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Entre a matriz portuguesa e a literatura nacional: a concepção de texto literário para João Ribeiro

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ENTRE A MATRIZ PORTUGUESA E A LITERATURA NACIONAL: A CONCEPÇÃO DE TEXTO LITERÁRIO PARA JOÃO RIBEIRO

Between Portuguese’s Matrix and National Literature: The João Ribeiro’s Conception of Literary Text

Ricardo Magalhães Bulhões 1 Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira2

RESUMO: O presente texto tem como objetivo resgatar algumas apreciações críticas presentes na antologia escolar Autores Contemporâneos (1931), do crítico, filólogo e escritor João Ribeiro, uma das figuras mais importantes da intelectualidade brasileira nas primeiras décadas do século XX. João Ribeiro, ao lado de Coelho Neto e Laudelino Freire, entre outros, participou da comissão que elaborou, em 1921, o Dicionário da Academia Brasileira de Letras. Para tanto,

verificaremos o processo analítico de João Ribeiro, suas observações teóricas, seus conceitos e quais impasses são por ele apontados na história literária e na crítica do início do século XX.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Antologias; História Literária; Impasses.

ABSTRACT: This paper aims at rescuing some critical appraisals found in the high school anthology Autores Contemporâneos (1931), by the critic, philologist and writer João Ribeiro, one of the main Brazilian intellectual representatives of the first decades of the twentieth century. João Ribeiro, along with Coelho Neto and, Laudelino Freire, among others, took part in of the panel which compiled, in 1921, the Dicionário da Academia Brasileira de Letras. Therefore, we

find the analytical process João Ribeiro, their theoretical observations, concepts and dilemmas which are appointed by him in literary history and criticism of the early twentieth century.

KEYWORDS: Literature; High School Anthology; Literary History; Deadlocks.

INTRODUÇÃO

[...] sem questionar as condições culturais a que está submetida a criança [e o jovem], sem relacionar a promoção da leitura e tais situações, parece difícil criar condições que facilitem a descoberta de pontes entre leitura e cultura, ou seja, entre leitura e o universo de relações,

1 Doutor, UFMS - Três Lagoas/MS.

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valores, objetos, concepções que sobrevivem à nossa precariedade —o mundo.

Edmir Perrotti (1990, p.99)

Conforme Candido (1985), a existência da literatura como manifestação cultural implica tanto na interação entre produtor, produção e receptor, quanto na passagem do impresso pela sociedade de consumo. Segundo Soares (2008, p.21), quando o livro encontra leitores, a interação, no ato da leitura, não ocorre somente pela mediação do texto, pois este chega “[...] com as marcas e interferência de um conjunto de profissionais — [...] — que define destinatários e, em função destes, escolhe textos, seleciona formas para sua apresentação e estratégias de divulgação e comercialização”.

Dessa forma, justifica-se a reflexão acerca de um sistema de produção e comercialização de textos escolares destinados ao jovem leitor, no início do século XX, considerando que, além do seu público-alvo, sua edição também se dirigia aos mediadores. Essa produção, voltada para a escola, instituía os modos e os tempos de ler, além de instaurar critérios de legimitidade do que se considerava literário.

Segundo Lajolo e Zilberman (1988, p.21), as inúmeras transformações, pelas quais passam o Brasil, no final do século XIX, como a transformação de uma sociedade rural em urbana e a ascensão neste espaço citadino de uma classe média ansiosa por mais liberdade política, dinheiro mais acessível, oportunidades de negócios e acesso à educação, formam a imagem de um país em processo de modernização. Essas mudanças permitem que a escola seja responsável pela iniciação da infância e preparação dos jovens, tanto em seus valores ideológicos, quanto nas habilidades técnicas e nos conhecimentos necessários à produção de bens culturais. A fim de atender às solicitações desse grupo social, aparecem os primeiros livros destinados à formação de jovens e crianças. Configura-se um novo mercado carente de obras literárias e didáticas que requer dos escritores, intelectuais, jornalistas e professores uma prontidão para atendê-lo. Entretanto, essa produção, devido a um modelo cívico-pedagógico, mantém um conservadorismo e um ranço dos padrões europeus nos quais se inspira.

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João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes ocupou a função de jornalista, crítico literário, filólogo e professor do Colégio Pedro II. Possuidor de uma larga cultura humanística foi nomeado, em agosto de 1898, membro da Academia Brasileira de Letras, tendo sido recebido pelo acadêmico José Veríssimo. Entre as suas obras, temos como destaque os seguintes títulos: Dicionário Gramatical, de 1889, Estudos Filológicos, de 1902, Compêndio de história da Literatura Brasileira, história literária, de 1906, e em coautoria com Sílvio Romero.

Sobre Ribeiro assinala Bittencourt (2008) que, além das contribuições que legou à literatura, o professor ficou também conhecido no campo educacional pelo número significativo de textos e obras escolares, redigindo gramáticas, dicionários, livros de História e Geografia. Seus livros didáticos ficaram a cargo das editoras Garnier e Francisco Alves. O depoimento de Ribeiro transcrito a seguir, retirado de Hallewell, sobre sua ligação com o editor Francisco Alves, sintetiza sua participação em um novo segmento de mercado destinado ao universo escolar, o livro didático:

O que Alves estimava em mim era a minha vontade de trabalhar [...] Das 150 edições dos meus livros didáticos correram e correm ainda muito perto de um milhão de exemplares. Mas tudo isso foi obra do editor. Em mãos de outros ou nas minhas, gramáticas e compêndios nada valeriam e disso fiquei certo por algumas experimentações decisivas. (1985 apud BITTENCOURT, 2008, p. 155)

Em 1910, a Francisco Alves negociou os direitos de publicação da Livraria Universal, de Laemmert, que fechara suas portas em 1909, inserindo-se no mercado dos didáticos e se consolidando como uma casa especializada nessa produção. Como podemos observar, a leitura no Brasil, aos poucos, vai se tornando um negócio. Conforme Lajolo e Zilberman (2002, p.121), há um movimento em que o campo editorial sai “à procura do lucro” e de sua inserção em uma modernidade emergente. Para as autoras, os lucros eram parcos, porque na mesma proporção dos leitores. De qualquer forma, lucros e leitores atestam o avanço no contexto de nossa cultura letrada.

O TEXTO ESCOLAR E A MATRIZ PORTUGUESA

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outros, participou da comissão que se propôs elaborar o Dicionário da Academia Brasileira de Letras I, em 1921. A comissão fora presidida por Carlos de Laet, ex-presidente da Academia, e por Fausto Barreto, autores da consagrada Antologia Nacional, de 1895. Faz parte desse contexto histórico e atende aos seus anseios ideológicos a antologia Autores Contemporâneos, de João Ribeiro, uma vez que se apresentava com dois propósitos básicos: a construção de uma “língua nacional” e a solidificação de um sistema literário, de um cânone. Essa antologia, publicada pela primeira vez em 1923, foi reeditada durante, no mínimo, três décadas. No entanto, ao contrário de boa parte das antologias escolares anteriores que listavam, predominantemente, fragmentos de autores portugueses e latinos, Autores Contemporâneos privilegiou a solidificação de um sistema literário que compreenderia autores de várias regiões do Brasil.

Alfredo Bosi (1977) constata que Ribeiro foi um dos primeiros críticos a formular de modo claro o problema da língua nacional. Em seguida, o crítico destaca outro fato que reforça a existência de um caráter inovador na prática intelectual de Ribeiro: “Queria João Ribeiro a desmoralização da poesia reinante; foi o primeiro a declarar caducos Alberto e Olavo Bilac” (1977, p. 356). Além de valorizar os autores nacionais, Ribeiro, como crítico, faz um apelo pela criação de uma “orthographia” própria frente às diversidades linguísticas de um país tão extenso. Essa “língua nacional”, segundo o próprio autor, seria construída aos poucos, sem atropelos. Tal ideal já é delineado no prólogo de seu livro:

Achamos que ainda não chegou para nós a opportunidade de substituir a orthographia usual por outra de maior simplificação. O nosso paíz é muito vasto, as divergencias prosodicas são consideráveis de um a outro extremo do território: tudo aconselha a adoptar um systema conservador, embora diffícil, em vez de outro qualquer arriscado e susceptivel de anarchizar a escripita. (RIBEIRO, 1931)

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A Academia Brasileira criou de facto a verdadeira convenção de utilidade geral a que havemos de chegar cedo ou tarde, logo que desappareçam certos preconceitos de classicismo inopportuno. Só por ella teremos a orthographia definitiva, adequada a uma nação americana, toda nova, aberta à collaboração de todas as raças e de instrucção popular intensa e para todos. (RIBEIRO, 1931)

Em Autores Contemporâneos, prevalece a ideia de Silvio Romero de que a literatura é um bem nacional a ser diferenciado da matriz lusa devido à atuação direta dos elementos peculiares da terra e, sobretudo, à influência do meio e da raça. A antologia revela uma variedade de temas, gêneros textuais e estilos que englobam todos os produtos de criação, indo da ciência à música. No seu índice, podemos comprovar tal abrangência: 1) O Paraíba, de José de Alencar; 2) Ler e escrever, de Antônio Feliciano de Castilho; 3) As sociedades, do padre Lopes Gama; 4) Raposa e a cegonha, conto popular; 5) O cágado e o teyú, conto popular; 6) O macaco e o coelho, conto popular; 7) Câmara Nupcial, de José de Alencar; 8) Travessura, de Manuel Antonio de Almeida; 9) Dedicatória, de José Bonifácio; 10) Portugueses e colonizadores, de Latino Coelho; 11) O Passado, de Joaquim Manuel de Macedo; 12) O Duende, de Joaquim Manuel de Macedo; 13) Os Conquistadores, de Gonçalves Dias; 14) A Guerra do Paraguai, de Fernandes da Cunha; 15) A palavra, de Latino Coelho; 16) Cecília, de José de Alencar; 17) Os escravos, de Tavares Bastos; 18) A infância do Padre Vieira, de João Francisco Bastos; 19) O Pároco da Aldeia, de Alexandre Herculano; 20) Resultados da Guerra Holandesa, de Varnhagen; 21) O Quilombo dos Palmares, de Guinácio Accioli.

Verifica-se, como já apontamos, um cruzamento de textos, manifestações folclóricas, textos de História e de política, obras do passado de romancistas portugueses e brasileiros, além do texto de Francisco Adolfo Varnhagen, considerado fundador da historiografia geral e da historiografia literária.

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público-alvo. O fragmento abaixo ilustra bem esse percurso, trata-se do texto A Guerrado Paraguai, de Joaquim Jerônimo Fernandes da Cunha:

Senhores, a guerra! Há três annos que não se fala em outra cousa no império. Guerra com o Estado do Uruguai, guerra com o Paraguai, por toda parte, e sempre, a guerra! Às vezes se observa na vida das nações que, quando se quer esconder o procedimento de uma política má, distraem-se, face diversão nos espíritos, abala-se a opinião nacional, explora-se a popularidade que vai faltando — concitando-se as nobres paixões do povo em nome da honra nacional — para uma guerra externa. (RIBEIRO, 1931, p. 90)

Mas, paralelamente, em seu livro, aparecem textos lúdicos, emotivos, que tratam do universo juvenil, tal como o conto O Passado, do romancista Joaquim Manuel de Macedo: “A terra desapareceu a meus olhos; por mais que alongue a vista, somente descubro mar e céu [...] quero lembrar-me dos lembrar-meus belos anos já vividos!” (apud RIBEIRO, 1931, p. 77). Ao investigar a obra de Sílvio Romero, Antonio Candido (1966, p. XVIII) lembra que “[...] este conceito se ligava à concepção, extraída de Taine, segundo a qual a literatura era um produto da vida social e, portanto, podia ser lida como documento que a revela”. Levando-se em conta tal concepção romeriana, advinda de Taine e incorporada por João Ribeiro, quanto mais abrangente o material, tanto mais completa e penetrante a visão.

No lado oposto, alguns críticos, diferentemente de Silvio Romero e João Ribeiro, tentaram refutar esse tipo de análise. Segundo Bosi (1977), José Veríssimo se apegou mais aos valores “propriamente” artísticos, fugiu da “[...] adesão a qualquer movimento ou grupo ideológico” (p.285). Na verdade, sob um critério puramente estético, Veríssimo acabou apoiando-se no que Bosi (1977) denominou como o uso de “critérios fugidios”, chamando a atenção para categorizações, como “bom senso”, “senso comum”, um tanto quanto evasivas.

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Os contos populares do Brasil, assim como as poesias e cantigas, foram colijidos da tradição oral por Sílvio Romero [...] às vezes é difícil ou impossível determinar nitidamente as orijens, quando já os elementos formadores da tradição, o europeu, o africano e o indijena, amalgamados entre si, se acham alterados e perturbados pelo elemento secundário rezultante, o mestiço (RIBEIRO, 1931, p. 62)

Em muitos casos, ele reconhece e valoriza a informalidade linguística de escritores que se distanciaram da matriz portuguesa. Assim, a linguagem de tais autores aparece quase sempre associada à originalidade e à criatividade. Pode-se notar que Ribeiro (1931), ao comentar um texto de Araripe Junior sobre o regresso de Gregório de Mattos à “terra dos papagaios”, parece mesmo afirmar a existência de uma linguagem tipicamente brasileira, que pouca atenção prestava “[...] à syntaxe portugueza da topologia pronominal tão apregoada pelos puristas” (1931, p.375). A esse processo ele confere o nome de “obnubilação”, definido como sendo a adaptação dos portugueses e de seus descendentes ao meio americano.

O TEXTO ESCOLAR E A PRODUÇÃO NACIONAL

Com a preocupação constante de se evidenciar o “[...] aumento do componente nacional”, João Ribeiro (1931) cita e reverencia prosadores e poetas de pouca notoriedade que são apreciados devido à inserção na realidade linguística brasileira. Em Autores Contemporâneos, ele resgata escritores desconhecidos como o maranhense João Francisco Lisboa que procurou registrar as variações linguísticas do seu estado. Em outro trecho, Ribeiro (1931) não hesita em criticar o trabalho historiográfico de Francisco Adolfo de Varnhagen, por este não ter incluído “[...] grande número de escritos” de autores brasileiros. Vejamos abaixo tal apreciação:

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Depreende-se pela leitura desse trecho, entre outras coisas, que Ribeiro, na linha da historiografia literária, influenciado pelo cientificismo positivista, aponta as faltas, isto é, as obras não inclusas. Constata-se, também, a dificuldade de se definir critérios para estabelecer uma tipologia que abarcasse essa variedade de textos e autores. Harold Bloom enfatiza que os cânones, como todas listas e catálogos, têm uma tendência a ser mais inclusivos que exclusivos. Para Bloom, “[...] todos os cânones, incluindo nossos atuais contracânones da moda, são elitistas, e como nenhum cânone secular jamais se fecha, o que hoje se aclama como abrir o cânone é uma operação estritamente redundante” (1995, p.43).

Como não há, na obra de Ribeiro, atribuição de valor estético, uma das opções de seleção passou a ser a organização tipológica, tendo como principal parâmetro a originalidade dos escritores que se adequavam à realidade linguística brasileira. Uma rápida visão do conjunto da obra mostra que Ribeiro (1931) dividiu em três grupos básicos os textos literários em prosa e poesia escolhidos: os textos literários dos autores já prestigiados pela crítica daquela época, como Gonçalves Dias, José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Olavo Bilac, Euclides da Cunha; os textos literários produzidos por autores regionalistas, como Rebello da Silva, Oliveira Martins, Luís Guimarães e tantos outros nomes desconhecidos que desenvolveram, segundo o crítico, narrativas populares típicas; e ainda os textos ensaísticos, que ficavam entre o gênero jornalístico e o literário.

Além dos textos literários, pode-se dizer que, em seu conjunto, o volume organizado privilegia o que hoje chamamos de aspecto interdisciplinar, pois afloram também textos diversos que tratam, de um modo geral, de fatos correntes do cotidiano e da cultura nacional, como a música e o folclore.

Luiz Roberto Cairo (2005) destaca que a existência de um cânone hegemônico jamais será consensual, daí o que se observa no rol de textos escolhidos é a diversidade de paradigmas e de inúmeras variáveis. Os autores das antologias, mesmo tendo seus livros destinados a um objetivo didático, teriam de refletir e opinar sobre a qualidade estilística dos escritores que faziam parte de um cânone ainda oscilante.

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O compêndio de Ribeiro e Romero, nesse trecho, esboça uma controvérsia de ordem meramente pessoal. A apreciação crítica é marcada por preferências, ressentimentos, conflitos de opinião e mal-estares, polêmicas inerentes ao ambiente intelectual da segunda metade do século XIX e início do XX. Nesse trajeto marcado por tantas polêmicas, Antonio Candido (1966) acrescenta, no livro Silvio Romero: Teoria, crítica e história literária, que o pai da historiografia literária brasileira se negou, por exemplo, a reconhecer o talento de Machado de Assis. Por dedução, Ribeiro também se negou a isto.

Ao nos aproximarmos da parte interna da antologia, da sua estrutura e do que ela comunica, percebemos que as análises, os objetivos didáticos e as conceituações teóricas agrupam-se em dois modos básicos. No primeiro, o autor fica preso às avaliações externas, apontando, por exemplo, para os dados histórico-biográficos e tecendo comentários superficiais acerca do brilhantismo profissional dos autores. Ainda dentro desse primeiro modo, como veremos a seguir, João Ribeiro se aproxima muito dos “métodos extrínsecos” de avaliação. Estes métodos, conforme René Wellek e Austin Warren (1955), em Teoria da Literatura, valorizam, fundamentalmente, o mundo das ideias, principalmente os dados biográficos, vinculados à questão do meio, como se estes tivessem sempre uma influência direta na estrutura interna dos textos literários, ou seja, fossem determinantes.

No segundo modo, passa a valorizar os elementos linguísticos, como o léxico, o emprego das formas verbais e, em seguida, tece observações sobre o estrato fonológico ou sonoro do texto, buscando também, em alguns raros casos, as redes de significação por meio dos elementos semânticos. No entanto, nos dois modos de apreciação e de análise, externo e interno, há de fato desarticulação entre as partes, já que os fragmentos escolhidos, muitas vezes, não são apreciados, ficando ali soltos, quase sempre descontextualizados.

No livro Autores Contemporâneos (1931), o discurso artístico, como fica evidente em quase toda a antologia, não é valorizado do ponto de vista estético. Na página 385, por exemplo, o professor seleciona um poema de Castro Alves, cuja estrutura sugere vários elementos, por meio dos quais o texto poderia ser apreciado esteticamente. Trata-se do poema “O Phantasma e a Canção”, transcrito a seguir de forma parcial:

– Quem bate? – A noite é sombria – Quem bate? – É rijo o tufão Não ouvis a ventania? Ladra a lua como um cão

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Chamo-me dor... abre a porta! Chamo-me frio abre o lar Dá-me pão... chamo-me fome! – Necessidade é o meu nome

– Mendigo! Podes passar. (RIBEIRO, 1931, p.385)

Nesse texto, o “eu lírico” dialoga com um mendigo e, com dificuldades de reconhecê-lo como forma humana, devido à sua situação degradante, acaba confundindo-o com um fantasma. O texto chama a atenção por vários aspectos. Além da camada fonológica, do seu aspecto sonoro, das rimas, do ritmo, das aliterações, ele cria o estranhamento entre o “eu lírico” e a figura do mendigo-fantasma, através de outros recursos, como: personificações, hipérboles e elementos que aparecem no diálogo entre as partes, e que vão estabelecendo certa cadência poética.

No entanto, na nota de rodapé, o comentário de Ribeiro não se remete a tais aspectos formais. A leitura do poema fica presa às generalizações de praxe. Em um primeiro momento, ao ensinar história literária, João Ribeiro faz uma apreciação do autor, vinculando-o a um princípio ideológico. Segundo ele: “Antonio de Castro Alves, um dos nossos maiores poetas do romantismo, na faze hugoana ou condoreira, deixou um drama, Gonzaga, as Espumas Flutuantes e os fragmentos do poema dos escravos” (1931, p. 385).

Como se vê, o critério de divisão periodológica da literatura pelos movimentos e estilos sempre ocupou, como método, um papel importante nas concepções de críticos e historiadores que se dedicaram, mais precisamente, a partir da segunda metade do século XIX, ao estudo das correntes estéticas e literárias. Sabemos que tais críticos estabeleceram várias sequências cronológicas, enumerando elementos históricos, sociais e biográficos que permeavam escolas, autores e obras. Muitas vezes, tais critérios foram questionados pela própria crítica por terem uma fisionomia reducionista, ou acusados de arbitrários, na medida em que a concepção geral, o espírito da época, o zeitgeist, e outros condicionamentos históricos acabaram por abafar o sentido estético da obra literária.

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como Charles Maurras e Pierre Lasserre, estigmatizaram o Romantismo como “doença” ou “degeneração” (SILVA, 1988).

Vale destacar que essa concepção pejorativa em relação ao período romântico e a outras escolas consideradas anticlássicas, como o Simbolismo e o Modernismo, sobreviveu de algum modo também no espaço escolar. Por outro lado, durante muito tempo, os manuais de retórica consideraram o período clássico como modelo de excelência de escrita. No Brasil, sabe-se que, entre alguns recursos pedagógicos utilizados pela escola, o aluno era obrigado a decorar ou parafrasear longos trechos de Bilac, Rui Barbosa ou mesmo Coelho Neto.

Ao rever de forma inteligente e original o perfil dos textos que circulavam na escola, Samir Meserani (2002, p.97) constata que havia no Brasil, no início do século XX, manuais de retórica que “[...] alistavam as qualidades e defeitos do estilo”, e estimulavam a assimilação da escritura dos autores considerados clássicos. Segundo ele (MESERANI, 2002, p.97), entre os autores nacionais, o livroA arte de escrever, do professor Silveira Bueno (1962), tornou-se uma obra bastante consultada nos anos 1950. De acordo com Meserani (2002), pelo livro de Silveira Bueno, pode-se notar tanto o que se lia na escola brasileira no início do século XX, quanto detectar a valorização da “axiomática clássica”. Meserani, descrevendo o perfil das antologias e gramáticas que circulavam na escola brasileira, na primeira metade do século XX, revela que predominava o “[...] autoritarismo com que os preceitos eram impostos ao leitor e o ranço na seleção de autores e textos dados como exemplos, como modelos para o aprendiz” (2002, p. 97).

Na formulação dos comentários internos do texto, o autor explora os aspectos morfossintáticos, o predomínio das classes de palavras, sem, contudo, justificar a intenção poética, a carga de expressividade que tais classes produzem. Em alguns momentos, constatamos que falta uma unidade entre as partes, já que há certa divergência entre as definições e as exemplificações.

Poderíamos recortar alguns momentos em que essa desconexão fica evidente, como esta em que, ao apresentar um texto de Gonçalves Dias — autor literário considerado por ele canônico –, João Ribeiro, em nota de rodapé, faz questão de enaltecer suas qualidades de poeta, manifestando desapreço pelo prosador. Segundo ele:

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vários livros de versos: Primeiros Cantos, Segundos Cantos, Sextilhas de Frei Antão, Últimos Cantos, os Timbiras (poema), de extraordinário valor. São inferiores as suas outras produções, dramas e escritos em proza [...]. (1931, p. 80) Embora recomende como de boa procedência a obra poética do maranhense, João Ribeiro, paradoxalmente, vale-se de um fragmento em prosa como ilustração. Escolhe um longo texto, intitulado Os Conquistadores, fragmento descritivo que fala das relações entre os conquistadores (portugueses) e os índios. Do ponto de vista estrutural, encontramos um formato típico: o da divisão entre os limites da vida e os limites da obra. De acordo com Gotlib (2003), tal divisão existiu em nome de um rigor científico-metodológico: gênero biográfico de um lado e o contexto ficcional da obra, do outro. Gotlib atesta que esse postulado normativo sempre esteve presente nas lições de literatura. A matéria vinha distribuída em dois blocos. Nesse sentido,

[...] os eventos, em sequência cronológica, numa espécie de registro cartorial de dados de nascimento e morte, apresentavam-se como sendo infalíveis quanto à veracidade. E apareciam de forma chapada, homogeneizada, a exigirem exercícios mnemônicos capazes de estabelecer nuances de tons e sobretons para que, de algum modo e em algum lugar, pudessem ser fisgados pelo leitor, num gancho de interesse que destacassem partes dessa massa volumosa de informações. (GOTLIB, 2003, p. 87)

CONCLUSÃO

Ao corrermos os olhos pela lista de autores e de fragmentos de textos que figuravam nas antologias, principalmente se levarmos em conta os livros da primeira metade do século XX, veremos que os fragmentos textuais escolhidos pelas antologias escolares, elaboradas por autores consagrados como João Ribeiro (1860-1934), Fausto Barreto (1852-1908) e Carlos de Laet (1847-1927), tratavam de assuntos nacionais, como: nossa geografia, história e tradições culturais.

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Contemporâneos (1931), havia certo encantamento pela busca de uma verdade apoiada na cientificidade positivista, a qual defendia a especulação do conhecimento por meio das pressuposições teóricas de um especialista que aspirava a um estatuto científico, fundado na objetividade e na clareza das ideias. Desse modo, atendiam aos anseios da classe dirigente e, por consequência, da escola.

De 1930 a 1950, há um crescimento no mercado de didáticos. Destacam-se, nesse segmento, as editoras: Nacional, José Olympio, Francisco Alves e Melhoramentos. O setor livreiro, em consonância com Renato Ortiz (2001, p.43), percebe um crescimento de 46,6%. O volume de livros editados, entre 1938 e 1950, cresce 300%. No mercado de publicações, dobram-se as casas editoras entre 1936 e 1948. Em 1947, há a implantação de grupos nacionais (Klabin) na produção de papel.

As décadas de 1960 e 1970, por sua vez, definem-se pela consolidação de um mercado de bens culturais (ORTIZ, 2001, p.113). Paralelamente ao crescimento do parque industrial e do mercado interno de bens materiais, há um fortalecimento do parque industrial de produção de cultura e do mercado de bens culturais. O Estado repressor atua como incentivador das atividades culturais, sendo concebido, com base na Ideologia da Segurança Nacional, como uma entidade política que detém o monopólio da coerção; o centro nevrálgico de todas as atividades sociais relevantes em termos políticos; aquele que visa à “integração nacional” (ORTIZ, 2001, p.115-6).

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