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Processo de formação de sentido e predicáveis aristotélicos

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Academic year: 2017

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Processo de formação de sentido e os predicáveis aristotélicos

Belo Horizonte

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Processo de formação de sentido e os predicáveis aristotélicos

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Lingüística.

Área de Concentração: Lingüística Linha de pesquisa: Análise do Discurso Orientador: Prof. Dr. Júnia Diniz Focas

Belo Horizonte

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Agradecimentos

Agradeço a todos que de alguma maneira acompanharam essa pesquisa. À minha mãe pela cumplicidade, ao Ado pelas discussões inquietantes, ao Gui que a todo momento me provou o poder da argumentação, à Júnia pelo incentivo e orientação carinhosa, à Elza pelo engenho e arte da revisão, à Alexandra pela grande ajuda com a língua francesa e à “mesa” da cantina.

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Dedico ao meu avô Lucas, que há tempos, por meio da fotografia, sem saber, me fez

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Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, nada menos que a quimera(...)

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Introdução... 9

Capítulo I – Sentido e suas determinações Considerações preliminares... 14

Determinações do Sentido... 18

Para além das determinações do sentido... 24

Análise do Discurso e Sentido... 33

Capítulo II – Predicáveis e discurso Os Tópicos... 39

Os predicáveis... 46

Predicáveis e sentido... 55

Capítulo III - A natureza dialética do sentido Operações discursivas... 68

Conhecimento e sentido... 76

Conclusão... 87

Anexos... 93

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Resumo

Esta pesquisa tem como objetivo o estudo do Sentido. Analisando-o como um todo, descobriremos que ele é sempre transcendente e não podemos pretender, por seu intermédio, esgotar a realidade a que ele se refere. Para tanto, o sentido será aqui decomposto e recomposto a fim de realizar um percurso que se estende do mais complexo ao mais simples; retomando, a partir de suas partes, o conjunto, com o objetivo de apreender suas dimensões e então apreender sua complexidade.

O trabalho reunirá teorias que nos parecem funcionais e/ou aplicáveis ao estudo do sentido, oferecendo uma referência de posições teóricas que corroboram nossas investigações. Introduziremos a possibilidade de perceber o sentido, nos estudos de Análise do Discurso, utilizando-nos das categorias de pensamento estipuladas por Aristóteles. Formuladas com intuito de potencializar o uso dos argumentos, em nossa pesquisa, as categorias definição, propriedade, gênero e acidente terão a função de permitir revelar tanto as operações básicas do discurso, quanto o processo que forja os sentidos e produz conhecimento.

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Résumé

Cette recherche a comme objectif l´étude du Sens. En analisant le sens comme un tout, nous decouvrirons qu´il est toujours transcendant et nous ne pouvons pas prétendre, par son intermède, épuiser la réalité de ce q´il se réfère. Pour tant, le sens sera ici décomposé et recomposé afin de realiser un parcours que s´étendre du plus complexe au plus simple ; en reprenant, à partir de ses parts, l´ensemble, avec l´objectif d´appréhender ses dimensions et alors d´appréhender sa complexité.

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Introdução

O que é sentido? Como ele é constituído? Como podemos apreender sua dinâmica? Esses são questionamentos que incitaram a presente pesquisa.

Pesquisar o sentido é também estudar a linguagem, o mundo ao qual ela se refere e o sujeito que toma para si o ato de movimentá-la. Iniciamos por esse pressuposto e pensamos, por isso, estar diante de três pilares básicos do sentido: o sujeito, a linguagem e o mundo das coisas.

Nossa pesquisa se apresenta como um esforço de refletir a respeito do sentido, sua formação, suas determinações e a maneira como pode ser articulado em discurso; aliando à nossa leitura o texto aristotélico, Tópicos, dividiremos o trabalho em três capítulos: Sentido e suas determinações; Predicáveis e discurso e A natureza dialética do sentido; e, finalmente, uma Conclusão.

O primeiro capítulo deste trabalho aborda a questão do sentido de maneira mais privilegiada. Nele, discutiremos a importância de pesquisas sobre o sentido no âmbito dos estudos lingüísticos, a fim de apresentar nossa percepção de sua estruturação e também ressaltar a importância dessa reflexão para aprofundar os estudos em Análise do Discurso.

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Contextualizando, o capítulo I se divide em quatro partes: Considerações iniciais; Determinações do sentido; Para além das determinações do sentido e Sentido e análise do discurso.

A primeira parte, como o próprio nome diz, apresenta os objetivos do capítulo, a maneira como trataremos o assunto e introduz os predicáveis aristotélicos para uma melhor compreensão dos termos e do percurso utilizados.

A segunda parte ressalta o que chamamos de determinações lingüísticas as quais estabelecem critérios que, de certa maneira, têm a função tanto de organizar como de criar resistência a um relativismo generalizado da significação. Faremos referência aos estudos saussurianos sobre o signo lingüístico e, principalmente, ao conceito de valor.

O terceiro ponto que desenvolvemos no primeiro capítulo diz respeito ao que entendemos como um “segundo passo”, na teoria lingüística, em direção a uma teoria do sentido. Portanto, passamos a perceber o signo em sua característica relacional, ou seja, “apontamos” para um tipo de semântica que, paulatinamente, conduza-nos aos limites entre ela, os estudos sobre a enunciação e a questão do uso e da práxis. Assim, verificaremos como a Análise do Discurso, dada sua amplitude teórica em relação às outras áreas da Lingüística, é condizente para corroborar nossa reflexão.

O segundo capítulo da pesquisa é dividido em quatro partes: Tópicos, Os predicáveis, Predicáveis e sentido e Predicáveis e valor.

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A terceira e a quarta parte do segundo capítulo relacionam os predicáveis aos estudos lingüísticos, sendo necessário estabelecer a maneira pela qual ambos poderiam articular-se. Assim, baseando-nos, principalmente, nas considerações sobre os valores, desenvolvidas por Perelman, nosso objetivo é apontar como as categorias predicativas desvelam as articulações de valores através de processos discursivos.

O capítulo três é o último da nossa pesquisa, intitulado A Natureza dialética do sentido, e está subdividido em duas partes: Operações do discurso e Conhecimento e sentido.

A primeira parte diz respeito às operações do discurso (determinações, ampliações e relativizações) que refletiriam uma estrutura lógica de mapeamento do sentido. Contudo, como este trabalho pretender trazer reflexões teóricas a respeito do sentido, o que já é algo complexo, decidimos não trabalhar exaustivamente num determinado corpus, mas somente de forma ilustrativa. Assim, nessa parte da pesquisa, exemplificaremos as operações discursivas com fragmentos de textos que aparecerão completos no anexo da dissertação.

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CAPÍTULO I

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algo é o nome do homem coisa é o nome do homem homem é o nome do cara isso é o nome da coisa cara é o nome do rosto fome é o nome do moço homem é o nome do troço osso é o nome do fóssil corpo é o nome do morto homem é o nome do outro

Arnaldo Antunes

Considerações preliminares

O presente capítulo reúne teorias de diferentes autores que nos parecem funcionais e/ou aplicáveis ao estudo do sentido. Porém, não estabeleceremos uma comparação minuciosa entre os diferentes olhares que existem a respeito de tal assunto. O que pretendemos, com essa primeira parte, é oferecer uma referência conceitual que corrobore nossas investigações.

Estudar nossas formas de comunicação é algo que intriga o homem há tempos; por isso, a maneira pela qual compreendemos/produzimos sentidos incita pesquisas em diversas áreas do conhecimento.

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melhor a nossa realidade”1. Para tanto, o sentido será aqui decomposto e recomposto a fim

de possibilitar a realização de um percurso que vai do mais complexo ao mais simples; retomando, a partir de suas partes, o conjunto, com o objetivo de apreender suas dimensões para, então, perceber sua complexidade.

Apresentaremos uma possibilidade de apreender o sentido, nos estudos de Análise do Discurso, utilizando os predicáveis estipulados por Aristóteles, formulados com o intuito de potencializar o uso dos argumentos. Em nossa pesquisa, definição, propriedade, gênero e acidente são conceitos que têm a função de permitir revelar tanto as determinações como o provisório2 os quais acreditamos constituir as estratégias de construção de sentido. Os predicáveis serão pormenorizados na segunda parte deste trabalho, mas nos permitiremos adiantar alguns conceitos a fim de facilitar o acompanhamento de nosso raciocínio.

É em sua obra Tópicos que Aristóteles apresenta seus quatro predicáveis3 que, juntos, constituem um método lógico para raciocinar a respeito das coisas. O primeiro, definição, é um predicável que revela a essência daquilo que se predica. Esse conceito é justificado pelo fato de que, segundo o autor, “aqueles cuja explicação consiste apenas num termo, por mais que façam não conseguem dar a definição em apreço porque a definição é sempre um tipo de frase”, por isso “mostrar que as coisas são idênticas não basta para estabelecer uma definição. Demonstrar por outro lado que não são idênticas é suficiente para lançá-la por terra”.4

O segundo, propriedade, é aquele que revelará as características próprias àquilo que se categoriza. Tais características não indicam, claro, a definição. Todavia, elas pertencem

1 KONDER, 1992, p.37.

2 Além desses dois termos, lembramos também o necessário e o contingente; contudo, não adentraremos

nessa questão.

3 Uma melhor explanação desse conceito está desenvolvida no capítulo II. 4

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exclusivamente àquilo que está sendo predicado de maneira conversível, como no exemplo dado pelo próprio estagirita: “assim é uma propriedade do homem aprender gramática e, se é capaz de aprender gramática, é um homem”.5

O gênero associa elementos que mantêm uma relação de semelhança entre si, essa relação se baseia em algo que é inerente a eles “como, por exemplo, do homem seria apropriado dizer ‘é um animal’. Com efeito, ao afirmar que animal é o gênero do homem assim como do boi teremos afirmado que eles pertencem ao mesmo gênero”6. Segundo Aristóteles, o

gênero e a definição são contrapartes lógicas de um mesmo raciocínio.

O último é o acidente7, que revela características transitórias, situacionais, ou seja, que podem pertencer a algo e deixar de pertencer sem que haja a perda de essência. Podemos citar, como exemplo, a atribuição da posição sentada, ou seja, dizer que aquele que está sentado é “João” descreve um predicado que serve para melhor identificar de quem está se falando, mas essa característica não é inerente; “João” pode se levantar ou sentar, ou seja, sua definição, sua propriedade, e seu gênero se manterão os mesmos.

Como não poderia deixar de ser, nossa reflexão a respeito do sentido se dará seguindo o método de raciocínio aristotélico. Assim, para esclarecer sobre o que estamos discutindo, somos impelidos a tratar o que é essencial ao sentido. Acreditamos que fazem parte da definição de sentido a linguagem, o sujeito, e as coisas das quais se falam (mundo), pois sem esses “pilares” não existiria nenhum tipo de produção significativa, não haveria comunicação.

5 ARISTÓTELES, 1978, p.111. 6 ARISTÓTELES, 1978, p.111.

7 No que se refere ao acidente, faz-se necessário enfatizar sua potencialidade dialética. Contudo, por questões

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Usar a linguagem é algo intrínseco ao sentido, pois é na prática linguareira que se produz sentido, ou seja, se não houvesse a necessidade humana de se comunicar, de falar sobre as coisas para alguém, não teríamos desenvolvido, talvez, nenhuma estratégia de se fazer entender. Essa reversibilidade será percebida, ao longo deste trabalho, entre todos os elementos que constituem o sentido.

É muito importante fazer perceber essa relação orgânica dos elementos do sentido, e que ao falarmos de um, automaticamente, estaremos falando da relação como um todo. Isso porque este trabalho visa ao funcionamento de uma estrutura que é constituída por elementos difíceis de serem apreendidos através de uma metodologia rígida. Também devemos salientar que a tão difundida teoria entre “sentido e referência” não será abordada, visto que o arcabouço lógico de que nos ocupamos não é pertinente a essa questão.

Portanto, o referencial teórico do qual nos valemos levará em conta um percurso metodológico que "avalie a possibilidade de integrar níveis de determinação com alguma dimensão do acaso"8. Desta maneira, reunimos, neste capítulo, algumas teorias que, direta ou indiretamente, contribuíram para as discussões a respeito do sentido, que nos guiarão a uma compreensão dessa estrutura.

8

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Determinações do sentido

A linguagem, por sua natureza dialética, é um conceito complexo. Entretanto, optamos por não procurar um termo alternativo, pois não nos impedimos de dizer que o instrumental de análise que vamos propor, provavelmente, possa servir para se investigar os sentidos em suas várias formas de apresentação.

Entretanto, investigar o sentido, em nossa linha de pesquisa, requer assumir a necessidade de ressaltar suas determinações lingüísticas visando a um entendimento dos critérios que, de certa maneira, têm a função tanto de organizar como de impedir um relativismo generalizado da significação9, o que é enfatizado por Barthes:

A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que existe na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e comunicação. Jakobson mostrou que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer. 10

Sabemos bem que as normas sintáticas e fonéticas ocupam também lugar de destaque nos estudos da língua, mas devido às escolhas que fizemos para tratar o sentido, tomaremos como ponto de partida o estudo dos signos e a evolução teórica desencadeada sobre esse assunto. Portanto, é importante observar que uma reflexão dessa natureza convoca, no mínimo, uma síntese da concepção saussuriana de Língua.

9 Cabe aqui uma delimitação do que entendemos por significação. Neste trabalho, a significação será definida

como o processo que forma o sentido.

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A tentativa de delimitar a natureza do objeto central dos estudos lingüísticos fez com que Ferdinand de Saussure refletisse sobre o signo. Para ele, língua e pensamento são indissociáveis, como lados opostos de uma folha de papel. Quando a rasgarmos, abarcaremos ambos, ou seja, a língua, para Saussure, é a expressão do pensamento e sem ela, o pensamento não passa de uma “massa amorfa e indistinta”.

Nessa orientação, o autor segue um percurso em que a langue ocupa lugar de maior interesse em relação a parole. A langue, como define Saussure, “constitui-se num sistema de signos, no qual de essencial só existe a união do sentido e da unidade acústica”11, é o lugar de onde podem ser determinadas as sistematizações; um “tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro”12. Já a parole é a fala, ato individual, que só se torna possível pela língua, é instituição coletiva.

A distinção entre langue e parole estabelece a teorização central de Saussure para delimitar o objeto de estudo. Seu método consistiu em “separar ao mesmo tempo: 1º o que é social do que é individual; 2º, o que é essencial do que é acessório e mais ou menos acidental”13. O que o autor fez, portanto, foi delimitar seu objeto e preferiu tratar, primeiro, de suas determinações, de sua natureza. Essa separação demonstra claramente sua opção por um estudo da forma ao estudo do uso.

Segundo o autor, a Língua é um sistema de signos. E o signo lingüístico foi definido como a associação de duas imagens: uma acústica, que é o significante(Se); e outra conceitual,

11 SAUSSURE, 1971, p.23. 12 SAUSSURE, 1971, p.21. 13

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que é o significado (So). Para ele, “esses dois elementos estão intimamente ligados e um reclama o outro”14 tendo como princípio primeiro a arbitrariedade.

O princípio de arbitrariedade do signo, que caracterizou o tipo da relação entre significante/significado (Se/So), promoveu, à primeira vista, uma liberdade radical para o significante. Esse princípio foi demonstrado pelo conhecido exemplo de que “a idéia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à seqüência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por qualquer outra seqüência, não importa qual(...)15”.

Essa postura saussuriana suscitou críticas e dúvidas a respeito de tal princípio, pois, deste modo, existiria a possibilidade de se modificar o significante a qualquer momento, já que uma seqüência fonética “representaria” qualquer So. Essa radicalização fez com que Benveniste discutisse tal conceito e o rebatesse, concluindo que “o signo elemento primordial do sistema lingüístico, encerra um significante e um significado cuja ligação deve ser reconhecida como necessária”16. O que Benveniste mostrou é que no signo a relação entre significante e significado só é arbitrária em relação a uma realidade objetiva e não ao conceito, pois esse último e a imagem acústica foram “juntos impressos no meu espírito”17.

Entretanto, em uma outra passagem de sua obra, Saussure “enfatiza e relaciona o arbitrário do signo com sua natureza intersubjetiva/social, desautorizando uma relação de livre arbítrio”18, e percebe a impossibilidade de se mudar um significante devido ao peso imposto por uma herança social. Nesse momento, é o signo que Saussure problematiza,

14 SAUSSURE, 1971, p.80. 15 SAUSSURE, 1971, p.81. 16 BENVENISTE, 1991, p.59, I. 17 BENVENISTE, 1991, p.59, I. 18

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afirmando: “aprofundando a questão, vemos que, de fato, a própria arbitrariedade do signo, põe a língua ao abrigo de toda tentativa que vise a modificá-la”19, instituindo, assim, a

noção clássica de sentido.

Para nosso trabalho, interessa reforçar que o signo é arbitrário porque ele não é autônomo, pois as unidades lingüísticas têm uma identidade inteiramente relacional. Visto dessa forma, o signo assumirá seu valor dentro do sistema lingüístico, pois “é uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de um som com certo conceito. Defini-lo assim seria isolá-lo do sistema do qual faz parte” 20. Segundo Benveniste, a linguagem não permite ser dividida, mas decomposta em suas unidades e elementos de base em número limitado, diferentes entre si, e com possibilidades de se agrupar para formar novas unidades e, consecutivamente, outras de complexidade cada vez maior.

O conceito de valor é, teoricamente, o eixo da teoria de Saussure, sendo, portanto, o resultado das oposições, dos contrastes entre signos, das relações de associação ou parassintagmáticas e das relações combinatórias, sintagmáticas. A respeito desse tema, em outro momento Saussure explicita que “considerada de qualquer ponto de vista, a língua não consiste em um conjunto de valores positivos e absolutos, mas de um conjunto de valores negativos ou valores relativos que só tem existência pelo fato de pura oposição”21.

Desse ponto de vista, o significado de uma palavra estabelece uma relação semiótica entre linguagem/mundo, não podendo mais ser interpretada apenas como uma referência imediata. A análise saussuriana do signo lingüístico, portanto, implica o pensamento aristotélico que fundamenta os Tópicos que, por sua vez, é centrado na questão da sinonímia. Para o filósofo grego, o sentido de um termo ou expressão estava também

19 SAUSSURE, 1971, p.87. 20 SAUSSURE, 1971, p.132. 21

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interligado a um processo de associação através do qual a sinonímia constitui a matriz de outros sentidos. Em tais situações, a questão da sinonímia apareceria dissociada das categorias, visto que o objetivo de Aristóteles era o de relacionar a linguagem (ou o discurso dialético) ao pensamento estruturador dos sentidos, expressando, assim, a essência da ação lingüística.

Semelhante raciocínio aparece na definição saussuriana do signo lingüístico estreitamente vinculado à noção de valor, quedelimita uma realidade lingüística cuja essência ancora-se na existência da possibilidade paradigmática de um signo reportar-se a outros signos do sistema, criando uma rede de interconexão semântica. Desse modo, é criada uma densa trama de relações que interligam os termos entre si, e produzem conceitos expressos por aqueles mesmos termos. A esse respeito, Guiraud tece a seguinte consideração:

O sentido, tal como nos é comunicado no discurso, depende das relações da palavra com as outras palavras do contexto, e tais relações são determinadas pela estrutura do sistema lingüístico. O sentido, ou antes, os sentidos de cada palavra, são definidos pelo conjunto dessas relações, e não por uma imagem da qual ele seria o portador. O termo “sentido” encontra assim a sua etimologia, já que ele significa “direção”, orientação para outros signos. 22

Essa percepção da composição do signo e de suas relações internas nos coloca no início de um percurso que resultará em uma apreensão mais completa do todo complexo que é o sentido. Através da noção saussuriana de valor, foi possível vislumbrar o início do estudo dos signos em uso, suas relações, sua execução, seu executores. Assim, por essa reflexão a respeito do valor das unidades lingüísticas, podemos dizer que talvez tenha sido por uma

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questão de conjuntura teórica que Saussure não nos deixou nenhuma teoria sobre o discurso. Entretanto, em sua obra, apontou-nos diversas vezes tal possibilidade:

Todo estudo de uma língua como sistema, ou seja, de uma morfologia, se resume, como se preferir, no estudo do emprego das formas ou no da representação das idéias. O errado é pensar que há, em algum lugar, formas (que existem por si mesmas, fora de seu emprego) ou, em algum lugar, idéias (que existem por si mesmas, fora de sua representação).23

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Para além das determinações do sentido

A oposição estabelecida entre língua e fala é a instância na teoria saussuriana em que o sentido pode ser percebido além de suas determinações de forma. Se se pensar o signo como um limite inferior da significação, ou seja, se considerarmos que antes dele não há significação, cabe-nos “tentar ir além do ponto a que Saussure chegou na análise da língua como sistema significante”24.

O sentido, então, quando visto para além de suas determinações, nos possibilita perceber seus elementos inseridos em outro nível (uso) e nos faz reconhecer a desconfiança criada em relação aos estudos sobre o tema, pelo fato de que as manifestações do sentido seriam mais livres, fugidias e imprevisíveis. Dessa maneira, assumir o uso como novo paradigma significa não mais perceber o sentido enquanto um estudo fixado nas definições do signo. Agora é a noção de semântica que apontará essa nova perspectiva de estudo do sentido. Isto quer dizer que é preciso perceber o signo como pertencente a um sistema em funcionamento, em movimento, organizando e desorganizando possibilidades de sentidos.

Contrariamente a Saussure, Hjelmslev postula uma teoria lingüística estruturada no pressuposto da linguagem. Em parte, segue a dicotomia saussuriana So/Se, e estipula para a realidade lingüística dois tipos de substâncias: a substância da expressão (significante saussuriano), e a substância do conteúdo (semântica).

Nessa teorização, Hjelmslev coloca em segundo plano o processo de significação em detrimento do sentido, o que posteriormente o autor define como plano do conteúdo. Semelhante processo vincula-se ao princípio de que a substância do conteúdo desdobra-se

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em uma forma do conteúdo, o que explica os vários sentidos das expressões lingüísticas. Entretanto, o autor não se prende a uma circularidade entre o enunciado lingüístico e sua imediata significação, pois essa é mediada pela experiência do mundo social, ou seja, a substância do conteúdo é semantizada ou gramaticalizada na forma do conteúdo.

Aqui poderíamos ousar estabelecer certo paralelismo com Saussure, visto que tanto a substância da expressão como a do conteúdo podem ser equiparadas com o eixo paradigmático/sintagmático saussuriano. Os planos de conceituação e de articulação lingüística são distintos, já que Hjelmslev postula a clássica divisão da dupla articulação da linguagem (morfologia, fonologia), as figuras. Por figura entendem-se unidades mínimas de significação, sejam elas morfemas, pronomes ou traços semânticos em seu aspecto semiótico, tal como as relações paradigmáticas saussurianas. Desta maneira, Hjelmslev conclui:

A distinção estabelecida por Saussure entre forma e substância, no entanto tem uma justificativa apenas relativa, isto é, ela só é legítima do ponto de vista da linguagem. “Forma” aqui significa forma lingüística, e “substância”, como vimos, substância lingüística ou sentido. 25

Pensando nesses termos, o autor formula uma hierarquia lingüística baseada no que ele denomina esquema lingüístico e uso lingüístico, ambos conceituados por sua manifestação. Portanto, poderíamos relacionar o uso com a substância que, a grosso modo, corresponde à fala saussuriana, estritamente vinculada a um esquema, à forma lingüística.

A referência que fazemos à semântica não é específica a um dos seus vários estudos sobre a significação: semântica formal, estruturalista, gerativista, cognitiva etc. O que interessa dizer é que o passo seguinte no percurso de se pensar o sentido é o estudo semântico. A

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semântica pode ser definida, de maneira bem geral, como uma disciplina centrada no estudo da significação através de dados fornecidos pelo código da língua, tendo como seu limite inferior os itens lexicais e, como o superior, os enunciados.

Portanto, a significação constrói-se a partir de relações lexicais e sintagmáticas, e, dessa forma, a semântica ainda não é a resposta para a nossa pretendida interpretação do sentido. Uma análise semântica, ao desconsiderar (sem desconhecer) fatores que extrapolam o enunciado, faz do seu limite superior (o enunciado) o início dos estudos sobre o discurso. Fato já ressaltado por Mari:

Esta opção teórica (...) resultou num certo compromisso da semântica para abordar apenas um lugar determinado – o interior do sistema – , cuja eficiência descritiva não deve ser descredenciada por força de estágios mais complexos da análise da significação, ainda que as circunstâncias externas (a identidade dos interlocutores, as condições históricas da produção do enunciado, o valor argumentativo nele incorporado) desempenhem um papel fundamental na avaliação do seu sentido.26

Não queremos, com isso, atribuir limites estanques aos estudos semânticos, pois limitar-se ao estudo da frase não quer dizer que necessariamente exclui-se o discursivo ou o social de sua perspectiva, mas que eles fazem parte de um outro tipo de reflexão. E não podemos prescindir desta reflexão num percurso de construção de uma possível teoria do sentido, que acreditamos atingir maior amplitude nos estudos sobre o discurso.

Propondo-nos, então, a discutir os estudos sobre o discurso, fica evidente a necessidade de fazer referência a um dos seus mais importantes precursores, Émile Benveniste.

Benveniste, em sua abordagem teórica, faz preponderar o semântico sobre o semiótico, conduzindo os estudos lingüísticos, dessa maneira, a avançarem sobre o campo do uso da

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linguagem, do conteúdo não mais somente nas formas, e, “a partir do momento em que a língua é considerada como ação, como realização, ela supõe necessariamente um locutor e ela supõe a situação deste locutor no mundo.”27

A relação linguagem/sujeito, ou seja, a necessidade mútua e a interdependência como condição de existência de ambos é central para Benveniste. Para ele, a linguagem está na natureza do homem e “é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a realidade fundamenta a realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ego”28.

Desta forma, ao instituirmos o sentido como sendo essencialmente linguagem/sujeito/mundo, estabelecemos que a subjetividade está ligada ao exercício da linguagem, e esse exercício não pode prescindir de uma coletividade que estabeleça consensualmente os modos de organização desse mundo. Desta maneira, quando Wittgenstein29 diz que é só no fluxo da vida que as palavras adquirem significado, pois, quando considerado separadamente, o signo parece morto e só recebe seu “sopro vital” no uso, ele quer dizer que a prática humana (social) passa a ser mediadora das relações que formam o sentido.

Essa idéia nos permite dizer que, numa situação de uso, a profusão de signos pode aumentar conforme a necessidade e o arbítrio da sociedade, podendo se adaptar a todas as modificações. Assim, as possibilidades que serão exploradas em uma língua são definidas

27 BENVENISTE, 1991, p.224, II.

28

BENVENISTE, 1991, p.224, II

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no uso, pois “toda língua além dos signos efetivamente utilizados, possui uma reserva praticamente inesgotável de possibilidades inexploradas”30

Contudo, o uso é determinado por regras, e estas pertencem a um “pano de fundo” que vai muito além da língua, englobam tanto esta como os participantes (sujeitos), os objetos, as ações humanas e o contexto.

Wittgenstein também dedicou parte de sua obra às regras que determinam o que ele chamou de jogos de linguagem. Através desses jogos percebemos que as regras que definem o uso da linguagem são consensuais, consequentemente, não podem existir regras particulares. Desse modo, compreender as regras do uso é um suporte necessário para perceber os sentidos que são formados. O uso é ilimitado e variável, mas, mesmo de modo inconsciente, o sujeito segue as regras sempre, “sem regra uma expressão não existiria e se fossem mudadas haveria um significado diferente”31. Mesmo que de uma situação para outra o significado não apresente grandes diferenças, podemos dizer que a práxis exerce uma força organizadora que é ao mesmo tempo restritiva e provocadora de sentidos. Essa última promove o nascimento de estratégias do sujeito para se fazer entender, convencer, ou seja, argumentar de maneira geral.

Apesar de não ser nosso objetivo aprofundar nessa teoria, é interessante notar que “seguir uma regra aponta para os pressupostos das relações intersubjetivas. Todavia, apesar de logicamente mais elementar, no nível estritamente pragmático a regra não é anterior a ação”32. Portanto, um conceito geral não pode a priori dar conta de todas as aplicações possíveis. Assim, o sentido é visto de maneira discursiva, ou seja, ele só se delineia em uso, não antes desse.

30 HJELMSLEV, 1975, p. 222. 31 WITTGENSTEIN, 1975, p. 214, v.II 32

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Essa perspectiva aproxima nossos argumentos a respeito do uso do conceito de abstração apresentado por Buyssens33. Para ele, a abstração seria uma maneira de dirigir a atenção

para uma característica que é momentaneamente útil reconhecer; ou seja, “isolar pelo pensamento o que não está isolado no objeto do pensamento” é abstrair. Isso nos conduz à dedução de que o uso faz com que fatos sejam comparados ou repetidos de maneira categorizada, isolando, de um todo, aquilo que é preferível em uma situação particular.

O que tal fato nos leva a admitir é que a prática social constitui o homem como sujeito, instituindo um agente ativo cuja capacidade criadora pode ser vista como o poder do sujeito de estrategicamente superar limites impostos por algum tipo de obstáculo. Se pensarmos o sentido no âmbito dessa lógica, podemos dizer, em síntese, que o sujeito manipula a linguagem, e é manipulado por ela.

O que fica claro, nessa perspectiva, é que o sujeito só manifesta sua subjetividade na linguagem em uso, e o ato individual de colocar a língua em funcionamento instaura a característica enunciativa da comunicação. Esse ato individual introduz um locutor, condição para a enunciação e, ao mesmo tempo, implanta o outro (alocutário):

Cada locutor não pode propor-se como sujeito sem implicar o outro, o parceiro que dotado da mesma língua tem em comum o mesmo repertório de formas, a mesma sintaxe de enunciação e igual maneira de organizar o conteúdo. A partir da função lingüística, e em virtude da polaridade eu:tu, indivíduo e sociedade não são mais termos contraditórios, mas complementares.34

33 BUYSSENS, 1967. 34

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Conceber ato individual acarreta até hoje objeções ao modo como Benveniste formulou a teoria da enunciação. Essa objeção se deve ao fato de o autor parecer privilegiar o sujeito em relação ao social, mesmo tendo ele deixado claro que a subjetividade só pode ser entendida a partir de uma realidade dialética que abarca indivíduo e sociedade, definindo-os por uma relação mútua.

Assim, consideramos pertinente quando Benveniste diz que “qualquer pessoa pode fabricar uma língua, mas ela não existe, no sentido mais literal, desde que haja dois indivíduos que possam manejá-la como nativos. Uma língua é um consenso coletivo”35. Ou seja, não é possível produzir/compreender sentidos na ausência de sujeitos organizados socialmente. A relação dialógica “eu/tu” passa a ser de extrema importância para a questão da subjetividade. Se extrapolarmos essa colocação, poderemos dizer que não se trata da relação simples de um locutor para um interlocutor, mas da própria relação locutor/mundo, revelando o sujeito em relação a tudo que o rodeia.

Podemos dizer, portanto, que a linguagem possui normas e regras; e essas determinações asseguram o reconhecimento entre os interlocutores de uma comunidade. Porém, essas marcas funcionais só criam sentidos se inseridas num universo social, e é esse universo que media a relação sujeito/mundo/linguagem, pois isso se faz “pelas valorações sociais, pelas significações sociais, pelas avaliações comuns, aos interlocutores socialmente organizados”36. Portanto, entendemos que é a prática social (práxis) que legitima e atualiza

o sentido no discurso.

Entretanto, o sujeito benvenistiano não corresponde ao locutor socialmente determinado. Ele é uma instância que marca a capacidade de intersubjetividade, ou seja, de se colocar

35 BENVENISTE, 1991, p.20, I. 36

(31)

em discurso. É tal fato que nos interessa nesse conceito, pois em virtude da sua capacidade de atualização, ele se desloca de um lugar fixado a priori (lingüístico, social, psicológico, antropológico etc.) para o estabelecimento de uma unidade no interior da heterogeneidade. O sujeito, então, “não se trata de uma unidade empírica ou psicológica, mas de uma unidade de função. Quer dizer, o pacote de heterogeneidades é colocado a serviço de uma pretendida unidade do discurso”.37

A unidade de função, acreditamos, não deve ser entendida como unicidade, mas como uma “busca, quase obsessiva, por uma identidade permanente, que Benveniste deslocou do ontológico para um processo histórico de construção contínua da subjetividade/identidade”38.

Essa visão fez com que Paz (2005) denominasse a práxis uma das dimensões, ou seja, como parte essencial do sentido. Neste trabalho, acreditamos também, como já demonstrado, que ela está intimamente ligada à formação do sentido, mas não em sua definição e sim como algo característico dele. Ela é uma propriedade do sentido. É ela a mediadora, a “engrenagem” dos pilares sujeito, linguagem, mundo.

A práxis seria, nesse contexto, a responsável por estabelecer a relação entre os elementos do sentido para “costurá-los”, possibilitando um processo de atualização constante de tais elementos que promove a característica provisória do sentido, permitindo a possibilidade de mudança. É, portanto, na prática social que o sentido instaura seu caráter provisório, o que nos leva a pensar que o discurso é o lugar onde se instaura o caráter preferível do sentido.

37 PAZ, 2005, p.201. 38

(32)

Não devemos, entretanto, confiar na clareza desses termos: práxis, ou prática social, ou valores sociais; cabendo aqui uma melhor delimitação. Quando falamos em práxis estamos falando de uma organização de valores sociais, ou seja, “de objetos de acordo que possibilitam uma comunhão sobre modos particulares de agir”39. É o que Aristóteles definia por opiniões geralmente aceitas, e que implica, necessariamente, um acordo ou, pelo menos, uma tentativa de acordo entre sujeitos. Voltaremos a tratar desses valores e de como eles são articulados mais adiante.

Essa discussão, desencadeada pelas reflexões benvenistianas, rompem com os limites do enunciado, fazem-nos avançar no percurso através dos estudos sobre o discurso, indispensável para sustentar qualquer ponderação feita a partir desse ponto. Desta maneira, tentamos estabelecer entre os pontos teóricos principais uma relação de identidade e contigüidade: teoria dos signos, semântica, teoria da enunciação e, agora, estudos sobre o discurso.

39

(33)

Análise do discurso e sentido

A Análise do Discurso (AD) consolidou-se como uma linha de pesquisa que, em primeiro lugar, rompe com o formalismo lingüístico, visto que apresentou seu objeto, o discurso, com o objetivo de ultrapassar os códigos de expressão, cedendo espaço para uma reflexão que leva em conta a intersubjetividade e o aspecto situacional dessa expressão.

A discussão realizada até este momento de nossa pesquisa, demonstra que em relação ao estudo do sentido existem diversos níveis de abordagem cujo referencial teórico é definido de acordo com o “corte” que for feito e o encadeamento das reflexões a respeito da significação.

Ao escolher estudar o sentido no âmbito discursivo, estávamos certos de que era indispensável nos remeter a outros campos dos estudos lingüísticos, já que “de qualquer modo, independente da concepção que a análise do discurso venha assumir, ela não deve ser considerada, em relação a diversos campos conceituais da lingüística, incluindo a semântica, como algo autônomo, senão como uma relação da parte pelo todo.”40 E é desta maneira que se deve completar os esforços da disciplina Análise do Discurso em criar estratégias para demonstrar a “validade argumentativa das práticas de linguagem”41.

O sentido, estudado discursivamente, opõe-se às formulações feitas quando percebido numa perspectiva mais “formal”, porque rompe com uma visão essencialmente normativa da linguagem. Desta forma, as operações que associam o signo a um significante e a um significado, juntamente com suas relações sintagmáticas e parassintagmáticas, não podem

40 MARI, 1999, p.239. 41

(34)

mais ser o limite das operações teóricas. Ou seja, no contexto de uma interpretação discursiva, o signo não pode ser mais entendido como limite. Ou, como expressa Charaudeau:

Uma lingüística do discurso integra na sua análise as condições de produção do ato de linguagem e, ao fazê-lo, ela se constrói um objeto multidimensional que opera numa relação triangular entre o

mundo como real constituído, a linguagem como forma em difração e um sujeito (je/tu) intersubjetivo em situação de interação social. 42

Esse objeto multidimensional a que o autor se refere, como já dissemos antes, se delineia como o sentido, e, portanto, só pode ser estudado discursivamente. Dessa maneira, a Análise do Discurso se estabelece como um tipo de análise lingüística que permitiria tal estudo, pois faz valer “outros fatos, específicos ou globais, relacionados ao uso da linguagem, em situações históricas determinadas”43 e por sujeitos ativos nos processos da

prática de linguagem.

Sabemos que é impossível reduzir a Análise do Discurso a uma teoria englobante, ou apontar uma teoria que seja dominante. Entretanto, não podemos deixar de lembrar que existe atualmente nos estudos do discurso, como em qualquer outro campo teórico, certa exigência de delimitação da vertente teórica que o pesquisador pretende assumir. Contudo, mesmo sob o risco de parecer que estamos “à deriva”, preferiremos não apontar tal preferência, mas, como já dissemos, acreditamos que nosso trabalho, por se tratar de uma reflexão sobre um possível instrumento de análise, possa servir a diversas vertentes da AD.

É também preocupação de vários analistas a polissemia do termo discurso, e tentam a todo custo desvinculá-lo do conceito de texto ou do ato de discursar. Assim, para inserir nossas

42 CHARAUDEAU, 1999, p.32. 43

(35)

reflexões sobre o sentido num estudo discursivo, precisamos, primeiro, dizer que o discurso é a expressão por meio da linguagem que se refere a algo, a um mundo que pretende descrever, exprimir ou representar. É, portanto, a partir do discurso, uma mise em scène em que os seres humanos apresentam suas idéias, opiniões, noções, etc. Quando fazem isso, atribuem propriedades às coisas, ampliam ou restringem o potencial semântico dos termos e tentam estabilizá-los para servir melhor às práticas sociais nas quais estão inseridos, criando sentido, validando argumentos e aumentando sua eficácia.

Quando analisamos discursos, explicitamos, entre outras coisas, as estratégias de produção de sentido. Entretanto, os estudos sobre o discurso têm atribuído pouca importância a reflexões sobre o sentido. Uma prova dessa desatenção é a ausência dos verbetes sentido, significado ou significação no dicionário de referência da AD44. Contudo, acreditamos que, ao estabelecer reflexões a respeito daquilo que se procura nos discursos, fortaleceremos a análise e, mais ainda, criaremos mecanismos de produção de discursos.

A síntese de nossas reflexões acerca do sentido revela que ele se compõe por determinações lingüísticas, não prescinde de um consenso entre interlocutores, e é no emprego, ou seja, na prática social, que são definidas as regras de sua produção, não antes. Mas o sentido, como vimos, é fluido, de difícil apreensão. Como estudá-lo de um lugar que nós mesmos estabelecemos como provisório, acidental? Como Maingueneau45 nos aponta,

estamos num terreno onde a relação social é, desde o início, linguagem. Mas como pensar em discurso ao mesmo tempo em que nos remetemos a posições não discursivas?

44 CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004. 45

(36)

A resposta a essas questões está nos predicáveis aristotélicos, nos quais transparece o sentido, da maneira como nós o definimos, analisado discursivamente. Nós utilizamos os predicáveis definição, propriedade, gênero e acidente para esclarecer o que determinamos por sentido nos nossos estudos. Da mesma maneira, eles serão utilizados também para esclarecer como o sentido é estabelecido no discurso.

Uma das ligações que os predicáveis estabelecem com a Análise do Discurso se dá através dos estudos semânticos, outra é através dos estudos sobre argumentação. A primeira ocorre quando é necessário categorizar uma palavra para perceber as estratégias discursivas; a segunda se dá quando, através dos argumentos utilizados, podemos perceber certas operações discursivas.

Nosso interesse pelos Tópicos se justifica no momento em que notamos a importância dos predicáveis para o estudo do sentido e, quando usados como um método de análise, explicitam esse imbricamento entre a Semântica e a Análise do Discurso. Reconhecemos, assim, tanto operações entre propriedades lexicais, que engendram no plano do enunciado, quanto outras operações que extrapolam a esfera sistemática da língua.

(37)

Cada vez que um instrumento ou experimento é transferido de um ramo de ciência para outra, este instrumento ou este experimento é de algum modo reinventado, tornando-se um instrumento ou experimento desta ciência em particular ou deste ramo particular de ciência.46

Não é mais possível, portanto, conceber a AD como uma abordagem única e fechada, fixada em uma só metodologia, em um só tipo de corpus e articulando-se com uma só grande escola, pois se dedica ao discurso. Por esse ser um objeto, o discurso, tão heterogêneo, reconhecemos, como afirma Mangueneau (1995:5): “Não há um acesso único ao discurso, mas uma multiplicidade de aproximações governadas por preocupações variadas”47.

46 GADET, 1997, p.17.

47 Tradução livre do original “qu’il n’y a pas d’accès unique au discours mais une multiplicité d’approches

(38)

CAPÍTULO II

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Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo, não deixando, gênero não me pega mais.

Clarice Lispector

Os Tópicos

Antes de iniciarmos nossa discussão acerca das categorias predicativas aristotélicas, julgamos conveniente estabelecer algumas considerações a respeito do pensamento grego. Werner Jaeger, historiador da cultura grega, ressalta a importância e o aspecto distintivo do pensamento grego em relação aos outros povos da Antigüidade. A esse respeito, afirma:

O Helenismo ocupa uma posição singular. A Grécia representa, em face dos grandes povos do Oriente, um “progresso” fundamental, um novo estádio em tudo o que se refere à vida dos homens na comunidade. Esta fundamenta-se em princípios completamente novos. Por muito elevadas que julguemos as realizações artísticas, religiosas e políticas dos povos anteriores, a história daquilo que podemos com plena consciência chamar de cultura, só com os gregos começa.48

O autor ressalta que a singularidade do pensamento e da cultura grega residiam na importância que aquele povo atribuía à educação e ao adestramento do intelecto. Esse “salto” na mentalidade do mundo antigo revelou um sentimento arraigado de coletividade, ao mesmo tempo em que o individualismo impunha-se como força estruturante de uma nova mentalidade baseada na consciência e na razão, o que consistia a “paidéia” grega.

48

(40)

Ao discutir a gênese e a essência do pensamento grego, Jaeger situa o individualismo social grego (o logos) na mesma “ linha da liberdade do individualismo moderno”49,

ambos fundamentados no sentimento da dignidade humana. Portanto, “o homem é o centro do pensamento”50, sendo que o povo grego é o povo filosófico por excelência. O espírito grego delineava o mundo na perspectiva de uma integração da parte com o todo, ordenado em uma concepção orgânica do espírito e da realidade na qual a consciência individual sedimentou uma razão dialética da natureza humana e da estrutura social. Esse ideal do homem, esse pensamento metafísico, aparece em Aristóteles e, na particularidade dos Tópicos, podemos perceber um pensamento imbuído de uma interpretação ética e espiritual do mundo.

O tratado dos Tópicos faz parte dos escritos lógicos aristotélicos, que receberam a denominação genérica de Órganon (instrumento). Este compreende também os tratados das Categorias, da Interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos Posteriores e Refutação Sofísticas.

O volume conceitual e teórico desse conjunto é extenso, sem falar de sua complexidade. A começar pelas dúvidas em relação à escolha da ordenação dos tratados dispostos em Órganon. Devemos confessar que essa pesquisa não abarca toda a discussão levantada sobre os tratados lógicos do estagirita. Mesmo se fosse esse nosso objetivo, uma reflexão aprofundada sobre o conteúdo da obra mereceria e nos obrigaria a dispor de mais tempo, espaço e experiência.

No que se refere aos nossos interesses mais centrais, cabe ressaltar que o tratado das Refutações Sofísticas é geralmente considerado o nono livro dos Tópicos ou seu apêndice.

49 JAEGER, 1979, p. 9. 50

(41)

Diz-se também da possibilidade de o tratado Tópicos ser anterior aos Analíticos (Anteriores/Posteriores)51, colocando-o, assim, em seqüência ao tratado da Interpretação.

Essa suposta organização reforça uma possível “identidade de passagem” entre os três tratados assim dispostos: Categorias, Interpretação e Tópicos. Que todos os tratados possuem certa identidade, o título já prevê, mas, colocados nesta ordem, eles ressaltariam uma seqüência lógica do tratamento de seus princípios, desde uma importância dada à percepção de expressões isoladas, como parte importante de um conjunto mais complexo, até a relação estabelecida entre elas. Ou seja, iniciando uma reflexão a partir dos termos isolados até as noções por eles desencadeadas. Vejamos o que nos diz Aristóteles:

Os sons emitidos pela fala são símbolos das paixões da alma, [ao passo que] os caracteres escritos [formando palavras] são os símbolos dos sons emitidos pela fala. Como a escrita, também a fala não é a mesma em toda parte [para todas as raças humanas]. Entretanto, as paixões da alma, elas mesmas, das quais esses sons e caracteres escritos (palavras) são originalmente signos, são as mesmas em toda a parte [para a toda humanidade], como são também os objetos dos quais essas paixões são representações ou imagens. 52

Portanto, a identidade que mencionamos se deve ao fato de que os Tratados versariam sobre três momentos para se chegar do decomposto ao composto. O primeiro tratado, Categorias, dedica-se ao detalhamento de expressões sem combinação umas com as outras, demonstrando que, desta maneira, significariam por si mesmas uma categoria53.

Antes de mencionar o segundo momento, vale ressaltar que, apesar das controvérsias de se supor que as categorias só serviriam como respostas a perguntas feitas num contexto específico, por exemplo: O que é isto? Um homem. O que é um homem? É um animal. O

51 ARISTÓTELES, 2005, 347. 52 ARISTOTELES, 2005, 81. 53

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que é um animal(...), o que interessa dizer é que a relação entre as categorias se dá através da predicação, ou seja, atribuir uma a outra: uma qualidade ou uma quantidade a uma substância, etc.

Em seqüência, o tratado da Interpretação apresenta a tese de que palavras isoladas não teriam nenhum juízo (verdade/falsidade), ou seja, sem predicação um termo só significa alguma coisa por mera convenção. O juízo só pode ser estabelecido em uma sentença, pois “a sentença é fala dotada de significação, sendo que esta ou aquela sua parte pode ter um significado particular de alguma coisa, ou seja, que é enunciado, mas não expressa uma afirmação ou negação”54. Por exemplo, a palavra homem, sozinha, encerra um significado,

mas não nega nem afirma, precisa que se predique algo dela para que possa afirmar ou negar algo.

O próximo passo, então, seria sistematizar os predicáveis desenvolvidos nos Tópicos. Este será, portanto, o terceiro momento que enunciamos, central para nossa pesquisa.

A primeira providência é a distinção entre dois tipos de raciocínios: dialético e apodíctico. O primeiro comporta argumentações contrárias, porque suas premissas são meras opiniões sobre coisas ou fatos possíveis ou prováveis. São usados numa discussão entre opiniões contrárias que oferecem argumentos contrários, prevalecendo o argumento persuasivo. E o segundo, o apodíctico, não admite premissas contraditórias. Suas premissas são universais e necessárias, e sua conclusão não admite discussão ou refutação, é raciocínio demonstrativo.

54

(43)

Aristóteles apresenta instrumentos lógicos, neste caso dos Tópicos, para potencializar argumentos não demonstrativos55, ou seja, seu objetivo é trabalhar com argumentos que se baseiam nas opiniões de circulação social (doxa), como diz o filósofo, “opiniões geralmente aceitas”, e dedicar-se, neste momento, a proposições que são aceitas ou tenham por base o verossímil. Aristóteles privilegiará a argumentação dialética, como ele próprio ressalta no início dos Tópicos:

Nosso tratado se propõe encontrar um método de investigações graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões de aceitação geral, acerca de qualquer problema que se apresente diante de nós, e nos habilite, na sustentação de um argumento, a nos esquivar da enunciação de qualquer coisa que o contrarie.56

O estagirita nos apresenta também para quais fins esse tratado é útil:

1. Para o adestramento do intelecto; 2. Para as disputas casuais;

3. Para as ciências filosóficas.

O primeiro diz respeito a um plano de investigação que capacitaria o debatedor para argumentar mais facilmente sobre o tema proposto. O segundo fim é útil porque “depois de havermos considerado as opiniões defendidas pela maioria das pessoas, nós as enfrentaremos não nos apoiando em convicções alheias, mas nas delas próprias”57, e assim abalaríamos qualquer argumento mal formulado. A utilidade para as ciências filosóficas diz respeito à capacidade de suscitar dificuldades significativas sobre ambas as faces de um assunto, permitindo, então, perceber a verdade e o erro nos diversos pontos e questões que

55 Argumentos de certeza. 56 ARISTÓTELES, 2005, 347. 57

(44)

surgirem. Esta última, entretanto, não faz parte do interesse desta pesquisa; as discussões aqui desenvolvidas se aproximarão mais das duas primeiras58.

Ao iniciar a construção de seu método, Aristóteles condiciona suas investigações a três princípios:

1. Compreender a respeito de quantas coisas se argumenta; 2. De que materiais partem os argumentos;

3. De que maneira podemos estar bem supridos desses materiais.

Para cumprir tais condições, o estagirita nos apresentará os instrumentos dialéticos:

1. Prover-nos de proposições;

2. Ter a capacidade de discernir em quantos sentidos se emprega uma determinada expressão;

3. Descobrir as diferenças das coisas e investigar as semelhanças.

Não se pode deixar de notar que tais instrumentos são de natureza lingüística ou têm como mediadora principal a linguagem. Deste modo, eles serão de grande valia para um estudo da produção de sentido. Utilizando-os, podemos esclarecer as operações realizadas para estabelecer identidades, diferenças etc; mas, ao contrário do filósofo, não podemos lhes atribuir juízo (verdade/falsidade) e sim depreender as estratégias para se produzir determinado sentido.

Porém, só se apreende esses instrumentos fazendo-se uso da “tábua” dos predicáveis. Aristóteles afirma que toda proposição dialética diz respeito a uma definição, ou a uma

58 Para saber mais a respeito da utilidade do Tratado para as ciências filosóficas, ver PEREIRA, Oswaldo

(45)

propriedade, ou a um gênero, ou a um acidente. Entretanto, compreender essa tábua não é algo simples, por vários momentos nos deparamos com explicações e descrições extensas e complexas que nos fazem perder a clareza.

Desta forma, não podemos deixar de citar a Isagogê, ou Introdução, de Porfírio, que, como o nome diz, introduz de maneira esclarecedora as noções por vezes áridas descritas nos Tópicos, tornando mais acessível o labirinto do Órganon. Contudo, isso não basta para a apresentação da Isagogê. Esta obra perpassa a história das idéias tocando no célebre problema dos universais, questões estas que chamaram a atenção dos estudiosos.

Pode-se dizer, em verdade, que, graças a Porfírio, por intermédio de seu tradutor Boécio, os princípios da lógica peripatética e também do renascimento da filosofia de Aristóteles se tornaram correntes no pensamento ocidental:59

Foi incontestavelmente graças a Boécio, ao enorme prestígio e influência de que gozaram as suas obras durante toda a Idade Média, que, como iniciação ao estudo do Órganon do estagirita, a Isagogê de Porfírio foi comentada em todas as escolas do mundo ocidental.60

Não há como negar a projeção que a Isagogê teve nesta época, assim como a polêmica que provocara, principalmente por ser obra de um autor que, por vezes, se manifestava contra o pensamento da igreja61. Podemos ter uma idéia dessa polêmica na passagem abaixo, retirada de uma Isagogê criada a partir da porfiriana:

Já não me refiro a numerosos temas do seu livrinho que são supérfluos(...) por tal desejo os nossos [irmãos jesuítas] manifestaram o desejo de que eu compusesse uma nova Isagogê, a

59 PORPHYRE, 1984, p. 7. 60 FONSECA, 1965, p. XII. 61

(46)

qual fosse tão mais substanciosa quanto a doutrina e mais exacta no que respeita a verdade(...) de onde esperavam resultasse também como efeito fosse banido das escolas de filosofia cristã o livro do pérfido desertor da fé cristã.62

Ter sido censurado pela igreja, naquela época, e ainda assim cruzado culturas e mais culturas, só prova que as idéias peripatéticas geraram um interesse enorme entre os estudiosos de vários cantos do mundo.

62

(47)

Os Predicáveis

Aristóteles empreendeu nos Tópicos suas formulações dialéticas, tratando sempre da relação dos conceitos entre si. Segundo Aristóteles, a dialética é a arte de raciocinar não por premissas verdadeiras, mas por premissas verossímeis. Ou seja, se duas hipóteses contrárias se sustentam em duas séries contrárias de argumentos, é a comparação desses argumentos que se denomina dialética.

Deste modo, Aristóteles apresentará o raciocínio dialético, que teria por definição se mover a partir de premissas cuja veracidade não é estabelecida previamente, mas que são somente prováveis. Aristóteles condicionava a validade do raciocínio a uma categorização lógica, realizada através dos predicáveis.

Não faremos aqui um inventário extenso sobre a atribuição dos diferentes predicáveis, assim como é feita pelo autor. Como Aristóteles estava criando um tratado lógico para adestrar o raciocínio e melhorar o uso dos argumentos, ele descreveu exaustivamente as formas lógicas de se argumentar e contra-argumentar a partir dos predicáveis. Este não é nosso objetivo, e vale reafirmar que nossa intenção é empregar a conceituação aristotélica para estabelecer uma maneira possível de se apreender estratégias de produção de sentido, pois acreditamos que os predicáveis podem ser usados discursivamente. Portanto, concentraremos nossas discussões não nos pressupostos filosóficos das categorias, mas em suas articulações semântico-discursivas passíveis de acionar processos argumentativos.

(48)

nos permitiremos acrescentar observações mais ligadas aos nossos objetivos. Nesse tratado, os predicáveis são apresentados numa ordem63 que também preferimos inverter.

Devemos, antes de tudo, chamar a atenção para uma relação de contigüidade entre os predicáveis, principalmente, entre a definição, a propriedade e o gênero. A lógica entre eles se dá na transição, quando dispostos na ordem acima, do mais específico para o mais amplo. Contudo, retornaremos a esse aspecto mais adiante, após a apresentação dos mesmos.

Cabe aqui uma definição melhor de espécie. Usaremos o significado mais empregado que é aquele que toma a espécie como atributo subordinado a algum gênero. Assim, todos os atributos que pertencem à espécie pertencem também ao gênero, segundo Aristóteles: se o homem é bom, o animal também deverá ser bom.

Antes de começarmos a apresentar os predicáveis, é necessário dizer que eles derivam, ou partem sempre de uma categoria primeira que é a substância. A substância, na concepção do universal, demonstra não a verdade, mas a possibilidade de desdobramento e de abstração desse todo absoluto, apontando como refazer o caminho do conhecimento. É exatamente esse desdobramento da substância, que se dá através dos predicáveis, que constitui a negatividade que leva à razão dialética: “Assim como Aristóteles mesmo determina a natureza como agir de acordo com um fim, o fim é o imediato, o que está em repouso, o imóvel que é ele próprio motor e, desta sorte, é sujeito”64. Devemos, também, nos lembrar de que a predicação clássica é dada pela fórmula S P; isto quer dizer que S é sujeito e P um tipo de predicado atribuído a S; procedimento primário de racionalização que utilizamos para formar conceitos.

63 Seqüência que se encontra na obra: Livros II e II descrevem o acidente; Livro IV o gênero; Livro V

propriedade e Livros VI e VII definição.

64

(49)

Desta forma, poderíamos aqui, por uma relação de associação, presumir que o mecanismo de pensamento aristotélico também encontra sede na reflexividade dialética que parte do universal de uma substância e se desdobra no particular da essência.

Definição

Pois bem, durante nossa vivência, aprendemos apropriadamente a linguagem, através de nossas leituras, observando e imitando o comportamento lingüístico dos indivíduos a nossa volta. Ao conhecer novas palavras, ampliamos nosso vocabulário, entretanto, também sabemos que o significado de um termo pode variar, podemos nos deparar com ambigüidades ou com mudanças de significado.

Portanto, vamos nos dar o direito de relatar uma história para exemplificar os meandros do raciocínio que estabelece a conceituação de cada predicável. A possibilidade constante de mudança, ou seja, a percepção de que nada no mundo é fixo, de que tudo está em constante transformação, fez Heráclito proferir a célebre frase: o mesmo homem não se banha duas vezes no mesmo rio. Ele quis dizer que o homem, depois do primeiro banho, se modificou, e o rio também. Porém, com o intuito de provar que tudo estava em constante movimento, ele não ponderou que o homem, mesmo tendo se modificado, não exclui o fato de ele continuar sendo essencialmente homem, e o rio, essencialmente rio.

(50)

para lançá-la por terra”.65 A definição, portanto, na lógica dos predicáveis, é o patamar

máximo de singularidade de algo. “A definição é afirmada ou como uma frase empregada no lugar de um termo, ou como uma frase empregada no lugar de uma frase, pois é também possível definir algumas coisas indicadas por uma frase”66. Vejamos o texto abaixo:

Toda virtude se encerra na justiça e só é nobre quem é justo. (Sólon) – A única coisa que resta ao Homem verdadeiramente nobre, se

prescindirmos das suas riquezas, é a riqueza interior, isto é, a arete; e esta poucos possuem. (comentário de Werner Jaeger) 67

O argumento acima, apresentado dessa forma, foca suas atribuições na definição, restringe conceitos, delimita conclusões, cria o raciocínio lógico e conceitua virtude e nobreza. O autor da frase, Sólon, restringe a virtude à justiça e exclui da atribuição possíveis propriedades, gêneros etc., colocando seu dizer nos limites da essência. Dessa maneira, se assim definido, todo nobre é virtuoso e essencialmente justo, já que nobreza, neste argumento, exclui atributos como riqueza e poder que são disposições (geralmente aceitas) para se identificar algo nobre. Porém, no âmbito da perspectiva dialética, considerando-se os predicáveis, se analisarmos tal proposição, descobriremos logo maneiras de contestá-las, por exemplo, expandindo sua atribuição para além de suas especificidades.

65 ARISTÓTELES, 1978, p.110 66 ARISTÓTELES, 1978, p.351. 67

(51)

Propriedade

A propriedade é aquele predicável que revelará as peculiaridades próprias daquilo que se categoriza. Embora não se indique uma essência, pertence exclusivamente a ela. No argumento acima apresentado, é próprio da virtude a justiça, sendo atributo desse predicável a conversibilidade, ou seja, a possibilidade de alternâncias lógicas; pois da maneira como o argumento foi apresentado, podemos dizer que ser virtuoso é ser justo e ser justo é também uma virtude. Por isso, se as propriedades não forem expressas de maneira clara, não será possível perceber a atribuição de um predicado. Vejamos o pensamento abaixo:

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" "

# $ %

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Neste exemplo, Aristóteles estabelece como próprio do homem aspirar à honra. Ao proceder desta maneira, o estagirita apresenta um ideal do que seria particular ao homem; ou seja, honra e valor se predicam conversivelmente. Um exemplo disso é considerar que uma propriedade do homem é sua capacidade de aprender gramática. Se é capaz de aprender gramática, é homem.

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