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Eu assim só, tão longe de toda a gente e de mim ainda longe

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Academic year: 2021

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M

obilidade e Literatura na Idade M

édia M obilité et Littérature a u M o yen Âge

Actas do Colóquio Internacional

Actes du Colloque International

Lors te metra en la voie...

Lor

s te metra en la voie...

Mobilidade e Literatura na Idade Média

Mobilité et Littérature au Moyen Âge

Actas do Colóquio Internacional Actes du Colloque International Carlos F. Clamote Carreto

Universidade Aberta, Lisboa, 26-28 de Outubro de 2009 Lisbonne, 26-28 octobre 2009

CEIL

Centro de Estudos sobre

o Imaginário Literário capa final_Layout 1 11/01/05 11:52 Page 1

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Coordenação Editorial: Carlos F. Clamote Carreto.

Copyright © UNIVERSIDADE ABERTA — 2011

Palácio Ceia • Rua da Escola Politécnica, 147 1269-001 Lisboa – Portugal

www.uab.pt

e-mail: cvendas@univ-ab.pt

D. L.: 326885/11

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191 Eu assim só, tão longe de toda a gente e de mim ainda mais longe

Elisa Gomes da Torre Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro; Gabinete de Filosofia Medieval –

FLUP; Centro de Estudos sobre o Imaginário Literário-UNL

As palavras da menina, saídas da pena de Bernardim Ribeiro1, circundando a pena

e despertando no leitor ainda mais pena, atingem a nossa sensibilidade pela agudeza da afirmação clara e contundente do estado de solidão e, e sobretudo, de lonjura de todos, de tudo e de si mesma da personagem feminina, num livro que se alicerça, no monólogo e no encontro com a dona do tempo antigo, em torno do que, aparentemente, nos parece ser a fuga do mundo, em torno da tristeza, em torno da esfera dos sentimentos do feminino. Pois tudo se desenvolve e explora no universo sentimental das mulheres, na primeira parte do livro. A menina, assim como a Dona do Tempo Antigo, assumem o que no universo sentimental delineado pelo humanista mais marcadamente o distingue do universo sentimental masculino.

Das várias leituras que a obra tem desencadeado ao longo dos tempos, tanto em termos do género (novela sentimental, cantiga d’amigo amplificada, novela pastoril…) como temático – o exílio, as mulheres, o amor, a vida, a solidão, a cabalística (Helder Macedo2),

o desconcerto do mundo… o carácter inacabado do livro que há-de ser o que vai escrito nele – convergem no carácter absolutamente agudo, a meu ver, com que se trata a tristeza, apanágio exclusivo, nas palavras das personagens, das mulheres.

Só as mulheres são tristes: que as tristezas, quando viram que os homens andavam um cabo para outro, e como as mais das coisas com as contínuas mudanças ora se espalham, ora se perdem, e as muitas ocupações lhe tolhiam o mais do tempo, tornaram-se às coitadas das mulheres, ou porque aborreceram as mudanças, ou porque elas não tinham para onde lhes fugir (p. 66).

Assenta-se, assim, a diferença primordial entre homens e mulheres: a mobilidade de uns e a permanência delas. Não é necessário relembrar Ulisses e Penélope, mas, na teoria de Bernardim, a distracção e dispersão que a mobilidade permite ao espírito dos homens, associada à ocupação em tarefas concretas, surge como justificação para a vivência existencial onde as tristezas se diluem enquanto as mulheres, imóveis, aparentemente desocupadas, se tornam campo fértil para a fermentação da(s) tristeza(s).

Mas a própria menina afirma a mobilidade inquieta, interior e íntima propiciada pela tristeza e pela dor. Ainda que na imobilidade física, apanágio do feminino (de um aristocrático feminino, afirmaríamos), a inquietação da mente, do espírito e das emoções é o constante frenesim das mulheres, em permanente desordem e mudança, em permanente mobilidade – «e a mim as minhas mágoas ora me levam para um cabo ora para outro» (p. 58).

1 Sigo a edição de Teresa Amado, Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, Lisboa, Editorial Comunicação, 1984. 2 Hélder Macedo, Do significado oculto da “menina e Moça”, Lisboa, Moraes, 1977; e na Introdução à edição que faz da obra in Bernardim Ribeiro, Menina e Moça.Introdução e fixação do texto de Hélder Macedo, Lisboa, Editorial Dom Quixote, 1990.

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Um estado tão inquieto e desinquietador que há que buscar lugares onde a quietude seja o traço caracterizador. Foi a solução procurada pela menina. O refúgio em local ermo, despovoado, onde a mudança da natureza parece seguir uma ordem constante: os rios que buscam o mar, a quietude das serras que findam na agitação das águas do mar, os verdes sucedendo a verdes… Ao contrário de uma solução máscula, supostamente de demanda de aventura e mobilidade física, a menina desejava ir-se “por lugares sós onde desabafasse em suspirar”(p. 59). O consolo no desabafo, nas lágrimas, o encontro de uma serenidade no reconhecimento da mágoa, da dor, provável única constante da vida do feminino, é a base estrutural da existência da mulher. Extremamente sugestiva é, neste âmbito, a imagem do ciclo das lágrimas:

determinei ir-me para o pé deste monte (…) onde corre um pequeno ribeiro de água todo o ano(…) onde eu vou muitas vezes deixar as minhas lágrimas onde também muitas infindas as torno a beber (p. 59).

Revelador da condição feminina, este veio circulatório da água, lágrimas vertidas, lágrimas bebidas, cria um ciclo de vida e de alimento da mesma água, que é o mesmo que afirmar, das mesmas emoções. Quase apetece, ainda que anacronicamente, citar Feuerbach – cada um é aquilo que come.

Pois se há imobilidade física num corpo repleto de inquietações e mobilidades emocionais e mentais, como vimos, desencadeados pela tristeza, por outro lado, a única constante, firmeza, base imutável que se oferece às mulheres, é essa inquietação íntima que se funde com a essência da sua natureza, do seu ser.

Senão, escute-se a preocupação da menina face a uma eventual calma, quietude: Começava então de querer cair a calma e no caminho, com a pressa que eu levava por fugir a ela… (p. 59).

A pressa por fugir a ela, fugir à calma, como se fugira à companhia de outros, potenciais distractores e dispersores da inquietação interna, como fugira à leda madrugada, que «a todos parecia que vinha aquele dia assim ledo» e ao invés, na menina, «porque o que fazia alegre todas as coisas, a mim só teve causa de fazer triste» (p. 59). Daí a fuga, a busca da solidão; daí a consciência de uma diferença individualista face aos outros. A menina não é como os demais, assim como se completará na afirmação da Dona do Tempo Antigo ao dizer-se «fugindo da gente para quem só anoiteceu e amanheceu» (p. 65), como chamando a si um estado humano que se vai para além do ciclo natural de um mero existir enquanto ser vivo.

A busca da solidão bucólica, da fuga do mundo, do assumir da tristeza que não há que contrariar são a marca de uma procura existencial, a procura de uma vivência coerente com a consciência que se faz de si.

Voltando à afirmação com que chamei a título para este texto, “de mim ainda mais longe”, facilmente se atinge a lição de uma existência ontologicamente falhada, de incompletude. De si mesma ainda mais longe, pois só se encontra consigo mesma quando com o amado, o amigo verdadeiro. Face a uma situação de separação, que é também de corte ôntico da unidade do ser, resta a vivência dos vestígios, dos restos, dessa unidade. No caso, a dor da separação, a tristeza pela consciência da perda. A fuga da distracção propiciada

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pelo mundo, a fuga da calma e de todos os momentos que possam indiciar essa calma e que se oferece no contacto com um exterior exuberante e vivo, a demanda da vivência em ciclo exclusivo do próprio indivíduo. Tal como tão bem se ilustra na imagem do ciclo das lágrimas a que aludimos, não mais é do que, creio, a determinação – e determinei-me é afirmação da menina – da manutenção ainda que residual e pela negativa da unidade de ser somente propiciada no amor. Ainda que sendo pela não presença, pelo não vivido, pelo não compartido, ainda que sendo pela lágrima e não pelo riso, a manutenção da inquietação emocional, da desordem espiritual da tristeza e da dor, é que são a única via para manter a consciência da essência do ser.

Acredito que se torna particularmente significativo, neste argumento, a mobilidade emocional e espiritual e mental da menina. Pois, como sabemos, em todas as correntes de pensamento sobre o bem-estar e a felicidade, a serenidade é a marca distintiva do bem- -estar. Serenidade que a menina recusa uma vez que a felicidade só seria possível na união com o amigo.

Quase como nota, convém, aqui, recordar, neste contexto, a relevância da escrita do livro, formalmente para mim só, na linha tradicional instaurada por Petrarca, mas, concretamente, escrito para o amigo, vestígio, talvez, de uma esperança ainda que ténue de uma qualquer partilha da vivência.

Assim, e pela razão apresentada, o texto de Bernardim Ribeiro acaba por ser, aparentemente, uma quase contra tese das mais divulgadas teorias sobre o bucolismo, e sobre a fuga do mundo, a procura do retiro. Nas correntes de pensamento, essas são opções para o encontro da felicidade, do bem-estar. Numa leitura inicial, a Menina, como antes a Dona do Tempo antigo, procede inversamente. Pois buscam dor e mais dor, tristeza e mais tristeza, lágrimas e mais lágrimas:

Coitada de mim [diz a Dona] que para me magoar busco ainda desaventuras alheias, como que as minhas não bastassem (p. 65).

E sobretudo, como creio que já acentuei devidamente, buscam a intranquilidade interna. Ora esta é contrária a qualquer das teorias em torno da felicidade. Deveremos, então, considerar as Saudades de Bernardim Ribeiro como um tratado sobre a vida infeliz? Mas como justificar a ideia de infelicidade, nesse caso, com a procura da união do ser, do uno? Será que a Menina não é mais que uma versão mundana de um místico? A vivência da menina será comparável à de um ermitão?

A opção por viver longe da cidade, que representa a ordem, a hierarquia, a sujeição do indivíduo ao interesse do colectivo, – torna-se, assim, ainda mais relevante a afirmação inicial da menina «das tristezas não se pode contar nada ordenadamente, pois desordenadamente acontecem elas» (p. 58) – é a proposta da bucólica, é a proposta existencial do epicurismo. No caso da Menina, é mais do que evidente que a opção bucólica e pela vida retirada (que no seu caso é o encontro com a desordem emocional) é a via da manutenção do indivíduo, da noção de si.

Por isso, é bem diversa a descrição no livro da menina da vida retirada da descrita, por exemplo, por Frei Luís de Leão:

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¡Qué descansada vida

la del que huye el mundanal ruïdo y sigue la escondida

senda por donde han ido

los pocos sabios que en el mundo han sido!

ou da de Séneca, que na linha tradicional editorial agrega os tratados Da tranquilidade

da alma e da Vida Retirada.

Se epicuristas e estóicos propõem modos diversos para o alcance da serenidade, da tranquilidade da alma, uns no meio natural, fugindo das cidades, os outros permanecendo nelas, resistindo e fazendo valer a virtude, no texto de Bernardim Ribeiro em perspectiva alguma vemos a defesa da tranquilidade da alma. Assim, o aparente bucolismo não o é verdadeiramente.

Na distinção clássica entre Bucólicas e Geórgicas, que há quem faça também entre Abel e Caim, ou entre o tempo pré-adâmico e pós-adâmico, não encontramos tampouco a resposta. A Menina, tal como a Dona do Tempo Antigo, não constroem cidades, mas, eventualmente, criam, no contar, no escrever.

Na tradição cristã, e nomeadamente com Santo Agostinho, instaura-se a ideia do retiro interior, que converge na ascese e no retorno a Deus. Nestes, a imanência do amor poderá indiciar algumas respostas à via buscada pela menina. O retiro procura o outro, dinamizado pelo amor, só que, em Santo Agostinho, este é actividade e não contemplação.

A origem do modelo da fuga do mundo que culmina no monaquismo tardio medieval e nas formas de misticismo ascético, confluência dos modelos platónicos, neo- -platónicos e cínicos, assenta na ascese e na recusa terrena contaminadas pelos dualismos e pela gnose em geral.

A supremacia da alma sobre o corpo é também explícita nas Saudades de Bernardim. A alma imprime a sua marca no corpo, que se lhe submete. Por isso, tanto a Dona do tempo Antigo como a Menina aparentam o que são: tristes (e em vários momentos do texto se afirma esta identificação), por isso, afirmam a Dona:

Por isso não vos parecia sem causa triste de longe e triste de perto, que assim o sou eu […] porque a longa dor em que há muito tempo eu duro, tem o coitado deste meu corpo tão acostumado a sofrê-la, que já agora vive nela. Este é um dos queixumes grandes que eu tenho do corpo: que não há coisa para que ele por longo costume não seja (p. 65).

Se a vida retirada no texto de Bernardim não segue Epicuro, não é como o de Frei Luís de Leão ou o de Séneca, ou, ainda, o do carpe diem horaciano e a sua apologia da vida campesina, como se vê em “Beatus ille qui procul negotiis…” será que poderemos aventar ser a defesa do repouso como em Gregório de Nissa? Ou seja, sobretudo uma fuga ao tempo, opondo-se à mudança, termo crucial no livro, através da imobilidade que deveria dar a sensação simulada de eternidade?

O texto de Bernadim é muito claro quanto à incapacidade de se travar a mudança.

Para que tanta mudança numa só terra? Mas parece que também a terra se muda com as coisas dela (p. 69).

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Como a imagem do curso do rio desviado pelo rochedo; a perenidade da montanha que finda na agitação do mar; na morte do rouxinol e a incapacidade da Menina em resgatar o seu corpo; na terra que fora leda e se tornara triste…

A postura existencial da Menina é a renúncia ao supérfluo e um retorno ao essencial.

Poderíamos aqui desenvolver possíveis leituras, mais do que pertinentes, sobre o género, tão sublinhados no livro. O que é essência no feminino? Debate atraente e com vária fundamentação na obra.

Mas não é este o caminho, por ora, escolhido. Voltemos ao texto: «[…] porque eu sempre choro ou estou para chorar», afirma a Menina. A opção pela vida retirada nasce da crise consciente na menina da sua falha ontológica com a perda do amigo. Um profundo exílio de facto: longe de todos e dela própria ainda mais longe. Como nas teorias teológicas cristãs se aplica o princípio da incompletude humana face a Deus, na Menina, essa ausência do uno advém da ausência do amor. E, tal como na visão teológica, da perda do amor, da perda do uno.

A busca da inquietação emocional e espiritual é a atitude, diríamos, filosófica, intelectualizada, consciente de sua existência.

Se, em tantos pensadores, o refúgio na vida natural é a procura de um contacto com o equilíbrio imanente, se a fuga do mundo pode, como nos estóicos, ser posta ao serviço ético da virtude no auto domínio constante, na Menina e Moça mais não parece ser que a recusa do exterior que possa desviar a atenção do essencial na sua existência. A mobilidade inquieta da tristeza é o marco distintivo da consciência do ser na Menina.

Assim, paradoxalmente, a opção pela imobilidade física na Menina e Moça é pressuposto determinante para a mobilidade emocional e espiritual, ou seja, como espero ter conseguido provar, para que a Menina tenha consciência do seu ser.

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