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Documentário humano: Saramago e o Neo-realismo

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Academic year: 2017

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D O C U M E N T Á R I O H U M A N O : S A R A M A G O E O N E O - R E A L I S M O

O d i l J o s é de O L I V E I R A F I L H O *

A l i g a ç ã o entre a p r o d u ç ã o literária de J o s é Saramago e o Neo-Realismo parece ser um fato de claras e v i d ê n c i a s . Isto, desde Levantado do Chão, de 1980, que representa, na obra do autor, o momento de encontro de uma d i c ç ã o peculiar - o t r a ç o e s p e c í f i c o de estilo - que c a r a c t e r i z a r á toda sua p r o d u ç ã o posterior.

Para a l é m desse fator, j á por si m u i t o significativo, Levantado do Chão é, na verdade, uma e s p é c i e de acerto de contas de Saramago com o Neo-Realismo: uma tentativa de, investindo profundamente nas possibilidades artísticas da ficção, construir, sobre o tema c l á s s i c o da p r o b l e m á t i c a social da vida no campo, um romance em que o sentido da d e n ú n c i a n ã o desvirtuasse a c o n f o r m a ç ã o e s t é t i c a do texto. E x p r e s s ã o bem sucedida desse e s f o r ç o . Levantado do Chão pode ser visto, nesse sentido, como uma e s p é c i e de marco na trajetória do escritor: um marco de s u p e r a ç ã o , dialética, da h e r a n ç a neo-realista que retoma.

Tendo em vista, p o r é m , o conjunto das p r o d u ç õ e s de Saramago, pode-se dizer que pode-se tratava mais exatamente de uma retomada e de um acerto de contas do autor consigo p r ó p r i o . De fato, nascido em 1922, Saramago inicia-se na ficção literária com um primeiro romance, intitulado Terra do pecado, de

1947 - hoje quase desconhecido e, talvez sintomaticamente, n ã o mencionado no r o l das obras publicadas pelo autor.

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Do texto em q u e s t ã o diz H o r á c i o Costa que nele Saramago se aproxima "perigosamente dos p a d r õ e s m i m é t i c o - r e a l i s t a s que em termos e s t é t i c o s , definiam a linguagem neo-realista" (Costa, 1988, p . A - 3 3 ) . Trata-se, portanto, de uma a u t ê n t i c a obra do Neo-Realismo p o r t u g u ê s , escrita no calor de seus anos iniciais, caracterizados, como se sabe, por um grande empenho social dos escritores, o que, como t a m b é m hoje j á consensualmente se j u l g a , fazia com que, na maior parte das vezes, os aspectos i d e o l ó g i c o s problematizados nas obras enfraquecessem o alcance artístico dos textos.

Ora, tendo em vista o c a r á t e r nuclear de Levantado do Chão, r e s p o n s á v e l pela viragem que significará o encontro do modo expressional peculiar do Autor, pode-se entender que equivale, realmente, a uma retomada de si p r ó p r i o , do J o s é Seramago-jovem, neo-realista, autor de Terra do pecado, tentando viabilizar, mais de trinta anos depois, a saída estética que os escritores ligados ao Neo-Realismo c o m e ç a r a m a procurar logo a p ó s a ortodoxia dos anos iniciais.

A saída encontrada para o tratamento do tema, de clara raiz neo-realista, retomado em Levantado do chão, consegue-a Saramago explorando ao m á x i m o as possibilidades artísticas da narrativa, libertando-a dos travejamentos asfixiantes que os p a d r õ e s m i m é t i c o - r e a l i s t a s lhe impunham. O j o g o executado com as categorias temporais, que contraria a tentativa neo-realista do exame ordenado da "fatia de vida", e, principalmente, a i n t r o d u ç ã o da figura de u m narrador-contador de h i s t ó r i a s , que comenta, i n t e r v é m , dialoga com o leitor - o que, e n f i m , quebra o mandamento m á x i m o da objetividade, p r ó p r i o de toda estética de raiz realista -, s ã o índices dessa e x p l o r a ç ã o consciente da ficção literária e do e s f o r ç o de J o s é Saramago na s u p e r a ç ã o do reducionismo d o u t r i n á r i o praticado, em larga medida, por aquela g e r a ç ã o de escritores, entre os quais se inicia e aos quais - como demonstra Levantado do chão - ainda, de alguma forma, se liga.

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" u m escritor c o n t e m p o r â n e o dos neo-realistas", cujo objetivo seria o de "tentar dar credibilidade à doutrina de que os neo-realistas eram porta-vozes". Baseando-se nos dois romances publicados por Saramago a p ó s o hoje quase t a m b é m ignorado Manual de caligrafia e pintura (de 1977), ou seja. Levantado do chão e Memorial do convento, Saraiva entende que para realizar tal objetivo Saramago adaptou ao romance o "processo de distanciamento" de Brecht, o que lhe teria permitido "expor a doutrina sem forçar a realidade", ficando a voz narradora " l i v r e para imaginar um processo h i s t ó r i c o de acordo com a e s p e r a n ç a e a utopia do autor" (Saraiva, 1984, p.170).

N u m a v i s ã o anterior sobre o tema (Oliveira Filho, 1994), polemizando com a h i p ó t e s e l a n ç a d a por Saraiva, tentei mostrar que o investimento profundo nos aspectos ficcionais, efetuado por Saramago nos dois romances, acaba por ser a forma exata, artística, d i a l é t i c a , de e x p r e s s ã o da realidade, e que n ã o caberia ao analista preocupar-se em apontar as coordenadas i d e o l ó g i c a s subjacentes a esse processo, mas, sim e principalmente, indicar o que, no campo da i n v e n ç ã o , estruturou-se como arte.

Neste momento, gostaria de poder refletir um pouco mais detidamente sobre as idéias colocadas por Saraiva e verificar, no trabalho executado por Saramago de retomada e s u p e r a ç ã o do Neo-Realismo, n ã o os í n d i c e s de r e n o v a ç ã o ( p r e o c u p a ç ã o do estudo anterior), mas os que se mantiveram e que s ã o t a m b é m r e s p o n s á v e i s pela v i n c u l a ç ã o entre o autor que conhecemos hoje e aquela g e r a ç ã o literária surgida em meados deste s é c u l o .

Diga-se, p o r é m , que tal intento n ã o se justifica por alguma e s p é c i e de criticismo diletante, mas porque encontra r a z ã o de ser quando, ao visualizar o conjunto da obra j á publicada por Saramago, pode-se perceber, no projeto e s t é t i c o do autor, uma continuidade do projeto ideado pelos neorealistas -conforme, sob certo aspecto, antevia Saraiva.

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Quer ser, antes de tudo, uni documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem (Redol,

1983. p. 9)

A necessidade e a u r g ê n c i a de realizar esse " d o c u m e n t á r i o humano", à revelia da arte, s e r ã o justificadas alguns anos mais tarde por Redol (numa i n t r o d u ç ã o a uma das e d i ç õ e s de seu l i v r o , datada de maio de 1965), como tentativa de fazer frente aos a v a n ç o s do totalitarismo, que, e n t ã o , r á p i d a e assustadoramente se disseminava e contra o qual reagiam as " c o n s c i ê n c i a s alertadas". Fazendo aí a a u t o c r í t i c a do c a r á t e r por demais empenhado de seu romance ( n ã o sem o amargor de assim justificar-se ante as jovens g e r a ç õ e s ) diz Redol que a epígrafe que tanta p o l ê m i c a causara n ã o pretendia exprimir verdadeiramente uma tomada de p o s i ç ã o contra a literatura, mas era t ã o -somente a c o n f i s s ã o de que o autor n ã o se sentia "capaz de criar uma a u t ê n t i c a obra de arte":

Ao autor importava, antes de tudo, que o seu livro fosse testemunho do que considerava, e ainda hoje considera, um dos mais profundos aspectos da realidade da vida portuguesa. (Redol, 1983, p. 9)

Todos sabemos que, a partir desses momentos combativos iniciais (dos quais Gaibéus é a e x p r e s s ã o talvez mais concreta), o Neo-Realismo preocupou-se em a v a n ç a r artisticamente, conseguindo, em muitos casos, operar a n e c e s s á r i a síntese entre a p r o b l e m a t i z a ç ã o estética e a p r o b l e m a t i z a ç ã o social. Desta, p o r é m , o Neo-Realismo - ou como quer Fernando M e n d o n ç a - os "diversos neo-realismos" ( M e n d o n ç a , 1973) jamais abriram m ã o , permanecendo sempre, de alguma forma, a intenção de " d o c u m e n t á r i o humano" que Gaibéus já de início reivindicava.

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que permanece na retomada d i a l é t i c a da h e r a n ç a neo-realista por Saramago, muito mais do que a "doutrina" (como quer Saraiva), é a s e m e l h a n ç a de um mesmo projeto, consubstanciado nessa busca de r e a l i z a ç ã o de uma literatura que testemunhe e documente, projeto esse que estava na base da literatura neo-realista e que, entendo, ainda sustenta a literatura de J o s é Saramago.

De fato, se parece ser indiscutível a qualidade artística de seus textos, n ã o h á como n ã o perceber t a m b é m o intento documental ou, melhor dizendo, de " d o c u m e n t á r i o humano" que esses textos c o n t ê m . Assim, ainda que n ã o se encontrem, em seus romances, os índices de doutrinarismo e x p l í c i t o e os e q u í v o c o s causados pela tentativa de r e p r e s e n t a ç ã o especular do real dos neo-realistas, n ã o se pode deixar de sentir a força assumida aí pela i n t e n ç ã o de testemunhar e documentar.

Quero alertar que n ã o se tenta aqui separar, de maneira perversa, a forma do c o n t e ú d o , mas t ã o - s o m e n t e reconhecer um projeto que s ó aparentemente pode ser considerado " e x t r a - l i t e r á r i o " , sendo, na verdade, o alicerce sobre o qual a obra do autor se consolida. Para conseguir que assim o fosse, para n ã o cometer o engano que desvirtuou muitas das p r o d u ç õ e s neo-realistas, teve Saramago de investir nas r e s i s t ê n c i a s e s t é t i c a s de seus textos, efetuando aquilo que A d o r n o diz ter sido efetuado por Brecht, ou seja: afastar-se da realidade social, que suas obras miravam, "a f i m de fornecer à sua atitude uma e x p r e s s ã o a r t í s t i c a " ( A d o r n o , 1982, p. 254).

Este distanciamento (entrevisto argutamente por Saraiva) Saramago atinge, nas s u g e s t õ e s emanadas do teatro de Brecht, n ã o s ó a t r a v é s do recurso do distanciamento temporal, utilizado na maioria de seus romances, mas t a m b é m a t r a v é s do uso da ironia e da paródia, dos d i á l o g o s intertextuais e, principalmente, da i n t e r v e n ç ã o da figura de um contador é p i c o de h i s t ó r i a s a mediar o contato entre o leitor e o universo narrado.

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humano" ganhou mais força, atingindo um sentido que nem os p r ó p r i o s neo-realistas imaginavam.

De fato, a f i m de evitar o tratamento imediato das s u g e s t õ e s da realidade, que o distanciamento temporal concede, viu-se Saramago obrigado a realizar uma a u t ê n t i c a pesquisa histórica (pode-se mesmo dizer, documental) do passado retomado em seus romances, tornando muito p r ó x i m a sua figura de escritor da de um historiador - a p r o x i m a ç ã o essa que se reforça ainda mais num processo atual de a p r o x i m a ç ã o que t o m a cada vez mais t ê n u e s os limites entre a literatura e a história.

Assim, desde Memorial do convento, passando por O ano da morte de Ricardo Reis e História do cerco de Lisboa (repare-se no c a r á t e r h i s t ó r i c o destes t í t u l o s ) , a t é a p o l ê m i c a i n t e r p r e t a ç ã o histórica de Cristo, baseada, como se sabe, na pesquisa de evangelhos a p ó c r i f o s , efetuada em O evangelho segundo Jesus Cristo, os romances de Saramago t ê m rivalizado com (e mesmo questionado) as v i s õ e s que a História construiu sobre cada um dos temas e p e r í o d o s de que cada um desses romances trata.

Digo rivalizado porque as i n t e r p r e t a ç õ e s ficcionais que Saramago tem elaborado, em seus romances, sobre fatos do passado, soam t ã o v e r o s s í m e i s que têm efetivamente questionado certas v e r s õ e s (ditas) h i s t ó r i c a s sobre esses mesmos fatos (penso, aqui, na chamada história oficial, de raiz positivista). Assumindo uma clara tarefa a n t i - i d e o l ó g i c a , o que a ficção de Saramago tem conseguido é proporcionar novas v i s õ e s e v e r s õ e s sobre o passado e, principalmente, o resgate da h i s t ó r i a dos marginalizados e vencidos - que s ó n ã o é documental porque os v e s t í g i o s dessa história foram dizimados pelos vencedores. Mas podem ser imaginados, reinventados, ficcionalizados, aparecendo como " e s t ó r i a s " , como "documentos humanos" que nos convencem de sua veracidade pelo poder que possuem de nos atingir Ointeriormente, tanto nessa nossa t ã o humana - como diz Antonio Candido - "necessidade de ficção e fantasia", quanto em nossa capacidade de c r e n ç a e de e s p e r a n ç a no p r ó p r i o homem.

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equivocaramse, principalmente, por n ã o acreditarem como deveriam -escritores que eram, e, por isso, p a s s í v e i s de crítica - que à literatura nada do que é humano pode ser estranho, e que, num mundo alienado (e que, infelizmente, cada vez mais se aliena), narrar, ou seja, praticar a literatura em toda a sua inteireza, era (e é, ainda) uma forma concreta de resistir.

R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S

ADORNO, T. Teoria estética. Trad. Artur Mourão. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

COSTA, H. O lugar de José Saramago na literatura contemporânea. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27 abr. 1988.

MENDONÇA, F. Para a interpretação dos diversos neo-realismos. In: A literatura portuguesa no século XX. São Paulo: HUCITEC/Assis: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1973. p. 98-123.

OLIVEIRA FILHO, O. J. Carnaval no convento: intertextualidade e paródia em José Saramago. São Paulo: EDUNESP, 1994.

REDOL, A. Gaibéus. 8.ed. Lisboa: Europa-América, 1983.

Referências

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