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O autor segundo ele mesmo: a escrita de si em Cadernos de Lanzarote, de José Saramago

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O AUTOR SEGUNDO ELE MESMO: a escrita de si em Cadernos de Lanzarote, de José Saramago

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O AUTOR SEGUNDO ELE MESMO: a escrita de si em Cadernos de Lanzarote, de José Saramago

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP –

Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestra em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e vida social)

Orientadora: Dra. Sandra Aparecida Ferreira

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À minha orientadora Sandra Aparecida Ferreia, cuja confiança me foi depositada integralmente desde a ocasião de nosso primeiro encontro, ainda durante a graduação, pela paciência, inspiração, apoio e dedicação, a quem devo a concretização de um sonho, o mais especial de todos eles;

À minha mãe Marlene de Fátima Buzzon Fernandes, minha vida, do mesmo modo responsável pela consecução desta dissertação, pelo Amor, fé, apoio, paciência e incentivo depreendidos ao longo desta (e de outras) desafiadora jornada - minha primeira leitora, a mais entusiasta de todas;

Às iluminações: meu pai, Edson Luis Fernandes, e minha irmã, Gabriela Buzzon Fernandes, ambos fundamentais emocionalmente para que eu renovasse o fôlego requerido pelo Mestrado;

Aos meus grandes amigos Laura Mantellatto e Wagner Rezende, por serem inesquecíveis, assim como pela amizade sincera e confiança fiada tão generosamente ao longo dos anos de UNESP, certamente os meus melhores;

A Elielson Antonio Sgarbi, amigo e companheiro de curso, vizinhança e pós-graduação, por me ter apresentado à nossa Sandríssima, além de me ter dedicado seu tempo por intermédio de todos os meios de comunicação disponíveis, com conselhos e contribições imprescindíveis para acalentar meu desespero quanto aos percalços do trabalho;

Aos queridos professores Benedito Antunes, cujas aulas de Literatura Brasileira sempre preservarei em minha memória e coração, e Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade, com quem compartilho o amor por José Saramago. Muito obrigada a ambos pelos comentários e contribuições no momento da qualificação;

À Clarice Zamonaro Cortez, cuja presença na banca de minha defesa mostrou-me que não há dedicação que não seja recompensada pelo carinho e reconhecimento daqueles que da mesma maneira vivem para Literatura;

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Por muito que se diga, um diário não é um confessionário, um diário não passa de um modo incipiente de fazer ficção. Talvez pudesse chegar mesmo a ser um romance se a função da sua única personagem não fosse a de encobrir a pessoa do autor, servir-lhe de disfarce, de parapeito. Tanto no que declara como no que reserva, só aparentemente é que ela coincide com ele. De um diário se pode dizer que a parte protege o todo, o simples oculta o

complexo. O rosto mostrado pergunta dissimuladamente: «Sabeis quem sou?»,

e não só não espera resposta, como não está a pensar em dá-la.

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de Lanzarote, de José Saramago. 2015. 137 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade

de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2015.

RESUMO

A dissertação analisa as transgressões temático-formais empreendidas pelo escritor português José Saramago, nas obras Cadernos de Lanzarote (1998a) e Cadernos de Lanzarote II (1999), em relação ao diário, sobretudo em sua modalidade inautêntica, caracterizada por uma construção menos espontânea, em razão da publicação – divulgação a leitores diversos do

diarista-, que a modifica formal e tematicamente, bem como em referência ao diálogo com o público.

O primeiro capítulo tem como centro a genealogia do diário. O segundo é dedicado à apreciação crítica de Cadernos de Lanzarote. As transgressões genéricas e as vozes autorais são consideradas no terceiro capítulo. O propósito desta dissertação é discutir como, em oposição aos diários tradicionais, a obra autorreferencial do escritor português é pública, e não privativa, apresentando características particulares quanto aos paradigmas do gênero.

Para alcançar tal propósito, a dissertação procura fornecer uma apresentação teórica mais detalhada do diário, contemplando-o desde sua origem – há aproximadamente 3.000 a.C.,

concomitantemente à invenção da escrita – até a contemporaneidade, ocasião em que se

verifica a revolução promovida pela web 2.0 na escritura autorreferencial.

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Cadernos de Lanzarote, by José Saramago. 2015. 137 f. Dissertation (Master’s degree in

Letters) - Faculty of Sciences and Letters, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2015.

ABSTRACT

The dissertation analyzes the thematic and formal transgressions undertaken by Portuguese

writer José Saramago, in the works Cadernos de Lanzarote (1998a) and Cadernos de

Lanzarote II (1999), in relation to the diary, especially in its inauthentic mode, featured by a

less spontaneous construction, because of the publication - disclosure to many readers completely different from the diarist - that changes it formal and thematically, and in reference to the dialogue with the audience. The first chapter is about the genealogy of the

diary. The second is devoted to critical appreciation of Cadernos de Lanzarote. Generic

transgressions, the authorship voices are considered in the third chapter. The purpose of this paper is to discuss how, as opposed to traditional journals, the self-referential work of Portuguese writer is public, not private, with particular characteristics regarding gender paradigms.

To achieve this purpose, the dissertation seeks to provide a more detailed theoretical presentation of the diary, contemplating it from its origin - there were about 3,000 BC, concomitantly with the invention of writing - until nowadays, when it occurs the revolution brought by Web 2.0 I the self-referential writing.

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1. A GENEALOGIA DO DIÁRIO

Um dia sem escrita parece um dia perdido ou criminosamente abortado, um dever omitido, uma vocação traída.

Zygmunt Bauman

No percurso histórico do gênero diarístico, os primeiros representantes da prática se perderam, em virtude da precariedade dos suportes que os abarcaram até a industrialização e democratização do papel. Todavia, segundo Philippe Lejeune (2008), é possível vislumbrar seu modelo estrutural nos primeiros livros de contabilidade (livres de raison), existentes já entre os antigos egípcios, posto que ambos sejam meios de controlar o tempo, como asseveraria o teórico francês cotejando os livros de contabilidade do banqueiro Jucundus (20-62 d.C.), encontrados em Pompeia, com os diários de Catherine Pozzi (1882- 1934) e Johann Heuchel (?) (2008, p. 261). Para Lejeune1:

O formato do livro de contabilidade provavelmente serviu como inspiração ou modelo aos diários menos financeiros e mais pessoais que as pessoas mantinham de

suas outras “propriedades” na era moderna. No século XIV, o primeiro “livro de família” dos comerciantes florentinos eram provenientes de seus livros de

contabilidade, os quais são a origem do que conhecemos como “livres de raison” (o

termo latino ratio significa “contabilidade”). Alguns diários religiosos escritos por

garotas, no século XIX, eram organizados em colunas como os livros de contabilidade. Elas usavam uma página para cada semana, uma linha para cada dia, com duas colunas, um “V” marcado para as vitórias (sobre o Demônio), um “D”

marcado para as derrotas, com o total de uma e outra ao rodapé da página. No início do século XIX, Marc-Antoine Jullien sugeriu que os jovens deveriam gerenciar suas vidas usando do mesmo modo um sistema comercial. E quantas pessoas, até hoje, ainda mantém seus diários pessoais em livros razão ou agendas? (LEJEUNE, 2009, p. 51)

Cinthia Gannett (1992), em conformidade com outros teóricos, aponta quatro

protodiários ou pré-diários2, termos aventados por Robert A. Fothergill (apud, GANNETT,

1

“The form of the account book probably acted as an inspiration or model for the less financial and more personal journals that people began keeping of their other “properties” in the modern era. In the fourteenth century, the first “family books” of the Florentine merchants were an offshoot of their account books. That is the origin of what are known as “livres de raison” (the Latin ratiomeaning “account”). Some religious journals kept

by girls in the nineteenth century are laid out in columns like account books. They used one page for each week,

one line for each day with two columns, one marked “V” for victories (over the Devil) and the other marked “D”

for defeats, with the total at the bottom. In the early nineteenth century, Marc-Antoine Jullien1 suggested that young people should manage their daily lives using a commercial system. And how many people, even today, still keep their personal diaries in ledgers or datebooks?” (LEJEUNE, 2009, p. 51).

2 Nesta dissertação, o termo

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1992), como indicadores da origem plural do gênero: diário público; diário de viagem; diário de notas (ou bloco de notas), no qual se reuniam anotações atinentes ao conhecimento, amplamente considerado, para auxiliar a prática de estudo e o desenvolvimento intelectual; e diário de consciência ou espiritual. Atualmente, os diários integram combinações dessas atividades pré-diarísticas tradicionais, as quais, a partir da modernidade, evoluiriam para copiosas novas vertentes, contudo sem nunca se dirimirem (GANNETT, 1992, p. 105).

Os volumes de Cadernos de Lanzarote, de José Saramago, são representativos dessa fusão, pois, afora terem incluído em si as quatro matrizes aludidas, transcenderam-nas por meio de outras áreas de observação igualmente agregadas a esse gênero de livre reflexão e indômita composição formal. A entrada a seguir, relativa ao dia 27 de Janeiro de 1996, na qual Pilar del Río (1950), e não Saramago, registra as experiências iniciais da viagem realizada com o autor para o Brasil, revela traços de uma das vertentes primordiais referidas, o

diário de viagem, além de já assinalar certa transgressão quanto ao gênero, em razão de

Saramago compartilhar, ipsis litteris, o próprio diário com outrem. Conquanto o gênero tenha surgido de experiências coletivas, na contemporaneidade, semelhante abertura só se tornou recorrente posteriormente, por volta do final dos anos de 1990, com o advento dos diários virtuais ou blogs:

Diário de viagem de Pilar:

De noites doces todos temos experiências. Agora, noites doces propriamente ditas, sem metáforas nem segundos sentidos, não devem ser tão frequentes assim, uma vez que nem toda a gente adormece com um bombom na boca. O sonífero que tinha tomado para suportar com certa dignidade o peso do avião foi tão eficaz que nem me deixou acabar o bombom que uma hospedeira havia oferecido. Despertei várias vezes quando as turbulências faziam galopar o avião, mas, como tinha o cérebro anestesiado, nem senti pavor nem provoquei o pânico colectivo tantas vezes temido pelo pessoal de voo que teve a desgraça de encontrar-me como passageira. Sem consciência de perigo, sem nenhuma classe de consciência, o corpo todo saboreava o chocolate, uma volta na boca e outra vez a dormir, até ao seguinte solavanco aéreo, um leve despertar, um novo saborear, e assim toda a noite. Nunca um bombom durou tanto nem uma noite foi tão doce. Propriamente falando. (SARAMAGO, 1999, p. 35)

Os diários públicos (public journals) correspondem à origem mais remota do gênero, sendo tão antigos quanto à própria escrita. De acordo com Gannett (1992), placas de argila, localizadas na Suméria, datam aproximadamente de 3000 a.C. (1992, p. 108). Os public

journals eram instrumentos de organização, sobretudo financeira, da vida cotidiana, por isso

estavam relacionados em particular às anotações de receitas e despesas. Além do livre de

raison, compreendiam listas de racionamento, contas domésticas (entre os romanos,

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campanhas militares e expedições científicas, listas de nomes de divindades, listas de tributos e transações, crônicas familiares, históricas e políticas.

Vislumbram-se resquícios do diário público também em Cadernos de Lanzarote, principalmente na ocasião em que o autor registra dados precisos atinentes às vendagens de suas obras, fazendo uma espécie de balanço entre as várias edições de trabalhos aclamados pelo público, além de divulgá-los a leitores que eventualmente os desconheçam, sobretudo no que concerne aos títulos mais antigos, como Memorial do Convento (2013), publicado pela primeira vez em 1982: “Chegou uma cópia da segunda edição de In Nomine Dei. Mais cinco mil exemplares, que se vão juntar aos dez mil da edição inicial.” (SARAMAGO, 1998a, p.

16).

Diaristas contemporâneos a José Saramago, como Susan Sontag (1933-2004), valeram-se mais sistematicamente da herança dos diários públicos para planejar o cotidiano de maneira satisfatória: a diarista, afora listas de livros a serem comprados (e lidos) ou hábitos a serem evitados (a arrogância, por exemplo), registrava quando deveria lavar o cabelo, bem como entradas para lembrá-la de se assear com regularidade. Semelhante a um livro de contabilidade, Sontag realizava a posteriori um acerto de contas, incorporando às entradas antigas comentários mais recentes, com o propósito de atestar para si se as atividades planejadas haviam sido concretizadas.

Experimentos + exercícios

1. mascar

2. sentir texturas, objetos

3. controlar os ombros (baixando os ombros) 4. descruzar as pernas

5. respirar mais fundo

6. não tocar tanto na minha cara

7. banho todo dia (já tive grande progresso nos últimos seis meses)

8. Cuidado com a arrogância da noite de terça-feira—irritabilidade—depressão. É

o Jacob [Taubes]. [Ele é] substituto de P[hilip] + o seminário. Para mim, dar aula é masturbação intelectual. (SONTAG, 2009, p. 317-318)

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registros emocionantes que oscilam entre sentimentos conflitantes, como a coragem e o desespero (1992, p. 108).

Já no século XVII, na Europa, o diário de viagem desempenhou papel importante na educação de jovens rapazes (gentlemen), o que significa igualmente que as mulheres permaneceram afugentadas da prática ainda por mais alguns séculos, contrariando a ideia geral, empregada pejorativamente, de que o gênero é em essência uma atividade feminina. Conforme Fothergill (1974), o diário de viagem atuou como “rito de passagem”, isto é,

exercício de observação e reflexão que tencionava preparar exclusivamente os homens para

exercer uma “vida racionalmente ordenada”. Como exemplo, o teórico inglês cita Francis

Bacon (1561-1626), que, no ensaio Of Travel (2010), apresentou recomendações aos jovens viajantes sobre como empregar adequadamente os diários para desenvolverem hábitos que incluíssem a observação, a descrição e a reflexão, segundo Bacon, fundamentais ao desenvolvimento da racionalidade (FOTHERGILL, 1974, p. 15). Gannett (1992) acrescenta que o diário de viagem passou a ser largamente praticado desde então e alcançou notável popularidade no século XXI: o diário moderno, conquanto exceda os limites de sua origem multímoda (GANNETT, 1992, p. 105), é justamente uma espécie de combinação e recombinação dos protodiários que o precederam historicamente. Cadernos de Lanzarote legitima a referida assertiva, como já observado, por incorporar o diário de viagem às entradas, como demonstra o fragmento do Diário IV (1999), de José Saramago, no qual Pilar del Río comenta a respeito de Brasília:

Encontrámos a algazarra brasileira, mil músicas sobrepondo-se umas às outras, gente conversando em todos os tons possíveis, e todos acima da média, crianças correndo entre as mesas, criados simpáticos e de pouca memória, pessoas tomando sol de qualquer modo e feitio, outras fazendo desporto de manutenção ou exibição de músculo, ou simplesmente entretidas com a algaravia geral, ou contemplando um lago que parecia ter nascido com o mundo. Logo soube que é fruto da imaginação e do trabalho dos homens, que desviaram dois rios para que se pudessem produzir cenas bucólicas como estas. (SARAMAGO, 1999, p. 35-36)

Cronologicamente, a terceira vertente do gênero diz respeito ao livro de notas

(commonplace book). Associados principalmente à criação e aos estudos de maneira geral

(self-study), as anotações revelam apontamentos sobre diversos assuntos, tais como

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Na ocasião em que surgiram, os commonplace books foram essenciais ao trabalho acadêmico, em consequência de que os livros impressos, fundamentais às atividades especulativas, apenas recentemente deixaram de ser raros e dispendiosos (GANNETT, 1992, p. 109). Além de informações recolhidas em bibliotecas, geralmente particulares e pouco acessíveis naquela época, os adeptos da prática registravam ideias e pensamentos. O diário de notas (bloco ou livro de notas) ainda hoje é empregado com função similar entre estudantes e intelectuais. Na atualidade, todavia, às entradas com esta finalidade acrescentam-se outras de ordem diversa, as quais tanto podem resgatar as funções de outros protodiários, como também servir às novas necessidades do diarista e seu tempo, reiterando a ideia central deste subcapítulo: o diário moderno, representado nesta dissertação por Cadernos de Lanzarote, ainda dialoga com a tradição do gênero.

Bertolt Brecht (1898-1956), Frida Kahlo (1907-1954), Jack Kerouac (1922-1969), José Saramago (1922-2010), Katherine Mansfield (1888-1923), Lima Barreto (1881-1922), Virginia Woolf (1882-1941), entre outras personalidades literárias, beneficiaram-se mais intensamente deste último protodiário, conciliando-o às entradas com o intuito de estabelecer um espaço regular de reflexão e experimentação desprendidas, que proporcionasse o desenvolvimento intelecto-criativo de ideias ainda elementares. À exceção de Saramago, os diaristas aludidos tiveram os respectivos diários publicados postumamente, o que pode ter contribuído (ou gerado a ilusão) para que os comentários neles consumados se revelassem mais autênticos, ou até mesmo mais sinceros, em comparação a diários planejados para a publicação. Contudo essa particularidade será avaliada mais adequadamente durante a análise

do corpus, uma vez que ela entrevê discussões complexas quanto à ausência de destinador

diverso do próprio diarista, sugerida pelo gênero em sua modalidade autêntica.

Os commonplace books também estão presentes em Cadernos de Lanzarote, sobretudo

no que tange a esboços preliminares de trabalhos crítico-literários. Similares aos antigos

hypomnemata, a variedade do conteúdo, assim como da forma, é tão legítima quanto os

demais gêneros (crônica, conto, romance, drama, poema) que abrigaram a produção intelectual e criativa de José Saramago:

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O autor usou os diários de notas não somente para auxiliá-lo a escrever Ensaio sobre a

Cegueira (1995), ruminando a respeito de aspectos formais intrincados do romance, ou

publicar, por intermédio de várias entradas, O conto burocrático do capitão do porto e do

director da alfândega (SARAMAGO, 1999, p. 13-18), mas também para apresentar ideias

sobre política, vida, memória, morte e outros tópicos intimamente concatenados ao seu grande tema, a Literatura - esta vista por vieses multifacetados. Ela é centralizadora dos demais temas contemplados em Cadernos de Lanzarote, posto que as experiências de vida (viagens, amizades, perdas, congressos) do autor apareçam conjugadas ao ofício de escritor. O fragmento a seguir, por exemplo, leva à discussão a ideia que Saramago defendia quanto à figura do narrador. Para ele, o autor é o único que exerce função narrativa real na obra de ficção, de modo que na entrada relativa ao dia 7 de Fevereiro de 1995, o diarista registra algumas considerações, a fim de consubstanciar sua visão polêmica quanto a esse tradicional elemento narrativo:

[...] alguns professores de Letras, em geral, e de Teoria da Literatura, em particular, têm acolhido com simpatia – mas sem que se deixem abalar nas suas certezas

científicas – a minha ousada afirmação de que a figura do Narrador não existe, e de

que só o Autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja: romance, conto ou teatro. E quando (indo procurar auxílio a uma duvidosa, ou pelo menos problemática, correspondência das artes) me atrevo a observar que entre um quadro e a pessoa que o contempla não há outra mediação que não seja a do pintor, e que não é possível localizar uma figura de narrador na Guernica ou na Ronda da Noite, responderam-me que, sendo as artes distintas, distintas também teriam de ser as regras que as definem e as leis que as governam. Esta resposta parece querer ignorar o facto, a meu ver fundamental, de que não há, objectivamente, nenhuma essencial diferença entre a mão que encaminha o pincel ou o vaporizador sobre o suporte e a mão que desenha as letras no papel ou as faz aparecer no mostrador do computador, que uma e outra são, com adestramento e eficácia semelhantes, prolongamentos de um cérebro e de uma consciência, mãos que são, uma e outra, ferramentas mecânicas e sensitivas capazes de composições e ordenações, sem mais barreiras ou intermediários que os da fisiologia e da psicologia. (SARAMAGO, 1998a, p. 476-477)

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conselheiro espiritual, o diário se apresentava como mediador direto entre criatura e criador e,

a posteriori, do ser humano frente a si mesmo.

Eis uma coisa a observar para se ter a certeza de não pecar. Que cada um de nós note e escreva as acções e os movimentos da nossa alma, como que para no-los dar naturalmente a conhecer e que estejamos certos que, por vergonha de sermos conhecidos, deixaremos de pecar e de trazer no coração o que quer que seja de perverso. Pois quem consente ser visto quando peca, e após ter pecado, não prefere mentir para ocultar a sua falta? Não fornicaríamos diante de testemunhas. Do mesmo modo, escrevendo os nossos pensamentos como se os tivéssemos de comunicar naturalmente, melhor nos defenderemos dos pensamentos impuros por vergonha de os termos conhecido. Que a escrita tome o lugar dos companheiros de ascese: de tanto enrubescermos por escrever como por sermos vistos, abstenhamo-nos de todo o mau pensamento. Disciplinando-os dessa forma, poderemos reduzir o corpo à servidão e frustrar as astúcias do inimigo. (ANASTÁCIO, apud FOUCAULT, 2009, p. 129-130)

Contudo a Igreja Católica se antagonizou a essa atividade autônoma de reflexão até o final do século XVIII, o que justifica o desenvolvimento tardio do gênero em regiões europeias onde o catolicismo foi adotado como religião oficial. Na América do Norte, por outro lado, os diários espirituais, essencialmente protestantes, assim como os diários de viagem, constituem a manifestação literária mais arcaica do continente. Ambos os protodiários correspondem aos primeiros registros escritos consumados em terras americanas, firmando as origens de uma tradição que se mantém até os dias de hoje. Na América do Sul, ao menos no Brasil, as epístolas equivalem aos primeiros textos escritos no país, as quais, de certo modo, também podem ser consideradas protodiários, pois que ambos os gêneros tenham se entrecruzado intimamente, deixando contribuições importantes principalmente para o gênero diarístico.

Tendo em consideração os protodiários, verifica-se que os primeiros registros escritos alusivos à vida do eu já existiam na Antiguidade, embora ainda não houvesse o costume de se manter diários com uma atividade regular. Afinal, segundo Alexandra Johnson (2011), o

“instinto de registrar a vida e os pensamentos diariamente é tão antigo quanto à escrita.

Algumas formas de diários sobrevivem esculpidas em cuneiforme, outras pintadas à mão em hieróglifos, assim como gravadas em tábuas de madeira. A história dos diários é a história da própria consciência.” (JOHNSON, 2011, p. 17) 3.

A partir de trabalho de Philippe Lejeune parcialmente inédito no Brasil, On Diary (2009), serão apresentados alguns exemplos de protodiários, assim como o período em que

3

“The Instinct to record daily life and thoughts is as ancient as handwriting. Some forms of diaries survive

chiseled in cuneiform. Hand painted in hieroglyphs. Etched on wooden tablets. The history of diaries is the

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foram praticados mais intensamente, com vistas a delimitar o surgimento de uma vertente e outra, além de prosseguir com o percurso histórico da genealogia do gênero pretendido neste subcapítulo. O decurso chegará até o século XXI, em razão de que José Saramago, afora a própria tradição, também experimentou outras facetas do gênero em Cadernos de Lanzarote, de modo que os diários saramaguianos, longe de serem íntimos, figuram uma miscelânea de tendências e motivos, como os hypomnemata:

Por mais pessoais que sejam, estes hypomnemata não devem porém ser entendidos como diários íntimos, ou como aqueles relatos de experiências espirituais (tentações, lutas, fracassos e vitórias) que poderão ser encontrados na literatura cristã ulterior. Não constituem uma “narrativa de si mesmo”; não têm por objetivo trazer à luz do

dia as arcana conscientiae cuja confissão – oral ou escrita – possui valor de purificação. O movimento que visam efectuar é inverso desse: trata-se, não de perseguir o indizível, não de revelar o que está oculto, mas, pelo contrário, de captar o já dito; reunir aquilo que pôde ouvir ou ler, e isto com uma finalidade que não é nada menos que a constituição de si. (FOUCAULT, 2009, p. 137)

Philippe Lejeune (2009) acrescenta que os registros civis também são representativos

dos diários públicos, portanto protodiários nos quais a sociedade historicamente tem

assentado os fatos mais íntimos de seus membros, tais como nascimentos, casamentos e mortes. Para o teórico, bem como para Gannett, práticas como essa foram basilares para o gênero, posto que já demonstrassem o interesse em registrar, através da escrita, a vida do eu. Já existentes na Antiguidade, entre egípcios e romanos, os registros civis desapareceram durante a Idade Média, contudo foram reestabelecidos na França em 1539, de modo que, até o século XVI, o gênero diarístico foi fundamentalmente utilizado para versar sobre “assuntos da

comunidade” (community affair) (2009, p. 52). Por essa razão, justifica-se igualmente a classificação public diaries atribuída à prática naquele momento.

Em Cadernos de Lanzarote, entreveem-se entradas similares aos registros civis,

quando Saramago dedica algumas notas à memória de colegas de profissão que morreram na ocasião em que o autor escrevia os diários: as entradas se assemelham a obituários:

Sempre se morre demasiado cedo. Miguel Torga sai do mundo aos 87 anos, depois de uma longa e dolorosa doença. [...] Achava que havia em Torga algo que eu gostaria de ter, e não tinha: o direito ganho por uma obra com uma dimensão em todos os sentidos fora do comum, a música profunda de uma sabedoria que nascera da vida e que à vida voltava, para se tornarem, ambas, mais ricas e generosas. Que Torga não era generoso, dizem-me. Mas eu falo de outra generosidade, a que se estranha nesse movimento vaivém que em raríssimos casos une o homem à sua terra e a terra toda ao homem. (SARAMAGO, 1998a, p. 459-460)

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(commentaria), as quais contemplavam eventos domésticos de menor importância. As anotações eram realizadas singularmente por secretários os quais se concentravam em contabilizar (account books) os ganhos ou as perdas das propriedades de seus patrões. Da mesma forma, apontavam paralelamente quais haviam sido os acontecimentos expressivos relativos à vida familiar (chronicles), assim como ao seu entorno, abrangendo sobretudo a política local. As referências ao período aludido são principalmente literárias, porque, devido aos suportes perecíveis, poucos protodiários romanos foram encontrados. (LEJEUNE, 2009, p. 52).

Como observa Lejeune, em Satíricon (2008), obra ficcional escrita em torno dos anos 62 e 66 d.C, Petrônio (27 d.C. – 66 d.C.) deixa entrever as práticas remotas mencionadas

quando um secretário lê para personagem Trimalquião os principais episódios ocorridos em seus domínios:

Mas quem interrompeu todo aquele entusiasmo de dançar foi um secretário, que leu em voz alta como se fosse o Diáriode Roma:

“Sétimo dia antes das calendas de sextiles: na propriedade de Cumas, que é de

Trimalquião, nasceram trinta meninos e quarenta meninas; no terreiro onde foram batidos, foram recolhidos ao celeiro quinhentos mil módios de trigo; foram amansados quinhentos bois. No mesmo dia: o escravo Mitridates foi pregado na cruz por ter falado mal do gênio de nosso Gaio. No mesmo dia: dez milhões de sestércios foram recolhidos ao cofre pois não puderam ser aplicados. No mesmo dia: nos jardins de Pompeu ocorreu um incêndio que teve início na casa do administrador

Nasta.”. (PETRÔNIO, 2008, p. 72)

No fragmento, o narrador também relaciona a mixórdia entre crônica familiar e livro de contabilidade ao Diário de Roma (conhecido igualmente pelos nomes Vrbis Acta; Acta

Populi; Acta Diurna; Publica, Vrbana). Imprensa local organizada por Júlio César (100 a.C. –

44 a.C.), o Diário de Roma tinha o objetivo de divulgar os acontecimentos públicos mais significativos do Império Romano à população, tais como conquistas territoriais, crimes e leis, além de eventos alusivos à vida cotidiana (AQUATI, 2008, p. 72). Lejeune acrescenta que os romanos preservavam registros sobre os diversos setores da vida pública: registros civis, atas de eleições, atas militares, apontamentos de viagens, no entanto ainda se desconhece qual o suporte e de que maneira ele era utilizado a fim de fazer as notícias chegarem aos habitantes (LEJEUNE, 2009, p. 52).

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verifica-se que o registro é feito na presença dos convidados, e não secretamente, além de envolver um incidente coletivo. Na Antiguidade, não havia protodiários plenamente íntimos ou sigilosos por meio dos quais se registrassem as impressões de mundo mais recônditas do eu. Conforme Lejeune, a origem do gênero é de caráter essencialmente coletivo e público. Progressivamente, concatenados às transformações de cada época, os diários se dirigiriam do mesmo modo às esferas privada, individual, bem como a mais secreta intimidade (2008, p. 261).

[...] o rapaz despencou em cima de Trimalquião. Foi berreiro de todos os escravos, e não menos dos convidados, não por causa de um homem tão insuportável cujo pescoço quebrado veriam com prazer, mas porque o jantar acabaria mal: eles teriam um morto alheio para chorar, sem necessidade. Os médicos acorreram, pois o próprio Trimalquião carregava nos gemidos e se deitava sobre o braço como se o tivesse quebrado; [...] Quanto ao rapaz que caíra, ele se arrastava já há algum tempo aos nossos pés, pedindo perdão. Para mim aquilo era péssimo, pois eu desconfiava que, por meio de alguma palhaçada, aquelas súplicas estivessem preparando um desfecho teatral. [...]

— Bem – disse Trimalquião -, não convém que esta ocasião passe sem guardar uma

lembrança escrita.

Pediu imediatamente tabuinhas para escrever e, sem grandes reflexões, recitou as seguintes elucubrações:

O que não esperas acontece pelas costas/ e, acima de nós, Fortuna cuida de seus afazeres./ Portanto, dá-nos vinhos falernos, ó escravo! (PETRÔNIO, 2008, p. 74-75)

À vista disso, Lejeune entende que não existiam apontamentos individualizados quanto à realidade ou ao eu na Antiguidade, assim como na Idade Média, pois os registros envolviam não a vida de quem verdadeiramente os escrevia, mas a de um grupo de pessoas sendo conscientemente observadas por um subordinado, posto que os secretários fossem escravos. Além disso, os diários serviam a um propósito prático: a manutenção e a organização da vida em sociedade. Eles regulavam atividades comuns ao coletivo, como a religião, a política e a economia. Até mesmo as crônicas familiares são acentuadas pela objetividade em relação aos episódios descritos. Os diários começaram a ser reformulados somente a partir de mudanças epistemológicas que acompanharam a Renascença e a Reforma Religiosa, embora o caráter público do gênero, assim como a função de manutenção da vida cotidiana, tenha permanecido (GANNETT, 1992, p. 148). A discrição, comumente associada ao gênero hoje, foi adquirida somente alguns séculos mais tarde.

(19)

Como lembra Lejeune, desde o século VI a.C., por obra de Pitágoras (570 a.C. - 495 a.C.), Golden Verses (2007), já havia exercícios autorreflexivos, não obstante serem exclusivamente mentais; ou ainda, graças a Sócrates (469 a.C. – 399 a.C.), corporizados por

intermédio de diálogos estabelecidos diretamente com o outro. Logo a autorreflexão já existia, porém ainda não estava relacionada à escrita. Como se deixou ver, tais exercícios essencialmente escritos apenas se tornaram possíveis por meio dos protodiários espirituais a partir do século XVII. Assim sendo a epístola foi um dos primeiros gêneros exclusivamente escritos com o qual se pôde atingir certo grau de consciência quanto a si, mesmo quando se alegava dissimuladamente apenas dialogar com o destinatário. Por essa razão, há manifestas relações entre ambos os gêneros, de modo que elas foram imprescindíveis aos diários, contribuindo, assim como os protodiários espirituais, com o aspecto privativo adquirido pelo gênero, além do diálogo direcionado a si como o outro.

Lejeune localizou correspondências, a partir do século XVIII, nas quais a remetente, Manon Phlippon (?), afirmava que suas cartas, endereçadas à amiga Sophie Cannet (?), eram um pretexto para pensar sobre si mesma, visto que escrevê-las diretamente a si, como nos diários, seria algo próximo da loucura: “Não se sinta tão presunçosa por ter notícias minhas

com tanta frequência. Não estou escrevendo para você, embora eu esteja escrevendo para

você [...]” (PHLIPPON, apud LEJEUNE, 2009, p. 95) 4.

Os limites entre o diário moderno e a epístola são difíceis de estabelecer, porque ambos dividem harmoniosamente o espaço das entradas, permutando as funções de um pelo outro: José Saramago amiúde acrescia às entradas cartas de leitores, assim como de outros escritores (principalmente Jorge Amado), para divulgá-las, em sinal de agradecimento ou indignação, mas principalmente para respondê-las, de modo que os diários serviam ao autor como canal de interlocução explícito, consequentemente agregando a si a função de correspondência direta com outrem, tal como nas epístolas. As cartas também serviram como motivos para reflexão, sobretudo a respeito de obras publicadas pelo autor: críticas positivas ou negativas suscitavam a oportunidade de repensar personagens e enredos, bem como defendê-los, quando Saramago julgava incoerente a apreciação de seus leitores especializados ou não. A publicação de Cadernos de Lanzarote permitiu ao autor não somente sair em defesa de romances polêmicos, como O Evangelho segundo Jesus Cristo (2005), duramente criticado

4

(20)

em cartas de leitores, não pelo caráter artístico da obra, contudo por questões meramente ideológicas, mas também se dirigir aos críticos na ocasião da publicação de Diário I (1998a), o qual foi aclamado unicamente como expressão de narcisismo do autor.

Esta carta também vem pedir-me que escreva um livro. A diferença, em relação a outras, percebi-a eu subitamente quando, ao terminar a leitura, me senti como se tivesse a irrecusável obrigação de o escrever, como se algum dia houvesse assumido esse compromisso e a carta estivesse a perdir-me contas da falta de cumprimento da minha palavra. A história é, simplesmente, a de um homem que já morreu. Dele dizem-me que era «magro, alegre, cínico, feroz, poeta», que quem o conheceu não o esquecerá nunca. Que a sua vida foi bela. Dizem-me também: «Alguém teria de contar isto. Você saberia, que acha? Como se faz um livro? Como se recria um personagem? Existe? Inventa-se? Ou pega-se em pequenos nadas de outras gentes e faz-se nascer um príncipe?» E mais: «Assim, esta vida ficaria a boiar no tempo, como a sua Jangada de Pedra, um outro Cristo evangelizador caseiro, sem as empolgantes subidas aos céus do catecismo.» E sugere: que se eu me decidisse a escrever o livro, se ele fosse um êxito, se ganhasse dinheiro, poderia dar alguma coisa à família necessitada... Termina dizendo: «Esta minha ideia é louca, mas não tenho outra – grande – de lembrar e homenagear o meu Amigo. Não sei escrever,

não tenho dinheiro, não sei esculpir nem pintar a dor e o vácuo. »

Li a carta com um nó na garganta e quase não acreditava no que lia. Como é que se pode esperar tanto de uma pessoa, esta, ainda por cima com a inconfessada esperança de ser atendido? Claro que não farei esse livro (e como o faria eu?), mas sei que vou viver por uns tempos com o remorso absurdo de não o ter escrito e de ser a causa inocente de uma decepção sem remédio. Inocente porque estou sem culpa, mas então porquê esta impressão angustiosa de ter faltado a um dever? (SARAMAGO, 1998a, p. 195-197)

Antes do Renascimento, as atividades realizadas no âmbito familiar e social eram praticadas com vistas a aprazer exclusivamente o divino, uma vez que a autossatisfação do eu não era considerada legítima. Nesta atmosfera intelectual, acentuada pelo teocentrismo, era impensável que homens e mulheres, entre suas ocupações, incluíssem o hábito de registrar eventos ou reflexões sobre si mesmos, salvo se as mesmas apresentassem fins religiosos, sobretudo de contenção do mal, o que também só se tornou possível por volta do século XVII, na Europa, em consequência do protestantismo. Anteriormente ao Humanismo Renascentista, pensava-se que cada indivíduo fosse apenas mais um representante de uma humanidade essencialmente comum, o qual se distinguia de seus vizinhos apenas por suas ações externas, empreendidas para aumentar a glória de Deus, e não a si mesmo (DOBBS, 1974, p. 18).

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Uma das figuras mais representativas desse período é Sei Shônagon (966 d.C. - 1017), que, em O Livro do Travesseiro (2013), registrou apreciações diversas sobre pessoas (algumas ilustres, como a Consorte Imperial Teishi (1013-1094), de quem era dama de companhia no Palácio Imperial); hábitos correntes (vestimentas, cores preciosas: roxo e suas matizes, relações entre homens e mulheres, datas comemorativas); religião (ritos budistas); lugares (jardins, paisagens); além de deixar ver, por meio de suas crônicas diárias, uma sociedade intensamente hierarquizada na qual as lutas por poder e mobilidade social eram constantes.

Para encontros secretos de amantes, no verão é mais agradável. Como a noite é muito curta, a manhã chega sem termos dormido nada. Todos os recintos permanecem abertos dando uma sensação de frescor. Como sempre resta algo a falar, ficamos em confidências e é excitante que um corvo a sobrevoar grasnando alto dê a impressão de estarmos sendo observados.

Ou ainda, no frio intenso de noites de inverno, é agradável estar com uma pessoa amada, encolhidos sob as cobertas, e ouvir o grave som de um sino que parece vir das profundezas. (SHÔNAGON, 2013, p. 153)

Os fragmentos não são datados, o que os prende a uma espécie de “eterno presente”,

como comenta Philippe Lejeune quanto às igualmente não datadas Meditações (1995), de Marco Aurélio (121 d.C.- 180 d.C.). As anotações de Sei Shônagon são caracterizadas por liberdade de forma e conteúdo: a autora não só registrou aquilo que fosse captado pelos seus sentidos, mas igualmente julgou e criticou o que estivesse em inconsonância com sua cultura e posição social privilegiada.

Em razão dos nomes abertamente citados, bem como dos detalhes da exposição, essas folhas avulsas eram secretas, conquanto tenham sido encontradas e divulgadas publicamente ainda em vida da autora, o que não a impediu de continuar com os relatos pessoais, interrompendo-os apenas após a morte da Consorte Imperial Teishi (WAKISAKA; CORDARO, 2013, p. 11). A seguir, Shônagon, além de anotar aquilo que deveria ser

“desprezado”, revela o caráter essencialmente sigiloso dos de seus comentários:

Coisas que são desprezadas. Pessoas feias e de mau caráter. Cola de arroz cozido apodrecida. São coisas que todas as pessoas evitam, mas nem por isso vou deixar de registrá-las. Elas existem no mundo, como ainda a remanescente tenaz de bambu no cerimonial fúnebre. Esta brochura não foi escrita para as pessoas lerem e eu me propus a nela anotar inclusive as coisas estranhas e detestadas. (SHÔNAGON, 2013, p. 273)

(22)

os primeiros diários destituídos de anotações em particular históricas foram escritos por mulheres da corte japonesa durante o século X. Embora não fosse uma atividade apenas feminina, já que havia exemplos análogos mantidos por homens, as mulheres deixaram entrever certa expressão pessoal que, além da própria realidade externa, explorava subjetivamente fantasias e ficções. Como o diário moderno, as entradas dos diários japoneses eram realizadas de acordo com aquilo que Rainer chama de “calendário interno”, isto é,

anotações alinhadas aos sentimentos e necessidades do diarista, e não à obrigação da constância: ainda segundo Rainer, um clássico diário japonês continha apenas uma entrada a cada sete anos (RAINER, 2004, p. 5).

Na China, o sigilo da escrita diarística feminina era intensificado por meio de uma linguagem secreta – o nushu, cujo significado é “escrita de mulher” – conhecida apenas pelas

mulheres: “Ao longo dos séculos, os diaristas têm feito notáveis esforços para garantir a

própria privacidade. Há um milênio, na região oeste da província de Hunan, China, as mulheres têm escrito em Nushu, uma linguagem secreta de diário conhecida apenas por elas.”

(JOHNSON, 2001, p. 56) 5.

O nushu não era uma língua, porém uma maneira distinta, incompreensível aos

homens, de se escrever o mandarim. Há poucos registros neste código, porque os manuscritos foram queimados ou enterrados com as diaristas. A última mulher que lia e escrevia em

nushu, Yang Huanyi (1909-2004), morreu no ano de 2004. No entanto, em 1999, lançou-se o

documentário Nushu: a Hidden Language of Women in China (1999), de Yue-Qing Yang, o qual, com a contribuição de Yang Huanyi, trouxe à luz o papel de resistência desempenhado por esse código de escrita do eu na vida de mulheres subjugadas pela dominação masculina; função ainda reconhecível em outras épocas entre várias escritoras diaristas, como Fanny Burney (1752-1840), Dorothy Wordsworth (1771-1855), Sofia Tolstói (1844-1919), Virginia Woolf (1882-1941), Katherine Mansfield (1888-1923), Anaïs Nin (1903–1977), Simone de

Beauvoir (1908-1986), Sylvia Plath (1932–1963) e Susan Sontag (1933-2004).

Um dos primeiros protodiários de viagem preservados, segundo Alexandra Johnson (2011), também foi escrito por um chinês, Li Ao (?), entre os séculos XI e XII.

Li Ao viajaria 2.500 milhas em seis meses. A última parada: o exílio da remota Kuang Prefecture. No momento em que chegou ao sul da China, ele deixaria ao mundo o primeiro diário de viagem preservado do mundo, Diário de minha vinda para o sul. Enquanto existem fragmentos de antigos relatos de viagem - o Boudeaux

5

“Over the centuries, diarists have gone to great lengths to ensure privacy. For a millennium in the western region of China’s Hunan province, women have written in Nushu, a secret diary language known only to them.”

(23)

Pilgrim deixou o primeiro relato de viagem cristã da Terra Santa, em 333 d.C. - o diário de Li Ao antecipa a onda de registos de viagens e diários que tiveram sua verdadeira origem nos séculos XI e XII. (JOHNSON, 2011, p. 35-36) 6

Ásia e Europa exibem notáveis diferenças no que diz respeito ao florescimento do gênero diarístico, visto que, enquanto alguns países, como a França, mantiveram-se resistentes a ele até o século XVIII, sobretudo por influência e controle da Igreja Católica; no Japão e na China, por outro lado, ele já era trivial desde o século X. No entanto o episódio não revela maior acessibilidade das mulheres à zona de influência cultural na Ásia, como se poderia supor, já que os diários foram por séculos a única possibilidade de expressão feminina no continente. Composições relativas a outras formas literárias lhes foram censuradas, assim como no Ocidente (GANNETT, 1992, p. 125).

O desenvolvimento do gênero foi irregular mesmo dentro do território europeu: a França esteve por mais de um século obsoleta quanto ao desenvolvimento dos protodiários, assim como dos diários mais modernos, em relação a países como Alemanha e Inglaterra. Lejeune observa que não localizou protodiários espirituais publicados durante o período clássico, que compreende os séculos XVI e XVII, em bibliotecas francesas (LEJEUNE, 2009, p. 62).

Além da mentalidade e interesses da época, a privacidade também era incompatível em consequência das circunstâncias de escrita existentes até a segunda metade da Idade Média no Ocidente. Leitura e escrita eram práticas principalmente orais desde a Antiguidade, considerando que os chefes de família romanos ditavam aos secretários o que deveria ser registrado nos diários públicos. A leitura silenciosa se tornaria possível somente por intermédio dos manuscritos (LEJEUNE, 2009, p. 57).

Brian Dobbs (1974) informa que, no século XIV, na Irlanda, os manuscritos também serviram como suporte a diários rudimentares escritos em gaélico. Escribas eram contratados por patronos ou instituições eclesiásticas para copiar, em manuscritos, obras originais. Contudo, segundo o teórico, embora o corpo do texto pertencesse àqueles que pagassem pelo trabalho, alguns escribas compreendiam que as margens do texto lhes cabiam, de modo que acresciam a elas anotações pessoais, principalmente queixas: “William Magfindgaill escreveu

6

“Li Ao would travel 2,500 miles in six months, the last stop in exile in remote Kuang Prefecture. By the time he arrived in southern China, he’d leave the world’s first surviving travel diary, Diary of My Coming to the South.

While fragments of earlier travel accounts exist – the Boudeaux Pilgrim left the first Christian travel account of

the Holy Land in AD 333- Li Ao’s diary anticipates the flurry of travel logs and journals that had their true

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[...] é um grande tormento manter-se apenas com água na sexta-feira da Paixão, com o excelente vinho que há na casa conosco... A maldição sobre ti, ó caneta...” (DOBBS, 1974, p.

13) 7.

Na opinião de Alexandra Johnson (2011), compartilhada por Lejeune, é notória a importância do suporte, sobretudo o papel, para as transformações do gênero:

Suas datas estão inevitavelmente ligadas a invenções, tais como papel e impressão, bem como os microchips, os quais permitiram aos registros privados e diários sobreviver em grande número. Se inúmeros diários antigos se perderam, não é surpreendente que aqueles que sobreviveram tivessem sido mantidos por diaristas mais capazes de assegurar a sua proteção e longevidade. Os primeiros diaristas tinham algo significativo para registrar - a própria história. (JOHNSON, 2011, p. 18) 8

Embora não tenha sido o único fator, o novo suporte, barato e mais leve, também contribuiu para o florescimento da escrita diarística durante a Renascença, na Europa; tornando-a notavelmente acessível àqueles que dela quisessem usufruir no âmbito religioso, educacional ou até mesmo por razões singularmente pessoais. O papel, em virtude de ser fácil de manusear em relação às tábuas e aos pergaminhos, atendeu mais prontamente as necessidades de privacidade e discrição conquistadas pelo gênero. A título de exemplo, antes da criação do papel, monges, os quais praticavam exercícios espirituais comumente recorrendo a protodiários, carregavam tábuas de madeira fixadas ao cinto de suas vestimentas; inviabilizando, em tal caso, qualquer reserva no que diz respeito à atividade referida (LEJEUNE, 2009, p. 57).

[...] papel substituiu o pergaminho porque era mais barato e mais fácil de ser utilizado para a impressão. Mais importante, muito antes disso, o papel já havia acabado com as tábuas. Por volta de 1500, elas tinham caído completamente em desuso na Europa. O papel era leve, oferecia espaço ilimitado de escrita e, embora menos durável que o pergaminho, ele era muito mais durável que as tábuas: tinha a longevidade ao seu favor. Ele revolucionou o sistema de escrita comum em áreas como a administração, o comércio, assim como a academia. (Lejeune, 2009, p. 57) 9

7

“William Magfindgaill wrote […] it is a great torment to be keeping the Friday of the Passion on water, with the excellent wine which there is in the house with us… A curse on thee, O pen…” (DOBBS, 1974, p. 13).

8

“Its dates are inevitably tied to inventions such as paper and print, and now microchip, which have allowed

daily private records to survive in vast numbers. If innumerable ancient diaries have been lost, it’s not surprising

that those that survived were kept by diarists most able to ensure their protection and longevity. The earliest diarists had something significant to record – history itself.” (JOHNSON, 2011, p. 18).

9

“[...] paper superseded parchment because it was cheaper and easier to use in printing. More importantly, long

(25)

Possivelmente, o papel foi um dos elementos que contribuiu para que China e Japão, além do hábito de leitura comum a ambos, cultivassem protodiários similares aos diários modernos, em relação tanto à forma quanto à privacidade, precedendo em séculos a Europa: nos registros de Sei Shônagon, verificam-se informações a respeito da leitura no século X as quais revelam que ela foi amplamente difundida sobretudo na corte. Bilhetes cifrados com trechos de poemas eram utilizados pela autora para comunicar-se com admiradores, assim como mostrar conhecimento frente à Consorte Imperial e às demais damas de companhia: trocar mensagens pessoais, recorrendo a poemas famosos, era uma espécie de jogo entre homens e mulheres, que regulava as relações, posto que mostrasse erudição e cultura. Uma tábua de madeira ou qualquer outro suporte análogo inviabilizariam as práticas ora mencionadas, pois que leitura e escrita seriam hábitos substancialmente limitados a grupos seletos, tal como o foram na Europa, onde o conhecimento era acessível apenas a monges e homens de poder.

Não respondi e enviei-lhe u pedaço de alga envolto em papel.

Pois mais tarde Norimitsu apareceu e disse: “Fui pressionado a noite inteira e tive

que ficar vagando com ele por aí. Ficou tão obcecado que não estou mais suportando. Por falar nisso, por que não me respondestes à carta e me enviastes uma mera lasca de alga? Que pacote estranho! E lá isso é coisa de se mandar a alguém?

Por acaso houve algum engano?” Fiquei muito irritada ao saber que ele não

compreendera a minha mensagem, e nem respondi. Tomei um pedaço de papel do estojo e escrevi em um canto: Jamais reveleis/ A morada passageira/ Da mergulhadora/ Não vos lembrou da promessa / A lasca de alga enviada?

E ia entregar-lhe, quando ele o rejeitou abandando o pedaço de papel com o seu leque e dizendo: “Escrevestes-me um poema? Pois não vou lê-lo”, escapuliu.

(SHÔNAGON, 2013, p. 175)

(26)

observação atenta, bem como às reflexões sobre o mundo físico, social e interior dos sentidos e da sensibilidade, tal como os gêneros citados (GANNETT, 2009, p. 113).

A invenção do relógio, igualmente no século XIV, provocou do mesmo modo modificações significativas ao gênero, pois modificou consideravelmente a experiência do homem em relação ao tempo, o qual desde então tem se tornado cada vez mais escasso e valioso.

[...] foi apenas na segunda metade do século XVIII que a relação das pessoas com o tempo começou a se parecer com a nossa: as pessoas nem sempre tiveram relógios em suas casas ou usaram-nos em seus pulsos para medir o uso que faziam do tempo. Elas também nem sempre tiveram agendas para planejar o futuro (as agendas surgiram em meados do século XVIII). Precisa-se do prelo para impressão das agendas. Precisa-se de papel antes que se possa escrever em um caderno. (LEJEUNE, 2009, p. 80) 10

Outros três fatores significativos ao gênero são o calendário anual, introduzido na França no século XVI, a agenda (datebook) e o almanaque, ambos na forma de livros de contabilidade, os quais, mais intensamente no século XVIII, começaram a ser comercializados com espaços em branco para cada dia do ano, o que possibilitou que lhes fossem realizadas quaisquer anotações, desde compromissos até registros mais pessoais.

[...] a nossa forma de experimentar o tempo (planejamento os nossos dias, organizando o futuro, recordando o nosso passado) é um fato histórico muito relativo. Foi apenas na segunda metade do século XVIII que o tempo assumiu uma forma próxima àquela que conhecemos e ele ainda está mudando com uma velocidade impressionante. Manter um diário está claramente relacionado com esta revolução: a prática de manter um diário pessoal surgiu na Europa entre o final da Idade Média e o do século XVIII, ao mesmo tempo em que o relógio mecânico estava sendo desenvolvido, bem como o calendário anual e agenda de compromissos surgiam. (LEJEUNE, 2009, p. 58) 11

Sendo a origem do gênero diarístico traçada, nesta dissertação, principalmente à luz de considerações de Philippe Lejeune, é necessário esclarecer que o crítico elegeu como corpus de trabalho o cenário francês, logo há singularidades não contempladas, no que tange ao gênero, alusivas a outros países europeus, assim como em referência aos demais continentes.

10

“[...] it was only in the second half of the eighteenth century that people’s relationship with lived time began to

resemble our own. People did not always have clocks in their houses or wear watches on their wrists in order to measure their use of time. Nor did they always have datebooks to plan the future (the date book appeared in the mid-eighteenth century). You need the printing press to male datebooks. You need paper before you can write in

a notebook.” (LEJEUNE, 2009, 80).

11

“[…] the way we experience time (planning our days, organizing our future, recalling our past) is a highly

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Protodiários e diários se desenvolveram distintamente em cada região em especial devido às dessemelhantes influências religiosas: os protodiários espirituais, por exemplo, popularizaram-se na França apenas no final do século XVIII; no entanto, na Alemanha, eles já eram largamente praticados desde o século XVII, o que é comprovado pelo número expressivo de diários espirituais encontrados nos arquivos de bibliotecas. Possivelmente, as influências religiosas justifiquem também, e mais uma vez, a precedência do gênero na Ásia, onde o budismo, em oposição principalmente ao catolicismo, legitimava práticas que promovessem a autoconsciência, posto que fossem necessárias ao autoconhecimento.

Com o propósito de justificar tais variações no continente europeu, o próprio Lejeune apontou como possíveis fatores as diferenças ideológicas verificáveis entre o catolicismo e o protestantismo (LEJEUNE, 2009, p. 75). Na França, bem como em outras regiões, como já se deixou ver, o catolicismo se manteve em oposição à escrita diarística até o século XIX. Antes disso, qualquer prática autoconsciente, relacionada à escrita ou não, era declarada perigosa e diabólica: Lejeune, consultando o guia espiritual Advice for avoiding certain illusions (?), verificou que os comentários apontavam o diário como uma prática de risco que poderia conduzir seus adeptos ao orgulho e à autoindulgência, de tal forma que o gênero era considerado uma ocasião para pecar (LEJEUNE, 2009, p. 66).

Os próprios diários espirituais, quando praticados no século XIX, na França, ainda não eram privativos, no sentido de sigilosos, em razão de terem sido tutelados por um conselheiro espiritual, o qual tinha como função, após ler as anotações dos fiéis, escrever-lhes cartas por meio das quais pudesse controlar suas eventuais inquietações. Os devotos não escreviam para si mesmos, como ocorre no diário moderno, com o intuito de compreender o que os afligia sobre si ou o mundo, uma vez que havia um leitor real a quem se atribuía efetivamente a função de refletir sobre as angústias de outrem. Do mesmo modo, dúvidas no tocante ao divino, tal como era preconizado pela Igreja, eram consideradas um ato de fraqueza. Essa condição, implicitamente censória, decerto influenciou o conteúdo dos registros dos fiéis, contudo a busca por um guia espiritual, que os orientasse frente às debilidades, amenizaria a suposta falta, ou até mesmo ousadia, em relação à compreensão dos mistérios de Deus. Entrevê-se, portanto, que a abertura ao gênero tinha por finalidade manipular, e não oportunizar o autodesenvolvimento, assim como a autonomia no que concerne ao pensamento crítico.

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exercícios espirituais por meio de diários. O autoexame de consciência, assim como os diálogos endereçados a Deus, afora serem instigados, não eram mediados por conselheiros. Logo se verifica que as vertentes do cristianismo, na Europa, teriam contribuído ou procrastinado a prática e o desenvolvimento do gênero até o século XIX.

Béatrice Didier, em consonância com Lejeune, afirma que os diários seriam, na modernidade, o resultado da convergência de três fatores históricos: o cristianismo, salvo as ressalvas ora apresentadas, o individualismo e o capitalismo.

Do primeiro, o diário retém a atitude confessional, o desejo de purificação e absolvição, a regularidade da contrição que o aparenta à oração, o exame de consciência. Do segundo, a crença no indivíduo, o interesse no particular. E do

terceiro, a sua forma de “balanço”, de livro de contas, visando preservar um capital

de recordações, vivências, factos históricos, pessoas, lugares, etc. (DIDIER, apud ROCHA, 1992, p. 16)

O Renascimento, que compreende aproximadamente os séculos XIV a XVI, ofertou à escrita do eu, além de eficiente suporte, também o individualismo, o qual conduziria progressivamente o gênero à privacidade até o final da Idade Moderna. Dobbs (1974) acrescenta que o período aludido, marcado pela revalorização do conhecimento clássico, bem como por conceitos de liberdade de consciência, preconizados pela Reforma Religiosa, promoveu uma atmosfera propícia ao gênero diarístico, embora tenha sido um livro de ensaios, escrito em 1580 por Montaigne, o responsável por assinalar essa mudança de percepção da realidade (1974, p. 18).

Nos séculos XVIII e XIX, com o já esperado aval da Igreja Católica, obrigada a adequar-se às novas mentalidades a fim de não perder seus fiéis para outras correntes cristãs, os protodiários espirituais foram usados para novas finalidades, como a educação (resquício

dos commonplace books) e a introspecção (resquício dos diários espirituais); diversificando,

consequentemente, as funções e também o conteúdo do gênero: “A escrita diarística foi um

gênero em muitos aspectos inconsciente quanto a si mesma até o início do século XIX, em consequência de que a maioria dos diários ainda não havia sido publicada, bem como circulado amplamente até então.” (GANNETT, 2009, p. 114) 12.

Intelectuais engendraram ainda outras funções para os diários. Marc-Antoine Jullien (1775-1848), por exemplo, ensinava em ensaios de sua autoria, os quais conquistaram considerável recepção entre os diaristas da época, como alcançar a felicidade. Na época,

12

(29)

relacionavam-na ao autocontrole quanto ao tempo, porque as novas formas de experimentá-lo o haviam transformado consideravelmente, provocando a sensação de que ele nos escapava por completo, ocasionando certa frustração e alta ansiedade entre as sociedades mais modernas. Ainda se nota esse embate contra o tempo instituído na atualidade, em razão das 24 horas nos serem insuficientes para a realização de todas as tarefas impostas pelo cotidiano:

No programa de Jullien, a partir de sete anos de idade até os quatorze anos, o governante mantém um diário detalhado das atividades empreendidas pela criança, as quais ele faz com que a criança leia todos os dias. Assim, o jovem se acostuma a ver a si mesmo refletido no espelho de um texto. O governante, que provavelmente tem vários alunos, deve, assim, manter agendas paralelas durante anos. Quando os meninos chegarem aos catorze anos, o governante transfere esta tarefa a eles, mas, ao contrário do que seria de esperar, isto não significa que cada aluno mantém seu próprio diário: de fato, cada um deles escreve o seu próprio diário, assim como de seus companheiros, assumindo para si o antigo papel desempenhado pelo governante. Após um mês, delega-se a tarefa para outra pessoa. Não está claro em que momento um menino trata exclusivamente com o seu próprio diário e deixa de escrever o dos colegas. Mas, mesmo assim, o adolescente não é autônomo. A situação é reservada: ele mantém o seu próprio diário, mas deve dar-lhe a ler a quem o supervisiona - governante ou o pai. (LEJEUNE, 2009, p. 107) 13

Os séculos XVIII e XIX, em consequência do Romantismo e da Psicologia, impulsionaram, no século XX, o New Diary, a tendência mais introspectiva do gênero. O diário como espaço seguro de exploração do eu, exercício de escrita terapêutico, um lugar propício ao desenvolvimento da criatividade e até mesmo uma prática oportuna ao crescimento pessoal devem muito ao encorajamento feito por ambos no que toca à livre expressão e à ênfase atribuída ao funcionamento da mente. O Romantismo incentivou, enquanto movimento cultural e literário, a expressão plena das emoções, assim como da sensibilidade; a Psicologia, com a ênfase na compreensão da estrutura da consciência, bem como do inconsciente, transformou as noções culturais até então conhecidas a respeito da natureza do eu. Tais transformações permitiram que os diaristas incorporassem mais livremente descrições íntimas da consciência mental e emocional.

Mudanças de pensamento quanto ao status quo manifestam-se comumente nos diários, como se percebe pela própria origem do gênero: eles têm acompanho as descobertas

13

“In Jullien’s program, from age of seven up to the age of fourteen, the governor keeps a detailed diary of the child’s activities, which he makes him read every other day. Thus the young boy gets used to seeing himself

reflected in the mirror of a text. The governor, who probably has several pupils, must thus keep parallel diaries for years. When the boys reach fourteen, the governor hands over the task to them, but contrary to what might be expected, this does not mean that each pupil keeps his own diary: in fact, each of them in turn writes his own and his fellow-pupils diaries, this taking over the governor’s former role, and after one month, hands over the task to

(30)

empreendidas pela humanidade não somente frente ao mundo mas também a si mesmos. De certa maneira, eles traduzem os estágios bem como as preocupações relativas a cada período do desenvolvimento humano (GANNETT, 1992, p. 141).

De acordo com Lejeune, o diário moderno também se consagra em virtude do deslocamento da data do campo de enunciação para um lugar de destaque, antecedendo as entradas, como ocorre no gênero epistolar. Os protodiários apresentavam a data de ocorrência dos fatos e não a do registro escrito, consequentemente separando o enunciador de sua narrativa, posto que se apresentasse distante em relação aos eventos registrados, mesmo quando a narração ocorria na primeira pessoa do discurso. Segundo o teórico, na hipótese da data se relacionar apenas com o conteúdo que está sendo enunciado, e não com o instante da escrita, o ato da enunciação permanece silenciado (LEJEUNE, 2009, p. 80).

Nos protodiários, as datas apareciam dentro do corpo do texto, alinhadas à própria narrativa, e eventos ocorridos há apenas três horas eram descritos como se tivessem acontecido há séculos, em consequência do tempo verbal no pretérito, empregado na redação dos relatos. O passado e a forma da datação afastavam o diarista de sua própria narrativa. Deste modo, antes do século XVIII, entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, era impraticável individualizar gêneros análogos como a História, a memória, a crônica, o livro de contabilidade e os diários. Além disso, as pessoas narravam os eventos sem os comentar. Quando se mencionava algo relativo às emoções, elas já estavam temporalmente distantes do eu, de modo que não havia marcas temático-formais claras que distinguissem um gênero do outro. A datação, fundamental ao gênero, uma vez que o relato cronológico é seu

“pecado original”, consoante Lejeune, ainda não havia conquistado posição relevante na

estrutura do gênero (LEJEUNE, 2009, p. 80): “Diz- frequentemente que o diário se define por

um único traço: a datação. A ordem cronológica é o seu pecado original – e o nosso.”

(LEJEUNE, 2008, p. 274).

No tocante aos diários, não só o nome do autor legitima o pacto de verdade frente a um possível leitor, o qual pode ser o próprio autor, mas igualmente a data, portanto ela é imprescindível ao gênero, sobretudo se o enunciador intenciona ser lido como diarista, e não como autobiógrafo, historiador ou memorialista: a simples inscrição da data cria sobre o texto, assim como sobre o leitor, um efeito de “sinceridade” (LEJEUNE, 2009, P. 87), tal como no

que se refere à sua presença em documentos legais ou cartas.

(31)

frequentemente presente no próprio livro. A autobiografia (narrativa que conta a vida do autor) pressupõe que haja identidade de nome entre o autor (cujo nome está estampado na capa), o narrador e a pessoa de quem se fala. Esse é um critério muito simples, que define, além da autobiografia, todos os outros gêneros da literatura íntima (diário, auto-retrato, auto-ensaio). (LEJEUNE, 2008, p. 23-24)

No que concerne à importância da identidade do nome do autor em relação ao narrador e à personagem, evidente no corpo do texto ou em qualquer outro lugar (capa, título, subtítulo, prefácio, etc.), Gerard Genette (2009) acrescenta a relevância variável assumida por esse paratexto de acordo com o gênero ao qual se relaciona. Relativamente aos textos de ordem ficcional, sua influência é menos significativa; todavia, quanto aos gêneros autorreferencias, ele é condição indispensável, posto que sua presença ou ausência interfira na leitura e recepção da audiência. Na ocasião em que Lejeune verificou a importância da tríade

autor-narrador-personagem para o gênero autobiográfico, o escritor e crítico francês Serge

Doubrovsky trouxe à luz Fils (1977), obra literária de autoficção na qual a identidade de nome não existe propositalmente, em consequência de que Doubrovsky pretendia demonstrar ser possível engendrar um texto autobiográfico sem recorrer àquela tríade (NORONHA, 2008, p. 7). Conforme Lejeune, a identificação deve aparecer em algum lugar do texto, até mesmo na forma de uma simples nota explicativa, se a intenção do autor é que o texto seja lido como não ficção. Caso contrário, o leitor empreenderá leitura diversa daquela esperada, dado que o pacto não tenha sido estabelecido entre o autor e seu público.

O nome do autor cumpre uma função contratual de importância muito variável conforme os gêneros: fraca ou nula na ficção, muito mais forte em todas as espécies de escritos referenciais, onde a credibilidade do testemunho, ou de sua transmissão, apoia-se amplamente na identidade da testemunha ou do relator. [...] o nome do autor não é um dado exterior e concorrente em relação ao contrato, mas um elemento constitutivo, cujo efeito se compõe com os de outros elementos, como a presença ou a ausência de uma indicação genérica – ou, como especifica o próprio

Lejeune, essa ou aquela forma de release, ou de qualquer outra parte do paratexto. O contato genérico é constituído, de maneira mais ou menos coerente, pelo conjunto do paratexto e, mais amplamente, pela ralação entre texto e paratexto; e o nome do

autor, é claro, faz parte dele, “incluído dentro da barra que separa o texto e o extratexto”. (GENETTE, 2009, p. 42)

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interlocutor. A ideia de conversar ou escrever algo para si gerava tanto estranhamento que alguns diaristas inicialmente escreviam as entradas tal como se fossem cartas virtualmente endereçadas a alguém inexistente (às vezes, inacessível) ou a si (LEJEUNE, 2008, p. 313).

A princípio, a internalização foi realizada mediante o próprio suporte, no momento em que os diaristas começaram a endereçar as entradas ao próprio papel (cadernos, folhas avulsas), ao qual muito comumente atribuíam um nome ou apelido carinhoso: “Querida Kitty,

vou começar imediatamente. Está tão calmo no momento: mamãe e papai saíram e Margot foi jogar ping-pong com alguns amigos”; “Eu acredito que você vai ficar um pouco surpresa com

o fato de eu falar sobre meninos na minha idade.” (FRANK, 1993, p. 5) 14. Depois, passaram

a escrever para si mesmos, sem recorrer a subterfúgios, tal como se faz na atualidade.

O teórico acrescenta que as datas, elemento fundamental ao gênero, são neutras, no entanto, uma vez articuladas ao discurso, explícita ou implicitamente, elas se tornam parte do enunciado ou da enunciação:

A base do diário é a data. O primeiro gesto do diarista é anotá-la acima do que vai

escrever. “Quarta-feira, 2 de março de 1898”, escreve Catherine Pozzi. Johann Heuchel é ainda mais preciso: “5.4.91 – sexta-feira, dez para meia-noite.” Chamamos “entrada” ou “registro” o que está escrito sob uma mesma data. Um

diário sem data, a rigor, não passa de uma simples caderneta. A datação pode ser mais ou menos precisa ou espaçada, mas é capital. (LEJEUNE, 2008, p. 260)

A partir do século XVIII, apesar de ainda marginalizado pela crítica, o gênero não enfrentaria obstáculos que se opusessem ao desenvolvimento contínuo de suas nuances. O século XXI, por exemplo, assiste à adequação do gênero ao suporte virtual, ainda mais eficiente que o papel, posto que o espaço de escritura seja infinito (JOHNSON, 2011, p. 92). A essa altura, a estrutura altamente fragmentada do gênero também já havia sido incorporada à ficção, ainda que não tenha conseguido o mesmo efeito de leitura dos diários naturais, pois, segundo Lejeune, a narrativa ficcional pressupõe um enredo estruturado com começo, meio e

fim; o diário, por seu turno, é um texto inacabado por excelência: “[...] é escrito na ignorância

do seu fim e o trágico é que é sempre lido com conhecimento de seu fim, que pode, muitas

vezes, ser simplesmente a morte...” (LEJEUNE, 2008, p. 286). Quanto a isso, pode-se

mencionar um brasileiro: Machado de Assis (1839-1908), com a publicação de seu último romance, Memorial de Aires (1999), no ano de 1908, construiu sua narrativa por intermédio da estrutura do diário, recorrendo às entradas para materializar o enredo.

14

Dear Kitty14, I’ll start straight away. It is so peaceful at the moment, Mummy and Daddy are out and Margot

has gone to play ping-pong with some friends.”; “I expect you will be rather surprised at the fact that I should

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