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UMA BREVE ANÁLISE ACERCA DA TEORIA DA HORIZONTALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO ÂMBITO DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO: “LEADING CASES”.

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REPATS, Brasília, V.6, nº 2, p 403-425 Jul-Dez, 2019

UMA BREVE ANÁLISE ACERCA DA TEORIA DA

HORIZONTALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO ÂMBITO

DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO: “LEADING CASES”.

A BRIEF ANALYSIS ABOUT THE THEORY OF

HORIZONTALIZATION OF HUMAN RIGHTS WITHIN THE

FRAMEWORK OF PRIVATE INTERNATIONAL LAW: “LEADING

CASES”

Álvaro Ricardo de Souza Cruz*

Clarissa Aguilar Magalhães**

RESUMO: O presente artigo tem como escopo realizar uma breve discussão acerca da aplicação dos direitos humanos aos litígios envolvendo particulares. Nesse sentido, destaca-se no presente estudo a evolução das teorias da horizontalização dos direitos humanos e, ainda, demonstra-se que no plano interno a eficácia direta se dá com a Constituição, já no plano internacional, a eficácia direta se dá pela aplicação da Convenção Internacional. O trabalho aborda a origem vertical dos direitos fundamentais no Estado liberal de direito e depois o surgimento da horizontalização dos direitos fundamentais com o advento do Estado Social de Direito.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais, Cortes Internacionais, Horizontalização dos Direitos Humanos.

ABSTRACT: The purpose of this article is to conduct a brief discussion about the application of human rights to disputes involving private individuals. In this sense, the evolution of the theories of human rights horizontalization stands out in this study, and it is also demonstrated that, internally, direct efficacy occurs with the Constitution, while at the international level, direct efficacy occurs through application of the International Convention. The work addresses the vertical origin of fundamental rights in the liberal rule of law and then the emergence of the horizontalization of fundamental rights with the advent of the Social Rule of Law. Keywords: Fundamental Rights, International Courts, Horizontalization of Human Rights.

* Graduado em Ciências Econômicas na PUC e Direito na UFMG. Mestrado em Direito Público.

Doutorado em Direito Constitucional. Pós Doutorado em História. Exerceu a chefia, a PRDC e a Coordenação de diversas Câmaras do MPF. Autor de mais de uma dezena de livros jurídicos. Professor Adjunto III na PUC/MG, lecionando na graduação, mestrado e doutorado.

** Graduada em Direito na Faculdade de Direito Milton Campos. Membra Pesquisadora do Núcleo

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INTRODUÇÃO

É inegável a centralidade dos direitos fundamentais1 tanto no constitucionalismo contemporâneo quanto no direito como um todo. Desde a segunda metade do século XX, particularmente, após os horrores do Holocausto, os direitos fundamentais assumiram o principal foco de interesse, tanto da hermenêutica quanto da jurisdição de Cortes Constitucionais e Internacionais. A jurisprudência das Cortes Americana e Alemã, bem como da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos atestam com clareza nosso argumento.

No Brasil, a centralidade dos direitos humanos é reforçada por três aspectos. O primeiro, no plano normativo, se justifica pelo topos dos direitos fundamentais na Constituição Federal de 88. Percebe-se que o constituinte pretendeu marcar diferença notável na localização dos direitos fundamentais na carta emergente se comparada com a carta autoritária de 1967. Se, no período do arbítrio, os direitos fundamentais eram praticamente um apêndice da organização do Estado, surgindo apenas no artigo 153 daquele texto, agora, na carta atual, os direitos fundamentais abrem a Constituição já no artigo 5º da mesma. Dois outros argumentos se juntam ao primeiro. O primeiro advém do ideário do “constitucionalismo da efetividade social”, movimento da Academia Brasileira encabeçada, dentre outros, pelos juristas, Paulo Bonavides, José Afonso da Silva, Clémerson Cléve e Luís Roberto Barroso, que passou a entender a Constituição como um instrumento de redução das desigualdades econômicas e regionais existentes no Brasil. O direito passou a ser visto como um mecanismo de inclusão social de pessoas hipossuficientes. O último argumento advém da nossa história recente, em razão do esforço de superação dos traumas vividos pelo país durante os 21 anos de ditadura civil militar. Os recentes trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) não apenas atestam os horrores daquele período como também sugerem que os elevados

1 Adotamos aqui a clássica distinção que nomeia de “direitos fundamentais” aqueles previstos no

ordenamento jurídico interno, particularmente na Constituição e “Direitos Humanos”, bem como aqueles previstos no ordenamento jurídico internacional, por meio de tratados e convenções.

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índices de violência policial se justificam pelo desconhecimento das pessoas desse respectivo período histórico.

O presente trabalho pretende discutir aspecto fundamental da compreensão dos direitos humanos, qual seja, o exame da aplicação dos mesmos nas relações entre os particulares, que tecnicamente denominamos de horizontalização dos direitos fundamentais. O desenvolvimento do Trabalho se cumprirá em 3 etapas: a) Breve discussão sobre o Estado Liberal e sobre a verticalidade dos direitos; b) A constatação que o Estado Social e o Estado Democrático de Direito permitiram a construção das diferentes teorias justificadoras da horizontalização dos direitos humanos; c) o exame do caso Ximenes Lopes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que foi a primeira condenação do país sobre esta questão, bem como de dois outros julgados pela Corte Europeia de Direitos Humanos.

2 DA VERTICALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

Os direitos fundamentais nascem historicamente no seio de uma relação de antagonismo entre os indivíduos e instituições estatais. Se fizermos um levantamento histórico sobre os principais documentos que registram conquistas para o reconhecimento e a efetivação desses direitos, particularmente no paradigma do Estado Liberal de Direito, será possível verificar essa relação de desigualdade entre os cidadãos/súditos e os Estados. E é exatamente essa desigualdade que torna vertical a relação dos direitos humanos entre os cidadãos e o Estado. Não pode ser naturalizada a perspectiva de que nesse período de tempo esses direitos assumiriam o caráter marcadamente negativo, ou seja, apresentando-se como limites a ação do arbítrio estatal contra a ação da autonomia privada. Esse período liberal marca a transição de justificativas teocêntricas do poder divino dos reis para a legitimidade antropocêntrica da razão humana. Marca também a transição de uma concepção comunitarista do Estado frente a proposta de natureza individualista de governo.

Nesse sentido, a perspectiva de fragilidade do indivíduo face à potência do Estado e o reconhecimento do desequilíbrio de força entre eles permite que

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compreendamos a origem dos direitos humanos num plano de sua verticalidade, ou seja, no plano de uma relação marcada pela desigualdade entre o Estado e o indivíduo isolado.

A história inglesa é rica em fornecer documentos atestadores dessa relação de verticalidade. A Magna Carta de 1215/1225 destaca a fixação de limites do poder real em face dos direitos estamentais, marcadamente dos direitos do alto clero e da nobreza saxã e normanda. O rei João Sem Terra reconhecia a incapacidade real de impor tributos sem o consentimento dos súditos e a impossibilidade de limitar a liberdade e a propriedade alheia sem o devido processo legal.

A Inglaterra do século XVII é pródiga em tais documentos. O primeiro deles é o Petition of rights de 1628 que obrigava o rei a reconhecer os direitos da Magna Carta ampliando-os pelo reconhecimento do direito de petição dos súditos ao Parlamento em razão de ameaça ou violação de seus direitos. Em 1679, surge o segundo deles, o Habeas Corpus Act, por meio Do qual o Parlamento arrogava a si o poder de libertar qualquer indivíduo que considerasse ter sido preso por ordem real sem a observância do devido processo legal. Finalmente, em 1689, o Bill of rigths que foi um documento redigido pelo Parlamento inglês e endereçado aos reis Guilherme de Orange e Maria II. O ato não apenas impõe o reconhecimento de todos os direitos constituídos pelos documentos anteriores, mas define também, tanto a sucessão da coroa, quanto lança as bases e fundamentos para o parlamentarismo britânico.

Se está clara a relação de verticalidade dos direitos humanos nos documentos ingleses, o mesmo se manifesta de forma lapidar na história francesa. E, nessa seara, surgiu com grande relevância, quais sejam, o Édito de Nantes e a Declaração dos Direitos do homem e do cidadão.

Em 1598, o rei Henrique de Navarre promulgou o Édito de Nantes, restaurando a paz interna na França, convulsionada pela guerra civil de fundo religioso, que colocou católicos contra huguenotes num conflito fatricida. Henrique IV, originalmente protestante, converteu-se ao catolicismo por conveniência política, ao casar-se com a rainha Margot, filha de Catarina de Médicis, rainha da França.

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O Édito foi um decreto que definiu os direitos dos protestantes, particularmente o de liberdade religiosa. Observa-se que, até então, prevalecia o princípio cujus regio ejus religio, ou seja, a obrigatoriedade do súdito seguir por obrigação de vassalagem (homenagem) aos desígnios do suserano. Logo, o súdito não detinha, no espaço de sua autonomia privada, o direito de professar crença religiosa distinta daquela assumida pelo rei.

Nesse sentido, na sua obra “Teoria Geral do Estado”, Georg Jellineck observa que o Édito de Nantes constitui o mais importante documento histórico de afirmação dos direitos. Em seu entendimento, os documentos ingleses assumiam seu caráter de carta foral, ou seja, um acordo estabelecido em um determinado estamento medieval. Agora, a fixação da liberdade religiosa assumia um caráter geral que igualava formalmente a todos, independentemente dos direitos de nascença do período medieval.

La déclaration des Droits de L’homme et du Citòyen é um marco institucional, tanto do ponto de vista político, como normativo, mesmo porque compõe atualmente a Carta Constitucional Francesa vigente desde 1958, do Estado Liberal de Direito. Essa Declaração reconhece os direitos individuais e coletivos (direito de associação) dos homens. A tríade de “liberdade, igualdade e fraternidade” claramente exorbitava os interesses nacionais e assumia pela primeira vez um caráter universalista, pois a palavra “homem” assumia a perspectiva de “seres humanos”. Logo, decorreriam da doutrina jusracionalista que os concebiam válidos e exigíveis a qualquer tempo e lugar, pois decorrente da natureza humana de seus titulares.

Contudo, era inegável seu caráter vertical. A Declaração francesa pretendia extinguir os privilégios do “Ancién Régime” em um núcleo central de defesa da autonomia privada face aos excessos e abusos estatais. Ela erguia um “muro de garantia” dos interesses privados, tornando a sociedade uma esfera inacessível do arbítrio estatal.

Pela mesma maneira, atravessando o Atlântico, encontra-se, nos EUA, a Declaração de Direitos da Virgínia 1776, documento fundamental para a fixação do princípio da autodeterminação dos povos. O reconhecimento da soberania de um Estado não europeu foi de absoluta importância dentro do ideário iluminista

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para os povos do continente americano no século XIX e, posteriormente, no século XX, para povos africanos e asiáticos. E, pela mesma maneira, a Convenção de Filadélfia de 1787 consagrou pela primeira vez um texto constitucional que reafirmava, tanto os princípios de Virgínia quanto também as limitações dos poderes estatais contidos nos documentos ingleses, diante da herança cultural do recém criado Estados Unidos da América.

De todo modo, ressalta o argumento de que os direitos fundamentais, sejam na condição de liberdades políticas (França) ou de civil rights (EUA), surgem a partir de seu traço de verticalidade. Assim, há o reconhecimento da fragilidade do indivíduo diante do Leviatã, ou seja, da pessoa humana face à potência do Estado. E, mais recentemente, com o advento do Estado Social de direito, a verticalidade encontrava outro fundamento, qual seja, o da prevalência do interesse público sobre o interesse privado, quase sempre percebido como manifestação do egoísmo das pessoas face às necessidades da coletividade.

3 DA HORIZONTALIZAÇÃO DOS DIREITOS: SUPORTE TEÓRICO

O século XX trouxe a percepção de que o universo “estatal” dos direitos fundamentais estava “pequeno demais”. O advento do Estado Social de Direito, particularmente pela criação da Constituição Zapatista (México) de 1917 e da Constituição Alemã da República de Weimar de 1919, exigiu agora uma ação corretiva do Estado face aos abusos perpetrados na sociedade por corporações privadas.

Assim, se o Estado Liberal repudiava qualquer perspectiva de justiça distributiva estatal, pretendendo conceder a esfera privada de autonomia contornos de pretensão absoluta, agora o Estado era “convidado” a minimizar as injustiças sociais. Documentos históricos, como o Manifesto Comunista de 1948 e a Encíclica Papal Rerum Novarum de 1890 (fundamento para a doutrina social da Igreja Católica e complementada, dentre outras, pelo Encíclica da Quadragésima), impunham a ampliação dos poderes estatais.

Em verdade, o período das duas revoluções industriais (1750 – 1850) foi marcado por graves problemas de injustiça social, como jornadas de trabalho superiores à 15 horas que somavam-se à inexistência de qualquer legislação

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protetiva das relações de trabalho, relativas a férias, repouso semanal remunerado, limites ao exercício de atividades insalubres e perigosas. E, simultaneamente, a inexistência de normatividade que protegessem de alguma maneira as pessoas inválidas por acidentes do trabalho ou os idosos para fins de previdência, tornavam o regime de trabalho bastante análogo ao dos escravos. Se somarmos ainda os gaps remuneratórios para o trabalho infantil e feminino, não seria exagero afirmar que o trabalhador vivia plenamente o “Inferno de Dante”. A obra “Germinal” de Émile Zola atesta de modo candente as condições de trabalho na França do século XIX na atividade de extração de carvão.

Nesse sentido, a percepção de que os trabalhadores precisavam encontrar na normatividade jurídica proteção contra os abusos praticados pelas grandes corporações econômicas leva ao fenômeno da constitucionalização dos direitos sociais e coletivos.

Se, inicialmente, a autonomia científica do Direito do Trabalho face ao Direito Civil adveio da necessidade de proteção dos trabalhadores por garantias constitucionais, em período mais recente as possibilidades de aplicação dos direitos fundamentais em relações privadas foi bastante elastecida, como preconiza Cruz:

“Dentre esse novo universo de possibilidades, algumas delas podem espicaçar a imaginação do leitor estimulando seu interesse para a questão. Assim, indagaríamos se seria constitucional um pai deixar a totalidade da parte disponível de sua herança para para apenas um dos filhos sem que isso violasse o princípio da igualdade? Da mesma forma, seria legítima a conduta de um proprietário que despejasse por falta de pagamento um de seus locatários e o outro não, simplesmente porque o terceiro torceria por um time de futebol adversário daquele do coração do proprietário? E se a razão fosse porque o inquilino despejado fosse negro e o outro não? Seria possível processar alguém que não convida seu colega de serviço para uma festa de aniversário porque ele é homossexual? Mas, de outro lado, numa boate ou Night Club poderia barrar a entrada de alguém em razão de sua origem, cor ou preferência sexual? Como ficam as questões de adoção de crianças por homossexuais? O fato de vivenciarmos em um Estado Democrático implica a observância necessária do princípio da democracia em instituições particulares, tal como a igreja ou um colégio/clube militar? (CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica Jurídica e(m) debate. O constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial. Belo Horizonte: Forum, 2007, p. 340)

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Sendo assim, a multiplicidade de situações privadas cotidianas que se descortinavam à incidência de direitos constitucionais forjou em diferentes países o suporte teórico para o fenômeno da horizontalização dos direitos fundamentais.

Mesmo nos Estados Unidos, no qual os fundamentos do liberalismo tem razões históricas, bastando lembrar os motivos que levaram à sua guerra de independência, a aplicação dos direitos fundamentais em relações privadas aconteceu. Ali, a chamada State Action Doctrine temperada pelo escrutínio do Public Function Theory constitui o seu principal marco teórico.

Dessa maneira, a Suprema Corte Americana advertia a incidência de civil rights como elemento de limitação da esfera privada, como bem observa Daniel Sarmento:

“O caso mais emblemático de aplicação desta teoria foi o Mash v. Alabama em 1946. Discutiam se uma empresa privada, que possuía terras no interior dos quais se localizavam suas residências, estabelecimentos comerciais, etc., podia ou não proibir testemunhas de Jeová de pregarem no interior da sua propriedade. A Suprema Corte declarou inválida tal proibição, pois ao manter uma “cidade privada” (Private Owmed Town), a empresa se equiparava ao Estado e se sujeitava à 1º Emenda da Constituição Norte-Americana, que assegurava a liberdade de culto. A Suprema Corte Americana também se valeu dessa teoria para ? os partidos políticos – que também nos EUA são pessoas jurídicas de direito privado – ao princípio da igualdade, diante da recusa de comitês partidários de Estados do sul dos EUA em admitir que pessoas negras se filiassem a eles ou participassem de suas eleições primárias. Aplicando a mesma teoria, a Suprema Corte, em Evans v. Newton, reconheceu a ilicitude da negativa de acesso aos negros a um parque privado, mas aberto ao público em geral”. (SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 230)

Todavia, apesar da importância dos casos assinalados por Sarmento, a State Action Doctrine padece por falta de critérios para sua aplicação. No precedente Moose Lodge Number v. Irvis 407 U.S. 163 (1972), a Corte deixou de punir um clube por se negar a servir bebida por questões raciais, mesmo informada de que esse clube teria recebido autorização estatal para entrar em funcionamento. Kairys observa que essa doutrina só autoriza a incidência de direitos fundamentais em relações privadas caso o violador dos mesmos se enquadre no “exercício de função assemelhada à pública”. Nesse sentido, não

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apenas a falta de standards da Corte Americana seria problemática, mas principalmente a afirmação a priori da autonomia privada do agressor em face dos direitos fundamentais (civil rights) da vítima.

Em outras palavras, haveria um excesso de liberalismo na perspectiva da Suprema Corte Americana. Exatamente o oposto do que descreve Alexei Estrada na sua concepção sobre a Teoria da Convergência Estatista concebida por Jürgen Schwabe. A visão de Schwabe é claramente hegeliana, pois pressupõe a supremacia do poder público e uma verdadeira “menoridade” da autonomia privada. Desse modo, toda e qualquer violação de um direito fundamental, mesmo em uma relação estritamente privada, seria possível a responsabilização do Estado. Por conseguinte, todas as relações jurídicas estariam reduzidas à esfera pública. Assim, se alguém morresse de overdose, a culpa seria do Estado que não impediu o tráfico de drogas. Se alguém fosse atropelado por particular, a culpa também seria do Estado que permitiu que um veículo andasse em alta velocidade. Se uma criança sofresse bullying de seus colegas, mesmo em uma escola particular, a responsabilidade seria do Estado, que não fiscalizou a relação entre os menores. A Teoria da Convergência Estatista praticamente suprime a culpabilidade por parte dos agentes privados, fazendo com que sua influência e seu impacto jurisprudencial sejam bastante restritas.

A Teoria da Convergência Estatista torna “incapaz” o indivíduo de assumir qualquer responsabilidade por seus atos. Se, de um lado, a State Action Doctrine supervaloriza a “autonomia privada”, a Teoria da Convergência Estatista a anula completamente. Desse modo, será a Alemanha, na década de 1950, o palco do surgimento das teorias mais bem acabadas sobre a horizontalização dos direitos fundamentais.

A primeira delas, conhecida como Teoria da Eficácia Indireta e Mediata dos direitos fundamentais (Mittelbare Drittwirkung) tem nos trabalhos de Günter Dürig sua principal contribuição. Dürig parte de uma perspectiva de autocontenção do judiciário opondo-se, pois, à aplicação direta de princípios constitucionais em relações entre os particulares. E, para tanto, sustenta que tais direitos deveriam primeiro estar materializados na legislação infraconstitucional

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antes de serem aplicados pelo judiciário. Desse modo, a necessária deferência da Corte Constitucional aos trabalhos e provimentos do legislativo ordinário, por si só explica o “receituário” passivista de Dürig, como bem observa José Carlos Vieira de Andrade:

A força jurídica dos preceitos constitucionais em relação aos particulares (terceiros), não se afirmaria de modo imediato, mas apenas mediatamente, através dos princípios e normas próprias do direito privado. Quando muito, os preceitos constitucionais serviriam como princípios de interpretação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados susceptíveis de concretização, clarificando-os (Wertverdeutlichung), acentuando ou desacentuando determinados elementos do seu conteúdo (Wertakzentuierung, Wertversschärfung), ou em casos extremos, colmatando as lacunas (Wertschutzlückenchliessung), mas sempre dentro do “espírito” do direito privado” (ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos, Liberdades e Garantias no Âmbito das Relações entre Particulares. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993, p. 243/244) Essa teoria conquistou significativo número de adeptos. Na Alemanha, é possível citar os trabalhos de Konrad Hesse (HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado. Tradução de Ignácio Gutierrez. Madrid: Cuardenos Civita, 1995), Karl Larenz (LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Terceita Edição. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997), e do ex juiz da Corte Constitucional Alemã, Ernst Wolfgang Bockenförde. (BOCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Tradução de Juan Luís Pagés e Ignácio Menéndez. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993). Em Portugal, destacam-se os escritos de Carlos Alberto Mota Pinto (PINTO, Carlos Alberto Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 3º Edição. Coimbra: Coimbra Editora, 1994). Na Espanha, a obra de Jesús Garcia Torres e Antonio Jimenez-Blanco (TORRES, Jesús Garcia. JIMENEZ-BLANCO, Antonio. Derechos Fundamentales y Relaciones entre Particulares. Madrid: Civitas, 1986).

Destaca-se também a proeminência de tal teoria tanto na Corte Constitucional Alemã quanto na Corte Constitucional Espanhola. Contudo, a despeito do prestígio da mesma, a Teoria da Eficácia Indireta e Mediata não está imune à críticas. Muito pelo contrário! Sarmento (ob. cit., p. 244) sustenta

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que o pensamento positivista exegético afirmaria que essa teoria enfraqueceria o princípio da legalidade pela admissão da existência de conceitos indeterminados em textos jurídicos. De outro lado, a postura de autocontenção preconizada pela jurisdição das Cortes Constitucionais poderia não proporcionar uma proteção completa dos direitos fundamentais no plano das relações privadas. Ademais, a perspectiva da centralidade do Poder Legislativo, por vezes, se sobrepondo aos ditames da própria Constituição, teria fundamentos próprios no paradigma do Estado Liberal de Direito, não consentâneos à exigências de alteridade que permeariam o Estado Democrático de Direito.

Além disso, essa teoria não se atentaria para as graves omissões do Poder Legislativo de determinações do Poder Constituinte Originário. Logo, o que fazer diante de omissões constitucionais? Ou seja, quando a carta impõe que o Legislativo providencie o provimento normativo, isto é, legisle, e ele ainda assim permanece inerte? Para tentar superar esse déficit da Teoria da Eficácia Indireta e Mediata surgiu a Teoria dos Deveres de Proteção, sustentada por notáveis juristas entre os quais destacam-se Klaus Stern, Klaus Wilhelm Canaris e notadamente Joseph Isensee. Essa teoria admite todos os pressupostos da Teoria da Eficácia Indireta e Mediata, mas amplia seu alcance no caso de caracterização da omissão constitucional. Ela deriva, pois, da jurisprudência da Corte Constitucional Alemã que, desde a década de 1960 no exercício do Controle de Constitucionalidade por omissão dos Poderes Constituídos, particularmente do Legislativo.

“Assim, estas teorias do dever de proteção, embora sejam tributárias de uma ideia de aplicabilidade mediata, alargam a aplicabilidade dos direitos fundamentais para além do tradicional preenchimento das cláusulas gerais do direito privado, impondo aos poderes públicos (ao Legislador, à Administração e ao Juiz) a obrigação de velarem efetivamente porque não existam ofensas aos direitos fundamentais por parte de entidades privadas”.(ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2ª Edição. Coimbra: Almedina, 2001, p. 249).

Todavia, a despeito do esforço de superação da última crítica, a Teoria dos Deveres de Proteção não consegue escapar das outras acima assinaladas. E, por conseguinte, o papel de proeminência das Cortes Constitucionais, nas

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últimas décadas, vem fazendo com que a Teoria da Eficácia Direta e Imediata venha ganhando expressão em Cortes Constitucionais e em Cortes Internacionais.

É consenso atribuir aos trabalhos de Hans Karl Nipperdey o pioneirismo dessa teoria ainda na década de 1950. Ele, na condição de juiz presidente do Bundesarbitsgencht (Tribunal Federal do Trabalho na Alemanha), anulou contratos de trabalho entre particulares que violavam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. E o fez sem necessidade de perquirir sobre uma ordem objetiva de valores constitucionais que impregnassem a legislação ordinária. Desse modo, ele aplicou aos casos entre particulares diretamente a lei fundamental de Bonn.

Sua iniciativa logrou adesão imediata da doutrina italiana como se depreende das obras de Gustavo Zagrebelsky (ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. Bolonha: Il Mulino, 1988), Vechio Crisafulli (CRISAFULLI, Vechio. Per La Determinazione Dell Concetto dei Principi Generali Dell Diritto. Revista Internazionale de Filosofia Dell Diritto, Ano 21, Vol. 19 Séne 2, Gen/Apr, 1941) e Pietro Perlingeri (PERLINGERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Tradução de Maria Cristina de Cico. Rio de Janeiro: Renovar, 1999). Na Espanha, destaca-se a contribuição de Juan María Bilbao Ubillos (UBILLOS, Juan María Bilbao. Em que Medida Vinculan a Los Particulares Los Derechos Fundamentales? In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003). Em Portugal, os diversos trabalhso já mencionados nesse texto de José Carlos de Vieira Andrade e no Brasil as obras de Daniel Sarmento, Álvaro Ricardo de Souza Cruz e Luis Virgílio Afonso da Silva (SILVA, Luis Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais e Relações entre Particulares. Revista de Direito Getúlio Vargas, vol. 01, nº 01, p. 173/180, maio 20015) esposam a Teoria da Eficácia Direta e Imediata.

O protagonismo judicial que se verifica nos últimos anos, no próprio Supremo Tribunal Federal, explica sua adesão a essa última teoria. O leading case é o recurso extraordinário nº 201819/RJ, apreciado em 11 de outubro de 2005. O STF reconheceu a necessária incidência dos princípios constitucionais

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da ampla defesa e do contraditório em face da exclusão de um associado da União Brasileira dos Compositores. O julgado contou com a relatoria para o acórdão do ministro Gilmar Ferreira Mendes, pois a então relatora, ministra Ellen Gracie, juntamente com o ministro Carlos Mario Veloso, aviam optado pela teoria da eficácia indireta.

Por conseguinte, a Teoria da Eficácia Direta e Imediata vem assumindo importância fulcral para a compreensão da horizontalidade dos direitos fundamentais. E, não apenas em Cortes Constitucionais, mas também no âmbito do Direito Internacional e do Direito Comunitário. Nesse sentido, destacam-se dois importantes casos julgados pela Corte Europeia de Direitos Humanos, a saber: Plattform Ärzte Für das Leben v. Austria e o caso X e Y v. Países Baixos.

O primeiro caso, Plattform Ärzte Für das Leben v. Austria ocorreu na década de 1980, no qual uma associação de médicos da Áustria se manifestou contra o aborto. A ONG “Arzte fur das Leben” (médicos para o direito à vida – campanha Plattform), organizou serviços religiosos e reuniões públicas para buscar apoio da sociedade na causa, mas tais manifestações foram interrompidas pela polícia. A primeira foi uma manifestação religiosa na Igreja

Stadl-Paura. A segunda, ocorrida logo em seguida, se materializou por uma marcha para a “cirurgia” de um médico que realizou abortos. Pelo que consta no relatório da decisão, a polícia não fez nenhuma objeção ao evento e permitiu que ele ocorresse em via pública. No entanto, a polícia teve de banir duas outras manifestações que foram comunicadas posteriormente, uma vez que estas deveriam acontecer no mesmo horário e lugar da campanha Plattform. Os participantes queriam se locomover para outros lugares distantes e a polícia avisou que não poderia protegê-los de eventuais opositores em outros territórios. Isso ocorreu também na segunda manifestação em Salzburgo, tendo participado da segunda aproximadamente cerca de 500 pessoas em praça pública. Os participantes se excederam em ambas as manifestações. Os opositores jogaram ovos, usaram alto-falantes para agredir moralmente e logo iniciaram-se as agressões físicas, resultando na intervenção da polícia, que necessariamente teve de separar os grupos através de um cordão e, consequentemente, encerrar a manifestação.

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A associação fez uma denúncia à Corte Constitucional alegando violação dos artigos 9º (liberdade de pensamento, consciência e religião), 10º (liberdade de expressão), 11º (liberdade de reunião e associação) e 13º (direito a recurso efetivo/proteção do Estado/remédio constitucional) da Convenção Europeia de Direitos Humanos. A Comissão Europeia de Direitos Humanos declarou inadmissível as reclamações feitas aos artigos 9º, 10º e 11º e admissíveis as reclamações feitas ao artigo 13º, que se tratava da obrigação do Estado de fornecer uma medida eficaz antes de uma autoridade nacional para alegadas violações da Convenção.

É sabido que, para exercer o direito de liberdade, do qual decorre o direito de reunião, exige-se limitações, em virtude da ordem política e da paz social, de modo que, aquele que opta por se manifestar em via pública, deverá conduzi-la de forma pacífica e deverá ter o anúncio prévio à autoridade. Isto porque uma manifestação só possui a proteção constitucional quando não violenta e sem uso de armas, do contrário, configurará violação a ordem pública colocando em perigo pessoas e/ou bens em local público. Logo, qualquer manifestação exercida com violência física ou moral intimidatória, excede os limites do exercício do direito de reunião e não goza de proteção constitucional, sujeitando-se a penalidades.

Em 1987, por decisão unânime, o Tribunal não reconheceu argumento

que demonstrasse qualquer fracasso cometido pelas autoridades, restando, neste caso, desconfigurado a ocorrência de violação do artigo 13º, uma vez que a associação pode se reunir em local público, com proteção policial, para se expressar livremente sobre seus pensamentos. Ademais, ela pode ainda, apresentar recurso eficaz perante instância nacional, o que garantiu proteção àqueles que fazem uma alegação discutível de que os seus direitos ao abrigo da Convenção foram violados.

Em síntese, a conclusão do acórdão demonstrou que uma manifestação pode gerar graves confrontos entre os participantes, se estes se sentirem ofendidos na oposição de ideias e pensamentos. Entretanto, o direito a liberdade de expressão não deve ser temido ao ponto de pensarem que poderão ser submetidos à violência física por seus adversários. Os grupos que compartilham

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ideais ou interesses em comum, poderão expressar abertamente suas opiniões sobre questões controversas com a proteção do Estado. Em uma democracia a liberdade de expressão lato sensu é direito da coletividade. O exercício do direito de reunião é uma das espécies de liberdade individual que se expressa coletivamente. Tal direito permite que indivíduos, com pensamentos e/ou ideias em comum, possam se agrupar, organizar, convocar uma reunião e de participar dela ativamente.

O segundo caso, X e Y v. Países Baixos trata-se de uma ação movida na Holanda contra a Comissão, sendo as partes envolvidas sigilosas X (em nome próprio) e Y (filha de X), ambos de nacionalidade holandesa. O motivo foi que Y, portadora de deficiência mental, 16 anos, que vivia em uma residência para crianças com deficiências mentais desde 1970, sofreu assédio sexual por B, homem que vivia na mesma residência. X alega que Y sofrera tratamento desumano e degradante, tanto relacionado à violação de sua vida privada quanto a violação de sua integridade sexual, implicando a sua própria incapacidade de exercer seus direitos como tutor para resguardar a integridade física e moral de sua filha contra os ataques sexuais e que, em virtude dos fatos, quer ingressar com ação por ser o representante legal da menor. O pai explicou que Y ficou traumatizada, o que provocou a ela uma grave perturbação psíquica. O objeto da ação foi a obtenção de uma decisão que determinasse se os fatos narrados no processo revelam violação do Estado requerido aos requisitos descritos nos artigos 3º (proibição de tortura), 8º (direito ao respeito pela vida privada e familiar), 13º (direito a recurso efetivo/proteção do Estado/remédio constitucional) e 14º (proibição de discriminação) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Após reconhecer e admitir a ação apresentada, a Comissão afirmou que ocorreu de fato violação do artigo 8º (por unanimidade), uma vez que a reclamação apresentada demonstra violação da vida privada, que compreende na integridade psíquica, moral, e sexual da pessoa. Entretanto, não houve violação do artigo 3º. Ainda considerou que não procedia examinar a demanda do ponto de vista do artigo 14º em relação com o artigo 13º. O Tribunal recordou que, embora o artigo 8º visa essencialmente a proteção do indivíduo contra a

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interferência arbitrária das autoridades públicas, não se limitava a forçar o Estado a abster-se de tal interferência. Esta obrigação negativa pode aditar obrigações positivas inerentes a um respeito efetivo da vida privada ou familiar. Estes podem envolver a adoção de medidas destinadas a assegurar o respeito da vida privada, mesmo nas relações dos indivíduos.

Diante da análise destes dois casos, compreende-se que embora determinados direitos e garantias fundamentais lato sensu, previstos na Convenção Europeia, vinculem unicamente os Estados, outros direitos humanos podem ser invocados diretamente nos conflitos entre particulares, uma vez que tais direitos podem sofrer ameaças ou violações na esfera privada. O atual “Estado de Direito”, reconhecendo sua realidade, deve estender os efeitos dos direitos fundamentais aos conflitos entre particulares, para que os mesmos sejam assegurados na sua amplitude, concretizando a sua real função. Ambos os casos concretos supracitados demonstram a importância da aplicação horizontal dos direitos fundamentais para que a finalidade da norma e a vontade do legislador sejam alcançados de forma eficaz e célere nas situações que configurem possível violação aos direitos fundamentais individuais e coletivos.

A teoria da Eficácia Horizontal ou Privada (Erga Omnes) Direta e Imediata penetrou-se de forma ampla em diversos países, na finalidade de proteger qualquer ataque aos direitos essenciais que foram conferidos a todo cidadão, realizando o principal objetivo constitucional e produzindo seus efeitos extensivos em prol da coletividade, nas relações jurídico privadas e, ainda, suprindo as limitações dos instrumentos de controle do direito privado, uma vez que estes oferecem proteção de forma genérica e fragmentada, fazendo-se necessário a aplicação de tal teoria. Aqueles adeptos da teoria compreendem a força e a importância de sua aplicação in casu sem que a autonomia privada seja colocada em risco, ponderando-se de forma razoável nas diversas situações concretas pertinentes.

Logo a seguir faremos uma análise ao caso Ximenes Lopes, no qual se deu a primeira condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso exemplar de aplicação da Teoria da Eficácia Direta e Imediata dos direitos fundamentais.

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4 CASO XIMENES LOPES

Resta evidente do exposto até agora que as diferentes teorias que fundamentam a aplicação dos direitos fundamentais insculpidos na Constituição à relação entre particulares constitui técnica de controle de constitucionalidade tanto de atos administrativos quanto de provimentos legislativos.

No entanto, quando se aborda a jurisdição de Cortes Institucionais, o que exsurge do fenômeno é o exercício do controle de constitucionalidade, ou seja, a aplicação de direitos humanos gravados em tratados e convenções internacionais à relações privadas. E, o presente caso, cuida exatamente disso, oportunidade pela qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil aplicando diretamente ao processo direitos humanos gravados no plano internacional.

O Brasil reconheceu a competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo Decreto Legislativo nº 4.463/2002. E, quatro anos depois, teve sua primeira condenação por violação do Pacto de San José da Costa Rica em relação a morte de Damião Ximenes Lopes.

Trata-se o precedente de maus tratos e tortura sofridos por um portador de doença mental durante sua internação na Casa de Repouso Guararapes, entidade privada de saúde vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS), localizado no município de Sobral no Estado do Ceará. Em síntese, Damião foi brutalmente agredido na instituição psiquiátrica, onde fazia tratamento médico, resultando em sua morte no dia 4 de outubro de 1999. De acordo com necropsia do corpo, Damião foi sujeito à contenção física e amarrado sofreu diversos golpes, apresentando escoriações e equimoses por todo o corpo. No dia de sua morte, o médico responsável receitou-lhe medicamentos sem fazer qualquer exame e, em seguida, se ausentou do hospital deixando o local sem outro médico substituto. Poucas horas depois da ingestão dos medicamentos, Damião veio a óbito. Totalmente inconformados, os familiares buscaram justiça e punição dos culpados pelo crime e indenização pelos danos morais e materiais. Entretanto, sete anos após o ocorrido, não fora julgado o processo penal

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ajuizado pelo Ministério Público nem a ação de indenização civil interposta pela família.

O Brasil reconheceu sua responsabilidade pelo desrespeito ao direito à vida e à integridade física, psíquica e moral de Ximenes Lopes face à direta e imediata violação do disposto nos artigos 4º e 5º do Pacto de San José. Mas, a decisão acrescentou condenação pelo reconhecimento de violações também contra os direitos humanos da família de Damião por violação aos artigos 8º e 25º da mesma convenção. A Corte reconhecia o direito da família do acesso à justiça em tempo razoável e admitiu ter havido um completo descaso das autoridades judiciárias na prestação da jurisdição civil e penal. Inicialmente porque a autópsia da vítima apontava como conclusão, causa mortis indeterminado, mesmo diante dos ferimentos da vítima. O direito da família à verdade estava obstado pelo descaso do Estado brasileiro para apuração dos fatos.

A Corte ainda reconhecia a morosidade no andamento da ação penal eis que seis anos após o crime ainda seriam ouvidas as testemunhas do fato. Logo, reconheceu a negligência do Estado brasileiro na persecução da justiça. No dia 4 de julho de 2006, por sete votos a zero, o Brasil foi condenado.

Para o presente trabalho importa destacar especialmente a condenação no que se refere a violação ao direito à vida e a integridade física de Ximenes face a ação de uma instituição privada de saúde. Resta logo evidente, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos aplicou ao caso a Teoria da Eficácia Direita e Imediata de direitos humanos em uma relação entre particulares.

CONCLUSÃO

O presente trabalho pretendeu demonstrar, inicialmente, a centralidade dos direitos fundamentais e humanos trazendo em seu estudo tanto a compreensão do constitucionalismo contemporâneo quanto a compreensão do direito como um todo, incluindo também, particularmente, o direito internacional e o direito comunitário. Para tanto, pretendemos mostrar uma evolução histórica

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das origens dos documentos importantes relativos à construção dos direitos fundamentais, particularmente, do direito no período liberal.

Nesse sentido, restou evidente que os direitos fundamentais e os direitos humanos foram forjados originalmente, sobre uma relação de verticalidade com o intuito de proteção do indivíduo (cidadão ou súdito) em face dos arbítrios, abusos e excessos cometidos pelas instituições estatais, em outras palavras, no período liberal percebia-se a desconstituição do antigo regime do período medieval, onde o rei não podia errar, “The King can do no wrong” e o Estado poderia errar sem risco de ser responsabilizado. O Estado poderia fazer aquilo que bem entendesse da propriedade e da pessoa de seus súditos. Os direitos fundamentais então nascem como condição de garantia dos indivíduos contra tais excessos. E, naturalmente, nasce numa relação de desigualdade e desequilíbrio entre um Estado todo poderoso e o indivíduo carente de proteção.

No entanto, no século XX restou patente a necessidade da ampliação do campo de incidência dos direitos fundamentais em direção às relações entre particulares. Durante todo o século XIX demonstrou de forma cabal que, as relações privadas poderiam gerar tantas injustiças quanto o que se verifica na relação entre o Estado e os indivíduos. A obra Germinal de Émile Zola mostra as condições de trabalho dantescas que os trabalhadores na zona carbonífera de produção de carvão estavam submetidos a jornadas de 16 a 18 horas de trabalho por dia, ininterruptas, sem qualquer garantia de direitos sociais. A necessidade de correção de tais distorções impôs, então, uma nova forma de constitucionalismo do Estado Social de Direito. E, por conseguinte, nesse novo paradigma do direito surge a concepção de horizontalização dos direitos fundamentais. O trabalho perpassou por todas as teorias relativas à compreensão do instituto. Inicialmente foi abordada a State Action Doctrine, passando em seguida ao seu contraponto mais evidente, a Teoria da Convergência Estatista. Em seguidas tratou-se da Teoria da Eficácia Indireta e Mediata bem como seu refinamento conhecida como Teoria dos Deveres de Proteção. Finalmente foi abordada a Teoria da Eficácia Direta e Imediata que na atualidade constitui técnica de Controle de Constitucionalidade e técnica de Controle de Convencionalidade por Cortes Internacionais.

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Nesse seguimento, o trabalho atestou, tanto pelo exame do precedente Ximenes Lopes, com a aplicação desta última teoria pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, quanto nos casos Plattform Ärzte Für das Leben v. Austria e o caso X e Y v. Países Baixos julgados pela Corte Europeia de Direitos Humanos, que a horizontalização de direitos tem se consolidado, não apenas no plano interno do controle de constitucionalidade, mas também no plano externo, pela jurisprudência de Cortes Internacionais.

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