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Um coração que pulsa fora do corpo: imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUÍSTICA APLICADA

WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA

UM CORAÇÃO QUE PULSA FORA DO CORPO

:

imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo

NATAL/RN

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WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA

UM CORAÇÃO QUE PULSA FORA DO CORPO

:

imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo

Dissertação submetida à banca examinadora como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem, na área de concentração Linguística Aplicada, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

ORIENTADORA: PROFA. DRA. MARIA DA PENHA CASADO ALVES

NATAL/RN

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UFRN. Biblioteca Central Zila Mamede. Catalogação da Publicação na Fonte.

Oliveira, William Brenno dos Santos.

Um coração que pulsa fora do corpo: imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo. / William Brenno dos Santos Oliveira. – Natal, RN, 2015.

150 f. : il.

Orientadora: Maria da Penha Casado Alves, Dr.ª

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem.

1. Kahlo, Frida – Imaginário – Dissertação. 2. Carta pessoal – Dissertação. 3. Ethos Discursivo – Dissertação. I. Alves, Maria da Penha Casado. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

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WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA

UM CORAÇÃO QUE PULSA FORA DO CORPO

:

imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo

Dissertação submetida à banca examinadora como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem, na área de concentração Linguística Aplicada, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

ORIENTADORA: PROFA. DRA. MARIA DA PENHA CASADO ALVES

DISSERTAÇÃO DEFENDIDA EM 18 DE JUNHO DE 2015

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves (UFRN) Orientadora

Prof. Dr. Pedro Farias Francelino (UFPB) Examinador Externo

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Para Frida Kahlo, que me ensinou a ver, com sensibilidade e paixão, o mundo da vida e os outros que me constituem.

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Figura 1– Desenho de Odyjackson Lopes

Fonte: Página de Odyjackson Lopes no Instagram1

1 Disponível em: <https://instagram.com/p/wnEeGssAcv/?taken-by=odyjackson> Acesso: 05 de mai. de

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AGRADECIMENTOS

A minha mãe, pelos livros que me deu e pelo exemplo de pessoa e profissional da educação que é.

Aos meus irmãos, pela escuta cuidadosa de minhas reclamações, mesmo sem entender o porquê.

A Frida Kahlo, por emprestar-se ao meu olhar exotópico de pesquisador.

A Penha, por orientar minhas relações dialógicas com Frida, com o mundo científico e com o mundo da vida.

A Tânia Lima, por abrigo, comida, amizade, conselhos e por sempre me mandar escrever.

A Maria das Graças Rodrigues (Graça), pelas inúmeras oportunidades.

A Henrique, por me ensinar cantilenas que nunca ouvira antes, por sempre provocar o riso em mim.

A Palhano, por me ensinar que, para escrever uma dissertação, é preciso ter disciplina e pela disponibilidade sincera de quem nunca duvidou de mim.

A Gilvando, por pegar em minhas mãos e me ajudar a treinar o olhar perscrutador de um analista do discurso.

A Danielle de Paula, por olhar, escutar e falar com carinho e respeito de meu trabalho, pelas ligações amigas e pelos abraços sinceros.

A Sandra, por ser professora, amiga, mãe, colega, parceira e uma mulher cheia de passionalidade.

A Aline, Joaquim, Regina, Felipe e William (negão), por serem os melhores parceiros de graduação que a vida poderia ter me dado.

A Diana, pelo belo resumo em espanhol e por partilhar de minha admiração por Frida.

A Ágatha e Josse, por proferirem as palavras sinceras e produzirem os acalantos singelos em momentos precisos.

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Aos meus alunos do IFRN da Zona Norte, por constituírem tudo aquilo que sou hoje.

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E Frida, que era poeta, diz assim, cito em espanhol, que é mais belo: “Desde que me escribiste, en aquel día tán claro y lejano, he querido explicarte que no puedo irme de los días, ni regresar a tiempo ai otro tiempo. No te he olvidado — las noches son largas y dificiles”. E diz mais, escute, é importante: “Lo que más importa es la no-ilusión. La maílana nace”.

Passo noites longas, difíceis, o sono raro, entre fragmentos febris de suores e pesadelos, assombrado por Frida Kahlo. Choro muito. Não consigo terminar o livro, não consigo parar, não consigo ir em frente. Seguro sua mão imaginária no escuro do quarto e sei que seja qual for a dimensão da minha própria dor, não será jamais maior que a dela. Por isso mesmo, eu a suportarei. Como ela, em sua homenagem, Frida.

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RESUMO

Entre os anos 30 e 40 do século passado, o México viu surgir, das cinzas da Revolução Mexicana, uma figura singular. Frida Kahlo é descrita pelo imaginário social – em seus quadros, em suas fotografias – como uma mulher que marcou uma época e que se tornou símbolo de lutas, e isso se estende até a contemporaneidade.Criou-se, em volta da pintora mexicana, várias imagens sociais que eram delineadas no jogo dialógico entre suas obras e seus interlocutores. Tomando como referência essas assertivas, a pesquisa ora apresentada tomou como procedimento realizar uma análise de seis cartas escritas por Frida para os seus interlocutores amados/amantes – três homens com os quais ela se envolveu, afetivamente, durante períodos diferentes de sua vida –, e, como objetivo, mapear os ethé construídos por ela em enunciados nos quais ela “pinta” verbalmente uma imagem de si que se revela nas escolhas lexicais eleitas para falar de amor, de traição, de amizade, de dor e de seu estar no mundo. Diante disso, refinamos uma imagem estética e ideológica de Frida Kahlo que se recobre de passionalidades distintas e de graus dialógicos diversos. Há, no recorte temporal e axiológico que fizemos para esta pesquisa, uma mulher de natureza amante e que transformou esse amor em mote para seus embates com interlocutores com quem se envolveu afetivamente. A nossa análise encontra-se ancorada nas postulações teóricas da Análise Dialógica do Discurso (ADD), que tem como teórico-base o filósofo russo Mikhail Bakhtin (2003, 2009, 2013) – no que se refere ao estilo, principalmente –, e na teoria enunciativa de Maingueneau (2008, 2005) e Charaudeau (2006) – no que se refere ao ethos discursivo. Esta pesquisa insere-se na área da Linguística Aplicada e possui um enfoque qualitativo-interpretativista.

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RESUMEN

Entre los años 30 y 40 del siglo pasado, México vio surgir de las cenizas de la revolución mexicana, una figura singular. Frida Kahlo es descrita hasta la fecha de hoy, por el imaginario social – en sus pinturas, en sus fotografías – como una mujer que ha marcado una época y se ha convertido en un símbolo de luchas, y esto se extiende hasta la contemporaneidad. Se ha creado en torno a la pintora mexicana, varias imágenes sociales que se describen en el juego dialógico entre sus obras y sus interlocutores. Teniendo por referencia estas afirmaciones, la investigación aquí presentada ha tomado como procedimiento realizar un análisis de seis cartas escritas por Frida a sus interlocutores amados/amantes – tres hombres con los que estuvo involucrada, emocionalmente, durante diferentes períodos de su vida – y, como objetivo, hacer un mapeo de los ethé construidos por ella en enunciados en los cuales ella "pinta" verbalmente una imagen de sí misma que se revela en las opciones léxicas elegidas para hablar de amor, de traición, de amistad, de dolor y de su estar en el mundo. Por lo tanto, hemos refinado una imagen estética e ideológica de Frida Kahlo que se cubre de pasionalidades distintas y de diversos grados dialógicos. Hay, en el recorte temporal y axiológico que hicimos para esta investigación, una mujer de naturaleza amante y que transformó ese amor en el tono de sus enfrentamientos con los interlocutores con quienes estuvo involucrada emocionalmente. Nuestro análisis está anclado en los postulados teóricos del Análisis Dialógico del Discurso (ADD), cuyo teórico base es el filósofo ruso Mikhail Bakhtin (2003, 2009, 2013) – sobre todo cuando se trata de estilo – y en la teoría de la enunciación de Maingueneau (2008, 2005) y Charaudeau (2006) – en lo que se refiere al ethos discursivo. Esta investigación se inserta en el área de Lingüística Aplicada y tiene un enfoque cualitativo-interpretativo.

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PALETA

1 SO(U)FRIDA, DOR E PAIXÃO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE UM SUJEITO INACABADO . 13

1.1 Justificativa: um ser de linguagem sob as lentes da LA ... 15

1.2 Questões de pesquisa e objetivos específicos ... 18

1.3 Caminhos metodológicos ... 19

1.4 Critérios para a seleção do corpus: os enunciados e suas categorias ... 19

1.5 Procedimentos ... 21

2 MEXICANISMO: CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO E CULTURAL QUE CONSTITUÍA FRIDA KAHLO E DO QUAL ERA CONSTITUINTE ... 23

2.1 Cultura: uma fôrma híbrida e grávida de ideologias ... 28

2.2 Ideologia: os roteiros socialmente valorados ... 36

2.2.1 A Ideologia na Análise Dialógica dos Discursos (ADD) ... 38

2.3 Ser líquido: a responsividade fridiana diante do prenúncio de tempos pós-coloniais .... 41

2.4 O gênero discursivo carta pessoal: um trajeto epistolar ... 45

2.4.1 Práticas discursivas ... 45

2.4.2 A emergência das práticas discursivas da carta... 47

3CORES TEÓRICAS QUE DELINEARAM NOSSA PESQUISA: CAMINHANDO SOB O LASTRO DE OUTRAS VOZES ... 54

3.1 Uma concepção dialógica de linguagem ... 57

3.1.1 Gêneros discursivos: uma abordagem na perspectiva bakhtiniana ... 59

3.2 O sujeito bakhtiniano: considerando as influências histórico-culturais ... 62

3.3 Da noção dialógica de enunciado ... 64

3.4 Estilo e ethos discursivo: as categorias basilares da pesquisa ... 68

3.4.1 A respeito do estilo ... 69

3.4.2 A respeito do ethos ... 73

4 EM BUSCA DOS ETHÉ DE FRIDA: A CONSTRUÇÃO DAS IMAGENS VERBOAXIOLÓGICAS DIANTE DOS SEUS AMORES ... 80

4.1 Os enunciados/cartas vistos à luz da teoria bakhtiniana... 82

4.1.1 Emergências valorativas: o que dizem os enunciados a respeito das imagens de Frida 85 4.3 Análises dos enunciados/cartas: as cores passionais na paleta diversificada de Frida . 87 4.3.1 Os enunciados rosas-chás: os indícios juvenis de um ser amante ... 87

4.3.2 Os enunciados magentas: marcas de uma paixão mais intensa ... 98

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5 SOMBREANDO ALGUMAS (IN)CONCLUSÕES SOBRE FRIDA: A QUE MÁSCARA CHEGAMOS?

... 123

REFERÊNCIAS ... 130

APÊNDICES...134

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Figura 2– Foto do acervo pessoal de Frida Kahlo

Fonte: Site do Museu Oscar Niemeyer – Curitiba/PR2

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1 SO(U)FRIDA, DOR E PAIXÃO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE UM SUJEITO INACABADO

Figura 3– Foto do acervo pessoal de Frida Kahlo:

Frida pintando em sua cama, com Miguel Covarrubias a seu lado, Cidade do México, 1940.

Fonte: Site A rosa meditativa3

3Disponível em:

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Pinto a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.

Frida Kahlo

Frida Kahlo é uma mulher vista em seus autorretratos como exótica e bela, porém torturada e martirizada por todo o sofrimento de uma vida e por um acidente que, entre outras dores, impossibilitou-lhe de realizar um de seus maiores sonhos: ser mãe. Além de tudo isso, Frida já havia sofrido com uma poliomielite aos seis anos de idade que lhe rendeu o apelido de Frida perna-de-pau na infância/adolescência (ver apêndice Cronologia sucinta da vida e da obra de Frida Kahlo). Interessa, no entanto, nesta pesquisa, a Frida escritora de inúmeras cartas, ao longo de toda sua vida, para diversos interlocutores, dentre eles, o seu grande amor, Diego Rivera, seus amigos, suas amigas, seu médico.

Tais cartas são reveladoras de vários ethé que não podem ser visualizados apenas observando seus quadros. Nessas cartas, Frida mostra seus sentimentos mais profundos e toda sua revolta com sua condição física e a concepção de fidelidade que seu amado marido seguia, pois, segundo ele, “ser fiel era apenas mais um dos valores burgueses” (HERRERA, 2011, p.55). Ao escrever, Frida usava de toda sua franqueza, empregava um vocabulário singular e marcado de afetividade para externar suas ideias.

Construímos, portanto, uma pesquisa inserida nas altercações bakhtinianas a respeito da noção de enunciado. Em outras palavras, interessa-nos como ele vai se construir e se organizar; e como ele irá constituir e ser constituído pelo mundo da vida e seus roteiros sociais.

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outras palavras, podemos dizer que há, na construção da análise que fizemos, o estilo individual dando suporte estruturante para a construção do ethos discursivo.

Em decorrência disso, olhamos para os dizeres de Frida Kahlo na intenção de buscar e definir, quem sabe, imagens sociais, amparados por pistas estilísticas, que foram, ao longo do tempo, construindo e desconstruindo ideologicamente Frida que, obviamente, estava inserida em múltiplos contextos sociais.

Assim sendo, nossa pesquisa se desenvolveu em seis capítulos: o primeiro traz uma discussão inicial sobre nosso trabalho, buscando construir uma visão geral do texto (justificativa, questões de pesquisa e objetivos, metodologia, apresentação e seleção do corpus e procedimentos); o segundo traça uma contextualização histórica e, ao mesmo tempo, teórica, do espaço-tempo no qual Frida estava inserida4; o terceiro traz um panorama do percurso do gênero discursivo carta pessoal; o quarto capítulo mostra as vozes teóricas com as quais dialogamos para compor e sustentar a “paleta” desta pesquisa; o quinto capítulo expõe tanto um quadro com as categorias de análise quanto a análise de uma amostragem dos discursos de Frida nas cartas aos seus amantes e o que, de alguma forma, pôs em evidência o objeto de estudo; por fim, o sexto capítulo retoma os resultados do trabalho e busca responder, incisivamente, às questões que nortearam esta pesquisa.

1.1 Justificativa: um ser de linguagem sob as lentes da LA

Investigar e observar os escritos de Frida Kahlo por meio das lentes da Linguística Aplicada é um desejo que, há algum tempo, buscamos consolidar. Essa ousadia vem, ultimamente, ganhando corpo, forma e carne, ou seja, se materializando linguisticamente nos artigos que temos publicado e, principalmente, nesta dissertação. A fonte de empiria a partir da qual construímos nosso corpus foi um livro intitulado “Cartas apaixonadas de Frida Kahlo”, compilado por Martha Zamora, uma pesquisadora interessada na vida da artista mexicana. Trata-se, portanto, de uma reunião de cartas pessoais que Frida escreveu durante toda sua vida, compondo um fascículo com mais de

4 Optamos por fazer o entrecruzamento do contexto histórico e as discussões teóricas que envolvem

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cinquenta cartas escritas em diferentes épocas de sua vida e com interlocutores os mais variados possíveis, remetentes que rodeavam a vida social da mulher que mantinha o hábito de escrever cartas. Nosso objeto de análise, no entanto, é composto por seis cartas que selecionamos de acordo com interesses específicos, os quais explanaremos mais adiante.

Contudo, gostaríamos de explanar algumas justificativas sem as quais nosso trabalho perderia o tom científico e, por que não dizer, artístico. A primeira delas advém da seguinte assertiva de Geraldi no livro “Palavras e contrapalavras: enfrentando questões da metodologia bakhtiniana”, organizado pelo Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe) da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos-SP:

Quem estuda a linguagem não está interessado nos “recortes” dos

discursos, mas no enunciado completo, total, para cotejá-lo com outros enunciados fazendo emergirem mais vozes para uma penetração mais profunda no discurso, sem silenciar a voz que fala em benefício de um já dito que se repete constantemente. (2012, p. 27-28):

Portanto, trataremos as cartas como enunciados concretos e inacabados. Deles emergem vozes que nos ajudarão, no embate dialógico com nosso olhar exotópico, a dar acabamento às imagens que a pintora constrói de si, agora, discursivamente. Interessa-nos ouvir a Frida que está em embate constante com seus outros, que é constituída nessa arena dialógica e que também a constitui.

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que serão apresentados a seguir. Portanto, como vemos, não existe investigação, em níveis mais “complexos”, que contemple o nosso objeto de pesquisa, muito menos com o foco teórico e metodológico no qual pretendemos nos apoiar, qual seja: um enfoque orientado pela concepção dialógica de linguagem e, consequentemente, de sujeito (BAKHTIN, 2003, 2009). Para Bakhtin, o sujeito, histórico e inacabado, é construído e constituído nos processos de interação verbal. Interação que pressupõe um outro, sendo esse outro o mundo em que esse sujeito está mergulhado, e não apenas o seu interlocutor direto.

Dessa maneira, por sopesarmos e adotarmos o que diz Bakhtin (2003, p. 262) a respeito dos gêneros discursivos – que estes são produzidos, reelaborados e estilizados nas práticas sociais e que cada esfera social elabora seus “tipos relativamente estáveis” –, entendemos que o gênero discursivo “carta pessoal” não se constitui de forma diferente. No caso de Frida, ela é esse sujeito histórico e inacabado que, em constante diálogo com seus outros, por meio das cartas, cria para si mesma determinadas imagens que serão interpretadas, lidas e acabadas por tantos outros os quais, dependendo do lugar em que estão, poderão observá-las de formas diferentes. Portanto, propomo-nos a perscrutar as cartas de Frida Kahlo, a partir do olhar exotópico5 (BAKHTIN, 2003), para tentar dar acabamentos às imagens que a pintora revolucionária construiu de si mesma.

Em terceiro lugar, mas não menos importante, a prática de escrita de Frida – via gênero carta pessoal – interessa-nos por consistir uma prática social de linguagem a partir da qual ela se posicionava a respeito dos mais variados temas. Então, devido ao fato de a LA, segundo Moita Lopes (2006), ser, principalmente, “um modo de criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem um papel central” e, ainda, segundo Celani (2000, p.19), a LA como área do conhecimento ser “vista hoje como articuladora de múltiplos domínios do saber, em diálogo constante com vários campos que têm preocupação com a linguagem”, entendemos que nossa proposta necessita do par de óculos “indisciplinar” (MOITA LOPES, 2009) da LA para prosseguir nesse caminho até agora inexplorado.

Em quarto lugar, por fim, conforme já indicado anteriormente, a pesquisa toma importância pelo fato de não haver, na área da Linguística Aplicada, trabalho em

5

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nível de mestrado ou doutorado que tenha se proposto a investigar as práticas discursivas de Frida Kahlo. Existem, no entanto, duas publicações que merecem destaque: o artigo Frida Kahlo entre palavras e imagens: a escrita diarista e o acabamento estético, de Casado Alves (2012a), publicado no periódico da USP Linha D’água; e o capítulo de livro Ethos e exotopia do olhar: as cartas apaixonadas de Frida Kahlo, também de autoria de Casado Alves (2012b), publicado no livro Linguística Aplicada, Linguística e Literatura: Intersecções Profícuas, pela Pontes Editora. Tais publicações estão situadas na mesma área em que se insere nossa pesquisa e ajudaram a subsidiar o recorte que nos deu o corpus, bem como a construir o nosso objeto de pesquisa.

São essas, portanto, as nossas justificativas diante da necessidade de tornar coerente o trabalho com as cartas de Frida Kahlo para a comunidade científica.

1.2 Questões de pesquisa e objetivos específicos

Com base na exposição das justificativas, apresentamos as seguintes questões da pesquisa:

• Como se dá a construção dos ethé passionais nas cartas de Frida Kahlo? • Que marcas linguístico-discursivas deram acabamento aos diferentes ethé passionais nas cartas pessoais da pintora mexicana?

• Como autora-criadora, que acabamento estético Frida Kahlo deu a si mesma nas cartas escritas para seus amantes?

Como desdobramento das questões de pesquisa, delimitamos os objetivos a seguir:

• Analisar como se dá a construção dos ethé passionais nas cartas pessoais escritas por Frida Kahlo.

• Problematizar como as marcas de estilo (individual e do gênero discursivo) dão acabamento aos diferentes ethé passionais nas cartas da pintora mexicana.

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1.3 Caminhos metodológicos

Quanto à abordagem metodológica, esta pesquisa caracteriza-se como qualitativo-interpretativista, o que nos leva à adoção de um posicionamento reflexivo acerca dos processos de elaboração, registro e análise. Tal posicionamento

[...] anteriormente dominado pelas questões da mensuração, definições operacionais, variáveis, testes de hipóteses e estatística alargou-se para contemplar uma metodologia de investigação que enfatiza a descrição, a indução, a teoria fundamentada e o estudo das percepções pessoais. Designamos esta abordagem por Investigação Qualitativa (BODGAN; BIKLEN, 1994, p. 11).

De Grande (2011) destaca algumas das vantagens da abordagem qualitativa: a centralidade do cenário (aspecto naturista), a interpretação dos fenômenos que parte de seus significados para os sujeitos da pesquisa e a geração e o uso de subsídios empíricos e metodológicos para a prática interpretativa.

Assim, tomamos como construção basilar o modelo sócio-histórico da linguagem, entendendo esta como uma prática discursiva. No modelo de pesquisa que elegemos, reconhece-se o pensamento empírico através da interpretação da linguagem. Ou seja, o procedimento que utilizaremos não recusará: as relações sociais em que a linguagem é produzida; o imaginário sociocultural que intervém nessa linguagem – modifica, emoldura, reformula, apresenta, interpenetra, etc.; e seu caráter trans/multi/in/pluri disciplinar.

Para melhor compreendermos essa escolha teórico-metodológica, na qual nos inscrevemos, trazemos a voz de Rojo (2006, p. 274), que afirma:

[...] no caso da pesquisa sócio-histórica, a maneira do fazer transdisciplinar em LA não tem dispensado um diálogo intenso com conceitos da filosofia, da sociologia e da política, da antropologia, da história, da educação, da psicologia, das análises dos discursos – em especial, teoria da enunciação bakhtiniana –, mas, como vimos, ressignificados como facetas de interpretação do objeto de estudo e não como níveis estanques de análise.

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Para a delimitação do corpus analisado, tomamos como ponto de partida, conforme expressamos na seção anterior, enunciados concretos, localizados historicamente em um contexto sociocultural e entendidos como manifestações de linguagem de Frida Kahlo, a qual travava relações dialógicas responsivas com seus interlocutores. Portanto, interessa-nos enunciados que integram o livro Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo, organizado por Martha Zamora, em sua terceira edição – datada de 2002a, da editora José Olympio.

Objetivando construir uma amostragem, definimos alguns critérios. Em primeiro lugar, escolhemos, como corpus de análise, seis cartas presentes na obra acima citada. Nelas observamos recorrências peculiares que atenderam ao nosso objetivo maior: investigar a imagem valorada da Frida apaixonada diante dos seus interlocutores amados e amantes. Em segundo lugar, estabelecemos dois crivos a partir dos quais selecionamos os dados para esta análise.

O primeiro crivo que utilizamos para a escolha foi direcionado pela recorrência de interlocutores. Nesse caso, optamos por trabalhar somente com as cartas que a pintora escreveu aos seus amores. Selecionamos três homens com os quais Frida se envolveu afetivamente durante sua cantilena apaixonada, ou seja, por toda vida. É óbvio que Frida enamorou-se de vários outros parceiros e parceiras, foram muitos amantes e em lugares distintos. No entanto, não elegemos, como intenção primordial da pesquisa, dar conta de todos esses amores. Restringimo-nos aos mais emblemáticos, àqueles com quem Frida estabeleceu mais relações dialógicas. E o fato de aparecerem, em nosso recorte, apenas as cartas endereçadas aos homens, e nenhuma às mulheres, se deu pelo simples motivo de não haver na totalidade do corpus carta alguma para as mulheres com quem Frida manteve relações apaixonadas. Sabemos notícias de seus envolvimentos homoafetivos pela biografia da pintora escrita por Hayden Herrera (2011).

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Dessa vez, tendo como interlocutor seu marido, e maior amante, o muralista mundialmente conhecido, Diego Rivera. Os últimos enunciados/cartas foram escritos, um em 16 de fevereiro de 1939 e outro em 27 de fevereiro de 1939. Nestes, o outro com quem Frida dialogava era Nickolas Muray, fotógrafo húngaro que ela conhecera no México em 1938.

Dessa forma, deixamos claro que nossa escolha foi orientada: primeiro, pela recorrência dos interlocutores do sexo masculino (a quem chamamos de amantes, não no sentido pejorativo que a palavra ganhou na história da humanidade, mas na intenção de criar uma bipolaridade entre a figura que ama e as figuras que são amadas), visto que buscamos, diante das recorrências linguístico-discursivas, das pistas estilísticas, no modo de construção dos enunciados/carta, uma imagem passional da pintora mexicana; segundo, pelo recorte temporal que demarca fases da vida de Frida em que esta se mostra em contextos socioculturais distintos. Poderemos, então, a partir dessa categorização, traçar um panorama da formatação desse ethos passional ou, até mesmo, das variadas formas em que essa imagem se apresenta – explicaremos melhor mais adiante. Mantivemos, portanto, as cartas/enunciados na ordem de sequenciação que dissertamos nos parágrafos anteriores e optamos por numerá-los de 1 a 6.

Uma última ponderação necessária concentra-se na quarta carta (Enunciado 4) que constitui o recorte empírico deste trabalho, ou seja, a segunda carta endereçada a Diego Rivera. Para compor a cena enunciativa na qual ela se insere, decidimos trazer a carta que Rivera escrevera para Frida e que, muito provavelmente, gerou uma resposta – a carta que Frida escreveu para Diego e que se une às recorrências que separamos para análise na seção que segue.

Subdividimos, também, os enunciados por cores (rosa-chá, magenta e vermelho rubro) que acreditamos fazer parte da estética fridiana de compor – falamos aqui da Frida pintora que tingia suas telas com cores bem particulares de sua cultura e do mundo da vida – e que correspondem ao momento cronológico da produção de cada par de cartas e das próprias escolhas que revelarão ora uma falta de maturidade, ora maturidade transbordante; ora a presença de um amor mais quente (erótico e visceral), ora um amor mais pueril (fraterno e inocente).

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As cartas de Frida Kahlo permitiram diálogos que nos ajudaram a proceder as seguintes ações:

• selecionar as cartas que foram nosso objeto de análise;

• analisar as cartas (comprovação ou negação das vozes, as relações dialógicas e o estilo, que julgamos fazerem parte de materialidade linguístico-discursiva da pintora e que nos direcionou para a construção da imagem ideológica, intencional ou não, de Frida Kahlo);

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2 MEXICANISMO: CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO E CULTURAL QUE CONSTITUÍA FRIDA KAHLO E DO QUAL ERA CONSTITUINTE

Figura 4– Pintura a óleo: Mi nana y yo (1937), óleo sobre lágrima, 30x35 cm.

Fonte: Site Yazim Live6

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Despertar para a história significa adquirir consciência da nossa singularidade, momento de repouso reflexivo antes de nos entregarmos ao fazer.

Octavio Paz

O poeta mexicano Octavio Paz, em seu Livro O Labirinto da Solidão e Post Scriptum, convoca-nos a uma ação, no momento de considerar a história e a cultura de um povo, bem como as influências refletidas em suas representações nas mais variadas esferas, como é o caso desta pesquisa, que resolve debruçar-se sobre a produção epistolar da pintora mexicana Frida Kahlo. Paz (1984) nomeia de “repouso reflexivo” esse momento de reflexão sobre a história do México que encaminha para a verdadeira singularidade apresentada por aquele povo. Dito de outra maneira, é a busca de uma identidade genuinamente mexicana.

Desta feita, não foi à toa que escolhemos, para compor a epígrafe deste capítulo, juntamente com a assertiva do poeta mexicano, um dos afrescos de Frida que a retrata sendo amamentada por uma índia, nomeado por Frida de Minha ama e Eu ou Eu a Mamar. “Fui amamentada por uma ama indígena cujos peitos eram lavados toda vez que me dava de mamar” (HERRERA, 2011, p. 24), Frida confessa, orgulhosa, a uma amiga. Esse fato, mais tarde, vai ser crucial para a pintura da tela que vai nortear a nossa discussão sobre as influências e constituições culturais da pintora. A ama, índia, é a personificação da herança cultural que a artista traz em seu discurso, seja em suas telas, conhecidas mundialmente, seja em suas cartas, não tão conhecidas e, agora, objeto de estudo desta dissertação.

Mas a ama de leite de Frida tem sua identidade e seu rosto omitidos pela máscara asteca que ela carrega em sua face. A respeito das máscaras, Octavio Paz as coloca como parte integrante na cultura que diz bastante sobre a personalidade do mexicano e afirma que “[...] a máscara do velho é a história de algumas feições amorfas que um dia emergiram confusas, vagamente captadas por um olhar absorto. Em virtude deste olhar as feições se fizeram rosto e, mais tarde, máscara, significação, história” (PAZ, 1984, p. 14). Ele ainda acrescenta que:

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A preferência pelo fechado em vez do aberto não se manifesta apenas como impassibilidade ou desconfiança, ironia e receio, mas também como amor à Forma. Esta contém e encerra a intimidade, impede seus excessos, reprime suas explosões, separa e isola, preserva-a. A dupla influência indígena e espanhola se conjuga na nossa predileção pela cerimônia, pelas fórmulas e pela ordem. [...] As complicações rituais da cortesia, a persistência do humanismo clássico, o gosto pelas formas fechadas na poesia (o soneto e a décima, por exemplo), nosso amor pela geometria nas artes decorativas, pelo desenho e pela composição na pintura, a pobreza do nosso Romantismo em contraste com a excelência da nossa arte barroca, o formalismo das nossas instituições políticas e, finalmente, a perigosa inclinação que demonstramos pelas fórmulas – sociais, morais e burocráticas – são outras tantas expressões desta tendência do nosso caráter. O mexicano não só não se abre; também não se derrama (PAZ, 1984, p. 32-33).

Dessa forma, a máscara representa muito mais que um simples enfeite ou ornamento no rosto da ama de Frida. Representa, na verdade, uma marca identitária, cultural e ideológica que define a persona(l)idade de um povo que prefere a desconfiança de não se mostrar.

Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, terceira filha de Guillermo e Matilde Kahlo, nasceu no dia 06 de julho de 1907, em sua casa, na esquina das ruas Londres e Allende, situada em Coyoacán, um antigo distrito residencial nos arredores da periferia sudoeste da Cidade do México. De acordo com Haydem Herrera, que escreveu “Frida: a biografia”, essa é a data que consta em sua certidão de nascimento. Mas Frida era filha da década revolucionária, quando as ruas da Cidade do México estavam coalhadas de caos e derramamento de sangue. Provavelmente, optando por uma verdade menos precisa, ela escolheu nascer em 1910, ano da explosão da Revolução Mexicana. Herrera (2011), na biografia de Frida, define essa revolução como:

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derramamento de sangue só cessariam com a posse do presidente Álvaro Obregón, um dos generais de Carranza, em Novembro de 1920 (HERRERA, 2011, p. 25).

Muitos desses conflitos foram presenciados pela pequena Frida. Em seu diário íntimo, publicado após sua morte, ela relata que a mãe abria a janela – que dava para a rua Allende – e dava acesso aos zapatistas feridos, a quem dava de comer e cuidava de seus ferimentos. Mais tarde, esse movimento vai contar com a juventude comunista, da qual Frida fazia parte. Ele procurou implantar mudanças fundamentais na estrutura social do México pós-colonialista. A identificação da artista com o Mexicanismo (1910-1920) foi tão grande que se tornou um dos símbolos mais difundidos em toda sua produção artística. Frida exclamava, em cartas, em telas ou em seu diário: ¡viva la revolución!. Assim como Kahlo, o México estava em um momento de reconstrução de sua identidade e contava com seus artistas para o fazer.

Não foi diferente com a arte da “pomba delicada”, um dos apelidos que Frida recebeu nas rodas sociais em que circulava. Seus autorretratos se enchem de elementos de seu cotidiano que ganham um valor simbólico e representam, com grande precisão, essa mulher exótica aos olhos estrangeiros, enquanto que, para seu esposo, o grande muralista mexicano Diego Rivera, ela era a personificação de toda glória nacional. Seus escritos (cartas, poemas e diário íntimo), também, não se diferenciam nesse aspecto cultural.

Doravante, a questão do sentimento de identidade nacional no México pós-revolução, ou melhor, a busca por uma identidade mexicana, que envolveu o país em discussões calorosas a respeito do Mexicanismo, se dava no bojo conceitual da representação nacional que traziam as obras de Frida Kahlo. Essas discussões levantavam questões e elementos que iam da esfera econômica às artes. Passou-se a pensar o papel social de que se investe a arte. Dessa forma, buscava-se uma arte genuinamente nacional que rompesse com os padrões europeus.

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técnicas e eram treinados para escolher temas em voga. No entanto, quando regressavam à terra natal, repensavam os temas para suas pinturas, tendo como tema recorrente a independência, evocando as lutas contra os exércitos espanhóis, fundação das repúblicas e os heróis desses processos. Dessa maneira, formaram-se símbolos nacionais através na pintura.

Contudo, é importante dizer que esses símbolos e imagens nacionais compunham uma identidade, na voz das elites, que já assumia a mestiçagem, mas mantinha o discurso de que apenas os brancos letrados tinham a capacidade e o direito legítimo de terem propriedades e assumirem o governo, enquanto os pobres, índios, negros, mestiços e camponeses não tinham, para as elites, capacidade de assumir cargos públicos e nem mesmo poderiam comandar propriedades. Era utilizada a famigerada dicotomia “civilização versus barbárie” para justificar a dominação de um grupo pelo outro.

Mas os grupos marginalizados formaram reivindicações sociais e, em meio a esta cultura mestiça, desenvolveu-se uma vigorosa cultura popular. Distintos pintores, em diversos países, dedicaram-se a representar temas da vida cotidiana retratando pessoas simples.

As diferenças estéticas entre os pintores populares e os pintores viajantes são expressivas. Enquanto estes procuravam reproduzir sempre o mesmo estilo de pose, retratando mais um tipo de pessoa, aqueles retratavam sempre a pose dura e frontal, característicos dos retratos coloniais, e tinham ainda uma imensa preocupação com os detalhes das roupas, o que conferia um caráter deliberadamente realista ao retrato.

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Vasconcelos, o fundador da educação moderna do México, destacamos o seguinte trecho:

Emergem as artes populares, esquecidas durante séculos; nas escolas e nos salões, tornam-se a cantar as velhas canções; dançam-se as danças regionais, com seus movimentos puros e tímidos, feitos de vôo e estática, de reserva e fogo. Nasce a pintura mexicana contemporânea. Uma parte de nossa literatura volta os olhos para o passado colonial; outra, para o indígena. Os mais valentes encaram o presente: surge o romance da revolução. O México, perdido na dissimulação da ditadura, de repente é descoberto por olhos atônitos e apaixonados:

‘Filhos pródigos de uma pátria que nem sequer sabemos definir, começamos a observá-la. Castelhana e mourisca, listrada de asteca’. (PAZ, 1984, p.136-137).

Destarte, chegamos ao muralismo, que foi o movimento artístico mais emblemático do século XX e que se apresentou como movimento crítico do capitalismo, sobretudo da exploração do trabalhador. Pode-se dizer que o muralismo cumpriu com o papel de arte nacional e, de certo modo, procurou, ao menos nas artes visuais, redimir o indígena. Esse afluxo artístico mexicano teve como figura maior o muralista Diego Rivera, esposo de Frida Kahlo, que buscou recontar a história mexicana por meio dos marginalizados ou vencidos ao colocar, em seus murais, figuras indígenas no lugar de heróis ao invés de reis e príncipes. Consideramos que o muralismo foi muito importante para essa arte ideológica e de vanguarda que Frida iria integrar mais tarde, contudo, não adentraremos com mais profundidade no movimento, visto não ser este o objetivo deste estudo.

2.1 Cultura: uma fôrma híbrida e grávida de ideologias

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mergulhando em alguns contextos com a intenção de extrair algo novo do ponto de vista teórico-metodológico.

Nessas camadas conceituais perscrutadas por Eagleton (2005), são destacadas as investigações do Raymond Williams, quando este distingue três sentidos modernos e principais para a palavra “cultura”. Em primeiro lugar, a noção equipara-se semanticamente à “civilização”, isso por causa de suas raízes etimológicas no trabalho rural. Um incentivo ao cultivo individual. Mas tal conceito vai se desconstruindo por volta da virada do século XIX, que é quando os aspectos normativos e descritivos da palavra “civilização” começam a se separar. Uma nova virada é contornada por Eagleton (2005, p. 23):

A civilização era abstrata, alienada fragmentada, mecanicista, utilitária, escrava de uma crença obtusa no progresso material; a cultura era holística, orgânica, sensível, autotélica, recordável. O conflito entre cultura e civilização, assim, fazia parte de uma intensa querela entre tradição e modernidade. Mas também era, até certo ponto, uma guerra fingida. O oposto de cultura, para Matthew Arnold e seus discípulos, era uma anarquia engendrada pela própria civilização.

É nessa virada, em que a cultura assume os vieses, ao mesmo tempo, aristocrata e populista, que reside o segundo sentido listado por Williams apud Eagleton (2005). Com base no idealismo alemão, a cultura, enquanto atividade sociológica e antropológica, adota algumas características de seu significado moderno e característico de um modo de vida. Em outras palavras, ela assume aí uma alegoria plural, heterogênea quebrando com as correntes de uma narrativa unilateral da humanidade em seu todo, porém uma diversidade de formas de vida específicas.

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Nossa própria noção de cultura baseia-se, assim, em uma alienação peculiarmente moderna do social em relação ao econômico, o que significa em relação à vida material. Só numa sociedade cuja

existência cotidiana parece desprovida de valor podia a ‘cultura’ vir a

excluir a reprodução material; porém, só desse modo podia o conceito tornar-se uma crítica dessa vida. Como comenta Raymond Williams, a

cultura emerge como uma noção a partir do ‘reconhecimento da

separação prática de certas atividades morais e intelectuais do ímpeto condizente a um novo tipo de sociedade’. Essa noção se torna, então, ‘um tribunal de recursos humanos, a ser colocada acima dos processos

de julgamento social prático... como uma alternativa mitigante e

arregimentadora’. A cultura é, assim, sintomática de uma divisão que ela se oferece para superar. Como observou o cético a respeito da psicanálise, é ela própria a doença para a qual propõe uma cura. (EAGLETON, 2005, p. 49-50)

Assim sendo, por acreditarmos que não se pode falar de Frida Kahlo sem antes considerar o diálogo intrínseco entre o eixo da cultura popular mexicana, sua produção artística, suas vestimentas e a batalha política que ela encabeçava ao lado de Diego Rivera, é que dissertamos, neste capítulo, a respeito de cultura, mais especificamente cultura mexicana. Sinteticamente, diríamos que nosso pensamento sobre as questões culturais que cercavam a pintora mexicana podem estar, aqui, ancoradas em princípios teóricos e metodológicos que orientam nossa compreensão da natureza fluida e contingente das relações sociais humanas. Tais relações, materializadas semioticamente e circulantes no mundo da vida, (des)velam as nuances de uma interculturalidade que não é ingênua, muito pelo contrário, ela é implicada nos confrontos, nas trocas, no entrelaçamento de posicionamento.

Consideramos, ainda, a pintora como um ser constitutivamente dialógico. Frida é construída nas relações humanas em que a linguagem tem um papel central, e com as quais e por meio das quais se estabelecem, também, algumas relações de poder. Tudo isso nesse espaço-tempo, em que ela, enquanto criadora e eticamente responsiva, constrói imagens de si mesma. É seguindo as pistas estilísticas, demarcadas na materialidade linguística, que tentaremos dar formas e cores às imagens socioestilísticas do universo fridiano.

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hiperbólicas (carcajadas). É de irreverência e de quem deseja ser vista, ser olhada e admirada por gestos, discurso e vestes, enfim, por uma imagem de si que afiançasse sua luta pela insubmissão, desafio ao preconceito, liberdade dela e do México. Todos esses traços comprovam muitas qualidades que marcaram Frida Kahlo. Herrera (2011, p. 9) ressalta:

[...] como pessoa e como pintora: sua bravura e indomável alegria em face do sofrimento físico; a insistência na surpresa e na especificidade; seu amor peculiar pelo espetáculo como máscara para preservar a privacidade e a dignidade pessoal.

Tamanho universo, da vida e obra de Frida, tem sua concretude tecida no social, na cultura e no mundo da vida. Não poderíamos deixar de tocar nesse conceito filosófico e antropológico que tem servido de terreno para os estudos culturais – a própria cultura – tendo em vista que Frida traz claramente, em todos seus modos de agir e interagir com seus interlocutores, uma demarcação e influência cultural que a torna, na atualidade, um dos símbolos contemporâneos da cultura do povo mexicano e, mais especificamente, indígena do México híbrido.

Buscamos, ainda, subsídios para discutir as práticas de construção identitária na perspectiva sócio-cultural encabeçada por vozes teóricas que colocamos em diálogo e, ao mesmo tempo, amparados pela área na qual esta pesquisa se insere – Linguística Aplicada –, derrubamos os limites teóricos impostos, muitas vezes, na construção do conhecimento. Dito de outro modo, precisaremos dos palimpsestos dos estudos culturais para aqui discutir: “Cultura”; “Ideologia”; “Hibridismo”; “Liquidez”; “Identidade”; e “Descolecionamento”.

Inicialmente, para falar sobre uma noção de cultura, mais especificamente um olhar latino-americano e híbrido desde sua gênese, trazemos o livro: “las categorías de la cultura mexicana”, de Elsa Cecilia Frost (2009).

Frost, ao trazer ideias iniciais sobre a filosofia da cultura, afirma:

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Frost (2009), conforme exposto, afirma que a noção de cultura nasce no encontro do homem com sua própria obra, aquilo que a autora vai chamar de “asombro”, uma espécie de susto, choque ideológico e de identidade. Por conseguinte, para Frost (2009), a noção de cultura nasce junto com a de filosofia e está impregnada nos registros históricos de toda humanidade. Dessa maneira, não poderia ser muito diferente com a latino-américa. Na verdade, existem discordâncias entre os pensadores quanto à origem do conceito ou da própria noção de cultura. Alguns pensadores franceses adotam, em geral, a teoria naturalista, entretanto, os alemães defendem que esse é um problema de espírito, o que não se pode negar é que a fé no progresso e no poder esclarecedor da cultura é unânime entre eles.

A pesquisadora mexicana, ao abordar o conceito de cultura, diz que “Cultura es así sinónimo de tradición, educación, formación, es decir, um concepto em el que encerramos multitud de cosas” (FROST, 2009, p. 63). Mais tarde, ao desenvolver sua argumentação, ela ainda estabelece uma relação de sinonímia “cultura e civilização”, pois a palavra civilização, etimologicamente falando, denota a vida civil e política, a evolução humana que esta vida em sociedade implica.

Consideramos, portanto, a fôrma híbrida e cultural constituída e constituinte das/nas relações interpessoais e dialógicas primordial para nossa pesquisa. Esta, por sua vez, vai servir de mote para nos ajudar a caracterizar as influências culturais que ajuizaram algumas práticas sociais de Frida e que, na atualidade, melhor representa e resguarda a cultura das origens mexicanas. Para melhor alicerçar o que alvitramos a despeito desse eixo cultural de nossa pesquisa, invocamos algumas palavras de Frost (2009, p. 68-69):

Esta doble relación entre el hombre y la cultura que hemos descrito en pocas palabras tardó mucho tempo en ser reconocida. Aun cuando se aceptara que la cultura que es producto humano (en las mitologías primitivas la cultura es siempre un regalo de los dioses) no se advertía que este producto se convierte en una nueva sección de la realidad; y más tarde, al aceptarse la independencia de la obra frente al creador, se cayó en el extremo contrario, suponiendo que la cultura está más allá del control humano y que opera según sus propias leyes. En realidad, es imposible sostener este ‘determinismo cultural’ que hace

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Ao afunilar suas investigações sobre as categorias da cultura mexicana, Frost aponta para os eixos de natureza sociológica e de valoração diante dos fenômenos culturais, atrelando-os às atividades da vida humana:

Esta ciencia parte del hecho de la naturaleza social de la vida humana y analiza su contenido tanto descriptiva como casualmente, tratando de establecer las leyes que lo rigen. Pero, a pesar de plantearse el de la evolución, propagación y modificación de estas formas (dinámica sociológica), lo que la distingue de toda filosofía de la cultura es su actitud libre de toda valoración frente al fenómeno cultural (FROST, 2009, p.55)

Néstor Garcia Canclini, estudioso argentino, é outro teórico que traz discussões que se coadunam com o nosso entendimento sobre cultura. Ao propor um caminho de reflexão sobre o que denomina “hibridação” cultural nos países latino -americanos, Canclini parece atingir aquilo que acreditamos ser a representação cultural mexicana chamada Frida Kahlo e sua obra. A cultura, na América Latina, é pensada em “Culturas Híbridas” considerando a vasta complexidade das relações que a configuram na atualidade. Para a discussão que empreende, Canclini (2013, p. 284) apresenta seus objetivos:

A fim de avançar na análise da hibridação intercultural, ampliarei o debate sobre os modos de nomeá-la e os estilos com que é representada. [...] pretendo ocupar-me de três processos fundamentais para explicar a hibridação, a quebra e a mescla das coleções organizadas pelos sistemas culturais, a desterritorialização dos processos simbólicos e a expansão dos gêneros impuros. Através dessas análises, procuraremos precisar as articulações entre modernidade e pós-modernidade, entre cultura e poder.

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Assim sendo, ao ignorar o modismo artístico de sua época que visava retratar o México como uma cópia da França, Frida descoleciona e coloca a si mesma e os elementos que estão em seu entorno (frutas, vestimentas, etc.) como pano de fundo de seus quadros. Além disso, carrega seus quadros com elementos da cultura indígena mexicana como: índias, símbolos Maias, Incas e Astecas, Máscaras nativas, etc. Pensamos, com isso, que a escolha engajada – porque esse também era um posicionamento político – de Frida mostra certa concordância com aquilo que Canclini (2013) vai chamar de hibridização e descolecionamento.

Por conseguinte, quando o estudioso volta seu olhar para as representações monumentais (estátuas, murais, símbolos, etc.), levanta-se, portanto, uma inquietação a respeito da luta entre a memória histórica e os conflitos urbanos. Canclini (2013) questiona a pretensão do dizer desses monumentos dentro de uma determinada simbologia urbana contemporânea. Durante a discussão sobre a cultura urbana, o autor constata:

Em processos revolucionários com ampla participação popular, os ritos multitudinários e as construções monumentais expressam o impulso histórico de movimentos de massa. São parte da disputa por uma nova cultura visual em meio à obstinada persistência de signos da velha ordem, tal como aconteceu com o primeiro muralismo pós-revolucionário mexicano, com a arte gráfica russa dos anos 20 e cubana dos anos 60 (CANCLINI, 2013, p. 291).

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Ainda sobre essa perspectiva descolecionizante dos poderes oblíquos, ele afirma:

A agonia das coleções é o sintoma mais claro de como se desvanecem as classificações que distingam o culto do popular e ambos do massivo. As culturas já não se agrupam em grupos fixos e estáveis e portanto desaparece a possibilidade de ser culto conhecendo o

repertório das ‘grandes obras’, ou ser popular porque se domina o

sentido dos objetos mensagens produzidos por uma comunidade mais ou menos fechada (uma etnia, um bairro, uma classe) (CANCLINI, 2013, p. 304)

No que tange à noção geográfica, ao abordarmos um conceito de cultura que, de alguma maneira, estaria atrelado a uma dimensão espacial e territorial (um lugar, uma raça, uma colonização), não podemos deixar de considerar alguns aspectos que fomentam as discussões nas terras científicas da cultura. É preciso, então, pensar em uma concepção de dimensão cultural para além do conceito tradicional e centrado somente num tipo único de civilização ou urbanidade. Esse é o pensar que nos é muito caro, pois nasce com ele o processo de modernização nos países da América Latina.

Não obstante, essa perspectiva, que considera uma multiplicidade de vozes modernas e pós-modernas, para melhor compreender os fenômenos culturais, leva em consideração os fatores de complexidade cultural, de multiplicidade das lógicas de desenvolvimento em um contingente tão heterogêneo que se espalha durante o processo de construção dos países Latinos. Diante da iminente crise da modernidade ocidental, Canclini aponta para um viés que busca, em suas palavras, “desterritorializar-se”.

Para elucidar e embasar a discussão aqui levantada com o intuito de melhor compreendermos o contexto social e as influências culturais que formaram o sujeito histórico Frida Kahlo, trazemos um excerto em que o autor reitera:

As buscas mais radicais sobre o que significa estar entrando e saindo da modernidade são as dos que assumem as tensões entre desterritorialização e reterritorialização. Com isso refiro-me a dois

processos: a perda da relação ‘natural’ da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas (CANCLINI, 2013, p. 309).

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escolhas lexicais, vão remontando uma cultura híbrida e cheia de alcances realocados. Ela bebe em todas as suas experiências ao longo de sua vida. Há uma Frida que representa um povo indígena, mexicano, latino etc., e também uma mulher singular que fazia de suas dores temáticas para as situações em que a linguagem desempenha um papel central.

A seguir, tomamos, para a construção desse tecido estrutural, uma noção de ideologia que nos ajudará a compreender as interferências sociais na formação desse sujeito histórico e inacabado sobre o qual nos debruçamos.

2.2 Ideologia: os roteiros socialmente valorados

Os contextos ideológicos que marcam a nossa trajetória de construção identitária vão contornando axiologicamente os moldes nos quais, de maneira imperceptível, tentamos nos encaixar. Essa tentativa, ainda que forçada por fios sociais invisíveis, pode dizer muito de nossa construção ideológica e daquilo que acreditamos estar correto ou errado. Acreditamos, ainda, que há uma possibilidade tangível desses roteiros sociais se fazerem presentes em tudo que nos engessa ou define, como por exemplo: a noção de masculino e feminino, de raça, de supervalorização cultural, etc.

Com isso, escolhemos tratar de ideologia como algo presente nas conjunturas culturais de todo ser de linguagem, com o fito de justificar as influências ideológicas presentes nos posicionamentos e enquadramentos de vozes que Frida Kahlo fazia em suas cartas. Esses roteiros socioculturais vão deixando rastros e pistas ideológicas que vão desde as escolhas lexicais até as aparições em público com seus trajes típicos.

Contudo, antes de sopesarmos sobre tais fenômenos, marcados na materialidade linguística das cartas pessoais da pintora, demarcaremos o terreno teórico que nos orientou. Também se faz necessário pontuar que não é nosso objetivo aqui aprofundar-nos nos estudos teóricos sobre a ideologia. Tão somente pretendemos, com isso, encorpar o rejunte de vozes que trazemos para melhor ligar a unilateralidade que, outrora, estava separada pelas fronteiras de metodologias positivistas.

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definições do conceito de maneira global, apontado para diversas frentes de possibilidade. Vejamos:

A palavra ‘ideologia’ é, por assim dizer, um texto, tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais; é traçado por divergentes históricas, e mais importante, provavelmente, do que forçar essas linguagens a reunir-se em alguma Grande Teoria Global é determinar o que há de valioso em cada uma delas e o que pode ser descartado. (EAGLETON, 1997, p. 15)

Ademais, Eagleton (1997) lista algumas definições do termo – Ideologia – em circulação. São elas:

a) o processo de produção de significados, signos e valores na vida social; b) um corpo de ideias característico de um determinado grupo social; [...] d) ideias falsas que ajudam a legitimar um poder político dominante; [...] j) a conjuntura de discurso e poder; k) o veículo pelo qual atores sociais conscientes entendem o seu mundo; [...] n) oclusão semiótica; o) o meio pelo qual os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social; p) o processo pelo qual a vida social é convertida em uma realidade natural (EAGLETON, 1997, p. 16).

De modo geral, o autor, no caminhar da discussão, adverte-nos de que seria de fundamental importância observar que algumas dessas definições entram em contradição no modus operandi dos fluxos ideológicos defendidos por elas, ou seja, não são compatíveis na forma como encaram tal conceito. Assim, uma objeção à assertiva de que a ideologia consiste em “um conjunto particularmente rígido de ideias” (EAGLETON, 1997, p. 16) está na constatação pragmática de que nem todo conjunto rígido de ideias é ideológico. Pensado assim, podemos ter persuasões bem mais plásticas no que diz respeito ao modo como escolhemos nossas roupas, por exemplo. Contudo, podemos afirmar, baseados nos construtos eagletonianos sobre ideologia, que o termo parece-nos fazer referência não somente a sistemas de crença, mas a demandas que envolvem relações de poder, arrolamentos de axiologia.

Em suma, Eagleton (1997), depois de demonstrar algumas vertentes teóricas que pensam o conceito de ideologia e discordar de maneira ferrenha da maioria deles, aponta seis maneiras, que ele chama de “enfoque progressivamente mais nítido”, das quais se pode falar de ideologia. Para a nossa intenção, servirá a primeira que o teórico registra.

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ao significado mais amplo do termo ‘cultura’. A ideologia, ou cultura,

denotaria aqui todo o complexo de práticas significantes e processos simbólicos em uma sociedade particular; aludiria ao modo como os

indivíduos ‘vivenciaram’ suas práticas sociais, mais do que às próprias práticas, que seriam o âmbito da política, da economia, da teoria da afinidade etc. [...]

Essa acepção mais geral de ideologia enfatiza a determinação social do pensamento, oferecendo assim um antídoto valioso ao idealismo; em outros aspectos, porém, poderia parecer impraticavelmente ampla e guardar suspeitoso silêncio sobre a questão do conflito político. Ideologia significa mais do que meramente, digamos, as práticas significantes que uma sociedade associa ao alimento; envolve as relações entre esses signos e os processos do poder político. Não é

coextensiva ao campo geral da ‘cultura’, mas elucida esse campo

de um ângulo específico (EAGLETON, 1997, p. 38-39, grifos nossos).

Assim, nos é caro o conceito de ideologia que Eagleton traz como solução primeira. Inicialmente, porque ele está diretamente ligado às práticas sociais e suas esferas de produção do conhecimento. Em segundo lugar, no que tange ao nosso interesse, é coerente dizer que as práticas sociais que envolvem linguagem e valor, sobretudo, as materializadas nos enunciados produzidos por Frida, receberão o nosso olhar atravessado por lentes teóricas eagletoneanas também.

Por fim, essa “elucidação”, em certo ângulo, do conceito de ideologia ao campo da cultura servirá para melhor compreender como as influências culturais que cercam o mundo da vida de Frida estão povoadas por arenas ideológicas e por roteiros sociais que ela afirma ou renega o tempo todo. Esse mundo cultural mexicano e indígena, que ela faz questão de estandardizar e servir de baluarte, é construído a partir de questões que envolvem preceitos ideológicos e processos simbólicos de uma sociedade em particular, ou, como diria Eagleton (1997), essa noção “ofereceria um antídoto valioso ao idealismo”.

2.2.1 A Ideologia na Análise Dialógica dos Discursos (ADD)7

7

Esse te o vai se itado pela p i ei a vez pela P ofa. D a. Beth B ait, o liv o Bakhti : dialogis o e polifo ia . E u e saio o ual ap ese ta u eve pa o a a dos estudos akhti ia os pelo u do,

desde sua origem, com o próprio Bakhtin, já no fim do capítulo, Brait (2009, p.55) assume esse termo com algo mais moderno associado às noções que se espalham por toda obra do filósofo russo, vejamos:

Isso fi a pate te e vá ios o e tos desse p i ei o apítulo, mas especialmente no trecho em que Bakhtin se refere às relações dialógicas, fenômeno que, em outro capítulo, será tratado como o objeto

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Para Bakhtin, as questões que envolvem a ideologia passam, também, pela grande metáfora eu-outro. Ideologia se constrói em todas as esferas das interações sociais, ou seja, ela é um fenômeno social que envolve os signos linguísticos, a linguagem humana. Para o pensamento bakhtiniano, a ideologia não pode derivar da consciência, como diziam o idealismo e o positivismo psicologista de sua época. Pois, de acordo com Bakhtin (2009), a consciência adquire forma de existência nos signos criados por determinados grupos sociais. Esses grupos organizam os signos no curso de suas relações sociais.

Ainda nessa tônica, Bakhtin/Volochínov asseveram:

Para começar, as bases de uma teoria marxista da criação ideológica –

as dos estudos sobre o conhecimento científico, a literatura, a religião, a moral, etc. – estão estreitamente ligadas aos problemas de filosofia da linguagem. Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outro termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. Um corpo físico vale por si próprio: não significa nada e coincide inteiramente com sua própria natureza. Neste caso, não se trata de ideologia. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 31)

Dessa maneira, para reforçar esse entendimento, ideologia poderia caracterizar-se, nessa perspectiva, como a expressão, a organização e a regulação das relações histórico-materiais dos seres de linguagem. Podemos também compreender ideologia, seguindo a linha bakhtiniana de raciocínio, como uma representação. Isso porque ela se dá na/pela linguagem. Precisa dela para poder representar-se, manifestar-se e é caracterizadamente repremanifestar-sentativa, simbólica e constituída por signos ideológicos. Bakhtin/Volochínov, ao tentarem construir um paralelo entre esses signos e os instrumentos de produção, com a intenção de melhor explicar os signos ideológicos e suas representações, utilizam um exemplo que muito elucida essa questão. Consideramos a explicação do filósofo russo primorosa e, por isso, resolvemos trazê-la para discutirmos um pouco mais sobre tal questão. Observemos:

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sentido puramente ideológico. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 33).

Isso significa dizer que esses signos não só denominam um ser no mundo, mas também fazem referência a uma outra realidade fora da imediata. A foice e o martelo adquirem sentido quando entram no campo em que está sendo travado o embate entre o eu e o outro. É a relação dialógica que vai pintando papéis sociais e roteiros nesses instrumentos e os transforma em signos pertencentes às mais variadas esferas de produção.

Assim, por ser ideológico, para Bakhtin e o Círculo,

o signo comporta as crenças, os sonhos, as opiniões, as visões de mundo, as interpretações da realidade, etc. se o signo não fosse ideológico nada disso poderia ser identificado nele. Ele é, portanto, duplamente orientado. Carrega, em sua constituição, numa face, uma oficialidade que o faz pertencer a determinado sistema ideológico e, na outra, uma necessidade de reorganização a partir do seu contato nas relações cotidianas travadas pelos sujeitos. (GEGe, 2009, p.59)

Em outras palavras, a ideologia bakhtiniana é duplamente orientada. Ela faz com que o signo se mantenha na história, mas também se transforme na interação verbal. Por outro lado, não podemos afirmar que o instrumento de produção, assim tratado, torna-se um signo ideológico. Por exemplo, as inúmeras imagens de Frida ganharam, na contemporaneidade, uma forma artística que assegura uma relação harmônica entre objetos de consumo e a representação simbólica dela enquanto bandeira de lutas sociais – feministas, por exemplo. Contudo, o produto de consumo não é um signo ideológico.

Aqui, produzimos uma aproximação entre o signo linguístico e o produto de consumo. O produto de consumo, assim como o instrumento de produção, pode ser associado ao signo ideológico, mas, de acordo com Bakhtin/Volochínov (2009, p. 35), “essa associação não apaga a linha de demarcação existente entre eles”. Nesse sentido, o filósofo da linguagem aponta para os domínios do ideológico e do signo. Segundo Bakhtin, estes são mutuamente correspondentes. Ou seja, onde se encontra o signo, também se encontra o ideológico.

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2.3 Ser líquido: a responsividade fridiana diante do prenúncio de tempos pós-coloniais

Diante das questões que se entrecruzam para dar cor e forma ao caminho que ora resolvemos percorrer, na intenção de melhor compreender o sujeito8 Frida, situado sócio-historicamente, compreendemos que é necessário identificar as práticas discursivas da pintora como marcas de uma constituição e construção modernas e, como diria Bauman, “leve e líquida”. Essa característica, indicada nos posicionamentos revelados nas práticas epistolares da artista, alinha-se à desconstrução dos processos “modernos e pós-modernos” (BAUMAN, 2001, p.11).

Para melhor esclarecer nossas afirmações, recorremos à voz baumaniana ao apontar para o momento em que há uma ruptura com uma tradição colonial e tal processo surge com uma guinada da modernidade. Vejamos na afirmação a seguir:

Se o “espírito” era “moderno”, ele o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da “mão morta”

de sua própria história – e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse intenso à sua passagem ou imune a seu fluxo). Essa

intenção clamava, por sua vez, pela “profanação do sagrado”: pelo

repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da

“tradição” – isto é, o sedimento ou resíduo do passado no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à “liquefação”.

(BAUMAN, 2001, p. 9)

Esse estado de “liquefação” que o teórico pontua é o momento em que a metáfora da liquidez se torna mais clara e adquire um sentido que nos é muito caro: a “fluidez”. Muitos irão dizer que ser “líquido” e ser “fluido” podem assumir posições sinonímicas ou iguais. No entanto, por acreditamos que não existe sinonímia neutra, que uma escolha lexical em detrimento de outra revela uma posição axiológica, é que usamos, aqui, a “fluidez” baumaniana com um sentido mais amplo e que nos atende de prontidão. Essa fluidez representa um escoamento, um estado de constante movimentação, plasticidade. Não é algo estanque encapsulado em aquários ou potes, mas um conceito de eterna construção e desconstrução. Fica mais claro o que almejamos com isso na fala de Bauman (2001, p. 8):

8 Tratamos aqui da noção de sujeito segundo a concepção bakhtiniana, a qual compreende os seres de

Imagem

Figura 1  – Desenho de Odyjackson Lopes
Figura 2  – Foto do acervo pessoal de Frida Kahlo
Figura 3  – Foto do acervo pessoal de Frida Kahlo:
Figura 4  – Pintura a óleo: Mi nana y yo (1937), óleo sobre lágrima, 30x35 cm.
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Referências

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