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Coerção e ruptura estilísticas na poesia potiguar: a construção do ethos inventivo do poeta Jorge Fernandes

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUÍSTICA APLICADA

COERÇÃO E RUPTURA ESTILÍSTICAS NA POESIA POTIGUAR

:

a construção do

ethos

inventivo do poeta Jorge Fernandes

João Maria Paiva Palhano

(2)

João Maria Paiva Palhano

COERÇÃO E RUPTURA ESTILÍSTICAS NA POESIA POTIGUAR

:

a construção do

ethos

inventivo do poeta Jorge Fernandes

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de concentração: Linguística Aplicada.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira

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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Palhano, João Maria Paiva.

Coerção e ruptura estilísticas na poesia potiguar : a construção do ethos inventivo do poeta Jorge Fernandes / João Maria Paiva Palhano. – 2011. 263 f.

Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, Natal, 2011.

Orientadora: Prof.ªDr.ª Maria Bernadete Fernandes de Oliveira.

1. Poesia brasileira – Natal (RN). 2. Oliveira, Jorge Fernandes de - 1887-1953 – Estilo. 3. Estilo literário. 4. Criação (Literária, artística etc.) I. Oliveira, Maria Bernadete Fernandes de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

(4)

A tese intitulada Coerção e Ruptura Estilísticas na Poesia Potiguar: a construção do ethos inventivo do poeta Jorge Fernandes, defendida em 01 de abril

de 2011 pelo doutorando João Maria Paiva Palhano, foi aprovada pela banca examinadora constituída pelos professores:

___________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira (UFRN)

Orientadora

___________________________________________________________

Profa. Dra Maria Inês Batista Campos (USP) Examinadora Externa

___________________________________________________________

Profa. Dra. Dóris de Arruda Carneiro da Cunha (UFPE) Examinadora Externa

___________________________________________________________ Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)

Examinador Interno

___________________________________________________________

Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves (UFRN) Examinadora Interna

___________________________________________________________

Profa. Dra. Rita Maria Diniz Zozzoli (UFAL) Suplente Externa

___________________________________________________________

(5)

RESUMO

No cenário poético norte-rio-grandense, a publicação do Livro de Poemas de Jorge

Fernandes, em 1927, assinala, no imaginário da comunidade potiguar leitora,

produtora e crítica de poesia, o início da circulação social de um ethos inventivo

vinculado ao poeta Jorge Fernandes de Oliveira (1887-1953). Tomando como

referência o evento aludido, a pesquisa investiga a construção desse ethos a partir

do contraponto entre as escolhas estilísticas individuais do poeta e as escolhas

estilísticas dominantes na produção lírica local dos anos 20 do século XX. O corpus

constitui-se de textos poéticos (tanto do poeta em foco quanto de outros poetas tidos, à época, como ícones da poesia norte-rio-grandense) e de textos representativos da crítica literária local (tanto produzidos nos anos 20 quanto em outras décadas do século passado). A sustentação da análise ancora-se na teoria enunciativa de Mikhail Bakhtin (sobretudo no que se refere a estilo) e na teoria

enunciativa de Dominique Maingueneau (sobretudo no que se refere a ethos). Nesse

percurso investigativo, a pesquisa delineia um inventário das escolhas estilísticas individuais dominantes de Jorge Fernandes de Oliveira e os motivos de essas

escolhas sinalizarem o ethos inventivo associado ao poeta.

Palavras-chave: Poesia norte-rio-grandense. Jorge Fernandes. Estilo. Ethos.

Inventividade.  

(6)

ABSTRACT

Within the poetic scenario of Rio Grande do Norte the publication of Livro de Poemas

de Jorge Fernandes, in 2007, marks, in the imagery of the Potiguar community of

poetry readers, producers and critics, the beginning of the social circulation of an

inventive ethos associated with the poet Jorge Fernandes de Oliveira (1887-1953).

Regarding the event mentioned earlier as a point of reference, this research

investigates the construction of such ethos based on the counterpoint between the

poet’s individual stylistic choices and the stylistic options that prevailed in the lyric

production of the Twenties in the 20th Century. The corpus comprises poetic texts (by

the poet under discussion and by other poets who were, then, regarded as icons of the poetry of Rio Grande do Norte) and texts representative of local literary criticism (produced both during the Twenties and in other decades of the last century). Support to this analysis is grounded in Mikhail Bakhtin’s theory of the utterance (mainly regarding style) and in Dominique Maingueneau’s theory of the utterance

(mainly regarding ethos). During the course of this investigation, the research has

outlined an inventory of the prevailing individual stylistic choices of Jorge Fernandes

de Oliveira and the reasons why such choices point out towards the inventive ethos

associated with the poet.

Keywords: Poetry of Rio Grande do Norte. Jorge Fernandes. Style. Ethos.

(7)

RÉSUMÉ

Dans le panorama poétique du « Rio Grande do Norte », la publication du Livre

Poemas de Jorge Fernandes, em 1927, signifie dans l'imaginaire de l'ensemble

«potiguar » des lecteurs, écrivains et critiques de poésie, le début de la diffusion sociale d'un ethos inventif lié au poète Jorge Fernandes de Oliveira (1887-1953). En prenant comme point de départ le fait évoqué, la recherche se propose de vérifier la construction de cet ethos à partir du contrepoint entre les choix stylistiques individuels du poète et les choix stylistiques dominants dans la production lyrique locale des années 20 du XXe siècle. Le corpus est constitué des textes poétiques (tant du poète en question comme des poètes, considérés à l'époque, comme des icones de la poésie « norte-riograndense ») et de textes représentatifs de la critique littéraire locale (tant ceux écrits dans les années 20 comme pendant d'autres décennies du même siècle). La base théorique de l'analyse est ancrée sur la théorie énonciative de Mikhail Bakhtin ( surtout par rapport au style) et sur la théorie énonciative de Dominique Mangueneau (surtout par rapport à l'ethos). Dans ce parcours d'investigation, la recherche présente un inventaire des choix stylistiques individuels dominants de Jorge Fernendes de Oliveira et les raisons de ces choix pour signaler l'ethos inventif associé au poète.

Mots clés: Poésie "norte-rio-grandense". Jorge Fernandes. Style. Ethos. Inventivité.  

(8)

AGRADECIMENTOS

A Bernadete, pela condução desviadora de rotas suspeitas. A Maria da Penha, pelas apreciações sinceras.

A Carlota, pelo exercício permanente e incansável do olhar esquadrinhador.

A Sylvia, pelo convívio com as críticas que, muitas vezes, abrem janelas e portas.

A Humberto, pela disponibilidade honesta de quem acredita no outro. A Herta e a Selma, pelas duas prendas em língua estrangeira.

A Renata, pela cumplicidade inspiradora.

A Ailton, pelas horas, longas e infindáveis, em que me emprestou os ouvidos.

Aos colegas do grupo de estudos bakhtinianos, pelos bombardeios no paredão.

A todos os que se cansaram de ouvir meus acalantos apaixonados para Autinha, Palmyrinha e Jorginho.

       

(9)

                                         

Para Maria de Lourdes Oliveira, que me fez apreciar a urdidura estilística dos textos.

Para Maria Bernadete Fernandes de Oliveira, com quem perscrutei muitas artimanhas da linguagem.

(10)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO BREVE... 13

1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DA PESQUISA... 15

1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO E DELIMITAÇÃO... 15

1.2 PANORÂMICA DOS ESTUDOS JORGIANOS... 24

1.3 JUSTIFICATIVA... 27

1.4 QUESTÕES E OBJETIVOS... 28

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O QUADRO TEÓRICO DA PESQUISA E SOBRE ALGUMAS IMPLICAÇÕES METODOLÓGICAS DECORRENTES.... 30

2.1 O CAMPO DE INVESTIGAÇÃO EM QUE SE INSERE A PESQUISA... 30

2.2 A CATEGORIA ESTILO... 32

2.2.1 Prolegômenos... 32

2.2.2 Estado da arte: uma panorâmica das principais tendências estilísticas no século XX... 33

2.2.3 O estilo na teoria bakhtiniana da enunciação: a configuração de uma categoria de análise... 40

2.2.4 Coerção e ruptura estilísticas: um embate dialógico contínuo... 52

2.3 A CATEGORIA ETHOS... 55

2.3.1 Prolegômenos... 55

2.3.2 Estado da arte: uma panorâmica das discussões sobre ethos... 56

2.3.3 O ethos na concepção mangueneauniana: a configuração de uma categoria de análise... 60

2.4 ESTILO INDIVIDUAL, ETHOS DISCURSIVO E AUTORIA: INTER-RELAÇÕES EM UMA PERSPECTIVA EXOTÓPICA... 64

2.5 ESTILO INDIVIDUAL E ETHOS DISCURSIVO NA CARPINTARIA METODOLÓGICA DA PESQUISA ... 69

(11)

LITERÁRIA... 77

3.1 PONDERAÇÕES INICIAIS... 77

3.2 AS DIVERSAS VISÕES SOBRE JORGE FERNANDES E SUA OBRA... 79

3.2.1 A perspectiva de Luís da Câmara Cascudo: a visão do historiador e do cronista... 79

3.2.2 A perspectiva de Veríssimo de Melo: a visão do antropólogo... 83

3.2.3 A perspectiva de Moacy Cirne: a visão do poeta... 90

3.2.4 A perspectiva de Francisco das Chagas Pereira: a visão do lingüista... 93

3.2.5 A perspectiva de Humberto Hermenegildo de Araújo: a visão do professor e do pesquisador de literatura... 98

3.3 CONCLUSÕES... 102

4 PARÂMETROS ESTILÍSTICOS DA LÍRICA POTIGUAR NOS PRIMEIROS TRINTA ANOS DO SÉCULO XX: A CONSTRUÇÃO DE UM ETHOS “BEM-COMPORTADO”... 106

4.1 PONDERAÇÕES INICIAIS... 106

4.1.1 Sobre a relevância da produção poética de Auta de Souza e de Palmyra Wanderley nos primeiros trinta anos do século XX... 106

4.1.2 Sobre os critérios de seleção dos poemas analisados... 112

4.2 ANÁLISE ESTILÍSTICA DE POEMAS DE AUTA DE SOUZA... 113

4.2.1 Considerações iniciais... 113

4.2.2 Agonia do Coração... 115

4.2.3 Caminho do Sertão... 121

4.2.4 Doloras... 126

4.2.5 Considerações finais... 131

4.3 ANÁLISE ESTILÍSTICA DE POEMAS DE PALMYRA WANDERLEY... 134

4.3.1 Considerações iniciais... 134

4.3.2 Bem-te.vi... 136

4.3.3 Sinhá Rocas... 142

4.3.4 Pitangueira... 150

4.3.5 Considerações finais... 156

(12)

5 PARÂMETROS ESTILÍSTICOS DA LÍRICA DE JORGE FERNANDES: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS INVENTIVO NOS RINCÕES POTIGUARES...

167

5.1 PONDERAÇÕES INICIAIS... 167

5.1.1 Sobre a recepção da produção poética de Jorge Fernandes nos inícios do segundo quartel do século XX... 167

5.1.1 Sobre os critérios de seleção dos poemas analisados... 171

5.2 ANÁLISE ESTILÍSTICA DE POEMAS DE JORGE FERNANDES... 172

5.2.1 Considerações iniciais... 172

5.2.2 Remanescente... 173

5.2.3 Poemas das Serras 4... 183

5.2.4 Meu Poema Parnasiano N° 2... 192

5.2.5 Manhecença... ... 202

5.2.6 O Banho da Cabocla... 210

5.2.7 Rede... 221

5.2.8 Considerações finais... 229

5.3 CONCLUSÕES... 234

CONCLUSÕES... 238

REFERÊNCIAS... 254

APÊNDICE A Cronologia sucinta da vida e da obra de Jorge Fernandes... 258

APÊNDICE B Cronologia sucinta da vida e da obra de Auta de Souza... 260

(13)

Ligo a chave propulsora dos meus nervos P’ra melhor sentir toda a emoção que me rodeia... Que vontade de produzir sonêtos...

Trancar-me nos quatorse versos E berrar sonoridades aos quatro ventos P’ra sensibilisar romanticos...

(14)

INTRODUÇÃO BREVE

Numa época moderna em que, conforme a descreve Bauman (2001), os

sólidos se liquefazem, fluem e escorrem, permitindo que as identidades se

reconstruam em fluxo contínuo e os mitos se apoiem em bases que não apresentam

fixidez, torna-se instigante investigar a construção de uma determinada imagem

social que tem resistido aos mais diversos dizeres alheios. Trata-se da permanência

– no percurso temporal compreendido entre o primeiro quartel do século XX e a

primeira década do século XXI – do ethos1 inventivo do poeta potiguar Jorge Fernandes de Oliveira (1887-1953).Nesse sentido, esta pesquisa debruça-se sobre

um filete que, até então, goza status de solidez no amálgama aquoso das representações sociais atreladas à esfera da arte e da cultura norte-rio-grandenses.

Ainda que apenas com um só volume de poemas publicado, o referido

poeta inaugurou, desde o lançamento do Livro de Poemas de Jorge Fernandes, em 1927, o epíteto de inventivo e de desafiador dos cânones da lírica local. Assim, seja

no dizer da comunidade nacional leitora, crítica e produtora de poesia, seja no dizer

da comunidade potiguar, sobretudo desta última, legitimou-se, quase que de forma

unânime, um parecer ratificador do engenho e da invenção. E isso tem resistido aos

diversos olhares que, sem importar o ângulo de visão, mantiveram o alvo centrado

na figura do poeta e na tessitura da obra criada por ele.

Esta pesquisa insere-se, pois, nas discussões contemporâneas sobre o

enunciado, mais precisamente em torno de como ele se organiza e de como é

constituinte do imaginário social. Em relação ao modo como se organiza, interessa

especialmente o estilo individual. Em relação ao modo como se entrelaça ao

imaginário social, interessa o ethos discursivo. No entrecruzamento dessas duas categorias, tecemos essencialmente a análise: o estilo individual como um suporte

por excelência para a consolidação do ethos.

Dessa forma, perscrutamos o estilo individual de Jorge Fernandes de

Oliveira para entender a imagem social do poeta criativo, reverenciado e

referenciado por uma série de dizeres críticos encomiásticos. Em decorrência,

investigamos a pertinência desses dizeres e buscamos determinar que forças

       1

(15)

sociais centrípetas e centrífugas, em âmbito estilístico, foram responsáveis, no

contexto de produção da obra do poeta, pela constituição da imagem social que se

estabeleceu na comunidade.

Para sequenciar toda essa discussão, optamos pelo seguinte

ordenamento: uma introdução breve, cinco capítulos intermediários e as conclusões.

Quanto à introdução, preferimos torná-la concisa, um preâmbulo rápido e apenas

situador, em linhas gerais, da investigação realizada. Quanto aos cinco capítulos

intermediários, o cerne da pesquisa, determinamos a seguinte disposição: no

primeiro capítulo, apresentamos o objeto da pesquisa (sua contextualização e sua

delimitação, além da justificativa de por que esse objeto ser investigado e da

explicitação das questões e dos objetivos propostos em relação a ele); no segundo

capítulo, expusemos tanto o quadro teórico que deu sustentação à pesquisa (o

campo de investigação em que ela se insere e a circunscrição das duas categorias

principais da análise: o estilo e o ethos) quanto a metodologia norteadora da investigação; no terceiro capítulo, analisamos uma amostragem dos discursos da

crítica literária que, de alguma forma, puseram em evidência o objeto desta

pesquisa; no quarto capítulo, analisamos os parâmetros estilísticos da lírica potiguar

nos primeiros trinta anos do século XX; e, por fim, no quinto capítulo, os parâmetros

estilísticos da lírica de Jorge Fernandes de Oliveira. Nestes três últimos capítulos,

expusemos também os critérios que determinaram a constituição do corpus. Quanto ao capítulo final, retomamos os resultados das análises apresentadas nos terceiro,

quarto e quinto capítulos e respondemos, de forma mais incisiva, às questões da

(16)

1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DA PESQUISA

Natal que olha as boas letras

continuará tomando purga de vassourinha se não conhecer e sentir os poemas de Jorge Fernandes.

Octacílio Alecrim (1928)

1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO E DELIMITAÇÃO

Na década de 20 do século XX, Natal – segundo crônicas e registros

históricos – ainda se encontrava mergulhada nos tons de uma Belle Époque

oitocentista, provinciana e esmaecida2. O aglomerado urbano estava quase que

inteiramente concentrado em um perímetro hoje perdido diante da expansão

imobiliária: entre o Areal, parte mais alta do bairro das Rocas, e o riacho do Baldo,

onde as lavadeiras exerciam seu ofício e de onde vinha a água doce que sanava a

sede da cidade. Os bairros do Alecrim e da Cidade Nova (este último hoje bifurcado

em Petrópolis e Tirol) ainda se encontravam em lenta expansão. No que se referia

ao casario, as residências mais elegantes e modernas espalhavam-se pelo bairro da

Cidade Alta, onde as posses dos sobrenomes de família se confirmavam nas

fachadas com muitos frisos e nos jardins guarnecidos pelas roseiras da moda3. Os

estabelecimentos comerciais, por sua vez, instalados quase sempre no piso térreo

de velhos sobrados, acomodavam-se no bairro da Ribeira. Nesse arruado (se assim

podemos dizer), os eventos sociais de maior repercussão eram os promovidos pela

Igreja: as festas que se expandiam de dentro dos templos para a profanidade

comportada do entorno.

       2

Conforme Arraes (2008), Natal impregnou-se de Belle Époque até pelo menos 1930.

3

(17)

Afogada nesse cenário, a cidade parecia estar presa em um

daguerreótipo. Lastimosa, ainda pranteava a morte de seu santo protetor, o padre

João Maria Cavalcanti de Brito, que adejara aos céus em 1905, vítima de varíola,

mal que ajudara a combater e que dizimara parte considerável da população na

transição entre os dois séculos. Reminiscente, a cidade provavelmente ainda não

esquecera as velhas rixas de décadas passadas entre xarias (os que moravam na

Cidade Alta e – dizia-se – se deliciavam com xaréu, peixe tido como nobre na

culinária natalense) e canguleiros4 (os que moravam na Ribeira e – dizia-se –

comiam cangulo, peixe tido como de terceira categoria). Como representantes dos

poucos índices mais avançados de modernidade, o cinema e o telefone haviam se

incorporado à cena urbana na década de 10. Somente em 1911, as ruas foram

iluminadas por energia elétrica, abandonando-se, de vez, o uso do gás acetileno.

No mesmo colorido reminiscente, a rede de becos, travessas e ruas,

ainda que, em lentidão, fosse se expandindo, guardava o gosto do passado nas

denominações singelas, pictóricas e poéticas, sem que se soubesse quem nem

quando decidira a nomeação, provavelmente perdida nas origens populares do

povoamento: beco da Lama, travessa da Ossada, rua da Aurora, rua do Caminho de

Beber, rua da Estrela, rua da Palha, rua do Vai-quem-quer, rua dos Tocos, rua das

Virgens...

Descrevendo essa Natal dos anos 20, Cascudo (1999, p. 400), como

testemunha ocular do período, dimensiona o ritmo e os ares da cidade:

De 1900 em diante a vida vai mudando. Mudando tão devagar que o século

XIX ficou nos hábitos até depois de 1922. Os movimentos são concêntricos,

centrípetos, atraídos pela irresistível doçura de um ambiente que se tornara

casa de família, com cadeiras na calçada, para todos. O rumor do trabalho

não era ouvido pelos Estados vizinhos. Uma transição era um sucesso, com

registro especial.

E, em uma crônica publicada em 1924, solta o petardo:

       4

(18)

Despensa o commentario. Basta annunciar. Natal a noite. Estamos vendo

uma cidade quieta como se aprendesse o movimento com as mumias

pharaonicas. Sob a luz (quando ha) das lampadas amarellas, arrastam [se]

meia duzia de creaturas magras, uma “pose” melancólica de Byrons

papa-gerimúns.

Depois, um “film” no Royal ou Rio Branco ou poker somnolento do Natal

club. (CASCUDO, 2005, p. 86).

Também compondo esse cenário, as impressões de Andrade, em 1929,

são esclarecedoras:

Com os seus 35 mil habitantes, é um encanto de cidadinha clara, moderna,

cheia de ruas conhecidas encostadas na sombra de árvores formidáveis.

[...]. O pitoresco dela é um encanto honesto, uma delícia familiar pra nós,

um ar de chacra que a torna tão brasileiramente humana e quotidiana como

nenhuma outra capital brasileira, das que conheço. (ANDRADE, 2002, p.

206).

Ao estabelecer um paralelo com São Paulo, Andrade (2002, p. 207) avalia

sutilmente o pouco crescimento de Natal (já, à época, com mais de trezentos anos

de fundação e, mesmo assim, despojada de bens arquitetônicos valiosos): “Natal é

feito São Paulo: cidade mocinha, podendo progredir à vontade sem ter coisas que

dói destruir”.

Nesse contexto modorrento5, de manifestações artísticas escassas e

emperradas, proliferava a arte de versejar, uma vez que era de fácil feitio. Com

apenas caneta-tinteiro, mata-borrão, folhas de papel, um breve sopro de musas e,

posteriormente, uma tipografia, colocavam-se, no mercado local dos consumidores

de poesia, versos melosos que debulhavam temas rotineiros em torno do amor, da

saudade, da paisagem potiguar e da religiosidade. Por ser assim, de certo modo tão

       5

Ainda que Cascudo (1924) aponte índices de modernidade em Natal, como, por exemplo, o cinema, focaliza, com mais intensidade, a morosidade e o atraso. Sem dúvida, alguns outros índices tidos

como de progresso assinalavam a cena da cidade, como a fundação da Escola Doméstica de Natal,

em 1914, um marco da educação secundária feminina potiguar (no que se refere aos segmentos sociais mais abastados), e, durante os primeiros trinta anos do século XX, as políticas públicas, tanto municipais quanto estaduais, de saneamento e de urbanização da capital (até mesmo de embelezamento paisagístico). A título de curiosidade, para que se compusesse o quadro docente da

(19)

acessível, pipocavam poetas nos quatro cantos da cidade – e do Estado. Ratificando

esse quadro quantitativo, Wanderley (1922) publica um florilégio dos poetas do Rio

Grande do Norte, em que contempla, com mais de uma centena de nomes

representativos de quase todas as letras do alfabeto, uma lista quase infindável de

vates.

Para sustentar a circulação desse derramamento de versos em Natal,

havia, também em profusão, as agremiações (por exemplo, o Grêmio Almino Affonso, o Grêmio Lítero-Musical Auta de Souza e o Centro Polimático, este último famoso pelo grupo de artistas que congregava e pela revista que mantinha em

periodicidade regular), as revistas (por exemplo, Terra Natal, Atualidade, Cigarra e

Revista do Centro Polimático) e os jornais literários (por exemplo, O Trovador Potiguar, O Bacurau, Don Fuás, O Fon-fon, A Ideia, Potengi e Oficina Literária). Essas agremiações e esses veículos midiáticos6 elencados, todos sediados na

capital, tanto difundiam quanto legitimavam a produção poética do período.

Tinha-se, dessa forma, uma infraestrutura capaz de permitir a consolidação, na província,

de uma arte que, se não dava saltos qualitativos muito altos, manifestava visíveis

sinais de vida, com leitores, críticos e produtores de poesia sempre em atuação,

cumprindo seus respectivos papéis. E isso também era válido para o interior do

Estado.

A poesia lírica ganhara, portanto, espaço permanente na vida cultural da

cidade. Em referência a esse período, há as afirmações de uma quadrinha muito

conhecida:

Rio Grande do Norte,

Capital: Natal.

Em cada esquina um poeta,

Em cada rua, um jornal.

Assim, na Natal dos anos 20, mais precisamente no âmbito da

comunidade leitora e produtora de poesia (e consideremos que, a essa época, ler

poemas, conhecê-los de cor e declamá-los fazia parte dos hábitos culturais dos

cidadãos ditos escolarizados), degustavam-se, como canônicos, os místicos,

       6

(20)

serenos e bem-comportados versos líricos de Auta de Souza7 (1876-1901), “a pobre

moça tuberculosa”, conforme se autocognominara a poeta, talvez a única a ter os

versos, sob forma de canção8, na boca e no coração do povo norte-rio-grandense.

Também se apreciavam, por demais, os elogiados versos de Palmyra Wanderley

(1897-1978), não tão bem comportados nem tão místicos, mas, no contexto em que

se inseriam na década em foco, devidamente canônicos para os padrões da poesia

lírica local.

Outros nomes, também sintonizados com o cânone, ensejavam circular,

como Ferreira Itajubá (1876-1912), Gothardo Neto (1881-1911), Lourival Açucena

(1827-1907) e Othoniel Menezes (1895-1969), ainda que não obtivessem a

repercussão das duas primeiras, seja no âmbito da crítica seja no da venda de

exemplares. Em relação a este último aspecto, tanto Horto, de Auta de Souza, publicado em 1900, quanto Esmeraldas, publicado em 1918, e Roseira Brava, publicado em 1929, ambos de Palmyra Wanderley, esgotaram-se até nas reedições

subsequentes, ao longo do século XX9.

Nessa Natal tranquila, quase parando, entorpecida por lânguidas

modinhas de trovadores eternamente apaixonados, Jorge Fernandes de Oliveira10

(1887-1953), poeta natalense, lança, em 1927, o Livro de Poemas de Jorge Fernandes11 (doravante, nesta pesquisa, Livro de Poemas), seu primeiro e único volume publicado de poesia. Dera o passo, desse modo, de forma consciente ou

não, para inaugurar uma crítica apologética em torno de sua imagem como poeta:

da época em que fora publicado o livro até hoje. Antes, em 1909, publicara uma

       7

Para detalhes sobre a cronologia da vida e da obra de Auta de Souza e de Palmyra Wanderley, consultem-se, respectivamente, os Apêndices B e C.

8

Nos anos 50 do século passado, Jorge Fernandes de Oliveira também teve poemas musicados por Waldemar Henriques e divulgados pela Rádio Roquete Pinto, do Rio de Janeiro. Mas, diferentemente dos poemas de Auta de Souza, não se transformaram em peças de hinário na boca e no coração do povo potiguar.

9

No capítulo 4, tratamos dos motivos que justificam a eleição de Auta de Souza e de Palmyra Wanderley como as grandes representações da lírica potiguar nos anos 20 do século XX. No capítulo citado, abordamos os parâmetros estilísticos das duas poetas.

10

De acordo com os relatos biográficos, Jorge Fernandes de Oliveira era simples pai de família. Apesar de assinar com sobrenome tradicional e de ter irmãos intelectuais e homens públicos, não

chegou sequer a concluir os estudos no Atheneu Norte-rio-grandense. Foi auxiliar de comércio e

gerente de fábrica de cigarros, caixeiro-viajante, negociante de bares e “cafés” e, por último, escriturário do Tesouro Nacional, posto em que se aposentou. Quando de sua morte, apenas um jornal local, A República, fez um registro rápido. Para maiores detalhes sobre a vida e a obra do poeta, consulte-se o Apêndice A.

11

Provavelmente por falta de recursos financeiros, Jorge Fernandes de Oliveira teve ajuda de Câmara Cascudo na publicação do livro. O volume foi, então, impresso na tipografia do jornal

matutino A Imprensa, periódico pertencente ao Coronel Cascudo, pai de Câmara Cascudo, com

(21)

coletânea de contos e, entre 1913 e 1920, escrevera várias peças teatrais, algumas

delas, inclusive, saindo do prelo. Essas produções (tanto os contos quanto as

peças), no entanto, não provocaram rebuliço nos meios intelectuais da província.

O Livro de Poemas, dados seu aspecto gráfico (forma de caderno, 86 páginas e dimensões de 15 por 21 cm) e o inusitado das construções linguageiras

(nada canônicas para o momento do lançamento), não teve boa recepção de

público. Afastava-se tanto dos padrões do objeto livro de poesia quanto dos padrões

estéticos da lírica local.

Garcia (2008, p. 10-11) analisa o relacionamento travado com os

leitores, quando da publicação, em 1927:

Essa forma de caderno era considerada estranha para o padrão utilizado

pelas grandes editoras. Ainda [...] o jogo do poema no espaço [...] da

página mostrava o movimento gráfico de sons e palavras, contribuindo para

uma frustrada experiência receptiva dos leitores do final dos anos 20.

O mal-estar causado pela recepção do livro de Jorge Fernandes provocou

o seu desaparecimento [...].

Mesmo com essa má recepção, Jorge Fernandes de Oliveira (doravante,

nesta pesquisa, Jorge Fernandes) construiu uma imagem de engenhosidade, um

ethos inventivo, no marasmo cultural paralisante em que se encontrava a produção artístico-cultural da cidade. Surgira, enfim, de acordo com certos setores da crítica

vigente à época, uma voz que fazia a diferença no diálogo com as vozes da

comunidade local leitora e produtora de poesia. Inaugurara-se, no contrafluxo das

forças centrípetas12, mantenedoras da ordem de um dizer estabelecido, um

contraponto desafiador, conforme atesta Cascudo (1997, p. I) no posfácio da

primeira edição do livro: “O livro de Jorge Fernandes é um livro isolado, sosinho,

descolado no chromo de sala de jantar dos poetas de sua geração”. E, em 1928,

Alecrim (apud ARAÚJO, 1997, p.111), também tornando explícito um julgamento positivo, recomenda o livro em artigo publicado na imprensa local, com o seguinte

prognóstico: “Natal que olha as boas letras continuará tomando purga de

       12

(22)

vassourinha se não conhecer e sentir os poemas de Jorge Fernandes”. Tanto

Cascudo quanto Alecrim, na condição de críticos literários, eram representantes da

intelligentsia natalense nos anos 20 do século passado.

Em introdução à segunda edição do Livro de Poemas, Melo (1970, p. 5) ratifica a crítica de Cascudo no posfácio da primeira edição:

[...] Jorge surge na literatura norte-rio-grandense como um pioneiro, um

desbravador de formas e conceitos estéticos, rebelando-se contra o status

quo, ironizando poetas consagrados e profetizando o mundo novo que

irrompia com o automóvel, os aviões, as máquinas, o dinamismo do século

vinte.

E Melo (1970, p. 8) ainda complementa a respeito do Livro de Poemas:

O seu LIVRO DE POEMAS, publicado em 1927, com depoimento de Luís

da Câmara Cascudo, causou escândalo em Natal. Era, na verdade, simples

caderno de oitenta e seis páginas, em brochura, mais largo que comprido

(até nisso!), em papel de segunda categoria. Sabemos que Jorge não tinha

condições para publicar, por conta própria, livro gràficamente superior,

dentro ou fora do Estado. Mas, há muita coisa intencional na forma humilde

com que lançou o LIVRO DE POEMAS, que era muito mais caderno do que

livro.

Entre a apresentação de Cascudo e as considerações de Melo, como

também entre estas últimas e as apreciações mais recentes de inícios do século

XXI, o discurso da crítica tem se ocupado da obra do poeta, resultando, desse

interesse, a confirmação do parecer cascudiano de 1927: a ratificação – muitas

vezes enaltecida – do ethos da inventividade.

Além dessa imagem apregoada pela crítica, há ainda episódios da vida de

Jorge Fernandes que parecem contribuir para a configuração de um perfil, no

mínimo, inusitado, caso consideremos o contexto sociocultural da cidade nos anos

20. Um deles é o fato de que o poeta, além de ter poemas publicados em revistas

(23)

Antropofagia, trocara correspondência e tivera contatos pessoais, em Natal, com alguns dos modernistas de 1922, como, por exemplo, Mário de Andrade. Outro é o

fato de que o poeta manteve um estabelecimento comercial voltado para o lazer dos

boêmios e o deleite dos intelectuais mais sintonizados com a dita modernidade da

época, grupo em que Cascudo, então muito jovem, se perfilava à frente.

Tratava-se do café Magestic13, um estabelecimento simples (como os outros cafés que circundavam o antigo mercado público)14, sem maiores distinções

arquitetônicas ou de atendimento, localizado no bairro da Cidade Alta, precisamente

onde hoje um shopping popular de camelôs estende um de seus braços. Foi nesse espaço – provavelmente um dos poucos a possibilitar as discussões mais

acaloradas e, provavelmente, mais desafiadoras de certos dizeres estabelecidos –

que Manuel Bandeira, em visita a Natal, em 1927, conheceu pessoalmente o poeta

Jorge Fernandes.

De acordo com Saraiva (1987), Jorge Fernandes centralizou o movimento

literário da capital desde que adquiriu o estabelecimento. Os bilhares

desapareceram, e o jogo de baralho, restrito aos poucos aficionados, refugiou-se

nos fundos do café. Os frequentadores eram selecionados: homens abastados,

políticos, intelectuais, editores e artistas. João Estevam, Henrique Castriciano, Elói

de Souza, Abelardo Bezerra, Pedro Lagreca e Câmara Cascudo sempre se faziam

presentes.

Ainda segundo Saraiva (1987), havia sessões com palestra entrecortada

por declamação de versos. O Magestic era, de fato, centro da vida intelectual da província. Pinto (apud SARAIVA, 1987, p. 67) sintetiza bem esse enquadramento:

No velho Magestic [...], Jorge Fernandes ainda moço tomou uma posição de

vanguarda [...]. Seus versos [...] agitavam a cidade e eram motivo de

prolongadas discussões pelas mesas. Havia [...] gente que o detestava e

tinha calafrios ante a arte moderna que ele representava. Mas a sua

panelinha era a mais forte. Era a do escritor Luís da Câmara Cascudo, à

qual veio se juntar por mais de um mês o mestre Mário de Andrade, o único

       13

Segundo Saraiva (1987, p. 33), majestic significava, entre os norte-rio-grandenses, “majestoso, imponente, suntuoso e importante”. Essa conotação, no entanto, não condizia com a imagem do café – despojado e sem diferenciais arquitetônicos – administrado por Jorge Fernandes. Acreditamos que, muito provavelmente, a grafia com “g” fazia parte da irreverência: talvez o descompasso entre a grandiosidade do nome e a simplicidade do espaço.

14

(24)

modernista gozando de compreensão e estima merecidas, com costas

quentes para o que lhe desse e viesse [...].

Desdobrando a descrição anterior, Garcia (2008, p. 11) detalha:

Nos tempos de 1920-30, os poemas de Jorge Fernandes eram declamados

sob os aplausos da eufórica e bem humorada platéia da Diocésia. Esta era

uma “academia de letras, de arte e de humorismo...”, que funcionava no 1º

andar do Café Magestic, local onde os freqüentadores se reuniam, sob a

presidência de Jorge Fernandes, para conversar, beber e criar “motivos

novos para agitar a alegria”. Nesse reservado, aconteciam espetáculos

teatrais, recitações de poemas, contavam-se histórias interessantes e

anedotas, como também era a sala de visita para pessoas ilustres que

passavam por Natal [...].

E Cascudo (1970, p. 66), na condição de membro costumaz das sessões

da Diocésia, imprime o quadro pitoresco:

No Magestic havia uma sala privada da Diocésia, mesa redonda, cadeiras e

um resto de sofá, destinado aos heróicos equilibristas. Aí Jorge lia os

versos. Manuel Bandeira e Mário de Andrade conversaram, sugeriram,

elogiaram. Perylo de Oliveira, um poeta paraibano, encantador, declamou

versos próprios e do Jorge, dizendo-os no Teatro Carlos Gomes [atual

Teatro Alberto Maranhão].

Também na condição de partícipe das rodas boêmias e literárias do

Magestic, Guimarães (1952) pincela, em tom de crônica saudosista e bem humorada, o dia a dia do café e das sessões da Diocésia; as pitorescas regras definidas – aceitas coletivamente em pacto selador – para aceitação e para repúdio

de novos frequentadores e de novos membros; os encontros entusiasmados e

inesquecíveis, como o ocorrido com Manuel Bandeira; e o perfil de muitos

(25)

É possível, portanto, concluir: lançado o livro, o discurso da crítica se

ocupou tanto da obra quanto de seu autor, expandindo-os para o imaginário social.

Dessa forma, o ethos discursivo inventivo do poeta tomou forma e se propagou. É esse ethos – investigado a partir das marcas do estilo individual – o objeto desta pesquisa.

1.2 PANORÂMICA DOS ESTUDOS JORGIANOS

Focalizando sempre, direta ou indiretamente, o matiz engenhoso, o

discurso da crítica estendeu-se ao longo do tempo, tornando tanto a obra quanto o

poeta em objetos sobre os quais, na esfera da produção poética

norte-rio-grandense, mais, provavelmente, se acumulou fortuna crítica.

Ainda na década de 20, a crítica local e a crítica nacional iniciaram as

primeiras especulações. Na esfera local, podemos esboçar uma amostragem15

constituída por Câmara Cascudo (em três publicações de 1927 e uma de 1929)16,

por Octacílio Alecrim (em publicação de 1928)17 e por Afonso Bezerra (em

publicação de 1928)18. Em todos esses casos, há incursões elogiosas. Na esfera

nacional, Alcântara Machado (em publicação de 1927)19 e Mário de Andrade (em

       15

Parte considerável dos textos a que fazemos referência nesta seção, sobretudo os que circularam nos jornais, apresenta um tom, simultâneo, de poeticidade e de criticidade, de informação e de opinião, de exercício linguageiro jornalístico e de exercício linguageiro poético. Preferimos, excetuados alguns casos, denominá-los, grosso modo, de artigos. Parte considerável desses textos críticos foi compilada por Garcia (2009). Preferimos, também, manter, nesta seção, a remissão aos autores citados do modo como socialmente são conhecidos.

16

Posfácio do Livro de Poemas de Jorge Fernandes, na edição de 1927, intitulado Depoimento de

Luis da Camara Cascudo sobre o “Livro de Poemas” de Jorge Fernandes; artigo intitulado Poesia d’aqui mesmo..., publicado em Natal, no jornal A imprensa, em 21 de agosto de 1927; artigo intitulado

Bric-a-brac, publicado em Natal, no jornal A Imprensa, em 14 de setembro de 1927; e artigo intitulado

Jorge Fernandes, publicado em Natal, no jornal A República, em 25 de outubro de 1929.

17

Artigo intitulado Jorge Fernandes (Do choque tumultuoso da terra e o homem à exaltação de uma

estranha sensibilidade), publicado em Natal, no jornal A República, em 2 de agosto de 1928.

18

Artigo intitulado Livro de Poemas, publicado em Recife, no Jornal do Recife, em 8 de agosto de 1928. Inserimos esse texto na esfera local porque Afonso Bezerra, além de norte-rio-grandense, gozava de muito prestígio nos círculos intelectuais de Natal e, muito provavelmente, representava o pensamento da intelligentsia natalense a respeito do poeta Jorge Fernandes.

19

(26)

uma publicação de 1928 e outra de 1929)20 fazem ponderações sobre a tessitura

poética dos versos jorgianos.

Após essa fase, talvez a mais efusiva, o poeta e sua obra continuaram a

comparecer à pauta da fortuna crítica produzida e publicada no Rio Grande do

Norte. Entre a década de 30 e a década de 70, destacam-se, sempre em tom

apologético, os comentários de Câmara Cascudo (em publicação de 1931)21, de

Jaime Wanderley (em publicação de 1935)22, de Seabra de Melo (em publicação de

1937)23, de Veríssimo de Melo (em publicação de 1949)24 de Luís Patriota (em texto

proferido em 1957)25 e de Newton Navarro (em texto proferido em 1967)26.

No final dos anos 70 e, mais precisamente, nos anos 80, década do

centenário de nascimento de Jorge Fernandes, surgem estudos mais desveladores

das facetas do poeta. Nesse período, são publicados os textos críticos de Protásio

Melo (em publicação de 1976)27, de Jota Medeiros (em publicação de 1977)28, de

Moacy Cirne (em publicação de 1979)29, de Esmeraldo Siqueira (em publicação de

1980)30, de Veríssimo de Melo (em publicações de 1970 e de 1982)31, de Francisco

das Chagas Pereira (em publicações de 1984 e de 1985)32, de Gumercindo Saraiva

       20

Resenha intitulada Livros, publicada no Rio de Janeiro, no Diário Nacional, em 15 de abril de 1928; e artigo divulgado na coluna do autor, publicado no Rio de Janeiro, no Diário Nacional, em 12 de Janeiro de 1929.

21

Artigo intitulado Um poema inédito de Jorge Fernandes, publicado em Natal, no jornal A Imprensa, em 20 de junho de 1931.

22

Artigo intitulado Jorge Fernandes, poeta bárbaro, publicado em Natal, no jornal A República, em 25 de agosto de 1935.

23

Artigo intitulado Homens e livros: Livro de Poemas de Jorge Fernandes, publicado em Natal, no

jornal A República, em 21 de setembro de 1937.

24

Ensaio intitulado Jorge Fernandes, precursor do Movimento Modernista no Brasil, publicado em

Natal, na revista Bando, em 1 de janeiro de 1949.

25

Discurso de posse proferido na Academia Potiguar de Letras, em 25 de novembro de 1957, e publicado por Saraiva (1987).

26

Discurso de posse proferido na Academia Norte-rio-grandense de Letras, em 26 de outubro de 1967, e publicado, na Revista da Academia Norte-rio-grandense de Letras, em 1971.

27

Ensaio intitulado Antropologia e ecologia na poesia de Jorge Fernandes, publicado em Natal, na revista Tempo Universitário, em junho de 1976.

28

Ensaio intitulado 50 anos de um livro precursor, publicado, no Rio de Janeiro, pela Revista de Cultura Vozes, em 1977.

29

Ensaio intitulado A poesia e o poema do Rio Grande do Norte, publicado, em Natal, pela Fundação José Augusto, em 1979.

30

Ensaio intitulado Jorge Fernandes desconhecido, publicado pela Revista da Academia Norte-rio-grandense de Letras, em 1980.

31

Introdução da segunda edição do Livro de Poemas, publicado em 1970; e ensaio intitulado Jorge Fernandes revisitado, publicado pela Pró-Reitoria para Assuntos de Extensão Universitária da UFRN, em 1982.

32

(27)

(em publicação de 1987)33 e de Celso da Silveira (em publicação de1987)34, dentre

outros.

Na última década do século XX, Humberto H. de Araújo (em publicação

de 1997)35 discute, em âmbito acadêmico mais restrito, a produção poética do autor.

E, na primeira década do século XXI, surgem mais duas edições do Livro de Poemas, cada uma delas com apresentação própria do organizador: a quarta, em 2007, organizada por Humberto H. de Araújo; e a quinta, em 2008, por Maria Lúcia

de A. Garcia. Em 2009, Maria Lúcia de A. Garcia organiza e publica “uma edição

crítico-iconográfica da obra, quase completa, de Jorge Fernandes” (GARCIA, 2009,

p. 26), copilando, inclusive, poemas dispersos e textos em prosa, além de ensaios

representativos da fortuna crítica do poeta.

Em conjunto, essa amostragem da fortuna crítica a que tivemos acesso

legibiliza a vida intelectual e literária de Natal. São textos que expõem não só o

poeta Jorge Fernandes e o Livro de Poemas mas também os que tomaram posição a respeito do poeta e da obra, sempre a partir de determinada angulação e de um

determinado lugar social. Nessa perspectiva, os textos – ricos testemunhos do

exercício da crítica literária natalense – revelam estilos e dizeres a serem apreciados

dentro do contexto espaçotemporal em que foram produzidos e lidos. É verdade que

muitos tenderam para o biografismo apologético, a historiografia poético-pitoresca, o

impressionismo crítico e a criticidade condicionada por aportes teóricos pouco claros

ou até mesmo indefinidos (o que impossibilitou sondagens mais abalizadas, com

conclusões alicerçadas em dados suficientemente comprobatórios). Mas é verdade

também que, de uma forma ou de outra, trouxeram lume para o entendimento da

relevância dos versos jorgianos para a cultura norte-rio-grandense e apontaram

trilhas a serem vasculhadas por investigações futuras.

Do conjunto dessa fortuna crítica, os estudos de Francisco das Chagas

Pereira (1984, 1985), de Humberto H. de Araújo (1997, 2007) e de Maria Lúcia de A.

Garcia (2008, 2009) constituem os mais densos no que se refere à pesquisa

sistematizada e amparada por suportes teóricos definidos. Ainda em relação a

       33

Estudo em que se mesclam juízos avaliativos do autor e compilação de alguns textos da fortuna crítica de Jorge Fernandes, intitulado Jorge Fernandes: um século depois, publicado, em Natal, pela CLIMA Artes Gráficas e Publicidade Ltda., em 1987.

34

Ensaio intitulado Jorge Fernandes e o Modernismo brasileiro, publicado, em Natal, pelo RN

Econômico, em 1987.

35

(28)

Francisco das Chagas Pereira (1984, 1985) e a Humberto H. de Araújo (1997),

análises de maior precisão investigativa, podemos afirmar que não constituem

estudos que contemplem o objeto desta pesquisa: o primeiro, devido aos limites da

análise literária formal e estruturalista; e o segundo, devido ao fato de o estilo

individual (e, como decorrência, o ethos) ser o fundo – e não a figura – no quadro da pesquisa.

Conforme já explicitamos na introdução, uma representação desses textos

críticos, por constituir parte do corpus investigado, será analisada no terceiro capítulo. Sendo assim, optamos, então, por não desenvolvermos, neste momento, maiores

ponderações sobre os dizeres da fortuna crítica produzida a respeito de Jorge

Fernandes e de sua obra.

1.3 JUSTIFICATIVA

Há três razões fundamentais que acreditamos justificarem esta pesquisa.

Em primeiro lugar, consideremos a relevância do objeto – o ethos

discursivo inventivo do poeta Jorge Fernandes – no imaginário da vida sociocultural

norte-rio-grandense. Nesse sentido, convém lembrar que Jorge Fernandes constitui

um marco, como poeta, por seu caráter único no palco literário potiguar: não só a

crítica local é responsável por esse parecer como também a que se estende além

das fronteiras do Estado. Como julgamento ilustrativo, a apreciação de Melo (1970,

p. 6) sintetiza bem esse posicionamento quase unânime: se é verdade que, “em

muitos aspectos”, Jorge Fernandes “reflete o meio, a mentalidade provinciana, no

espanto diante da revolução que surgia”, também o é que enxergava longe,

“porejante de atualidade”. Melo ainda conclui: “Jorge venceu o tempo”. Esse ethos

atribuído ao poeta, portanto, permeou o discurso da crítica desde os anos 20 do

século passado até a contemporaneidade. Devido a essa imagem, é provável que

Jorge Fernandes tenha sido o poeta norte-rio-grandense sobre quem mais se

escreveram e publicaram estudos. Lembremo-nos também de que, até a primeira

década do século XXI, o Livro de Poemas foi editado seis vezes.

Em segundo lugar, consideremos a inexistência de investigação que

(29)

dos objetivos traçados. Nessa perspectiva, discutimos o ethos discursivo inventivo de Jorge Fernandes a partir da análise sistematizada das escolhas estilísticas

individuais do poeta, amparando-nos, fundamentalmente, na teoria enunciativa

bakhtiniana (inclusive no que se refere a estilo) e no enfoque mangueneauniano

dado ao ethos. É necessário relembrar que os estudos sobre Jorge Fernandes até então, de modo geral, ora se apresentaram como críticas impressionistas, sem uma

ancoragem teórica que as torne sustentáveis; ora como análises estruturalistas,

alicerçadas em um modelo teórico que não atende à perspectiva enunciativa

sociointeracionista; ora como investigações fundamentadas na esfera da história

literária, que, mesmo trazendo esclarecimentos para que se entenda a produção

literária do período, também não contemplam o enfoque dado nesta pesquisa.

Em terceiro lugar, consideremos a contribuição à memória cultural

norte-rio-grandense. Nesse sentido, a pesquisa oferece subsídios para o entendimento de

certas relações dialógicas presentes na cena literária natalense das três primeiras

décadas do século XX. Sendo assim, mesmo não se tratando de focalização

mediada por lentes da teoria ou da história literária (uma vez que se trata de

abordagem alicerçada em concepções oriundas das teorias linguísticas da

enunciação e da análise do discurso), a pesquisa proporciona conclusões que, de

forma direta ou indireta, podem fundamentar posicionamentos na esfera de estudos

que se debrucem sobre a cultura e a literatura norte-rio-grandenses, ainda que com

outros aportes teórico-metodológicos. Também sob esse olhar, a pesquisa se

apresenta como um estímulo a novas leituras/releituras da obra de outros autores

potiguares, estejam eles associados, diretamente ou não, ao recorte temporal

delimitado por nós.

1.4 QUESTÕES E OBJETIVOS

Diante do objeto definido e das razões que o justificam, apresentamos

questões a serem respondidas e objetivos a serem perseguidos por esta pesquisa. A

fim de explicitar o encadeamento entre as primeiras e os segundos, há um objetivo

correspondente para cada uma das questões na mesma ordem de sequenciação.

(30)

● Se há um ethos inventivo difundido pelos que, de alguma forma, tomaram a obra e a vida de Jorge Fernandes como objeto de análise, como essa

imagem foi se plasmando ao longo do tempo no discurso da crítica literária e de que

justificativas a crítica se valeu para sustentar seu posicionamento?

● Se as escolhas estilísticas jorgianas constituíram um diferencial no

cenário cultural potiguar da década de 20 do século passado, que escolhas

estilísticas, também presentes no mesmo cenário, são negadas ou posicionadas em

segundo plano?

● Se o Livro de Poemas se apresenta como o ponto de partida para o discurso apologético das críticas literária e acadêmica, que traços

estilísticos, presentes na materialidade da obra, podem, de fato, justificar o ethos

discursivo inventivo atribuído ao poeta Jorge Fernandes?

● Se a crítica literária disseminou o ethos discursivo inventivo de Jorge Fernandes, essa imagem construída resiste à análise estilística da obra conforme

proposta por esta pesquisa?

Atrelados às questões, listamos, a seguir, os quatro objetivos.

● Descrever, considerando a linha cronológica do tempo, a evolução da

imagem de Jorge Fernandes no discurso da crítica literária: a arquitetação da

imagem e as justificações que a sustentam.

● Traçar o parâmetro estilístico com o qual, no cenário natalense da

década de 20 do século passado, o poeta dialoga por negação ou secundarização.

● Inventariar as possíveis sinalizações estilísticas, presentes na

materialidade da obra, que remetem para a arquitetação do ethos discursivo inventivo do poeta.

● Problematizar, a partir do perfil estilístico depreendido pela pesquisa,

os julgamentos e a justificação presentes no discurso da crítica.

Temos, dessa forma, um quadro demonstrativo dos propósitos desta

pesquisa. Permeia todo o quadro o questionamento central da investigação: se se

justifica ou não o ethos inventivo atribuído ao poeta Jorge Fernandes.

 

 

(31)

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O QUADRO TEÓRICO DA

PESQUISA E SOBRE ALGUMAS IMPLICAÇÕES

METODOLÓGICAS DECORRENTES

O ethos encontra-se no centro do paradoxo que sustenta a filosofia contemporânea, que, mesmo sabendo que o sujeito não é um (Nietzsche), que ele é dividido (Lacan), quer fazer como se ele fosse de fato um todo.

Patrick Charaudeau (2006)

2.1 O CAMPO DE INVESTIGAÇÃO EM QUE SE INSERE A PESQUISA

Esta pesquisa investiga as relações entre ethos discursivo e estilo individual em um determinado contexto concreto de produção e de uso de

enunciados36. Questiona o potencial das escolhas estilísticas particulares de um

sujeito em um contexto historicamente delimitado: que escolhas são essas, a quais

escolhas estilísticas supostamente se contrapõem e por que as escolhas desse

mesmo sujeito renderam a constituição de uma determinada imagem expandida até

a posteriori. Depreende-se, portanto, que a análise em foco se debruça sobre um problema associado aos usos da linguagem.

Trata-se de um estudo situado nos domínios da linguística aplicada, caso

a consideremos em uma perspectiva que se abre, no dizer de Moita Lopes (2006),

para um processo de renarração ou redescrição da vida social. Em nosso

entendimento, esse campo de estudo constitui uma área autônoma de produção de

conhecimento (e não uma disciplina), com um objeto de estudo definido:

problematizações relacionadas ao uso da linguagem tanto em contextos

       36

Tanto enunciado quanto outras categorias de análise a que, no momento, fazemos referência são

(32)

institucionais escolares (como se restringiu nas investigações iniciais) quanto fora

desses contextos.

Pondo em foco uma perspectiva mais ampla, Moita Lopes (2006, p. 102),

ao conceber uma dimensão híbrida e mestiça para a linguística aplicada (dado o

espraiamento por terrenos transdisciplinares ou, até mesmo, indisciplinares),

assegura, como objetivo fundamental desse campo investigativo, “a problematização

da vida social, na intenção de compreender as práticas sociais nas quais a

linguagem tem papel crucial”. Nessa ancoragem, situamos a intenção de

compreender as relações humanas estabelecidas no embate dos diversos usos da

linguagem, quer tenhamos ou não intenção intervencionista.

Situada em tal contorno, esta pesquisa apresenta a linguagem como o

eixo sobre o qual se constitui o objeto da investigação: o ethos arquitetado na tensão entre a ruptura e a coerção estilísticas. Parte, portanto, da centralidade dessa

dimensão linguageira (constituída por processos sociointeracionais que terminam

por definir o que deve e o que pode ser dito) para entender a constituição de certa

imagem de repercussão social. Promove, assim, a redescrição de uma situação de

produção de sentidos, a renarração de um evento linguageiro por demais importante

para a cultura norte-rio-grandense dos primeiros trinta anos do século XX.

A fim de sustentarmos a investigação cujas diretrizes foram sumariamente

esboçadas acima, recorremos a um arcabouço teórico que atendesse aos propósitos

explicitados. Ou seja, ao pormos, em análise, enunciados concretos e os sujeitos

que os assumem (nos contextos de produção e de uso desses mesmos

enunciados), buscamos apoio em teorias que discutem a enunciação e que situam,

de forma suficientemente desenvolvida e centralizada, as duas categorias principais

desta pesquisa: estilo e ethos.

Interessou-nos, assim, uma compreensão dessas categorias situadas

como constituintes da enunciação. Por esse motivo, optamos por duas visões: a

proposta por Bakhtin (1988, 2003, 2006), em que o estilo é focalizado como traço

inerente ao enunciado e ao sujeito; e a proposta por Maingueneau (2001, 2005,

2006a, 2006b, 2008), em que o ethos é focalizado também como traço inerente ao enunciado e ao sujeito. Ambos os enfoques, portanto, contemplam ora estilo ora

ethos na centralidade da enunciação.

Ressalvemos, ainda, que alicerçamos o quadro teórico maior da pesquisa

(33)

basilar de produção e de uso de enunciados está em consonância com essa

perspectiva.

2.2 A CATEGORIA ESTILO

2.2.1 Prolegômenos

O substantivo estilo atravessa o tempo como uma categoria de análise quase sempre presente nas reflexões sobre linguagem37. De início, a forma lexical

λος, conhecida nas investigações gregas durante a Antiguidade Clássica, migra para o latim como stilus. Depois, incorpora-se às línguas modernas. No vernáculo português, por exemplo, a partir dessa base latina, temos estilo. Tal fato assinala, assim, o trânsito dessa categoria: das primeiras sistematizações sobre poética e

sobre retórica aos estudos linguísticos mais recentes sobre enunciação, sobre

sujeito e sobre gênero. Consideremos, além disso, a circulação no discurso

cotidiano, desatrelada de uma mensuração conceitual mais precisa.

Em âmbito greco-latino, o estilo encontra-se associado à elocutio,

entendida como uma das fases de preparação do discurso retórico e antecedida

pelas etapas inventio e dispositio. Desse modo, o orador, em um primeiro momento, busca as provas para urdir o convencimento; em um segundo momento, ele as

distribui em certa ordenação favorecedora dos intentos persuasivos; e, em um

terceiro momento, dá materialidade textual ao que foi previamente articulado. Na

última fase, assomam as três modalidades de estilo: estilo simples, estilo médio e

estilo sublime. E mais: a opção por um desses estilos está condicionada às

intenções do orador, ao tema tratado e ao auditório. Caso pretenda agradar, o

       37

Segundo a perspectiva bakhtiniana, entendemos linguagem como um sistema de signos

ideológicos que refletem e refratam a realidade ao serem utilizados pelos falantes nas situações concretas de comunicação. Sendo assim, a linguagem, por se constituir como uma produção de sentidos na interação social, uma atividade, não é fixa nem homogênea. Nessa mesma acepção, também usamos o termo língua. Essas observações, no entanto, não são válidas para as referências

à linguagem ou à língua nas perspectivas psicologista ou estruturalista, em alguns trechos deste

(34)

orador deve recorrer, por exemplo, ao estilo médio. Para a expressão do patético, ao

estilo sublime.

Parte considerável da investigação estilística (da Idade Média ao século

XX, precisamente) desconsidera essa vinculação do estilo à enunciação, o que

permite concebê-lo como algo complementar, ornamental, intensificador de dados

conteudísticos ou até mesmo desvelador de genialidades. Tais mudanças de

concepção são esperadas, uma vez que, diante do emprego ininterrupto na linha da

história (e sempre à mercê do entendimento que se tem para língua e para

expressão linguística), há uma flutuação de sentidos em torno do termo.

Já entre os greco-latinos, o substantivo estilo (que, em origem, designava um instrumento pontiagudo, geralmente de osso ou de marfim, utilizado para a

escrita sobre tabuinhas enceradas) sofre alterações semânticas, uma vez que, por

metonímia, passa a designar a própria escrita ou certos aspectos do modo de

escrever (MARTINS, 2008). Podemos, portanto, considerando-se, inclusive, essa

instabilidade de origem, imaginar o redimensionamento conceitual por que passa o

termo ao nomear, na linha longitudinal do tempo e sob as mais variadas lentes

teóricas, objetos os mais díspares.

2.2.2 Estado da arte: uma panorâmica das principais tendências estilísticas no

século XX

A categoria estilo é por demais importante para esta pesquisa e precisa,

pois, ter um contorno definido no quadro teórico que sustenta a abordagem. Essa

importância reside, sobretudo, no fato de o fulcro da análise ser o ethos discursivo focalizado a partir de índices estilísticos.

Privilegiamos, por isso, um enfoque teórico para estilo de modo a atender

aos interesses da discussão. Antes, entretanto, de tornar explícito tal referencial,

apresentaremos alguns contrapontos entre perspectivas distintas (e, às vezes, até

por demais aproximadas) no intuito de tornar mais claros os posicionamentos

conceituais assumidos por nós. Com essa intenção, optamos por um recorte de

tendências mais representativas no campo da estilística: as orientações propostas

(35)

medida do possível, estabelecer relações que permitam a visibilidade do referencial

acatado pela pesquisa.

Se, contemporaneamente, é costumeiro associar estilo a sujeito, a

falante, a autor, a locutor, a enunciador38... (e segue uma série de nomeações que

oscilam conforme os entendimentos de quem pense a respeito), nem sempre,

todavia, foi assim. Apagada a força da retórica greco-latina, o sujeito perde

centralidade – e até mesmo desaparece – nas teorizações sobre linguagem,

ressurgindo somente quando a linguística começa a extrapolar os limites da

abordagem saussuriana.

Em relação a esse desaparecimento, Dosse (2007, p. 73), reescrevendo a

história do estruturalismo, afirma que o sujeito

[...] é explicitamente reduzido à insignificância, senão ao silêncio, pelo CLG,

com a distinção essencial que Saussure estabelece entre língua e fala.

Essa oposição encobre a distinção entre social e individual, concreto e

abstrato, contingente e necessário; por essa razão, a ciência lingüística

deve limitar-se a ter por objeto a língua, único objeto que pode dar lugar a

uma racionalização científica. A conseqüência disso é a eliminação do

sujeito falante, do homem de fala.

E ainda complementa:

A lingüística só tem acesso ao estágio de ciência, para Saussure, na

condição de delimitar muito bem o seu objeto específico: a língua; e deve,

portanto, desembaraçar-se dos resíduos da fala, do sujeito e da psicologia.

O indivíduo é expulso da perspectiva científica saussuriana, vítima de uma

redução formalista onde não tem mais seu lugar. (DOSSE, 2007, p. 73).

Diante desse enquadramento teórico, especular sobre estilo leva a duas

possibilidades: ou a considerá-lo como algo desvinculado de uma possível voz a

partir da qual ele se constrói, o que significa assumir a perspectiva saussuriana; ou a

       38

(36)

situá-lo fora da circunscrição estruturalista. É o que ocorre, de um lado, com Bally e,

do outro, com Vossler e Spitzer, os três articuladores da estilística como área

específica de conhecimento (ou, como defende Bally, como área específica e

autônoma, dissociada da linguística).

No caso de Bally, não há afastamento da circunscrição saussuriana, uma

vez que ele elege a língua (emoldurada em cantoneiras estruturalistas) e não a fala

como objeto de estudo. O diferencial, no entanto, reside em focalizar a língua como

um sistema que permite também a expressão do que é denominado como

afetividade, traço desconsiderado por Saussure. Nesse caso, aliás, o sistema

linguístico, dada a filiação do pensamento de Bally, não só permite a presença de

marcas de afetividade mas, sobretudo, as prevê no leque das ofertas do paradigma.

Sem contemplar categoricamente, portanto, a figura do sujeito, Bally

(1951, 1962) considera que o homem é escravizado pelo seu eu, no qual se refrata

toda a realidade. E essa escravização revela-se por marcas linguísticas já

disponibilizadas no sistema da língua: as marcas que assinalam os fatos naturais

(sinalizadoras das manifestações de prazer e de desprazer, de admiração e de

desaprovação, de intensificação das impressões...) e as que assinalam os fatos

evocativos (sinalizadoras do meio social ou de certa época). Cabe, portanto, à

estilística, nesse seu nascedouro, rastrear as possibilidades que a língua, como

sistema, oferece para a manifestação dos referidos fatos demarcadores da

afetividade.

No caso de Vossler e Spitzer, há, segundo Silva (1976), um afastamento

do modelo estruturalista saussuriano: a transformação da fala literária em objeto de

estudo. Discutem, sob a influência do pensamento estético idealista de Croce, a

figura do artista como usuário especial da língua e, por isso mesmo, investigam a

projeção dessa personalidade tida como sui generis. Nesse entendimento, o texto literário apresenta necessariamente índices desveladores do artista autor, cabendo,

à análise estilística, recuperar o etymon, o princípio gerador e configurador dos múltiplos aspectos da obra, “a alma do artista”. Em decorrência, a estilística passa a

ter, por objeto de estudo, a linguagem como criação artística e, mais

particularmente, a linguagem literária como criação individual, desvinculada de

condicionamentos histórico-sociais. No bojo dessa discussão – e sob a influência de

(37)

coletivo e normal da língua. Trata-se, diferentemente do enfoque ballyano, de uma

perspectiva psicologista, distante, portanto, da negação de uma voz autoral.

Por redefinir o quadro teórico estruturalista segundo outros critérios (mas

sempre dentro do modelo saussuriano), convém focalizarmos ainda dois

posicionamentos cruciais para a estilística do século XX: a teoria das funções da

linguagem, de Jakobson; e a teoria das metáboles, de Dubois e demais

componentes do grupo que ficou conhecido como Escola de Liège.

No que se refere ao primeiro posicionamento, Jakobson (1985) concebe

seis funções da linguagem, todas condicionadas ao pendor (einstellung) da mensagem. Se ele surge em direção ao emissor, temos função emotiva ou

expressiva; se em direção ao receptor, conativa ou apelativa; se ao canal, fática; se

ao código, metalinguística; se ao contexto, referencial; e se para a própria

mensagem, poética.

É na manifestação dessa última função que Jakobson (1985) situa o

estilo. Toma os dois eixos constitutivos da linguagem, o paradigma e o sintagma, e

desenvolve a explicação estruturalista:

A seleção é feita em base de equivalência, semelhança e dessemelhança,

sinonímia e antonímia, ao passo que a combinação, a construção da

seqüência, se baseia na contigüidade. A função poética projeta o princípio

de equivalência do eixo de relação sobre o eixo de combinação.

(JAKOBSON, 1985, p. 130).

O estilo, entendido como escolha, torna-se restrito à esfera dos índices

tidos como estéticos da mensagem e relativamente autônomo em relação ao sujeito

emissor. Na verdade, desvincula-se estilo de um possível sujeito que se manifeste

no texto ou, pelo menos, responda por esse mesmo texto. Interessa, nessa

perspectiva, tão somente a decifração de uma tessitura linguística inusitada e aberta

às mais variadas intervenções semânticas. O texto, dessa forma, ganha autonomia,

transformando-se em uma espécie de “parricida”, fruto de uma escrita supostamente

sem história e sem autoria.

O pensamento de Jakobson tem seguidores, também adeptos da análise

Referências

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