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Ficcionalização e autoficcionalização "em alguma parte alguma" : do processo maquínico de construção e desconstrução de si na poesia de Ferreira Gullar

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Academic year: 2021

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS

FELIPE DE ALMEIDA TAVARES

FICCIONALIZAÇÃO E AUTOFICCIONALIZAÇÃO “EM ALGUMA PARTE ALGUMA”: DO PROCESSO MAQUÍNICO DE CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DE SI NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

VITÓRIA 2013

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FICCIONALIZAÇÃO E AUTOFICCIONALIZAÇÃO “EM ALGUMA PARTE ALGUMA”: DO PROCESSO MAQUÍNICO DE CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DE SI NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Sérgio da Fonseca Amaral

VITÓRIA 2013

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T231f Tavares, Felipe de Almeida,

1979-Ficcionalização e autoficcionalização “Em alguma parte alguma” : do processo maquínico de construção e desconstrução de si na poesia de Ferreira Gullar / Felipe de Almeida Tavares, 2013.

90 f.

Orientador: Sérgio da Fonseca Amaral.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais.

1. Gullar, Ferreira, 1930- – Crítica e interpretação. 2. Autoria. 3. Literatura brasileira – História e crítica. I. Amaral, Sérgio da Fonseca. II. Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais. III. Título.

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Àqueles que de algum modo contribuíram em alguma parte alguma e a meu professor, Sérgio da Fonseca Amaral, que orientou e confiou.

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Platão – “Filebo”

"Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco."

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O objetivo do trabalho é desenvolver o conceito de autoficcionalização do sujeito na poesia de Ferreira Gullar. Uma vez que tal conceito não fora encontrado em nenhum texto da bibliografia estudada nos apoiaremos nos princípios de Gilles Deleuze e Felix Guattari acerca dos corpóreos e incorpóreos e seu devir puro. Partindo da ideia de que a palavra autoficcionalização é um deverbal, ou seja, um substantivo que surge a partir de um verbo – ficcionalizar – torna-se possível entender que, enquanto fenômeno verbal proveniente do ato de escrever, o sujeito criado através da autoficcionalização será mero efeito de superfície, ou seja, um efeito possibilitado pela linguagem, mais especificamente, pela ação verbal presente no ato de escrever. Dessa forma, bastaria ao autor escrever, utilizando-se da primeira pessoa, para que, consciente ou não, produzisse esse efeito de superfície que chamaremos autoficcionalização do sujeito, que difere de autoficção, pois, ao contrário dela, não pressupõe uma relação de causa e efeito e acontece independente da vontade do autor.

Palavras-chave: Ferreira Gullar; Incorpóreos; Efeito de Superfície; Ficcionalização e Autoficcionalização.

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our beliefs in Gilles Delleuze’s and Felix Guattari’s principles about the corporeal and incorporeal, and their pure transformation. Starting from the idea that the phrase autofictionalization is deverbative, i.e. a noun that comes from a verb - fictionalize – it is possible to understand that, as a verbal phenomenon from the act of writing, the subject created through autofictionalization will merely have a surface effect, i.e. an effect made possible by language, more specifically, by the verbal action present in the act of writing. Thus, an author would only need writing in first person, so that, consciously or not, this effect would be produced. Our understanding of autofictionalization – the surface effects – differs from the idea of autofiction, since, unlike the latter, it does not imply a cause and effect relationship and takes place regardless the author’s will.

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6.2 EM ALGUMA PARTE ALGUMA...16

6.3A MORTE...18

6.4A FICÇÃO...22

6.5 ENTRE O SIGNO E A OBRA...28

6.6ENTRE O AUTOR E O LIVRO...31

6.7Máquina-escrever...37

6.8O ser do livro...38

6.9A AUTOFICCIONALIZAÇÃO...40

A distância das coisas...41

O processo de separação das coisas...42

6.10ANÁLISE DO CORTE NO OSSO...43

6.11Poema I: Reflexão sobre o osso da minha perna...44

6.12 Poema II: Acidente na sala ...47

6.13O SENTIDO DO POEMA...49

6.14 CONCLUSÃO:...50

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INTRODUÇÃO

Neste trabalho tentarei compor a ideia de autoficcionalização do sujeito. Buscarei, primeiramente, apontar um conceito de ficção, signo e obra a partir de teorias modernas, em seguida desenvolverei o conceito proposto (de ficção), caminhando com Deleuze e Guattari, principalmente. Para tal empreitada, embora acredite que a ficção remeta à prosa, utilizaremos os poemas de Ferreira Gullar, mais precisamente do livro “Em Alguma parte Alguma”. Necessariamente, outros teóricos surgirão no decorrer do texto, além dos já citados, todavia a base da ideia central será construída pelos autores de “O anti-édipo”.

Entendo que a escrita de Ferreira Gullar em “Em alguma parte alguma”, ou qualquer livro de literatura, deva ser vista como um todo, um grande enunciado. O livro, um enorme signo, que pode ser percebido em diferentes perspectivas a partir de cada poema, o que faz dele (o livro) uma obra aberta a possíveis interpretações.

Cada poema, isoladamente, nos fornece uma parte dessa totalidade. Dessa forma, assim como a realidade empírica não pode ser apreendida em sua plenitude, não poderemos ter uma visão global, completamente acabada, de um livro de poemas como esse de Ferreira Gullar. Tão pouco poderemos captar em sua completude o sujeito que ali se reproduz, tecnicamente denominado eu-lírico, o mesmo diremos daquele que costumamos chamar de autor: está sob a força da incompletude.

O modo como Gullar dilui o ser na sua escrita, penso, conforma-se, de diversas maneiras, com a noção contemporânea de sujeito. Construção fragmentada e múltipla, um ordenado de vozes habita as linhas de sua poesia a cada leitura. A presença do autor, mesmo quando justificada pelo uso do nome próprio, não constitui efetivamente uma presença, mas, como veremos adiante, uma ausência, um afastamento que dá lugar ao outro, “vai se formando/ a meu lado/ um outro/ que é mais Gullar do que eu” (GULLAR, 2010, p.38). Por meio de um vazio, ganha esse escritor um caráter ao mesmo tempo de signo e de ficção, pois o espaço aberto à interpretação completa-lhe o silêncio da fala (ainda assim parcialmente). Vejamos agora seu poema “FALAR”1:

1Para melhor orientação optei por manter os títulos dos poemas do livro “Em alguma parte alguma” em caixa-alta, conforme a edição consultada.

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A poesia é, de fato, o fruto

de um silêncio que sou eu, sois vós por isso tenho que baixar a voz porque, se falo alto, não me escuto. (GULLAR, 2010, p.47).

Quando aqui utilizo a ideia de vazio – ou silêncio ou ausência – trago sempre implícita a noção de uma abertura, uma possibilidade interpretativa, estes espaços vazios são o que o receptor deve completar referente ao outro, ser da poesia. Assim, o poeta baixa a voz não só para se escutar, mas para ser vós, multiplicar-se em leituras. Posiciono-me, então, em acordo com as teorias que deem grande relevância ao papel do receptor – ou intérprete ou fruidor – com suas diferentes terminologias. Sendo assim, aproximarei a ideia de autoficiconalização a teorias da semiótica como a de Barthes, que, entendo, vê no signo uma abertura que pode estar localizada no significante; a de Umberto Eco que, acredito, vê no signo uma abertura proporcionada pelo movimento de perspectiva que a obra permite; à Derrida, que vê na escrita uma produção de ausência. Assim, posso dizer, encontramos no vazio o motor da obra ficcional, o que nos aproxima de uma Teoria do Efeito Estético.

Tentarei, então, explorar esses vazios do texto literário através de poemas de Ferreira Gullar para assim mapear o processo de desconstrução do “eu” que aqui chamarei de autoficcionalização. É notável em certos poemas encontrarmos a presença de um “eu” que algumas teorias chamarão de autobiográficos ou autoficcionais, deixo claro que não pretendo me contrapor a tal ponto. Contudo, creio que para além desses conceitos, autoficcionalizar é um processo de escrita verbal que ocorre em textos chamados autoficcionais ou não, testemunhais ou não, e é isso o que vai possibilitar nestes a realização da ficção ou da autoficção.

Poderia neste momento surgir uma pergunta: por que trabalhar com o gênero poema? Entendo que há uma tendência em associar o efeito ficção aos textos narrativos em prosa. Parece claro ao senso comum que quando falamos dos gêneros conto, romance ou novela estamos necessariamente tratando de ficção, excluindo com isso o poema. No dicionário Houaiss, por exemplo, uma das acepções da palavra ficção é: “prosa literária (freq. conto, novela, romance) construída a partir de elementos imaginários calcados no real e/ou de elementos da realidade inseridos em contexto imaginário; ficcionalismo, ficcionismo, narrativa.” O

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dicionário confirma essa tendência associativa dos gêneros narrativos como derivação da ficção ao chamá-la de prosa literária. Acredito que não associamos tão naturalmente a lírica à ficção, dessa forma, parece-me mais isento abordar a autoficcionalização por meio de poemas, evitando assim a obviedade que os outros gêneros carregam quanto à ficção.

Contemporaneamente, podemos encontrar autores que tratem da construção do sujeito na poesia enquanto um aspecto psicológico, social, histórico, porém o fenômeno ficção, insisto, tende a nos levar aos estudos de textos narrativos. É claro que essa não é uma via de regra atualmente: o teórico Wolfgang Iser, já na década de 60, reconhecia logo no início de seu livro, “O fictício e o imaginário”, que “é hoje amplamente aceito que os textos literários são de natureza ficcional” (ISER, 1996, p. 13). Assim, não estariam excluídos da ficção textos em versos, como os de Ferreira Gullar. Vale falar que no Brasil muitas coisas são tardias, inclusive a popularização de algumas concepções desse tipo.

Vamos agora a outra questão: o que viria a ser a autoficcionalização?

A autoficcionalização do sujeito é um conceito que vai de encontro à ideia de independência entre autor e texto. Sabemos que muito se foi dito sobre sujeito, autoria e obra, desde os textos inaugurais de Roland Barthes e Michel Foucault, “A morte do autor” e “O que é um autor?”, que problematizaram, mas nunca encerraram o assunto da autoria, pois seguem linhas de pensamento, pós-nietzschiana, que relativizam a verdade, procurando evitar a construção de dogmas. Também não tentarei encerrar nenhuma questão por aqui, mas mapear um modo de fazer ficção nas práticas literárias atuais e como o ser da ficção se liberta da figura do autor.

Considerando isso, a autoficcionalização partirá da seguinte ideia: a obra ficcional surge de uma experiência individual de seu autor tornada acontecimento na linguagem, que após a escrita, transformada em texto literário (ficção), não dependerá mais necessariamente de seu autor. Procuro afirmar que, na literatura ficcional, o processo verbal da escrita será, de saída, uma autoficcionalização que precederá o processo de leitura, que a (re)ficcionaliza. O texto literário romperá com o criador originário, porém isso não acontece na conclusão da obra, mas durante o processo de sua composição. Temos, neste caso, uma autoficcionalização para cada

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ficção produzida por um escritor, ou em nosso caso para cada poema do livro estudado.

Cabe dizer para reforçar a ideia que, com o termo em questão, não pretendo problematizar a existência de coincidências entre autor e personagem, autor e narrador, que a autoficção2 parece propor – o acaso de coincidências não

corroborariam para este trabalho. Apenas não vislumbraremos uma relação de causa e efeito entre os termos supracitados. Dessa forma, digo que na autoficiconalização, entre autor e obra, haverá uma não-causalidade ou, melhor dizendo, uma relação de consequência entre diferentes efeitos ou quase-causa, como diz Deleuze3. Deste ponto inicia-se a relação da autoficcionalização com

Deleuze; e, deste ponto, afirmo não haver nenhuma relação aqui com o termo autoficção. Se nela o autor insere-se no próprio texto, haveria, acredito, uma vontade de tornar-se presente nele, sendo assim, seria inegável a existência de uma relação de causalidade entre o autor e a ficção, do qual o última seria uma consequência do primeiro.

Na autoficionalização não se pressuporia uma causalidade, mas um processo de produção de ausência pela escrita, mesmo que o nome próprio aponte o contrário. Autoficcionalizar-se seria involuntário, uma vez que é um resultado do processo verbal de escrita, do enunciado linguístico. Não há causalidade, portanto, uma vez que o autor é efeito da pessoa que escreve (escrever produz autoria, não o contrário) e o texto é relacionado àquele efeito chamado autor, não à causa original (o ser que escreveu, pessoa física com registro social), por isso, sendo o autor um efeito: o texto é um efeito de um efeito – que adiante chamaremos scriptor4, em

oposição a escritor.

Quanto ao processo de escrita, o compreenderemos melhor pela ótica de Deleuze e sua análise dos estoicos, ou seja, atribuindo à escrita (ação verbal de escrever) uma relação direta com os incorpóreos. Posto que o verbo seja ação (imaterial) e sua existência esteja ligada à linguagem (também imaterial), torna-se o verbo, então, um efeito da linguagem pela linguagem; e tudo que é linguagem não tem profundidade, acontece apenas na superfície, não seria possível, portanto,

2Não há relação entre a autoficcionalizão e a autoficção. Esta aproxima-se mais da ideia de gênero literário, enquanto aquela seria uma suposta propriedade da ação de escrever literatura. Ao fazer literatura de qualquer gênero o escritor estaria em processo de autoficcionalização.

3Falaremos mais sobre a quase-causa a que se refere Deleuze adiante. 4Termo que tomo de empréstimo de Roland Barthes.

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atrelar ao eu do poema, depois de escrito, uma causa corpórea, pois esse eu manifesto surge de um acontecimento, um efeito de superfície, sua morada é a linguagem, seu limite; essa voz do poema é, então, o que através de Deleuze, chamo de produto do incorpóreo, um estado de coisas que pode apenas relacionar-se como efeito de outro efeito, nunca com causas – que são relacionáveis apenas com os corpóreos. Dessa forma:

Todos os corpos são causas uns para os outros, uns com relação aos outros, mas de que?

São causas de certas coisas de uma natureza completamente diferente. Estes efeitos não são corpos, mas propriamente falando, “incorporais”. Não são qualidades e propriedades físicas, mas atributos lógicos ou dialéticos. Não são coisas ou estados de coisas, mas acontecimentos. Não se podem dizer que existam, mas antes que subsistem ou insistem, tendo esse mínimo de ser que convém ao que não é uma coisa, entidade não existente. Não são substantivos ou adjetivos, mas verbos. (DELEUZE, 2009, pp. 5-6)”.

A autoficcionalização seria um processo inerente ao ato da escrita, um modo de construção de um ser pela escrita literária, a partir de outro ser real (todavia também produzido). A autoficcionalização é, dessa forma, um processo verbal de criação escrita. Devido a essa proximidade dos incorpóreos com o verbo escolhi, então, o substantivo “autoficcionalização” que, segundo o processo de formação de palavras, seria um deverbal oriundo do verbo ficcionalizar. Assim posto, entendo que autoficcionalizar é uma ação que resulta de uma mistura de corpos. Autoficciolização seria apenas um nome estático desse processo que é autoficcionalizar.

A fim de delimitar o corpus, o estudo se debruçará na poesia do eu, ou seja, somente naquelas em que haja o eu lírico, ou eu poético, explicitamente marcado pela primeira pessoa, pronome esse que poderia identificá-lo com (ou sugerir) o autor do poema, mas que não o faz plenamente, uma vez que na escrita literária ficcional ou poética o autor se ausenta, dando lugar a outro eu. Para sermos mais específicos quanto a nosso corpus, nos debruçaremos somente sobre a poesia de Ferreira Gullar contida no já citado livro “Em alguma parte alguma”.

EM ALGUMA PARTE ALGUMA

“Em Alguma parte Alguma” tem para mim por objeto o inesperado, por isso creio servir de mote para o desenvolvimento da ficção como tema. Porque o que fica de

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fato em cada história ou em cada poema que lemos é o imprevisto de nossas surpresas. É isso, a meu ver, que assegura o acontecimento da ficção, o inesperado da leitura, a possibilidade do vazio. E é por isso que insistimos em ler e reler. Procuramos sempre uma nova experiência, um novo inesperado para preenchermos. O inesperado é o que fundamenta a poética deste livro, o que contribui para a metaficção, o que permite que tenhamos a contemplação da visão estética do poeta.

“Em alguma parte alguma” é um título propício à autoficcionalização do ser, pois concebe a multiplicidade do ser. O ser, aliquid5 aliubi6, nesse caso, é a própria

ausência da poesia gullariana. A repetição do mote “em alguma parte” transforma a sentença em um designador vazio e circular, o que aponta para uma possibilidade, possibilidade que retorna em si. “Em alguma parte alguma” encontramos a multiplicidade da existência dos sujeitos e objetos. Alguma é o indefinido que carece de toda interpretação, alguma é o vazio por onde passa toda a poesia antes de se tornar poesia porque “alguma” é um designante de corpo vazio, ou melhor, quase vazio, posto que o gênero, ao menos o gênero, esteja determinado: o que me faz recordar o funcionamento maquínico da linguagem. Alguma nunca é o todo, a ideia já o diz. No entanto o título nos diz Em alguma parte..., o que faz referência a um lugar qualquer e específico: elabora-se desde o título um paradoxo na linguagem: o sentido torna-se infinito: alhures nunca se chega. De modo que o título deste livro me propõe a multiplicidade do ser e do espaço e, como poema também é tempo, a multiplicidade do tempo. Tanto é múltiplo que nos voltamos ao inesperado e suas possibilidades e, assim, arrisco dizer, é o ser da poesia: uma possibilidade de tempo e espaço. Assim como surgem os insights da vida, múltipla, que pode brotar em qualquer lugar, em alguma parte, inesperadamente, assim surge a poesia em Gullar, como UMA COROLA:

Em algum lugar

Esplende um corola De cor vermelho-queimado Metálica não está em nenhum jardim em nenhum jarro da sala

ou da janela não cheira

5Ver DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido.

6O termo consta como “alguma coisa em algum outro lugar” no dicionário do latinista F.R. dos Santos Saraiva

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não atrai abelhas não murchará

apenas fulge

em alguma parte alguma da vida

(GULLAR, 2010, p. 43).

Parece que é com isso que joga Ferreira Gullar, a sensibilidade do inesperado. O próprio título, “Em alguma parte alguma”, nos dá a sensação desta possibilidade de encontrar alguma coisa que não esperávamos. O mesmo mote se repete, inesperadamente, com pequena variação: em RELVA VERDE RELVA, “(Em algum lugar nenhum) (IDEM, p. 42);” em BANANAS PODRES 4, “Em alguma parte da vida (IDEM, p 50)”, em UM POUCO ANTES, “alguma coisa de mim (IDEM, p 74)”. Ao lermos, temos a impressão de que sabemos, intuímos o que ele fala, embora compreendamos que aquilo, o objeto de sua poesia, seja o intangível, pois o inesperado de que trata o poeta pertence ao instante, ao átimo de segundo de uma intuição, de uma surpresa, de um espanto que se perde na língua (ou na fala) e nós, leitores, tentamos resgatar. Assim, o ser ou a coisa recriada pela leitura do pronome “alguma” surge, ou brota, como, diria Deleuze, de uma raiz rizomática, o que revela, de certa forma, o funcionamento de sua obra.

Podemos ver nesse livro que o espaço, o universo, se faz presente como lugar das possibilidades do inesperado, uma das temáticas exploradas pelo poeta, como em INIMIGO OCULTO:

dizem que

em algum ponto do cosmo

(le silence éternel de ces espaces infinis m’éffraie)

um pedaço negro de rocha – do tamanho de uma cidade – voa em nossa direção

perdido em meio a muito milhares de asteroides impelido pelas curvaturas do

espaço-tempo extraviado entre órbitas e campos magnéticos voa em nossa direção

(IDEM, p. 92).

O inesperado aparece em vários poemas, em algumas partes do livro, e assim é o efeito da poesia: remete-nos ao imprevisto através dos espaços vazios e

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indeterminados do texto. Não sabemos quando a poesia surgirá do poema, vindo em nossa direção como um meteoro. Esses vazios, entendo eu, são bem representados pela angústia do poeta em entender o cosmo. Portanto, o espaço será um dos temas explorados por Gullar e servirá como metáfora da possibilidade, do acontecimento, do enunciado: motivos para a metalinguagem em sua arte:

[...]

Sei, de ler, que o universo é de tais dimensões

que a própria luz só o atravessa depois de bilhões e bilhões de anos, e que nele há multidões de galáxias e sóis que talvez morreram, antes de chegar sua luz até nós [...]

essas incontáveis galáxias, esses espaços sem fim, essa treva e explosões de lava. Como tudo isso cabe em mim? (IDEM, pp. 79-80).

Assim, como a imagem do universo, como as projeções do espaço, o que é enunciado no poema se mantém no passado até que sua luz chegue até nós, leitores. A escolha da metáfora “multidões de galáxias e sóis”, personificando os seres que compõem o cosmo, serve-me aqui de comparação ao universo em que circulam os poemas. As ficções, que nos surgem, em diferentes momentos, à luz de múltiplas interpretações. O espaço é como as palavras lançadas ao papel, seu locutor está ausente e o que nos chega é um efeito de presença na escrita do poema, aliquid, como a luz das estrelas.

Enfim, sua escrita é também a fala de um não lugar, de uma ausência, também inatingível, insólita. Eu diria que, neste caso, até mesmo desejada, afinal, a insistência por um não-lugar ou não-presença é tão marcante que vira não somente um tema, mas um recurso estilístico de metalinguagem. É por isso, também, que a poesia de Ferreira Gullar chamou-me a atenção, pois essa ausência presente de sua linguagem (ausência do ser original, presença do aliquid) é o que garante um ser interpretável que parece querer revelar ao leitor seu processo criativo.

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A MORTE

A morte, paradoxo dessa existência-ausência, será outra constante no livro. Creio que, como recurso metalinguístico, a morte servirá como metáfora ideal. Como um corpo sem consciência, ela é o motivo de uma dezena de poemas contidos na obra. É a significação desse corpo estável da palavra grafada o que nos remete ao tempo da poesia, o tempo da leitura do corpo do poema (coisa escrita), a leitura a tornar presente aquilo o que já foi enunciado, assim como somos nós em vida que significamos nossos mortos do passado. Tirando-lhes o poder de significante que possuem, são, o corpo e o poema escrito, somente matéria em decomposição. Vejamos agora como a morte surge em “O QUE SE FOI”:

O que se foi se foi Se algo ainda perdura é só a amarga marca na paisagem escura. Se o que se foi regressa, traz um erro fatal: falta-lhe simplesmente ser real

Portanto, o que se foi, se volta, é feito morte. Então por que me faz o coração bater tão forte? (GULLAR, 2010 p. 45).

O que regressa da morte é somente significação. Por isso o regresso traz um erro fatal. É preciso existir tal erro para que haja interpretação, para que haja sentido na ausência da voz. E é a morte, esta dupla incerteza (“quando ela virá?” e “o que virá depois?”), o que melhor combina com o inesperado ser do poema: a morte evoca emoções inesperadas da mesma forma que um poema pode inesperadamente tornar-se poesia. Por isso ao falar de morte nesse livro, o poeta está fazendo uso de metalinguagem, ele fala do que é o processo de escrever. De modo que, se escrever é tornar-se ficção, ela o faz – dentro de uma perspectiva derridiana – através da escrita que coloca a fala no passado e a interpretação no futuro.

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Pareceu-me bem que a de Ferreira Gullar sirva de campo para explorar sua própria autoficcionalização em metapoesia. Sua escrita, em “Alguma parte alguma”, atua como metáfora do processo de ficcionalização e parece existir em alguns poemas, até mesmo por via de outras atividades artísticas, a conceituação da ficção, comparando-a à morte. Antes de seguirmos ao próximo tópico, vejamos o poema FIGURA-FUNDO: a pintura, digamos, é mentira isto é: uma pera pintada não cheira não se dilui em xarope,

água rala e azeda, é pintura e por isso dura

mais que qualquer pera verdadeira e por isso também, digamos a pera pintada a falsa pera

por ser mentira (por ser

cultura e não natura) Desta sorte

nos alivia

da perda e do podre da morte [...]

Aqui podemos traçar um paralelo entre a pintura e a ficção – duas formas de mentir através da irrealização da matéria em incorpóreos –, esta, como aquela, também é produto do fingir: ao falsear o cheiro através da sinestesia, ao revelar a ausência do ser em uma mistura de outras coisas que remontam um conceito estético através de um não-ser ou na relação com a figura da morte, posto que o enunciado é colocado no passado. Continuemos:

(...) e se a mentira fosse verdadeira? como fazê-la?

mas escute:

o que é falso é a pera que a pintura figura não a pintura

a cor o traço a pasta a fatura

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[...]

a verdade é que a fruta pintada não tem carnadura não se pode comê-la – é empaste, tintura na tela

mas pode – e por isto – ser bela

e, de outra maneira verdadeira [...]

Neste ponto, se percebe a realidade da pintura, “a cor, o traço, a pasta”, assim como no poema: a tinta, as letras, as linhas (versos). A imagem poética não tem carnadura, depende dessa última mistura de corpos – a primeira mistura é feita nas coisas e nos estados de coisas correspondentes e externos ao poema – para produzir seu efeito, que é, como diz os versos, “verdadeira de outra maneira”, seu sentido é a linguagem e seu processo de produção é incorpóreo (DELEUZE, 2012). Voltemos ao poema uma vez mais:

[...] E o pintor então dissolve a figura da pera

na pasta escura do fundo para

sem mentira dizê-la

e nela dizer o mundo [...]

Pintar a partir de então é despintar

Fundir a forma na escuridão (na pasta, na lama) fundir os brancos os verdes os azuis na suja

matéria sem luz [...]

(GULLAR, 2010, p 103- 106).

Em termos iserianos, arrisco a comparação, “dizer o mundo” é, de saída, um ato de fingir, a pera é recortada por uma seleção7 (veremos a seguir esses termos),

e, descolada do fundo, que é o mundo, uma transgressão, seguindo essa linha, “despintar o mundo” é fazer uma nova combinação8: outra transgressão que faz

mentir (a pera) como se fosse. Então, se a escrita do poeta não tem o mesmo tipo de fingir da pintura, há em comum, ao menos, o alívio de transgressão (da perda e do podre) do mundo. O poema parece abordar a ficcionalização através da análise

7Conceito Iseriano que veremos no capítulo seguinte. 8Idem.

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da prática do pintor. Todavia, não me parece vão dizer que ele fala da arte como um todo e, como veremos, existirá sempre a concepção de que o poema duplica, ou melhor, multiplica a realidade do mundo fazendo com que, como diz a poesia de Ferreira Gullar, o leitor ouça outro galo cantar noutro quintal que houve fora das letras que sua arte imprime, oferecendo-nos, conclui-se, uma perspectiva da ficcionalização.

A FICÇÃO

Antes de falarmos em autoficcionalização novamente torna-se importante deixar claro uma concepção de ficção. Farei isso, por meio de conceitos de Wolfgang Iser, teórico da literatura que se aproxima da Teoria da Recepção, de Jauss, o que nos será útil adiante, quando abordarmos alguns dos poemas de Ferreira Gullar.

De acordo com a Teoria do Efeito Estético, ligadas a Wolfgang Iser, a ficção é algo que acontece também de uma ideia de ação: atos de fingir – que buscarei associar ao acontecimento estoico por via de Deleuze. Não é à toa que um de seus livros se chamasse “O ato de leitura” – há sempre a intuição de um acontecimento na ficção ou na linguagem. Para melhor compreendermos a ficção, diz Iser em “O

Fictício e o imaginário”, precisamos pressupor uma relação triádica entre o real, o

fictício e o imaginário (Iser, 1996). O autor não coloca uma ordem primeira entre a realidade e a ficção, reconhece apenas que muito de uma pode existir em outra e vice-versa, contudo essa relação triádica seria uma propriedade fundamental do texto ficcional (idem).

O texto ficcional é aquele que finge uma realidade, se refere à realidade – mas se refere nunca no mesmo sentido ou significação. Diferente da visão da

mimese clássica, aqui o fingir sugere uma repetição da realidade:

Se o texto ficcional se refere portanto à realidade sem se esgotar nesta referência, então a repetição é um ato de fingir, pelo qual aparecem finalidades que não pertencem à realidade repetida, nele então emerge um imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. Assim o ato de fingir ganha sua marca própria, que é de provocar a repetição no texto da realidade, atribuindo, por meio dessa repetição, uma configuração ao imaginário em efeito (Vorstellbarkeit) do que assim é referido. (ISER, 1996, p. 14).

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O ato de fingir, então, é a repetição de uma realidade em um determinado texto, realidade essa que, ecoada, infligiria uma configuração ao imaginário – essa realidade se repete, porém o sentido da realidade e do texto nunca se tocam – certificaremo-nos disso com Deleuze e Derrida. É através do ato de fingir, portanto, que se torna possível uma relação entre realidade, ficção e imaginação.

Para que uma ficção possa existir seria preciso um recorte de uma realidade. A tal recorte Iser chamará “seleção” (ISER, 1996). Essa seleção, poderíamos dizer, é a parte para a qual o olhar do autor foi surpreendido – o que a linguagem tornará um acontecimento incorporal. Ao compor um poema em que pese sua experiência, Ferreira Gullar precisaria inserir dados contextuais ao seu texto para que cause o efeito de realidade. Assim, ao escrever, o poeta estaria inserindo dados da realidade extratextual em seus poemas, esse seria o processo de seleção cujo palavras escolhidas terão grande papel de designadores. Para Iser: “Inserir não significa imitar as estruturas existentes de organização, mas decompô-las. Daí resulta a

seleção necessária a cada texto ficcional, dos sistemas contextuais preexistentes,

sejam eles de natureza sócio-cultural ou mesmo literária. (IDEM, p. 16)” O teórico nos faz perceber que a seleção – tal qual o corte maquínico que agencia as formas –, enquanto dado tomado da própria realidade e tornados perceptíveis, é uma transgressão, o que ao nosso ver seria um corte com a realidade: o corte é um transgressor. Essa realidade, na sua totalidade, é desordenada aos olhos do poeta, é preciso que ele selecione o que dizer de sua experiência, de modo que selecionar é aplicar uma ordem ao caótico do mundo através do agenciamento da máquina-língua9:

meu assunto por enquanto é a desordem o que se nega à fala o que se escapa ao acurado apuro do dizer a borra a sobra a escória a incúria o não caber (GULLAR, 2010, p 26).

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A desordem começa a se ordenar a partir da seleção: a borra, a sobra, a escória, a incúria cabem no poema ou se não cabem fingem caber no momento em que são retirados da realidade e transpostos em letras.

Depois de selecionados, tais dados da realidade precisam ser combinados assim que se tornam elementos textuais com parâmetros literários. Esse processo daria o aspecto formal ao texto, na medida em que o autor escrevesse determinado livro após dada seleção. Para Iser a combinação e a seleção são correspondentes enquanto atos de fingir, pois equivalem à uma transgressão:

Como ato de fingir, a seleção encontra sua correspondência intertextual na

combinação dos elementos textuais, que abrange tanto a combinalidade do

significado verbal, o mundo introduzido no texto, quanto os esquemas responsáveis pela organização dos personagens e suas ações. A combinação é um ato de fingir porque também ela possui a caracterização básica: ser transgressão de limites (ISER, 1996, pp. 18-19).

A combinação é, portanto, um ato de fingir que põe à disposição do leitor um determinado arranjo feito pelo autor. Nos poemas de “Em alguma parte alguma” poderemos reparar como Ferreira Gullar coloca em seus versos elementos lexicais como “osso”, um palíndromo10, cuja existência no poema poderia combinar em várias

rimas com o som – osso, pescoço, ouço, que apesar de não correspondentes dariam eco ao primeiro vocábulo e circulariam a materialidade do corpo e do sujeito. Semelhante combinação prestaria um serviço estético à fruição do leitor, se o mesmo fosse sensibilizado pelo poema.

Aproveitemos o momento para lembrarmos, a respeito do que foi dito na introdução deste trabalho, que tratar de poesia enquanto falamos de ficção é algo que o próprio Iser fez. Ao falar da combinação, o teórico utiliza versos de Eliot como “Should I, after teas and cakes and ices, / have the strength to force the moment to its crisis? (depois de chás e bolos e sorvetes, teria eu força de levar o momento à sua crise”, e diz a respeito:

As palavras em situação de rima ressaltam a divergência semântica justamente por sua sonoridade. Se o mesmo aqui assinala a não-equivalência, a combinação então funciona como revelação da diferença no semelhante. Mais uma vez esta diferença se organiza como uma relação entre figura e fundo, em que a crise é trivializada e o sorvete pode ganhar uma significação imprevisível. (ISER, 1996, p. 19).

10Aproveitaremos novamente as questões estéticas acerca da palavra “osso” em poemas específicos adiante.

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E retornando ao ponto, isso nos mostra como a combinação, que é um ato de fingir, tem na poesia o poder de potencializar um signo, trazendo-o à frente em relação a seu fundo, aumentando-lhe as possibilidades significativas para o leitor. O eu lírico de “FICA O DITO POR NÃO DITO” reconhece isso:

(...) o poema

antes de ser escrito antes de ser

é a possibilidade do que não foi dito do que está

por dizer (GULLAR, 2010, p. 21).

Quando escrito o poema, é selecionado o que até então “não foi dito” – este não se opõe ao dito, posto que o dito é pretérito, mas ao não-dito do poema que correspondente ao presente-ausente, àquilo que se furta ao presente – a partir de então (selecionado), o poema apresenta sua combinação, que neste caso é feita de elementos prévios à escrita que estavam entre o não-escrito (porém pensado) e sua possibilidade de escrita: possível combinação. O dito em pensamento separa-se do por dizer quando colocado no papel: nesse instante abrem-se as possibilidades para uma determinada configuração que será o poema. Todavia, tal possibilidade não terminará no escrito, este será o começo-fim de um processo de corte11 cuja leitura

será seu fim-começo. Essa interseção, este lugar que é de dois fins de um mesmo corpo-texto, possibilita ao leitor por meio do efeito das combinações das palavras existentes no poema, um devir-outro diante do leitor.

Outro ato de fingir, atributo da ficção, segundo Iser, é a capacidade de colocar, por meio do fingimento que lhe é próprio, um mundo entre parênteses, dessa forma, a realidade organizada pela ficção, referente a um extratextual, dever ser tratada como se fosse verdade. Esse como se é capaz de realçar um aspecto da realidade que se torna uma totalidade enquanto signo: algo que pode ser percebido em seu início e fim – tal totalidade, porém, não é possível ser alcançada pelo sentido do enunciado. Representar um mundo como uma totalidade, como faz a ficção, convenhamos, é dar a nós mesmos, leitores, a capacidade de apreciarmos um tipo de realidade em sua completude, o que, sabemos, é impossível no mundo real. Tal condição não nos é conferida em nenhuma outra relação, visto que a realidade

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extratextual é inapreensível em sua plenitude. Ou seja, a ficção constitui um mundo impossível por ser um signo completo e equivale a um mundo possível devido a sua incompletude de sentido: paradoxo da linguagem. Entretanto, nenhum espaço vazio se completa no signo, mas em sua interpretação, localizada na leitura, que nunca é idêntica ao seu referente externo. Iser acrescenta que:

O mundo representado no texto tem um efeito sempre ambivalente, porque, na concretude de sua representação, parece designar um mundo por ela representado. No entanto, os atos de seleção e combinação já revelaram que o mundo do texto, por eles construído, não é idêntico ao contexto. Segue-se daí que o mundo representado no texto não designa um mundo existente, por isso seu hábito designativo apenas funciona como a condição de uma referência. (ISER, 1996, p. 26).

Nesse sentido, a ambivalência do mundo textual é sustentada por uma duplicidade de uma realidade que ao mesmo tempo se afirma e se nega. A representação do mundo não poderia ser tomada pelo real, somente aparentar sê-lo, essa é a sua condição de realidade: ser possibilidade de abertura, pois a referência sempre nos escapa no outro que é duplo ser.

Iser chamará constantemente a atenção para o caráter transgressor do texto ficcional. Tais transgressões acontecem porque o ato de fingir estabelece as relações intertextuais, o que revelariam a intencionalidade do texto e sua facticidade (ISER, p. 20). Esse relacionamento, segundo ele, ocorre em três níveis. O primeiro nível acontece durante a combinação, a referência a normas e valores, convenções e citações contidas no texto. O outro plano de relacionamento ocorre na organização dos espaços semânticos cujo texto literário se apropriou. Esse nível de relacionamento, conforme Iser, constituiria uma transgressão de fronteiras:

Esta transgressão de fronteiras é, no sentido de Lotman, um acontecimento relacionado ao tema, que se revela como “elemento revolucionário” na medida em que se opõe “à classificação vigente”. Mas isso não vale apenas para a literatura narrativa, pois também é relevante para a lírica, em que o eu lírico se constitui como ponto de interseção de todos esses discursos do contexto do texto e que são introduzidos no poema. Resultam daí, desde logo relações diferenciadas entre os esquemas discursivos escolhidos, que devem ser transgredidos, para que o eu lírico, como ponto de intersecção, possa assumir sua configuração individual.(ISER, 1996, p. 21).

A transgressão parece estar atrelada à duplicidade da ficção, pois no momento em que algo é transgredido, passa a referir-se àquilo que era ao mesmo tempo em que se torna outra coisa. Tal efeito seria possível tanto na ficção

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relacionada a textos narrativos quanto na lírica, que é o nosso ponto. Dessa forma, a poesia também está sob a égide dos atos de fingir que fazem da ficção narrativa uma transgressão:

Os atos de fingir, que aparecem no texto ficcional, apresentam um traço dominante: serem atos de transgressão. Na seleção, são transgredidos os sistemas contextuais do texto, mas também é a imanência do próprio texto, por incluir em seu repertório a transgressão dos sistemas contextuais selecionados. Na combinação ocorre uma transgressão dos espaços semânticos do significado lexical, quanto para a constituição do acontecimento central à narração, o qual se manifesta na transgressão de limites dos heróis do romance. No como se, a ficção de desnuda como tal e assim transgride o mundo representado no texto, a partir da combinação e da seleção. Ela põe entre parênteses este mundo e assim evidencia que não se pode proferir nenhuma afirmação verdadeira acerca do mundo aí posto.(ISER, 1996, p. 31).

Fazendo um paralelo entre a transgressão e a máquina de Deleuze e Guattari, tanto uma quanto outra estabelecem cortes entre fluxos. O corte da autoficcionalização separa o fluxo real e o ficcional. Cada poema seria, assim, o resultado de um corte no fluxo de realidade em que o escritor se insere.

Vale lembrar que para tornar o efeito estético possível o leitor deve contribuir com sua parte. O leitor realizaria a atualização, que segundo Iser seria a última transgressão que o texto provoca. Para que a ficção possa se realizar dependerá também de espaços vazios. Tal concepção tem origem nas ideias de Ingarden acerca do conceito de lugares indeterminados, objetos ideais de existência autônoma que contribuem para distinção dos objetos intencionais. Iser dirá que:

De acordo com essa concepção, há objetos reais, universalmente determinados, e objetos ideais, que possuem existência autônoma. Os objetos reais são apreendidos, enquanto os objetos ideais precisam ser constituídos. Em ambos os casos se tratam de atos que possuem uma possível finalidade: o objeto real pode ser totalmente apreendido e o objeto ideal pode ser totalmente constituído. A obra de arte se distingue desses dois tipos pelo fato de ser por natureza um objeto intencional. Tal objeto não possui nem a determinação universal do objeto real, nem a existência autônoma do objeto ideal, pois é um objeto que espera sua realização. Os objetos intencionais carecem de determinação completa na medida em que esta é visada pelas elocuções do texto; daí resulta uma construção esquemática que Ingarden chama de objetividade apresentada pela obra de arte. (ISER, 1999, p. 108).

A poesia (quando o poema atinge esse estado), assim como o texto ficcional narrativo, se encontra nessa posição de indeterminação. Sua realização espera pela determinação de um leitor. Desdobrando Ingarden, Iser falará em lugares vazios,

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que segundo ele, “embora se pareçam com os lugares indeterminados [...] os lugares vazios, que resultam da indeterminação do texto, têm outra função [...] eles indicam a possibilidade do leitor ocupar um determinado vazio no sistema no texto (ISER, 1996, p. 126)”. Os poemas de Ferreira Gullar nos lembram disso: nos versos de “O ESPAÇO” temos a negação dos espaços vazios, porém pelo preenchimento de outros corpos: “não há espaços vazios / cada espaço / é feito / dos corpos que estão / nele / que o deformam e o formam (GULLAR, 2010, p.90)”. A interpretação é feita pelos diferentes corpos que passam pelo poema, que falam do poema ou escrevem sobre o poema e, de certa forma, estão no poema à medida que o significam como poesia. Os espaços da ficção e do mesmo modo os espaços do poema demandam o imaginário do leitor. Iser diz:

Os lugares vazios indicam que não há necessidade de complemento, mas sim a necessidade de combinação. Pois só quando os esquemas do texto são relacionados entre si, o objeto imaginário começa a se formar; esta operação deve ser realizada pelo leitor e possui nos lugares vazios um importante estímulo. (ISER, 1996, p. 126).

A ficção resulta, destarte, de uma combinação entre a realidade, o fictício e o imaginário sendo que este último se completa através de uma combinação de elementos extratextuais e intratextuais com os quais o leitor deve jogar atualizando as informações ali contidas e não contidas. É necessário um ponto de partida, convenhamos, mas também um ponto de chegada, então, o papel do leitor é fazer devir com o texto, este devir é o que entendo por interpretação. O fazer literário contemporâneo, parece-me, compreende bem isso. Vejamos, novamente, no poema “FICA O DITO POR NÃO DITO”, como, de alguma forma, o eu lírico, na dúvida do que dizer, pressupõe uma relação complementar entre ele, o poema e o leitor:

[...] mas dizer o quê? dizer olor da fruta cheiro de jasmim? mas como dizê-lo

se a fala não tem cheiro? [...]

por isso que

embora sem dizê-lo falo:

falo do cheiro da fruta do cheiro

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do cabelo do andar do galo no quintal e os digo sem dizê-los bem ou mal Se a fruta não cheira no poema nem do galo nele o cantar se ouve pode o leitor ouvir (e ouve)

outro galo cantar noutro quintal que houve (e que

Se eu não dissesse Não ouviria

Já que o poeta diz O que o leitor

– se delirasse – diria) (GULLAR, 2010, pp. 22-23)

A falta de cheiro da fruta e a falta de som do galo neste texto sugerem a importância da memória do leitor, pois ele pode ouvir o galo em outros quintais, dessa forma, o receptor se insere no poema através desses lugares vazios. Isso denota que na lírica de Gullar encontraremos esses pontos de indeterminação para que um leitor ideal (ou não) o determine. O texto utiliza o recurso da metalinguagem para explicar a existência de um elemento exterior ao poema em estado de poesia.

Os esforços do autor resultam na obra (através de sua autoficcionalização), a significação da obra compete a outra etapa, que é o processo de leitura, mas poderíamos pensar: como regulamos esses vazios? Aqui nos encontramos novamente em Deleuze e Guattari. Na verdade não regulamos os vazios. Aceitando a teoria de Deleuze e Guattari, penso que esses espaços vazios são preenchidos por uma produção de fluxo de desejo e cortes. Quem controla esses desejos não somos nós, leitores, mas o que Guattari chama de agenciamento maquínico:

"Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de

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enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o Impelem." (DELEUZE, apud ZOURABICHIVILI, 2004, p. 20).

Somos conduzidos a ficcionalizar o mundo através desse agenciamento. Os vazios serão preenchidos por desejos produzidos pela própria máquina desejante. Haverá a mistura de corpos do escritor, do autor e suas multiplicidades, do leitor, todavia o fluxo de produções de interpretações será um agenciamento: feito pelas enunciações contidas no livro – a máquina-livro. Dessa forma, o “cantar do galo”, a que se refere Ferreira Gullar, não teria o valor de um cantar de galo se não tivesse associado a um valor que a máquina produz e significa e que nós leitores desejamos (re)produzir. A ficção é um produto-produção.

Retornando a Iser, ainda em “Fictício e o Imaginário”, ele dirá que a ficção não nasce de si (1996), é preciso existir, portanto, um responsável pela seleção, em referência com a realidade, e pela combinação dos elementos no texto. Tal sentença, apesar de reconhecer a existência de um autor, não lega ao texto nenhuma dependência com o mesmo. Pelo contrário, como está voltada para a recepção, valeria ao texto, depois de escrito, mais as competências do leitor do que as do poeta. Muito embora o que chamamos competência do leitor poderia muito bem ser substituído por agenciamento (“das enunciações”).

Chegamos ao ponto em que vale a pena uma retomada. O texto fictício, então, é aquele que promove uma relação entre a realidade, o fictício e o imaginário. Esse tipo de texto possui algumas etapas que Iser chamou de seleção, combinação e como se. Cada um desses processos exerce sobre uma determinada realidade uma transgressão, o que, entendo, dá ao texto uma potencialidade ambígua. Combinando Iser e Deleuze, direi que tais processos (seleção, combinação e como

se) não são gerenciados pela vontade do escritor, mas por um agenciamento

maquínico que age sobre e pelo escritor. Podemos dizer também que toda transgressão funciona como um corte que separa o que era do que será. Neste sentido encontramos um princípio maquínico no fazer literatura. O corte é uma das ações que definem a máquina de Deleuze e Guattari. De uma certa forma, é no corte também que o autor se autoficcionaliza. Fazendo uma metáfora cruel escrever seria, então, uma automutilação.

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No meio disso está o devir da poesia, que para nós é o motor da ficcionalização.

A seleção, seguindo a linha de pensamento de Iser, tem o caráter de acontecimento. O texto ficcional, penso eu, devido ao fato de estar ligado a atos de fingir, transgressores, tem um caráter de acontecimento. Digo isso pelo aspecto principal de qualquer texto ficcional: ser linguagem. Nesse ponto, diria que acontecimento12 é a palavra que nos leva, principalmente, a Deleuze, pois, enquanto

ação, a ficção se aproximará dos verbos, o que por sua vez correlaciona-se aos incorpóreos deleuzeanos. Vejamos o que é para Deleuze um acontecimento: “Não perguntaremos, pois, qual é o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o próprio sentido. O acontecimento pertence essencialmente à linguagem, ele mantém uma relação essencial com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz das coisas. (DELEUZE, 2009, p. 23)”.

No que tange ao texto ficcional estamos, evidentemente, no campo da linguagem. O sentido da ficção, dentro dessa ótica, é a própria seleção, combinação e como se no enunciado: um destaque que se faz do fundo (que é o mundo) para um olhar que foca parte de uma realidade a ser posteriormente configurada. Essa linguagem, como diz Deleuze, é o que se diz das coisas. Ora, a ficção não é somente o que se escreve das coisas, é, também, como se lê tais coisas, outrora ditas por alguém em pensamento. Chego ao ponto de arriscar a dizer que: o sentido das coisas enunciadas com fins literário é a ficção. Um produto agenciado até a conclusão da escrita e em seguida novamente agenciado na produção de uma leitura.

Cumprida esta etapa e determinado o entendimento de ficção com base na Estética da Recepção e valorização do leitor, vamos à próxima etapa que consistirá na abordagem do tópico do signo e da obra numa perspectiva de abertura das possibilidades interpretativas.

12Veremos a seguir de que forma Deleuze entende que o acontecimento está ligada ao sentido da proposição.

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ENTRE O SIGNO E A OBRA

Alguns autores de semiologia ou teoria literária fizeram longos esforços para proporem um conceito de signo ou obra. A intenção aqui é trazer ao trabalho a questão da abertura do signo ou da obra (que em sua completude é novamente um signo) e como ela comunga com nossa proposta.

Quanto ao signo, propriamente, fazemos uso do conceito usual, explorado por Ferdinand Saussure, marco na linguística moderna, que consiste em dizer que ele é composto de um significado, de base conceitual, e um significante, uma imagem acústica. Podemos dizer que a ambiguidade começa no signo, uma vez que tanto o significado quanto a imagem estão sob o efeito da perspectiva de um olhar. Conforme foi dito no capítulo anterior, há na seleção de Iser um caráter de acontecimento, foi dito também que o acontecimento para Deleuze é a própria linguagem. É na abertura do signo, quero dizer, que a língua acontece e por consequência, é na abertura do signo que iniciamos a ficção através da produção de cortes. Essa abertura do signo, em sua ambiguidade, incide sobre o autor sendo o produto da autoficcionalização: isto é e não é o autor, ao mesmo tempo durante o processo. Realizar determinado corte (de leitura) é papel que não cabe ao escritor, quanto a este, a escrita já produziu sua autoficcionalização, gerando um signo aberto de sua obra.

Roland Barthes, um dos teóricos da semiótica, em seu livro “Mitologias”, demonstra sua visão acerca dos signos e como ele (o signo) pode se desdobrar em um mito. Para o autor o significante do mito possuía duas formas, uma plena e outra vazia:

O significante do mito se apresenta de uma maneira ambígua: é simultaneamente sentido e forma, pleno de um lado, vazio do outro. Enquanto sentido, o significante já postula uma leitura, apreendo-o com os olhos, pois ele tem uma realidade sensorial [...] e uma riqueza. O sentido já está completo, postula um saber, um passado, uma memória, uma ordem comparativa de fatos, de ideias, de decisões. (BARTHES, 2006, p. 208).

Retomando os conceitos iserianos, podemos imaginar uma associação entre o sentido pleno do significante e a seleção que o autor executa ao criar um texto ficcional. Todavia, convenhamos que sua criação, a partir de tal seleção (ou sentido pleno), nada seria se não houvesse um repertório comum entre a obra (signo) e o

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receptor: é preciso haver um acordo entre os termos designados e o entendimento dos futuros leitores. Vejamos neste poema de Ferreira Gullar algumas das palavras selecionadas:

DESENVOLVIMENTO DO QUADRADO EM CUBO a Mary Vieira

tudo de que ela dispunha era um quadrado de metal ionizado mas o sonha cúbico e o traduz de quadrado em cubo de ar (e luz) para isso corta-lhe a fímbria com lúcida certeza: e a dobra na razão exata da beleza eis tudo: o quadrado é levado ao cubo antes porém o fende no centro por onde (num momento dado) o cubo adentra e se torna o dentro do quadrado (IDEM, p.112).

Desde a dedicatória, que deixara à Mary Vieira, foi feito um processo de

seleção a priori. Após a seleção, na estruturo do poema, ela (Mary) não será mais

apenas aquela escultora brasileira: junto aos versos, torna-se signo de algo além de si mesma. Mary – transformada em signo – estará aberta ao devir das

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interpretações: que surgem quando a linguagem acontece, em seu efeito de superfície. Sabemos pelo nome que é dela que o poema fala – uns podem conhecer mais, outros menos e alguns nada a seu respeito –, mas através do texto não saberemos mais sobre ela do que aquilo que o poema traz: por isso, o leitor precisa, de antemão, ter em mente que ela é uma escultora para então poder fruir de todo efeito estético que o poema permite, podendo, então, notar a metalinguagem da poesia. Ciente disso, do fato dela ser escultora, o leitor pode situar-se no campo das artes. Há toda uma realidade sensorial já disposta nas palavras: “Mary Vieira”, “metal”, “cúbico”, “cubo”, “corta”, “dobra”, “razão” e “beleza” que nos posicionará diante de uma suposta realidade: Mary é artista? Logo percebe-se que sim. Vejamos a segunda estrofe “para isso /corta-lhe /a fímbria / com lúcida certeza:/ e a dobra / na razão / exata / da beleza”, as palavras “dobra”, “razão” e “beleza” estão potencializadas para além daquilo que denotam. A dobra não é simples dobra: é dobrar – o que revela uma intenção de metapoesia na linguagem, o que sugere o sentido da arte poética: ser um acontecimento transgressor. Esta dobra na razão, por sua vez, desdobra-se, pois, potencializada, não será somente razão: será a “razão exata da beleza”: essa beleza, tampouco é a beleza em si, mas o fazer artístico de Mary. Com isso percebemos que as palavras não correspondem ao seu sentido denotativo, estão transformadas, metaforizadas: há, penso eu, alguma ficção nisso: essa é a transgressão, o fingimento iseriano que acredito. Dobrar a razão é encontrar essa beleza da arte: razão estética que produz sentido na linguagem. O ato de fingir começaria na configuração literária dos signos selecionados que, por sua vez, superarão tais signos em seu sentido original (denotativo), quando adquirirem nova forma configurada pela leitura: eis um acontecimento e um corte. Já estamos na ficção desde a seleção e nela continuamos na combinação, pois quanto mais ou menos sabemos de Mary Vieira mais ou menos teremos que complementar com a imaginação acerca do que pode ser o fazer de sua arte, nos conformando, mais ou menos, com aquilo que diz o eu lírico do poema sobre a artista celebrada. Assim, percebo que o fluxo entre a realidade primeira e a realidade fingida é produzido entre cortes e vazios: aquilo que o escritor sabe – corte/vazio – aquilo que escreve – corte/vazio – aquilo que o poema sugere – corte/vazio – aquilo que o leitor completa13.

13A ideia de cortes e conexões que procurado dar aqui é retirada da leitura de “O anti-édipo” ou “Mil

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Dando continuidade com o raciocínio de Barthes, sobre o outro lado do significante, o lado vazio, aproveitemos a seguinte colocação:

Tornando-se forma, o sentido afasta a sua eventualidade; esvazia-se, empobrece, a história evapora-esvazia-se, permanece apenas a letra. Efetua-se aqui uma permutação paradoxal das operações de leitura, uma regressão anormal do sentido à forma, do signo linguístico ao significante místico. Detida nos limites de um sistema puramente linguístico, a proposição quia

ego nominor leo recupera aí uma plenitude, uma riqueza, uma história: eu

sou um animal, um leão, vivo em tal país, volto da caça, queriam que eu dividisse a minha presa com uma vitela, uma vaca e uma cabra; mas como eu sou o mais forte, reservo apenas para mim todas as partes por razões diversas, das quais a última é tão somente que me chamo leão. Mas como forma do mito, a proposição não revela quase mais nada dessa longa história. O sentido continha todo um sistema de valores: uma história, uma geografia, uma moral, uma zoologia, uma literatura. A forma afastou toda essa riqueza: a sua pobreza requer uma significação que a preencha. É preciso que a história do leão recue muito para ceder o lugar ao exemplo gramatical e que se coloque entre parêntese a biografia do negro se se quiser libertar a imagem e torná-la disponível para receber seu significado. (BARTHES, 2006, p. 208).

Esse esvaziamento do significante, que aponta Barthes, é o que permite o surgimento do mito: abertura para a duplicidade do signo. É nesse espaço, deixado pelo signo, que o leitor poderá atuar, dando movimento ao mito. Esse esvaziamento, mais uma vez, nos remete a Iser, posto que, na ficção, o teórico afirma existir

espaços vazios necessários a sua realização. Outro ponto que nos chama atenção:

para Barthes o significante esvazia-se quando o sentido toma forma: é nesse momento que o vazio precisará ser preenchido. O esvaziamento do significante ocorreria duas vezes: na escrita, pela seleção e combinação, e na leitura, através da nova forma que o sentido adquire. A forma que o sentido toma com a escrita, iserianamente, seria um ato de fingir, o qual ele denominará, como vimos,

combinação. Este ato, acredito, assemelha-se ao acontecimento, falando por via

deleuzeana, pois está vinculado à linguagem: a combinação já tem por si um aspecto ficcional, pois a ação combinatória é verbal e, portanto, incorporal, acontece fora da matéria e recombina-se na leitura.

Em outro poema de Ferreira Gullar, “O DUPLO”, podemos perceber o esvaziamento do nome durante o processo verbal de leitura: “Foi-se formando / a meu lado / um outro / que é mais Gullar do que eu (GULLAR, 2010, p.38)”. Nele, o autor se torna signo, semelhante ao que sucede a de Mary Vieira, e neste processo se duplica. Enquanto significante esvaziado, seu nome ganha nova forma para o poema: no processo criativo de escrever – enquanto se escreve – não estaríamos

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mais diante do Gullar empírico, todavia de algo, no intervalo, que é mais que Gullar era; e menos do que é14. A combinação iseriana faz o jogo intratextual, as palavras

subvertem o léxico, revela-nos, no poema, um ir além do poeta e do nome: vejo-o passar / com meu rosto / mas sem o peso do corpo. O corpo não tem mais a materialidade que a palavra supunha: o léxico é transgredido na combinação das palavras em versos. O corpo transmutado em signo, tornado-se substantivo, se refere a um Gullar, mas não o encontramos no vazio do significante do nome-signo. Configura-se, uma vez mais, o espaço vazio que abre espaço à imaginação do receptor. É como se a duplicidade do significante precisasse afastar o autor para ganhar novos contornos, podendo dar sentido, por exemplo, ao tema da desconstrução do sujeito ou da escrita de si, mas este sentido não é outro senão a própria linguagem, conforme o acontecimento deleuzeano. Assim, ficamos restritos à metaficção, jamais à meta-autoria (neologismo).

Enquanto substantivo, afirmo que, este Gullar do poema, torna-se um significante esvaziado, que pode ser vários, pois se fragmenta a partir deste esvaziamento e essa estratificação do sujeito fragmentado é também um produto da máquina. E como foi dito, não utilizamos esses vazios de maneira livre, aleatória – nossos desejos são direcionados, ou melhor, agenciados, segundo diria Guattari. Concordo aqui que quem gerencia o vazio criado pelo escritor é a máquina, pois ela é agenciadora de fluxo (do fluxo de sentido, por exemplo). Nesse caso, ficcionalizar também será um processo maquínico, produzido tanto pelo corte da máquina, como pelo gerenciamento de fluxo de desejos que ela, a máquina, exerce e que é responsável, penso, pelas deformações de leitura: ora, se a ficção acontece em dois turnos, com a autoficcionalização, também maquínica, não seria diferente: escrever produz uma sucessão de cortes e esvaziamentos agenciados pela máquina (produzir e ser produzido). Os vazios que o texto escrito proporcionam deveriam conectar-se à produção de desejo do leitor. Assim, o desejo da escrita seria produzir sentido; o desejo do autor, ser compreendido; o leitor, por sua vez deveria desejar ganhar sentido e (ou) ter compreensão.

Segundo Barthes, a face deformada do significante que resultaria na

significação do mito é a sua face plena. Podemos entender, por outro lado, que no

caso de uma interpretação viável, quando não irrompe em uma deformação, haveria,

14Em termos deleuzeanos, no processo de escrita o signo (no caso toda a enunciação) será, paradoxalmente, mais e menos do que Gullar simultaneamente e no mesmo sentido.

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então o preenchimento da parte vazia. Quero chamar a atenção aqui para essa possibilidade de abertura que o signo permite, tanto na face plena quanto na vazia. Os caminhos para nos perdermos das referências “reais” que os designadores propõem em um enunciado são diversos, por isso mesmo, os sentidos continuarão a circular na linguagem do poema em diferentes perspectivas, ou seja, abrindo-se às possibilidades interpretativas.

Umberto Eco, que nos dá a definição de obra como um objeto dotado de propriedades estruturais definidas, que não só permitem, como coordenam, o revezamento das interpretações, ao deslocar-se das perspectivas. (ECO, 2003, p. 23) –, defenderá, justamente, essa abertura para as possibilidades. Segundo Eco, isso se tornaria possível (em diferentes obras e em diferentes tipos de artes por ele estudadas) , uma vez que a abertura, enquanto ambiguidade fundamental da mensagem artística, poderá ocorrer em qualquer obra em qualquer tempo (ECO, 2003). Contudo, dirá ele, que, no momento atual, as obras que melhor propõem tal condição são aquelas capazes de assumir diversas estruturas, fisicamente irrealizadas ou imprevistas, definidas como obras em movimento. Estas teriam a coparticipação do leitor, que poderia acessá-la de diferentes pontos (perspecvística, poderíamos dizer). Quanto à obra em movimento, dirá:

O fenômeno da obra em movimento, na presente situação cultural, não está absolutamente limitado ao âmbito musical, mas oferece interessantes manifestações no campo das artes plásticas, onde encontramos hoje objetos artísticos que trazem em si mesmos como que uma mobilidade, uma capacidade de reproduzir-se caleidoscopicamente aos olhos do fruidor como eternamente novos. (ECO, 2003, p. 51).

Essa mobilidade seria o que faz a abertura de uma obra contemporânea, o que, vista como um signo, seria viabilizada pelo vazio do significante, como diria Barthes. Será também olhando através das lentes de um poeta que Eco extrairá exemplos para a obra em movimento, no Livre de Mallarmé:

[...] a obra colossal e total, a Obra por excelência que, para o poeta , devia constituir não somente o objetivo último de sua própria atividade, mas o próprio objetivo do mundo (Le monde existe pour aboutir à un livre). Mallarmé não levou a cabo essa obra, embora nela trabalhasse a vida inteira, mas existem seus esboços recentemente trazidos à luz por um sagaz trabalho de filologia. As intenções metafísicas subjacentes a essa empresa são amplas e discutíveis; permitam-nos pô-las de lado, para tomar em consideração tão-somente a estrutura dinâmica desse objeto artístico, que pretende realizar um ditame de poética bem definido: “un livre ni commence ni ne finit; tout au plus fait-il semblant” O livro devia ser um

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