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A mulher em situação de abortamento: um enfoque existencial.

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Rev Esc Enferm USP 2003; 37(2): 59-71. A mulher em situação de abortamento: um enfoque existencial

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WOMEN IN FACE OF ABORTION: AN EXPERIENCE-BASED APPROACH

LA MUJER EM SITUACIÓN DE ABORTO: UN ENFOQUE EXISTENCIAL

Magali Roseira Boemer1, Mariana Gondim Mariutti2

RESUMO

O trabalho se propõe a desvelar facetas do significado do aborto para a mulher que o vivencia. Para tanto, as autoras recorrem a Metodologia de Investigação Fenomenológica – que possibilita uma análise compreensiva dos depoimentos das mulheres que estão vivenciando essa situação. Foram coletados depoimentos de doze mulheres hospitalizadas, em situação de abortamento, mediante a questão norteadora: “O que está significando para você essa experiência? Você pode descrever para mim?” As convergências de suas falas foram analisadas e possibili-taram a construção de algumas categorias temáticas que sinalizam para a essência desse vivenciar e constituem-se em subsídios para nortear o planejamento de assistência à mulher de forma que a sua situacionalidade seja contem-plada. Os resultados possibili-taram o desvelamento de facetas importantes, tais como tristeza, perda, dor fisiológica e existencial, solidão, uma hospitalização desconfortante, a culpa ou medo de ser culpada, a preocupação com o corpo e a intencionalidade de suas consciências começando a voltar-se para a importância dos métodos contraceptivos. Resulta também o desejo de rever seus projetos de vida.

PALAVRAS-CHAVE

Aborto. Saúde da mulher. Bioética. Enfermagem Obstétrica.

ABSTRACT

This work aims at revealing the meaning of abortion in the view of women who have experienced it. For this purpose, the author used the Methodology of

Phenomenological

Investigation, which enabled a comprehensive analysis of the accounts collected. Data were gathered by interviewing twelve hospitalized women. The following questions were used: “What’s the meaning of this experience to you? Can you describe it to me? The convergence of their accounts was analyzed and this enabled the creation of thematic categories. Such categories point out the essence of these women’s experience and may provide guidelines for the development of assistance policies that would meet their specific needs. The results enlighten important aspects associated with sadness, loss, physiological and existential pain, loneliness,

hospitalization discomfort, guilt or fear of being

considered guilty, concern with their bodies and the

intentionality of their consciences beginning to give importance to contraceptive methods. Their desire to review their own life projects also emerges.

KEYWORDS

Abortion. Women’s health. Bioethics. Obstetrical nursing.

RESUMEN

El trabajo se propone descubrir facetas del significado del aborto para la mujer que lo vivencia. Por tanto, la autora recurre a la Metodología de Investigación del Fenómeno – que posibilita un análisis comprensivo de los relatos de las mujeres que están viviendo esa situación. Fueron recogidos testimonios de doce mujeres hospitalizadas en situación de aborto, por medio de la cuestión orientadora: ¿Qué significa para Ud. Esta experiencia? ¿Puede Ud., describirla para mí? Las convergencias de sus charlas son analizadas y posibilitan la construcción de algunas categorías temáticas que señalan la esencia de esa vivencia y pueden constituirse en subsidios para orientar el plan de asistencia a la mujer de forma que su situación sea contemplada. Los resultados posibilitan el conocimiento de facetas importantes, tales como tristeza, pérdida, dolor fisiológico y existencial, soledad, una hospitalización no confortable, la culpa o miedo de ser culpada, preocupación con el cuerpo y la intención de su conciencia comenzando a ver la importancia de los métodos contraceptivos. Surge también el deseo de rever sus proyectos de vida.

PALABRAS-CLAVE

Aborto. Salud de la mujer. Bioética. Enfermería obstetrica.

A mulher em situação de abortamento:

um enfoque existencial

1 Professora Livre-Docente Aposentada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP. Orientadora deste estudo.

boemer@glete.eerp.usp.br

2 Acadêmica do 4oano do Curso de Graduação em Enfermagem da Faculdade de Ciências

Médicas-Unicamp.

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Rev Esc Enferm USP 2003; 37(2): 59-71.

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Magali Roseira Boemer Mariana Gondim Mariutti

A GÊNESE DO MEU INTERROGAR

Durante o programa de Iniciação Científi-ca que percorri no curso de graduação em enfermagem, pude aproximar-me do tema da Morte e perceber a sua importância para o profissional da área de saúde de forma que possa melhor lidar com os momentos em que o morrer está presente na assistência(1 -9).

Nessa trajetória, meu interesse e inquieta-ção voltaram-se para as questões que envol-vem a mulher e, mais especificamente, as situ-ações de abortamento. Um estudosobre mor-te perinatal(10), remeteu-me à questão do

abor-to, na medida que ele pode impossibilitar o existir do homem e, nesse sentido, direcionei-me para esse tema, pois esta impossibilidade de vida se apresentou a mim como objeto de investigação. O aborto é a interrupção da gra-videz ou expulsão do produto da concepção antes que o feto seja viável, isto é, antes da 22ª semana ou, se idade gestacional for desco-nhecida, com o produto pesando menos de 500 gramas ou medindo menos de 16 centíme-tros e segundo o mesmo autor, a situação de abortamento refere-se quando esta interrup-ção está ocorrendo e as manifestações clíni-cas estão acontecendo(14).

O aborto é referido como sendo envolto em tabus, preconceitos, discriminações, o que o caracteriza como uma questão polêmica desde a antigüidade(11). Um outro estudo(12)

remete-se a dados desde o momento em que as mulheres ficam grávidas e afirmam o dese-jo de aborto, até realizá-lo. As reflexões deste estudo são pautadas por uma questão de éti-ca e corporalidade, propondo uma visão para além do corpo.

Para os defesores da descriminalização do aborto, a melhor forma é trazê-lo para a legali-dade. Após quatorze anos de derrotas em quatro conferências nacionais, a descrimi-nalização foi aprovada pelo plenário da 11º Conferência Nacional de Saúde. Isto não quer dizer que o aborto tenha deixado de ser crime. Pelo Código Penal Brasileiro, a interrupção da gravidez só é permitida em caso de estu-pro ou risco de vida para a mãe. Para que o aborto seja tratado como um problema de saú-de e não como crime será preciso que os par-lamentares aprovem um dos projetos que tra-mitam no Congresso(13).

Cresce o consenso de que a legislação sobre o assunto está ultrapassada, pois

cal-cula-se que ocorram 1,4 milhões de abortos clandestinos por ano no Brasil, sendo os pro-cedimentos mal feitos a principal causa de mortalidade materna no país(14).

Quanto ao futuro da lei, se aprovado, o novo Código Penal vai permitir o aborto em mais uma situação, ou seja, anomalias graves e irreversíveis, quando o feto não tem chance de sobreviver(15). Segundo o autor, a ciência

caminhou muito, mas a lei não mudou. Quan-to às anomalias fetais, as leis brasileiras re-presentam obstáculos à conduta ética do es-pecialista em Medicina Fetal(16).

No que se refere à questão ética do aborto(17-19) fundamentada em

conhecimen-tos pertinentes à genética e à bioética, a pro-posta é discutir os seguintes pontos: exami-nar a realidade biológica do recém-concebi-do em busca de evidências se o embrião humano é ou não vida humana desde a fe-cundação e, sendo vida humana, examinar se existem circunstâncias biológicas sob as quais se torna lícito e eticamente aceitável a interrupção da gestação.

A questão bioética do aborto está clara-mente vinculada ao conceito de início de vida ou, mais precisamente, com a pergunta fun-damental: “Quando a vida começa de fato a ter importância moral?”(20)

Essas leituras confirmaram meu interesse neste tema. Para melhor explicitar minha in-quietação e delimitar a região da investiga-ção procurei também habitar o mundo do hos-pital onde são internadas mulheres em situa-ção de abortamento, buscando apropriar-me desse mundo. Com a devida aprovação dos responsáveis, pude conviver com mulheres em diferentes situações de internação, aten-didas em situações de urgências ligadas à ginecologia e obstetrícia, o que inclui o abor-to, no Setor de Ginecologia e Obstetrícia da Unidade de Emergência do Hospital das Clí-nicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP. Acompanhei todo o percurso dessas mulheres. Expressões de angústia, medo, inquietação, indiferença foram perce-bidas e se acentuavam à medida em que o desconforto do aborto evoluía.

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Nesse sentido, meu interesse voltou-se para a mulher em situação de abortamento que chegava à instituição. Importava saber o que ela sentia. O significado que atribuía ao vivenciar essa situação, através de suas fa-las, expressões faciais, gestos e atos, desve-lando um lado que permanecia obscuro para mim e que, com sua parceria, propus-me a des-velar. Assim, busquei compreender a situa-ção de abortamento sob a perspectiva de fe-nômeno, ou seja, enquanto algo que carecia de des-velamento. Para tanto, a metodologia de investigação fenomenológica conduziu esse estudo, buscando pelo significado que as pessoas dão às coisas e às suas vidas, pela via das suas subjetividades. É uma con-cepção de ciência que se volta para as experi-ências vividas, do vivido enquanto tal. O meu interrogar dirigiu-se à busca da compreen-são do significado do abortamento sob a perspectiva das mulheres que o vivenciam, independentemente de sua etiologia biológi-ca. Interessava-me enfocá-lo sob a dimensão existencial. Segundo o referencial fenome-nológico, quem pode expressar seus signifi-cados são as pessoas que experienciam essa situação, através de suas descrições.

REFERENCIAL TEÓRICO METODOLÓGICO

Segundo o referencial fenomenológico, fenômeno é tudo que se mostra, se manifes-ta, se desvela ao sujeito. A fenomenologia vai ao encontro do que se mostra oculto para o pesquisador, não visando a explicação, mas a compreensão. Quando o pesquisador inter-roga ele está focalizando o fenômeno e não o fato. A fenomenologia tem muita importância na área da pesquisa, produzindo conhecimen-tos que respondam às indagações do assistir e do cuidar, captando a realidade de algo(21).

O pesquisador deve procurar colocar-se no lugar do sujeito de forma a não ser apenas um expectador, mas alguém que procura che-gar aos significados atribuídos pelo sujeito da mesma forma como este os atribuiu(4). Esta

postura empática é fundamental na modali-dade fenomenológica, dado que o conheci-mento é construído a partir das experiências vividas e aquilo que está sendo investigado não é visto como objeto. É também necessá-rio o reconhecimento do papel da intuição e da subjetividade no processo de selecionar, categorizar e interpretar as mensagens(4). Há

três elementos importantes na fenomenologia:

a percepção, a consciência que se dirige para o mundo-vida (consciência de alguma coisa) e o sujeito que se vê capaz de experienciar o corpo-vivido através da consciência(22). Para

caminhar segundo esse referencial teórico-metodológico o pesquisador terá uma trajetó-ria, estará caminhando em direção ao fenôme-no, naquilo que se manifesta por si, através do sujeito que experiencia a situação(23).

A forma pela qual os dados são coletados na pesquisa qualitativa é a da comunicação empática entre sujeitos, ou seja, entre o pes-quisador e os sujeitos de sua investigação. Nesse sentido, cada sujeito é parceiro do pesquisador no processo de descoberta. As descrições referem-se às experiências vividas, enfatizam o geral e apontam as diferenças nos significados das estruturas gerais, apontan-do para a estrutura apontan-do fenômeno, para sua essência. Por meio do discurso chega-se às condições essenciais do fenômeno. A análi-se da fala, ou o discurso pronunciado, é que vai permitir que o fenômeno se mostre. As descrições revelam as estruturas do fenôme-no, as experiências, sem enfatizar o conteúdo específico, mas enfatizando a estrutura geral e fundamental do fenômeno - a essência(4).

É preciso saber ouvir o discurso do Ser, do sujeito, para que compreenda o que este diz; precisa saber não só ouvir a fala, mas principalmente ouvir o silêncio, porque é nele que o Ser se mostra, se des-vela(24).

O acesso aos sujeitos

Nessa aproximação com a fenomenologia compreendi que é preciso captar o signifi-cado da situação de abortamento aos olhos das mulheres que o vivencia. Contudo, en-tendo que essa busca não poderia ser obti-da por depoimentos obti-das mulheres no mo-mento em que as implicações de natureza fisio-patológicas estão ocorrendo em sua fase mais aguda, o que comprometeria a na-tureza mesma dos dados e, o mais relevante, comprometeria a postura ética da investiga-ção. Assim, procurei obter a sua fala no pe-ríodo “pós – abortamento”. Neste momen-to, acredito que o vivido por ela se torna presente à reflexão; é ainda um momento que está sendo vivenciado, mas agora como objeto de reflexão.

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2000 a janeiro de 2001, após obter o aval do Comitê de Ética em Pesquisa da Institui-ção. Realizei, então, uma entrevista com cada mulher, com a seguinte questão norteadora: O que está significando para você essa experiência? Você pode descre-ver para mim?Utilizei um gravador, após o seu Consentimento (Termo de Consenti-mento Livre e Esclarecido). Foram coletados doze depoimentos. Esse número diz respeito ao critério adotado pela Metodologia de Investigação Fenome-nológica segundo recomendação de vári-os autores, não é um número pré-determi-nado. Quando os depoimentos convergem expressando a “repetitividade” dos discur-sos, considera-se que parte da essência de um fenômeno foi velada. O des-velamento total não é possível pois isso é inerente ao pensamento fenomenológico.

O encontro com cada mulher deu-se na própria enfermaria, quando expus a proposta do estudo e o meu interesse em ouvi-la, expli-cando que, mesmo com sua autorização, o gravador ficaria próximo a ela e que, no de-correr da entrevista, poderia desligá-lo se o fato de gravar afetasse, de alguma forma, sua disponibilidade para falar. Cabe mencionar que o período de internação foi de um a três dias, dependendo da evolução clínica.

Ao final, perguntava se desejava acres-centar algo mais sobre o seu dizer. Cinco de-las pediram esclarecimentos a respeito de métodos anticoncepcionais e duas sobre a “tabela” de controle de fertilidade. Entreguei, então, um manual de métodos de informações sobre contracepção e uma tabela de controle do ciclo menstrual. Após a transcrição, pas-sei à leitura dos depoimentos os quais en-contram-se, na íntegra, com os autores à dis-posição dos leitores.

A forma de análise de dados em fenomenologia

Nesta abordagem metodológica a análise dos dados não se dá num momento isolado. Assim, o processo de coleta de dados deve ser lento pois o entrevistador precisa ter dis-ponibilidade pessoal de tempo cronológico e de ida ao outro para mergulhar no mundo-vida dos sujeitos de seu estudo e submergir num processo de descoberta(4).

Outro ponto importante é que para a aná-lise dos dados não existem técnicas ou

paradigmas prontos sob os quais o pesqui-sador possa conduzir e comparar seus resul-tados, conforme ocorre na pesquisa conduzida segundo a perspectiva das ciênci-as naturais(25). Como a descrição é o recurso

de acesso ao des-velamento do fenômeno, ao mundo-vida dos sujeitos, não existe um modelo com o qual se possa contar para pro-ceder à análise dos discursos. Neste sentido, autores de estudos conduzidos sob este referencial(4,20) sugerem apenas um

direcionamento para a análise das descrições, que se constitui de quatro momentos.

¾ Inicialmente o pesquisador lê a descri-ção do início ao fim, familiarizando-se com o texto que descreve a experiência vivida pelo sujeito, procurando colocar-se no lugar deste.

¾ No segundo momento o pesquisador lê novamente cada discurso, mais lentamen-te, colocando em evidência os significados da descrição, focalizando o fenômeno que está sendo pesquisado.

¾ Obtendo as unidades de significados, o pesquisador expressará o significado con-tido em cada uma das unidades identificadas. A unidade será mais importante quando mais “revelar” o fenômeno considerado. Quanto à existência de critérios, um deles é o da repetitividade; entretanto, embora importan-te, não é o único.

¾ O pesquisador sintetiza todas as uni-dades de significados para chegar à estrutu-ra do fenômeno.

Em todos esses momentos é necessário analisar os dados, questioná-los amplamente a fim de ajudar o pesquisador a manter o foco de atenção no todo(4).

CONSTRUÇÃO DOS RESULTADOS

Na busca pela compreensão passei à lei-tura atentiva dos doze depoimentos, bus-cando apreender nas suas falas o significa-do deste experienciar. Procurei voltar o meu olhar para a mulher-que-aborta, despo-jando-me de quaisquer conceitos sobre a temática.

É por meio da fala, do dizer de cada uma sobre a experiência, que o fenômeno se mos-tra(4). Busquei aproximar-me das experiências

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que se mostrou a mim, sob a minha perspecti-va, sob o meu olhar, procurando chegar, dentro de meus limites, aos mesmos signifi-cados atribuídos e revelados pelas mulhe-res. Apreendi, por meio de sua descrições, facetas reveladoras da essência do fenôme-no do abortamento. Cabe mencionar que as idades das mulheressituavam-se entre 15 a 43 anos. Três delas solteiras, cinco casadas, duas amasiadas e duas desquitadas. Quan-to ao nível de instrução, variou de analfabe-tismo ao 2º grau incompleto. Quanto à ocu-pação, três eram estudantes, duas do lar, quatro desempregadas, duas domésticas e uma vendedora de loja. Dentre as doze, três eram primigestas e, para as outras, o número de filhos variou de um a cinco. Duas revela-ram já ter passado pela situação de abortamento, sendo que para uma, essa si-tuação está ocorrendo pela quinta vez em sua vida.

Dentre as doze mulheres, nove não ha-viam usado nenhum tipo de contraceptivo durante as relações sexuais, independen-te da duração do relacionamento com os parceiros. Nos três casos em que houve o uso de contraceptivos, observei o desco-nhecimento sobre possibilidade da não eficácia do método, quando usado de modo irregular. Pude, ao final das entre-vistas, conversar sobre métodos anticon-cepcionais e a importância de planejar a vinda de um filho.

Assim, a análise compreensiva dos depo-imentos revelou-me que, aos olhos dessas mulheres, o estar vivenciando a situação de abortamento se mostra:

Como uma experiência permeada por grande dor

Vejamos alguns discursos que revelam que o abortamento foi experienciado como um momento do qual fazem parte sentimen-tos como tristeza, perda, solidão e dor. As falas mostram a expressão desse “estar sofrendo”:

....é ruim viu....é triste... nossa passei uma barra sozinha em casa...com dor...quando eu vi aquele sangue eu chorei, chorei bastante...uma dor que é incom-patível...nunca senti uma dor dessa tão forte e nessas horas foi que eu queria um apoio, alguém do meu lado (7)(a)

Foi possível perceber as diferentes natu-rezas da dor. A dor fisiológica e a existencial, isto é, da perda. Essa polaridade da dor é evi-denciada nesta fala:

Tive muita dor por dentro e por fora. Em tudo, no coração, dentro...chorei muito (9).

A dor de natureza existencial é percebida com maior intensidade nas mulheres que ha-viam planejado a gravidez. Ao lado das mani-festações verbais desses sentimentos, há de se considerar outras formas de expressão não verbais que se revestem de importância ím-par em situações de sofrimento: o choro si-lencioso, assim como momentos de silêncio que permeavam as falas.

Como já mencionei, não houve preocu-pação em identificar as causas do aborto, principalmente no que se refere a ele ser es-pontâneo ou provocado. Entretanto, embo-ra sendo outembo-ra a região da investigação, ob-viamente que a história clínica, o exame físi-co e as histórias de vida sinalizavam, em al-guns casos, para uma intencionalidade no ato de abortar.

A análise dos discursos permitiu obser-var que a situação de abortamento gera sen-timentos dolorosos para a mulher. Assim, um planejamento da assistência de enfermagem precisa percorrer o caminho de ajudá-las na expressão desses sentimentos. A enferma-gem, por estar em contato maior com a mu-lher, deve estar atenta às essas expressões, facilitando-as e respeitando os momentos de discurso e de silêncio.

Foi sensível o seu alívio ao verbalizar sua dor, suas emoções, sem medo de julgamento ou necessidade de defender-se ou justificar-se. Algumas revelam a natureza frágil dos re-lacionamentos afetivo-sexuais que mantém com os parceiros, as relações conjugais e tam-bém o sofrimento com a ausência, incompre-ensão e descaso do parceiro:

...a gente desarmada, não dá prá gente insistir com a camisinha. Parece que se fizer jogo duro, ele vai embora e me dei-xa na mão...(8)

...porque a mulher sofre e o homem não vê, não percebe o quanto que a mulher está sofrendo...(7)

O papel masculino foi esquecido no estu-do da prática da ginecologia e obstetrícia, mas é preciso que aos homens sejam ensinados e

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aprendam o exercício do direito do casal para a tomada de decisões(26).

Um estudo(20) revela que o aborto é

trata-do como um problema de saúde pública, onde suas diferentes conseqüências recaem sobre a mulher, vítima de uma sociedade que a cas-tiga de forma isolada, como a única respon-sável pela gravidez, sendo clara a lei brasilei-ra quando diz que o aborto é crime passível de prisão para a mulher e para a pessoa que o comete. Ficando o homem isento das respon-sabilidades do seu ato sexual, respaldado pelas questões de gênero (papéis diferentes no contexto social). Sendo que o homem, en-quanto marido/companheiro, uma vez conhe-cendo as conseqüências do aborto provoca-do, pode contribuir para a minimização das seqüelas do organismo da mulher advindas dessa prática, além de diminuir seus conflitos e dividir responsabilidades na tomada de decisão e as famílias e os amigos também(20).

Diferentes situações conferem algumas especificidades diante dessa experiência, tais como: idade, presença ou não do par-ceiro, condições de moradia, fatores sócio-econômicos, religião, distância do marido que trabalha fora, desejo ou não de ter o filho.

Esse estudo não teve como proposta iden-tificar a etiologia do aborto. Entretanto, al-guns discursos sinalizam que, para algumas dessas mulheres, houve uma intenção no ato de abortar e, nesse sentido, vale lembrar que, o que à primeira vista parece ser uma decisão individual envolve uma série de circunstân-cias interligadas à qualidade e perspectivas do relacionamento, dos projetos de vida, das pressões familiares, sociais vividas e a vida afetiva(27).

O que se mostra nas falas é que é preciso alcançar esta mulher em outra dimensão além do cuidar biológico, olhando atentivamente para o seu existir enquanto pessoa inserida em um contexto existencial. As ações de en-fermagem se revestem de grande importância no cuidado a ela, considerando que a nature-za do cuidar envolve uma proximidade física, um maior acesso ao corpo. Diz respeito tam-bém a uma questão de gênero, dado que a enfermagem vem sendo exercida predominan-temente por mulheres, favorecendo algum compartilhamento.

Como uma experiência que requer uma hospitalização que se mostra

desconfortante

As mulheres revelam que percebem esse tempo de hospitalização como muito longo, que demora a passar. O tempo de internação até a curetagem e, posteriormente, até a alta é esperado com muita ansiedade pela maioria das mulheres, apesar do tempo médio de internação ser de dois a três dias dependen-do da evolução clínica da mulher. O desejo de retornar às suas casas emerge em suas falas:

Quero que faça o efeito logo do remédio...não falaram nada da curetagem? Eu queria que fosse logo,quero ir embora...não vejo a hora de ir embora... (1)

Há nesse desejo de retorno uma certa esperança de “esquecer o ocorrido”. Es-tar hospitalizada lhes remete à causa des-sa hospitalização. Tanto para as mulheres que verbalizaram ter planejado a gravidez, assim como para as outras, há essa neces-sidade de retornar à casa; porém, para as que haviam planejado a gravidez esse de-sejo se fazia menos ansioso. Talvez esse retorno pudesse ajudá-las a atenuar essa angústia.

Foi relatado o medo de que pessoas significantes descobrissem o ocorrido e, nes-se nes-sentido, o tempo de hospitaliação assume grande relevância:

Meus pais vão ligar em casa, né...porque eles moram em G, e eu em república...a única pessoa que sabe que eu estou aqui é uma amiga minha da república, se meus pais ligarem lá eu peço para falar que eu fui dormir na casa de uma amiga para estudar (8)

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a internação a fim de não serem identi-ficadas pela sociedade, nem serem alvos de curiosidade(28).

A solidão, falta de apoio, o medo dos olha-res que poderão culpá-las são facetas que permeiam a situação; a solidão é sentida por todas as mulheres independente da causa do aborto. Algumas fixavam seus olhos no nada. O que as incomodava no local era o não parar de pensar, de refletir. Às vezes, o silêncio as incomodava:

Eu não queria mais a tortura remoendo, uma coisa que vai e volta sem parar na cabeça da gente. Queria acabar com tudo o mais rápido possível e nunca mais lem-brar do que aconteceu (8)

De certa forma, o fato de permanecer hos-pitalizada por um tempo que é sentido por elas como muito longo as coloca numa situa-ção de ter ao seu redor pessoas que, necsariamente, sabem da situação pela qual es-tão passando. Ainda que não importe deter-minar a causa do aborto há um certo senti-mento de culpa ou constrangisenti-mento, seja nos casos sugestivos de aborto espontâneo ou para aqueles que sinalizam para uma inten-ção de abortamento. Assim é que durante o convívio com essas mulheres observei que raramente se deslocam da enfermaria para outras áreas do hospital, como se quisessem que suas presenças fossem o menos notadas possível.

O desejo de ter ou não um filho, de ter ou não provocado um aborto, da situação e c o n ô m i c a d a f a m í l i a e d a i d a d e gestacional não interferem no sentido de amenizar ou intensificar a dor dessa per-da. Portanto, a expressão desse pesar é extremamente pessoal(14).

Como uma experiência que traz consigo uma culpa ou medo de ser culpada

O julgamento que pode haver por parte das pessoas exterioriza os parâmetros valorativos da nossa sociedade sobre a ques-tão da maternidade como destino da mulher(28).

O direito sexual da mulher não tem, ne-cessariamente, que estar ligado aos direitos reprodutivos. Segundo o autor, a maternida-de, infelizmente, é quase uma obrigação em nossos países, sendo vista como uma consequência lógica: se há atividade sexual,

deve haver casamento ou filhos(26). Porém,

quem deve decidir sobre ter ou não filhos, e quando os ter, é a mulher. Isso diz respeito a toda filosofia do planejamento familiar(26).

Diante disso, julgo ser necessário que os profissionais reflitam ao cuidar dessas mu-lheres para que esse cuidar não seja norteado por algum julgamento segundo seus valores pessoais. É importante o res-peito ao silêncio das mulheres nesse mo-mento. O fato de algumas delas não se manifestarem, explicitamente, através de choros ou expressões de tristeza, não sig-nifica que a situação não se apresente como uma situação de dor e, nesse sentido, nos alerta(24) para a significância do silêncio na

linguagem humana.

Além dos vários sentimentos já mencio-nados na primeira categoria temática, as mu-lheres têm um sentimento de culpa ou medo. Medo de ser culpada, tendo necessidade de se explicar. Suas falas revelam o medo do julgamento moral das pessoas:

Às vezes, a pessoa olha assim, e muitos lá de fora falam, é porque tomou remédio, às vezes a pessoa que está passando por isso não tem nada ver o que as pes-soas comentam, sempre vai ter uma críti-ca, ahhh! como é que espontaneamente vai ter um aborto..., não vou negar esse homem aí estava querendo pagar prá mim tirar, mas eu ia ter esse filho eu daria prá minha mãe toma conta...eu pensei não acho que não tem dinheiro no mundo que vai pagar quando eu chegar lá prá con-versar com o Senhor, prestar uma conta...eu não quero essa culpa não...porque sempre vai ter uma dúvida no ar prás pessoas que me conheciam, será que foi espontâneo ou foi provoca-do? Mas eu fico feliz porque minha cons-ciência ta tranqüila. (7).

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gestivas de aborto espontâneo, essa culpa emerge. É uma culpa de outra natureza, por não ter conseguido levar à termo a gestação. Alguns funcionários da enfermagem, no ato de cuidar dessas mulheres, o fazem de forma diferente dependendo da provável etiologia do aborto. Mulheres com histórias clínicas sugestivas de aborto provocado são vistas como irresponsáveis. Não observei tão claramente isso quando se trata dos médi-cos; para eles o importante era o biológico. Isso pode ocorrer talvez por se tratar de um Hospital - Escola ou poderia ser uma questão de gênero ou até mesmo uma diferença entre os atos cuidar e de curar.

Há um trabalho que(29) atenta para o

sig-nificado do cuidado do paciente com AIDS, relatando esse cuidado envolvido por senti-mentos de medo, receio e pena do indivíduo no caso do vírus ter sido adquirido por trans-fusão sanguínea; nos casos de homossexu-ais, drogados e prostitutas, emergem a cen-sura e o julgamento por parte dos funcionári-os da enfermagem. E outro(30), um estudo

so-bre suicídio, também observaram a intolerân-cia e incompreensão que as pessoas têm no ato de cuidar dos indivíduos suicidas. O au-tor(6) denuncia a existência de um certo

pre-conceito em torno da pessoa que tenta o sui-cídio, expresso pelo desprezo, agressividade. Os médicos estão preparados tecnicamen-te para lidar com as conseqüências e compli-cações do aborto, mas não moralmente(31).

Não me deparei com uma situação explíci-ta de aborto provocado, mesmo porque há mecanismos que o mundo do hospital usa para fugir dessa questão e se ater ao que en-tende ser seu papel: cuidar biologicamente da mulher em situação de aborto. Há dificul-dade em aproximar-se academicamente do tema do aborto intencional devido às impli-cações jurídicas, o que torna difícil e rara a sua caracterização nas situações hospitala-res(11). Não sendo possível uma afirmação,

trabalha-se com probabilidades de aborto in-tencional e, assim, com base em um conjunto de fatores (história clínica, exame físico) um provável aborto provocado recebe a denomi-nação de aborto inevitável ou infectado. Esse contexto envolve um conviver dos profissio-nais de saúde com uma questão polêmica, considerando que não dispõem de diretrizes e suporte para outras formas de ação.

O diálogo é muito importante, pois para se concluir pelo diagnóstico de aborto pro-vocado, além dos dados clínicos e do exame ginecológico, o tocólogo também se vale da informação correta do paciente e, somente com uma boa interação e confiança na relação médico-paciente(32).

O aborto envolto por critérios éticos, mo-rais e religiosos incomoda as mulheres, le-vando-as ao sentimento de culpa ou medo de ser culpada pelo modo com ela está encaran-do a situação. Pude apreender esse meencaran-do atra-vés de sua fala:

Não sei se de repente alguém pode sar que eu sou uma menina fria por pen-sar assim, entendeu? Do modo como eu estou encarando toda essa situação, para mim tinha que acontece isso, não era o momento de ter um filho agora(11)

Muitas vezes, o abortamento induzido é apresentado como uma decisão egoísta e fria. Assim, de acordo com esse ponto de vista, a mulher é vista como uma crimino-sa(28). De acordo com o Código Penal

Brasi-leiro, não se pune aborto provocado por médico se não há outro meio para salvar a vida da gestante, se a gravidez resultar de estupro(20).

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maioria das vezes, envolve angústia e culpa. Culpa nem se sabe exatamente do quê, mas ela surge mesmo quando existe uma decisão clara de que o aborto foi o passo mais correto que poderia ter sido dado. É uma opção que tem que ser respeitada(14).

Entendo que há outros horizontes de possibilidade para a mulher em sua trajetó-ria de controle da sua fecundidade e que incluem, necessariamente, a educação, o pronto acesso aos Serviços de Saúde, uma preocupação genuína com a saúde in-tegral da mulher. São caminhos que a res-peitem como cidadã livre para fazer esco-lhas, mas que não impliquem, necessaria-mente, em uma aceitação plena do aborto. Assim, compreender as falas das mulheres se constitui numa possibilidade de acesso ao seu ser, lembrando que o respeito e a interação são importantes para entendê-las em sua situação de abortamento.

Como uma experiência que envolve uma preocupação com o corpo

Nos seus discursos há uma explicitação veemente da sua preocupação com a integri-dade do próprio corpo, com o que ele venha a sofrer durante a curetagem e um medo de não poder mais gerar uma criança, conforme expressa o depoimento:

...mas eu tive medo...medo de aconte-cer algumas coisa...com a gente mesmo...mas acho que eu vou ficar nes-se mesmo arranjar pra perder, né...a gen-te só sofre... (5)

Essa preocupação está relacionada às complicações e conseqüências do aborto já mencionadas. Outra seqüela do aborto, tão importante quanto as descritas, ocorre a nível emocional. Há riscos para o abortamento, inerentes a qualquer proce-dimento cirúrgico, mesmo quando executa-do com técnica perfeita e em ambiente adequado(32).

Nesse meu “conviver-com” as mulheres, observei o suscitar de um sentimento de in-segurança, emergindo preocupação de que, na curetagem, “estarão mexendo” num ór-gão seu muito importante, o úteroe, ao lado do medo face a impossibilidade de vir a ter outros filhos, surge a verbalização de adiar essa vinda ou até de pensar em não ter fi-lhos nunca mais:

...agora eu pretendo esperar ó daqui uns cinco anos e olhe lá ainda...eu peguei trauma...pensei até em não ter filhos nun-ca mais. (9)

Fiquei com medo de acontecer alguma coisa, porque está mexendo no seu úte-ro, né, uma coisa mais séria,...sei lá, de acontecer alguma coisa e eu não poder ter mais filhos... (11)

Pude observar as mais variadas postu-ras das mulheres frente ao aborto. O medo que se expressa pelo rosto pálido, mãos úmidas ou trêmulas, voz baixa e insegura que, em conjunto, mostram o seu modo de encarar e lidar com a situação que está vivenciando.

O desvelamento dessa faceta é de impor-tância fundamental para o cotidiano dos profissionais de saúde que atuam nessa área pois, num processo de interação com essas mulheres, eles precisam estar atentos para essas questões. Não só para a questão da preocupação com o corpo, mas também com o medo de ser culpada. Proponho a compre-ensão dessa situação de abortamento, anali-sando o contexto sócio-econômico e afetivo em que se encontra essa mulher, sua história de vida, história conjugal. É preciso estar aten-to para não modificar o aaten-to de cuidar segun-do a etiologia segun-do aborto, ou cuidar sob certo julgamento moral em relação a essa mulher. Para as mulheres que já têm um ou mais fi-lhos, o medo da impossibilidade de uma nova gravidez é menor e o modo de encarar a situ-ação de abortamento se modifica. A impossi-bilidade de uma nova gravidez se apresenta muito ameaçadora para algumas mulheres, pois o seu desejo é ser mãe pelo menos uma vez em sua vida.

Ainda da análise compreensiva desses depoimentos entendo que o fato de revestir o filho de uma identidade parece dar, aos olhos da mulher, uma existência a ele, ainda que sua “morte” tenha ocorrido. Há estu-do(10) que também observou essa faceta

quando investigou a morte no período perinatal.

Como uma experiência que traz consigo o desejo de rever projetos de vida

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gravidez seja planejada e, nesse sentido, interessaram-se em saber sobre métodos contraceptivos e falaram da dificuldade de adesão a eles, principalmente nas situa-ções que requerem envolvimento do parceiro:

Hoje, eu quero dar um futuro melhor pros meus filhos...porque criança não tem cul-pa do que os cul-pais fazem...hoje eu quero mais ser dedicada, meus estudo.... (7)

...mas agora eu quero arrumar minha vida, trabalhar...e eu quero mais ver meu filho bem...e só. (10)

A história de vida dessas mulheres, que inclui algumas características já mencionadas, mostrou-se através de algumas falas relevan-tes nesse desejo de mudar os rumos de suas vidas. Assim, nesse momento verbalizaram a situação desconfortante de dependência em relação ao marido, principalmente àqueles que as maltratam e têm relações sexuais extra-con-jugais. Essa dependência mostrou-se a mim de várias naturezas, tanto econômica como afetiva. Algumas revelaram que se casaram muito novas para libertarem-se da casa dos pais, interrompendo os estudos, tornando-se “escravas” do marido:

Eu arrumei ele porque eu não queria cair na vida, que eu acho que a pior coisa é a mulher se sentir largada...sabe...jogada, mesmo...esse meu último filho eu queria ter com a pessoa que eu amasse, que fosse pra viver comigo e desse carinho, afeto a mim e a meus filhos (7)

Larguei tudo para ficar com ele, eu tinha 14 anos... agora eu lavo, passo, faço co-mida e chega à noite ainda quer... (7)

Esse momento lhes abre possibilidades para pensar em si mesmas, para refletir, num processo de revisão de suas vidas. Verbalizam a vontade de serem independentes. O aborto parece trazer consigo o desejo de mudanças significativas no seu modo de vida, entre o “antes” e o “depois” da situação. Algumas referem que é algo que pode ser evitado, isto é, se não há desejo de ter filhos no momento, porque não prevenir?

Nunca mais quero passar por isso...agora quero planejar melhor...(7)

Agora vou evitar...(11)

Entretanto, há momentos de resistência ao ato de prevenir nova gravidez, tanto por

parte do parceiro, como da própria mulher em todo seu contexto de vida. O tema da sexuali-dade é tratado com pouca naturalisexuali-dade e, ape-sar de eu ter buscado um diálogo, com uma boa interação e confiança na relação sujeito-pesquisador, suas falas são permeadas por sentimentos de vergonha.

O desvelamento dessa faceta permite al-gumas observações pertinentes à atuação da equipe de saúde e, particularmente, dos pro-fissionais de Enfermagem. Percebi a dualidade mente/corpo que se apresenta aos funcioná-rios de forma dicotomizada: de um lado, as tarefas e procedimentos e, de outro, o “apoio psicológico” e a visão do paciente em sua integralidade.

As mulheres expressam suas dificuldades em relação a seguir métodos contraceptivos, a ter diálogos com o parceiro e verbalizam o desejo de transformações nessa esfera. Esse estudo vem mostrar que nesse momento de sua vida a mulher está mais receptiva para ver as possibilidades de mudanças em sua existência. Segundo a perspectiva fenomenológica, a intencionalidade de suas consciências está começando a voltar-se para a importância do uso de métodos contraceptivos.

Assim, é um momento fecundo para orientá-las a prevenir-se; há muitos cami-nhos para essa orientação. Pode-se trazer essa mulher para os Serviços de Saúde (prin-cipalmente os de nível primário), envolven-do também o seu parceiro. É necessária uma melhor articulação dos hospitais de atendi-mento a complexidades e as Unidades Bási-cas de Saúde no sentido de, efetivamente, inserí-las em Programas de Saúde da Mu-lher. Com os avanços da informatização pode ser facilitado o agendamento do horário na UBS no momento das altas dessas mulhe-res; outro caminho seria esse agendamento ser realizado através do Hospital pois, como já foi mencionado, a intencionalidade de suas consciências está começando a voltar-se para a importância do uso de métodos contraceptivos. Há também a possibilidade da enfermagem em saúde pública atuar reali-zando visitas domiciliares assim que ocorrer o retorno às suas casas.

(11)

envolvi-Rev Esc Enferm USP 2003; 37(2): 59-71. A mulher em situação de abortamento: um enfoque existencial

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das pelo tema do aborto. O vínculo empático é importante no sentido dessas mulheres sentiram se à vontade para escla-recer dúvidas, falarem de seus medos, das dificuldades de aderir ao anticoncepcional (pílulas), ou de pedir ao parceiro o uso do condom, da incompreensão dos parceiros com objetivo de ouvi-las, identificar pro-blemas, fatores e buscar soluções, ou seja, estar atenta às suas possibilidades de pro-jetar-se para outras dimensões de seu ver a sua vida.

São propostas difíceis de serem coloca-das em prática, pois envolvem uma série de fatores que podem ser restritivos para ado-ção de medidas que possam reduzir o nú-mero de abortos, sofrimentos e complica-ções para a mulher e também o custo para os serviços públicos de saúde. Alerta-se para a importância do direito à educação e às informações, lembrando que se uma pes-soa não tem acesso a informações verda-deiras, científicas e oportunas não pode tomar decisões(26).

O aborto tem sido estudado por diver-sos autores e sob diferentes abordagens como fenômeno social e como problema de saúde; é um fator de alta incidência no que diz respeito à morbidade materna e estão as-sociados à falta de assistência médica, de acesso a informações e a métodos contraceptivos(27).

Não chegaremos à saúde sexual sem uma educação da sexualidade, que até agora este-ve muito ligada aos aspectos morais e religi-osos, prevalecendo muitos mitos e tabus, em detrimento de uma educação direcionada a evitar riscos desnecessários, como as infec-ções de transmissão sexual ou a gravidez indesejada que, posteriormente, trarão outras conseqüências(26).

Vale salientar também a importância da atenção às mulheres que desejam engravidar e não conseguem levar sua gestação adian-te. Elas precisam de um acompanhamento, uma orientação, uma pessoa disponível para ouví-las, com o empenho em compreendê-las em sua situação. Quando a gravidez foi planejada há um sentimento de frustração com maior intensidade que quando não pla-nejada. Duas mulheres desse estudo havi-am planejado a gravidez. Nota-se a frustra-ção nessa fala:

... para mim foi terrível, eu queria muito o filho. Uma mulher sempre quer ser mãe... e a hora que ela tem oportunidade ela quer agarrar com todas as forças (3)

A EXPERIÊNCIA DE ABORTAMENTO:

GRAUS DE COMPREENSÃO

Em minha proposta de compreensão do significado da situação de abortamento, aos olhos da mulher que o vivencia, percorri uma trajetória metodológica que possibilitou o desvelamento de algumas facetas relevantes dessa situação quanto à assistência a essas mulheres. Trazer à luz perspectivas de com-preensão desta experiência pode se consti-tuir em subsídios para nortear o planejamen-to da assistência a essa mulher que contem-ple o seu experienciar. Assim, tal planejamen-to não poderá percorrer o caminho da elabo-ração de modelos normativos, uma vez que a questão do aborto é essencialmente indivi-dual e envolve todo um contexto sócio-eco-nômico, afetivo e religioso.

Neste sentido, a trajetória em busca do aclaramento do fenômeno mostrou que este tema tem sido envolto por tabus, critérios éti-cos, morais e religiosos, principalmente pela característica de nossa sociedade de santifi-car a maternidade. É importante que os pro-fissionais reflitam sobre suas posturas, pois, apesar desse estudo não ter tido a preocupa-ção de identificar a etiologia do aborto, obvi-amente que a história clínica, o exame físico e as histórias de vida sinalizavam, em alguns casos, para uma intencionalidade no ato de abortar.

Alguns funcionários da enfermagem, no ato de cuidar de mulheres em situação de abortamento, o fazem de forma diferente de-pendendo da provável etiologia do aborto, isto é, mulheres com histórias sugestivas de aborto provocado. Entretanto, esse cuidado deveria ser de ajuda e orientação proporcio-nando um atendimento que contemple sua situacionalidade e temporalidade.

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Magali Roseira Boemer Mariana Gondim Mariutti

ver projetos de vida. Esse momento mostrou-se fecundo para orientá-las.

Durante a realização desse trabalho, foi possível perceber a necessidade de outros estudos que contemplem questões ligadas ao significado dessa situação aos olhos da equipe de saúde. Julgo também as ações de enfermagem muito importantes no cuidado, considerando que o ato de cuidar envolve uma proximidade física, um maior acesso ao corpo. Há de se considerar ainda que um gran-de contingente do pessoal gran-de enfermagem é constituído por mulheres, implicando, de certa forma, em um relacionamento entre cuidador e paciente potencialmente empático, onde a cumplicidade, a parceria e a comunhão de questões ligadas ao exercício de ser-mulher podem estar presentes.

É necessária uma busca por novos hori-zontes, o que inclui a educação e o pronto acesso aos Serviços de Saúde Integral da Mulher. É uma tarefa a ser perseguida e, está nas mãos de todos nós por meio de uma edu-cação sexual mas aberta, sincera, científica, apegada aos direitos e à realidade, sendo uma

situação multifatorial, onde não existe somen-te um responsável, pois há falhas institucionais no setor de saúde quanto à acessibilidade real da educação sexual com respeito e liberdade o que, segundo o autor, inclui a responsabilidade livre de mitos e ta-bus, mas que falem dos riscos em geral; exis-tem também falhas na dinâmica familiar, pois agora não só os pais trabalham fora, mas as mães também têm que fazê-lo, gerando certo afastamento(26).

Este autor assinala também o fator eco-nômico que, inegavelmente, influi no com-portamento sexual, principalmente nas cama-das mais pobres. Há falhas nos aspectos da formação religiosa, necessitando-se de uma crença que defenda um ponto de vista do que é bom, mais positiva do que negativa.

O abortamento não deve ser justificado e sim compreendido. Atitudes de curiosidade ou de reprovação são inúteis e não ajudam a re-solver o grande problema de saúde pública em que se transformou o aborto. As atitudes de reprovação fazem com que os profissionais desmereçam a confiança neles depositada(32).

REFERÊNCIAS

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