoquetêmnalíngua,suareferênciaefetiva depende da variedade dos fatores contextuais” (Parret.H., 1988).Estaobservaçãopontualmostraqueadêixisconstitui umaespéciedetriângulocomseuscomponentesdiversos queprocuramosexplicitarnoquadro2.
O pronome de terceira pessoa está situado, dentro do triângulodêiticopropostoporHermanParret,nocampodo não-eueconsequentemente,emoposiçãoaocampodoeu, paradigmadodemonstrativoindicialpuro.Opronome“eu” indicaolocus daenunciação.Apartirdaorganizaçãoegocên-tricapropostaporesteautor,criadordeumateoriadadêixis emquetodoodomíniodascategoriasdêiticasseorganiza aoredordoEueaqualdenominou“teoriaegocêntricada dêixis”,énecessárioestabelecerumadistinçãoentreduas modalidades:dêiticospuroseimpuros.Osprimeiros,euetu, aquieagora,fazemreferênciaaosparticipantesdainterlocu-ção,semtransmitirinformaçõesadicionais.Poroutrolado, osdêiticosimpuros,cujoparadigmaéopronomepessoal “ele”,estabelecemdiferenciaçõesbaseadasemcaracterísti-casepropriedadesdoreferentequesãoindependentesdas coordenadasespaciaisetemporaisemqueseencontramo locutoreoreceptordeumdeterminadodiscurso.
NaconcepçãodeBenveniste(1966),aclassedospro-nomesdenominadosde“terceirapessoa”,cujoparadigma éo“ele”,éumacategoriaperfeitamentediferenciadados pronomes“eu”e“tu”,tantopelasuafunçãocomopelasua natureza.Noquedizrespeitoàfunçãodospronomesdeter-ceirapessoa,elessubstituemumsegmentodoenunciadoou atotalidadedeumenunciado,constituindo-seemsubstitutos abreviativos.Destamaneira,opronome“ele”,aoqualBen-venistedenomina“não-pessoa”,representaomembronão marcadodacorrelaçãodepessoa,cujosparadigmassão“eu” e“tu”.Apartirdestadeinição,oautorairmaqueareferência denão-pessoaéuma“referênciazero”,quepermanecefora darelação“eu”/“tu”.
Oquecaracterizaospronomesdaterceirapessoa,seus traçosdistintivos,sãoasseguintespropriedades:a)suaca-pacidadedesecombinarcomqualquerreferênciadeobjeto;
b)ofatodenãoserrelexivadainstânciadodiscurso;c) apossibilidadedeenvolverumgrandenúmerodeformas pronominaisedemonstrativas;d)asuaincompatibilidade comtermosreferenciaistaiscomo“aqui”e“agora”,quesão expressõesdêiticasparadigmáticas,umavezqueexpressam ascoordenadasdeterminadaspelolocustempo-espacialda enunciação.
Acomunicaçãoimpersonalizadanecessariamenteprivi-legiaráasposiçõesrelacionadasaostermos“ele”,“depois”, “ali”, registrando-se um aumento na distância entre o Eu (locutor) e o possível tu (alocutor), terminando por fazer desapareceressetuetratandotodoscomoumele,umobjeto exterioràinterlocução.Assim,odiscursoparanóicoacerca do “ele(s)” mantém a distância, realiza a máxima de não entraremcontacto,donãopersonalizar.Quandoistoocorre, quandoo“tu”éhiperinvestido,ocomportamentoacabapor setransformaremquerelância,oueventualmentelitígio,e corre-seoriscodesesertomadocomoum“ele”perseguidor. Pensamosexistirumarelaçãoestreitaentreaparanóiaeesse mundoimpessoalefriointroduzidopelopronome“ele”,sem possibilidadedediálogo.Aconstânciadafalacomrelaçãoa umaterceirapessoaleva-nosainterrogaracercadoestatuto especíicodestechamadopronomepessoal.Efetivamente, Benvenistenosensinaqueessedêiticonãoéexatamenteum pronomepessoalmas,muitomais,umpronomeimpessoal. Mesmoquenãoconcordemosque“ele”nãosejaumpronome pessoal,temosqueconcordarque“ele”vaiemdireçãoao impessoaledizrespeitoaonão-familiar,aoindiferente,ao ausente,ànão-pessoa,àscoisas.
AdêixisnoSr.K.enodelíriodeperseguição
AssinalamosnaestóriadoSr.K.oaparecimentodeum mundoextremamenteinseguro.Esteclimadeinsegurança generalizadapodeserreencontradonostrêsplanosdotriân-gulodêiticodomesmomodoemqueocorremasirrupções de conlitos e incertezas na realidade cotidiana do Sr. K. Efetivamentepensamosqueéestaumadaspedrasdetoque dogêniodeKafka:conseguirmanterumclimadeindeinição, deterror,deapreensãopossívelequevaiserealizandoao longodoprocesso,semespeciicaçãoinaldosreferentes. Claroquediversospersonagensecausassãoindicadasao longo da narrativa. No entanto, ao concluirmos a leitura, temosasensaçãodoabsurdoacercadomundovividopelo personagemdeKafka.Podemosatépensar:emummundo ondenadatomadeinições,tudosetornapossível.Assim, comrelaçãoa“ele”,adespeitododeslizamentodeobjetos, inalmente sentimo-nos inseguros com relação ao mundo efetivoqueseforma:interroga-seacercadoindeinidoque sempreépotencialmenteperturbador.
Masaindeiniçãodesesperadoranãosepassasomente comrelaçãoaoimpessoal.Aspessoas,mesmoaquelasas
maispróximas,tendemasetransformaremalguémindife-Quadro2.Otriângulodêitico.
pessoa tempo espaço
eu não-eu agora não-agora aqui não-aqui
tu ele agente,
se
antes depois erauma vez
rente.Ouseja,pensamosqueo“Tu”,ondesesituaaessência dopólointerlocutivo,tendeacolabar,namedidaemquenão existeumadevidaqualiicaçãodoqueosujeito(“Eu”)tem adizer.Istoé,tudooqueoSr.K.dizterminapornãoser considerado,resultandonatransformaçãodospossíveis“Tu” empessoasnãodignasdeinterlocução.Assimatendência geraléoataqueao“Tu”,transformando-osemobjetosde discurso,ousejaemum“eles”,emnão-pessoa.Umadimen-sãoessencialquesecrianestesestadospróximosesimilares àparanóiaéaextremasolidãoinaldolocutor.Solidãoem quesefechammaisaindapelaimpossibilidadedeconiarem emseusinterlocutoresimediatos.Acadapessoanovatudo retorna:seráqueesse“Tu”ébomoumal?Aindeiniçãoé anteriorlogicamenteaqualquerdiferenciação.
Viveremummundodestetipofatalmentefaz-nospensar queexistealgono“Eu”dosujeitoquepropiciaaconstrução detantaindeinição.Istoé,paraemergiromundohumano, mundodeobjetospreenchidosdesigniicação,énecessário aexistênciadeum“Eu”queseconstituiemconcomitância. NãoésurpreendentequeopersonagemdeKafkatermine voltaemeiaporseinterrogarsobreoabsurdodesertratado comoum“Eu”quenãoéele-mesmo.Ouseja,ainterpelação radicalsobreopróprioprincípiodeidentidaderesultanafór-muladaloucuracomrelaçãoaopólolocutivo:sertomadopor umoutroqueosujeitonãoé.Trata-sedeumainterrogação noverboexistencialserquesereletediretamentenodêitico “Eu”.AsoluçãodoSr.K.érealizarumaespéciedeluta, muitomaisumespernear,contraaintrusãoqueexperimenta comovindodoexterior.AmuitocustovemosoSr.K.susten-tarqueeleéele-mesmo.EstaposiçãoprojetivadoSr.K.,que nãoaceitanenhumapredicaçãocomrelaçãoasimesmo,o colocapróximodaparanóia,comadiferençadequeo“Eu”, naparanóia,terminaporcrescerdefensivamente.
Assim,nastrêsinstânciasdêiticastemosumenviopara uma indeinição angustiante. Kafka consegue manter-nos nestaposiçãoangustiantejuntamentecomoSr.K.Pensamos, porisso,existirumíntimoparentescoentreestaposiçãoeos momentosanterioresàconstituiçãodeumdelírio,avivência designiicação(Jaspers,1913/1987).OSr.K.permanecena insegurança.Jáaparanóiamostraquasesemprealguémsegu-rodesimesmo,extremamenteresponsáveldiriaGagnepain (1988),ecertodaperseguição,conseguindoaténomeá-los, comoocorrenodelíriodeperseguição.
Lembremosdeumcaso,entrevistadoporumcoleganos-so,parapensarmosacercadosdêiticosnaspsicoses.Trata-se deumaentrevistaemumPronto-Socorroecomandadapela urgênciadoresponderpsiquiátrico.Poderásernotadauma preocupaçãodonossocolegaemdeinir“aquilodoquese trata”,daínãoexistirquasenenhumsilêncio.Restringiremos nossaobservaçãoàfaladopacienteeàspartesreferentes aoseudelíriopormotivodaextensãodaentrevista.Aoser perguntadosobrequandoaperseguiçãoseiniciou,opaciente começaadarprecisõessobrequemopersegue,relacionando aperseguiçãoaofatídicoproblemadopai.
Psiquiatra:Seupaifaleceuquando?
Paciente:É.Faleceu...é...hádezanosatrás.Foijaneirode85. Psiquiatra:Edesdeentão...
Paciente:Aperseguiçãocorresolta.
Psiquiatra:Masperseguiçãoporpartedequem?
Paciente:Porpartedoirmãodaminhamãe. Psiquiatra:Doirmãodasuamãe?
Paciente:É.Eusobrevivi,né?GraçasaDeus! Psiquiatra:Oqueéqueeletemfeito?
Paciente:Temfeitoé...muito...é...muitasmaneiras! Psiquiatra:Porexemplo?
Paciente:Meboicotandoemtudo. Psiquiatra:Masoqueelefez?
Paciente:Voufazerumnegócio,eleboicota,mandaprender, batercomocinto.Nãoquerpagar?Certo!Quebramesmo,faz amaiorzona,quebramesmo...queisso...queaquilolá! Psiquiatra:Nãodiretamente.
Paciente: Não diretamente. Ele fala isso me ameaçando. Só ameaça.
Psiquiatra:Dáumexemploconcreto,bemobjetivo,doquejá teaconteceu.
Paciente:Aconteceudeeuestarnohospital,tomarinjeçãona veia...Ocoraçãoveioatéaqui!Quasemorri!Fazdoisdias. Psiquiatra:Eudigoassim,doboicotedele.
Paciente: Então! Antes de viajar por aí, se eu parasse, ele parava. Ele parava por causa daqueles quarenta e três mil hectares, certo? O recurso para eu pegar em Maringá num aviãoparticular.Sóquenãotemnadaavercomele,comomeu trabalho,porqueodoutorN.C.B.,quefoiquemchamouagente lánoMatoGrosso,queéumoutroirmãodomeupai...Meu pai,queé...que...eucontinuo,eucontinuo...noqual...eodou-torE.,queéoadvogadodeMaringá,nosso,dafamília...que eu continuo pensando sério em montar umas investigações aquiemBrasíliadequemeusou,quemé...Eu,quandoeufui pego,paraterqueparar,aprimeiracoisaqueeupenseiem fazer aqui...tem sirenes! Me perguntaram aqui foi “de onde vocêvem?”Euvirei:não!Vamosmontarumescritório,mas euprimeiro...eizeram-metelefonaré...eeuachoqueeuizde qualformaquedozecarasmebateram.
Psiquiatra:Doze?
Paciente:Doze!Mejogaramnochãoedepoismederamum chute,aí...Ondeéqueica?NaJustiçaFederal,doladodireito doChinês.Bateumuito,bateumuito,bateumuitonochão! Psiquiatra:Aondesetemumbanco?
Paciente:Não,doladoesquerdo.Aquiloétudoviacomercial, doladodireito.
Psiquiatra:IssofoiaquiemBrasília?
Paciente:Foi.EmBrasília.Logoqueeucheguei. Psiquiatra:Eahistóriadohotel,comoéqueaconteceu? Paciente: Fora do hotel eles me deixavam num cárcere privado.
Psiquiatra:Cárcereprivado?
Paciente: É, cárcere privativo! Onde eles não me deixavam comernembeber.Elesnãoqueriammedarágua,oudebeber, oudecomer.
Psiquiatra:Elesquem?
Paciente:Ospessoaldohotel,oproprietárioetudo. Psiquiatra:Masnãoéproprietário?
A despeito de o discurso ser permeado por muitas interrupções, imprecisões, algumas frases incompletas e porredundâncias(típicadetodafalaespontânea),podeser evidenciadoqueoSr.P.,nossopacientedelirantecontinua vivendo em um mundo inseguro. Chamamos de paranóia justamenteumaconstruçãoquevisaliquidarasituaçãoter-riicantedeinsegurançaehorrorviautilizaçãodoimaginário deumpontodevistanarcísico.Odelírioéconstruídocomo soluçãoaessagrandeinterrogantequeéoindeterminado. DiferentementedopersonagemdeKafkavemosumsujeito cheiodecertezaseocupandoolugardoperseguido.Istoé, comrelaçãoa“eles”,ocorreaconstituiçãodeummundo cheiodesigniicações.Sabemos,hábastantetempo,quenos delíriosprimários,omundocomeçaasigniicar,aindicar causas,eosujeitoaentraremumavivênciadesigniicação (Jaspers,1913/1987)),fenômenofundamentalparaeclosão daspercepçõesdelirantes.
Areferênciaseoperaefetivamentenodelírioparanóico. Issotantoéverdadequeconseguimosreconstruirosfatos domundocriadopelodelirante,acompanhá-loemsuasas-serções.Diferentementedaesquizofrenia,emqueexisteum ataqueànoçãodesigniicação,nodelírioestamoscientes doqueosujeitoexperimentaedescrevee,poressarazão, apsiquiatriaclássicanomeouumasériedetiposdedelírios diferentesfundadosnosdiversostemas.Seoprocessode referenciaçãooperanodelíriodeperseguiçãoissonãoquer dizerqueestejamosdeacordocomoreferenteproduzido, sejaelereal,concretoouimaginário.Umadascaracterísti-casessenciaisdodelírio,emcontraposiçãoàproduçãonão delirante,éaradicalproduçãodereferentesquenãoestamos deacordosobreasuaexistênciarealouimaginária.Istoé,o deliranteestáemdiscordânciaacercadascoisasmesmasdo mundoedasexplicaçõesquetemosacercadelas.Elecriaum mundonovoapartirdoseupontodevistaedosseusdesejos semmaioresconsideraçõesacercadoqueosoutrosestão pensando.Odelirantereconstrói,diriaFreud(1976/1911).
Sendoodelírioumdiscursoacercadarealidadetorna-se gritante a importância da categoria dêitica “eles”. Assim, entendemosperfeitamentequeotiodeP.éoperseguidor, oassassinodoseupai,ousurpadordosbensdafamília.No entanto,defato,nadadissoocorreu.Diríamosqueaquilo queépurapossibilidadelógicaétomadacomorealidadee verdadepeloparanóico.Emergeassim,emtodainterlocução comumdelirante,apossibilidadedeseinstalaradiscordância acercadarealidade.
Instala-se principalmente uma oposição Eu - Ele. O “Tu”,seinicialmentenainterlocução,éneutro,tendeaser assimiladopelasduasoutrasposições.Istoé,nodesenrolar dainterlocuçãoparanóica,o‘Tu’tendeasetornarum‘Eu’ ouumEle.Naparanóia,tendeadesaparecerainstânciado alocutárioreconhecidonasuaalteridade,umaelisãodessa posiçãonotroposdiscursivo.Quandooparanóicoconsegue airmarseudiscurso,nomínimooseuinterlocutorécolocado emumaposiçãopassiva.Outrasvezes,podeocorrermesmo apossibilidadedetransformaro“Tu”emdiscípulo,emse-guidor.Daíclassicamenteserconhecidaadesqualiicação dooutronainterlocução.Quandoocorrereaçãoporpartedo alocutor,encontramosapossibilidadedaiguradiscursivada querelância.Essaéumadaspossibilidadesperturbadorasno contactocompacientesdestetipo.Podesempreacontecer
queo“Tu”,inicialmenteneutro,oumesmoamado,venhaa setornarrapidamenteumperseguidore,porconseqüência, emalguémdequemsefala,masnãoalguémaquemsedirija apalavraefetivamente.
Ocolabamentodo“Tu”instalaumagravediiculdade decomunicação.Emergeumsujeitopressupostograndioso mas,aomesmotempo,muitosolitário.Ouseja,oparanóico podenadasequeixarporsermuitonarcísico,massempre temapossibilidadedeviveramaiordassolidõespelode-saparecimento do pólo “Tu” de interlocução. Assinalar a solidãomuitasvezeséumdospoucoscaminhosqueresta aoterapeutaparacriarumvínculoquenãodesemboqueem umacolusãodoespaçocomunicativoouemumaoposição radicalàquelequeoescuta.
EntreomundoinsegurodoSr.K.eomundocheiode perseguidores nomeados do delirante paranóico existem transições.Assim,noquadro3,procuramosmostrarexistir umadeiniçãogradualdosreferentesatravésdodelírio,o queresolveriaoclimadeterror,insegurançaeangústiado Sr.K.,casoeleviesseaassumirasasserçõesedeclarações delirantescomoocorrenocasodopacienteapresentadona entrevistamaisacima.
Conclusão
Apsicoseéumdistúrbioradicaldapersonação
Opresenteestudoprivilegiouainvestigaçãodareferência dêiticanasituaçãodiscursiva,especiicamentecomrelação àcategoriadepessoa.Estadimensãoencontra-sebastante perturbada,nãosomentenoquedizrespeitoao“Eu”,mas tambémcomrelaçãoàsdimensõesdenão-Eudotriângulo dêitico.Asdiiculdadescomrelaçãoàconstituiçãodare-alidade efetiva dos referentes, representada nesse estudo principalmente pelo pronome “ele”, pelo impessoal, se mostraintimamentearticuladacomasubjetivaçãodosujei-to.Entendemosqueoestudodafunçãodêiticadalinguagem permitirá,emtrabalhosfuturos,umamelhorarticulaçãocom aproblemáticadoEu,dopontodevistapsicanalítico,ecom acomunicaçãolingüística,emespecialdentrodafamília. Istoé,pensamosterindicado,viaestudodadêixisdiscur-sivaedoprocessodereferenciação,existirapossibilidade de esclarecer alguns aspectos acerca da subjetivação e da intersubjetivaçãonapsicose.
Quadro3.AscategoriasdêiticasdepessoanoSr.KenaParanóia.
Sr.K. Eu
?
interpelado constantemente, sofrendointrusões, insecurizado.
Tu ?
nãoconiável, tendease tornaele.
Ele ?
indeinido,em transformação constante.
Delíriode perseguição
Eu Pressuposto comograndioso, narcísico.
Tu Tendênciaa desaparecer na interlocução.
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Recebidoem30.10.2001 Primeiradecisãoeditorialem27.03.2002 Versãoinalem20.10.2002