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Os efeitos do discurso social contemporâneo na velhice

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO

CURSO DE PSICOLOGIA

OS EFEITOS DO DISCURSO SOCIAL CONTEMPORÂNEO NA

VELHICE

TIAGO RUBERT

Ijuí – RS 2015

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TIAGO RUBERT

OS EFEITOS DO DISCURSO SOCIAL CONTEMPORÂNEO NA

VELHICE

Trabalho de pesquisa supervisionado

apresentado como requisito para

conclusão do curso de graduação em

Psicologia na UNIJUÍ – Universidade

Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

Orientadora: Lala Catarina Lenzi Nodari

Ijuí – RS 2015

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Para quem, contra todas as probabilidades, traz a esperança de que a vida pode ser mais bela.

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“A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer A barba vai descendo e os cabelos vão caindo pra cabeça aparecer Os filhos vão crescendo, e o tempo vai dizendo que agora é pra valer Os outros vão morrendo, e a gente aprendendo a esquecer [...]Eu quero estar no meio do ciclone pra poder aproveitar E quando eu esquecer meu próprio nome que me chamem de velho gagá

Pois ser eternamente adolescente? Nada é mais démodé! Com os ralos fios de cabelo sobre a testa que não para de crescer Não sei por que essa gente vira a cara pro presente e esquece de aprender Que felizmente ou infelizmente

sempre o tempo vai correr

Não quero morrer, pois quero ver como será que deve ser envelhecer

Eu quero é viver pra ver qual é E dizer „venha!‟, pra o que vai acontecer.”

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RESUMO

Este trabalho foi desenvolvido com o intuito de trazer uma leitura histórica e psicanalítica do conceito de velhice. Buscando um olhar diferenciado sobre um assunto que vem ganhando importância em nosso tempo, tratamos as questões referentes aos contextos que envolvem o idoso, as influências que este sofre em sua forma de organização singular, e sua importância dentro da organização social. O levantamento histórico, realizado no primeiro capítulo, permitiu a leitura da complexidade desta etapa da vida. E através do conceito de discurso social, abordamos como os sintomas dos velhos apontam para as falhas da nossa forma de organização atual, capitalista, trazendo à tona aquilo que causa nosso mal-estar contemporâneo.

Palavras-chave: Velhice. História da velhice. Discursos sociais. Sintomas de velhos. Psicanálise.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 6 CAPÍTULO 1 - A VELHICE NOS DIFERENTES CONTEXTOS HISTÓRICOS ... 8 CAPÍTULO 2 - ORGANIZAÇÃO SOCIAL CONTEMPORÂNEA E SEUS EFEITOS NA VELHICE ... 22 CONCLUSÃO ... 31 REFERÊNCIAS ... 33

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca abordar os efeitos do discurso social contemporâneo sobre a velhice e as formas como esta se organiza neste contexto. Para tanto, faremos uma leitura psicanalítica dos laços sociais através das obras de Sigmund Freud e Jaques Lacan, munidos também de um levantamento histórico do envelhecimento, fundamentado na obra de Simone de Beauvoir.

A velhice tem se tornado um assunto cada vez mais importante na medida em que, com uma maior qualidade de vida, esta população cresce rapidamente. Mas ao mesmo tempo, nota-se que grande parte dos trabalhos que surgem sobre o tema vem dar conta apenas do corpo que envelhece, ignorando outras dimensões do idoso. Nosso estudo busca tomar o idoso como um ser histórico, político e singular (em corpo e psique), que transforma e é transformado pelos diferentes contextos históricos.

Desta forma, o primeiro capítulo desta pesquisa, irá fazer um apanhado histórico dos lugares sociais da velhice. Partindo das sociedades primitivas em que a sobrevivência, a experiência e o místico ditavam as regras. Passaremos também pelas sociedades históricas; das antigas (Egito, China...) até o surgimento do capitalismo. Observaremos a complexidade da figura do velho, seus papéis familiares, políticos e espirituais, os quais marcam traços que atravessam os tempos. Além disso, apontaremos os possíveis paralelos com as formações sociais mais contemporâneas.

No segundo capítulo trataremos (através da visão psicanalítica) dos vínculos contemporâneos, seus efeitos, e os lugares sociais que estes possibilitam ao idoso. Com os conceitos de „discurso social‟ e „sintoma‟, buscaremos delinear o panorama do envelhecimento em nosso tempo, os enlaçamentos possíveis, e o que tem a dizer sobre o mal-estar na contemporaneidade. Também

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precisaremos esclarecer alguns conceitos básicos da teoria lacaniana, como inconsciente, sujeito dividido, verdade, e objeto „a‟.

Isto se torna necessário, pois serão com tais conceitos que formularemos a estrutura linguística do discurso capitalista, o qual organiza os sujeitos na contemporaneidade. E este, como veremos, faz efeitos na forma como o velho organiza seus sintomas.

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CAPÍTULO 1 - A VELHICE NOS DIFERENTES CONTEXTOS HISTÓRICOS

“É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.” . - Viagem a Portugal, José Saramago.

O estatuto de ser idoso, da chegada à velhice, ocupou várias e diferentes discussões no decorrer da história. Constatar que se é idoso vai muito além de aposentar-se ou chegar aos 60 anos. A senescência tem fatores biológicos, psicológicos e sociais em jogo, os quais variam de acordo com cada época histórica.

Biologicamente falando há apenas um consenso sobre o assunto: que a partir de um momento da vida todo organismo tende a declinar em suas funções fisiológicas, indicando a finitude de nossa existência. Segundo S. de Beauvoir (1970) “O organismo declina quando suas chances de subsistir reduzem. Em todos os tempos os homens tomaram consciência da fatalidade dessa alteração” (pg. 23). E em toda a história da humanidade buscou-se as causas deste declínio, sendo que “a resposta depende da ideia que a medicina, considerada em seu conjunto, fazia da vida” (BEAUVOIR, 1970, pg. 23). Para explicar essa involução fisiológica na Grécia antiga Hipócrates usou da teoria dos quatro humores: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. Essa teoria perdurou anos e faz efeitos até hoje. Para ele a velhice, assim como a doença, é resultado de um desequilíbrio dos humores que começa aos 56 anos aproximadamente. Ele também foi um dos primeiros a comparar as etapas da vida com as estações do ano, sendo a velhice comparada ao inverno. Galeno no século II fez uma síntese da medicina antiga, colocando a velhice como estágio intermediário entre saúde e doença; as funções fisiológicas reduzem, mas não a um ponto patológico. Para suas explicações ainda

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se utiliza da teoria dos humores com algumas modificações. Depois disto “durante

séculos a medicina1 não fez outra coisa senão parafrasear a obra de Galeno”

(BEAUVOIR, 1970, pg.24).

Esta forma de pensar as transformações do corpo que envelhece só teve mudanças significativas em meados do século XIX com a criação dos grandes asilos na França. Com eles surgiram muitos estudos sobre o assunto, como os de Pennock (1847) e Réveillé-Parise (1852) os quais tratavam sobre frequência cardíaca e ritmo da respiração em idosos, assim como algumas conferências de Charcot sobre velhice na Salpêtrière. Mas vai ser com o americano

Nascher em 1909 que surgirá o ramo da medicina chamado „geriatria‟, o qual irá

dedicar-se exclusivamente ao estudo das patologias da velhice. E juntamente com

ela surge a „gerontologia‟, que estuda o processo natural do envelhecimento. Ou

seja, neste ponto começa-se a separar a patologia do processo do envelhecimento, não buscando mais a causa dele, mas vendo-o como inerente ao processo da vida. Envelhecemos a cada momento e mesmo podendo retardar o processo através de

intervenções artificiais, estas tem um custo2. Apesar disso o processo segue seu

curso, a não ser que ocorra algum acidente no percurso (causando seu fim, a morte), o individuo passará necessariamente à velhice.

A ciência moderna3 vê a velhice como um momento deste

processo vital no qual temos a aceleração de algumas modificações no funcionamento das funções fisiológicas, as quais geram o aparecimento de alguns

sinais que variam em cada organismo. Elas se expressam “[...] sob diferentes

maneiras nas funções respiratórias, pulmonares, circulatórias e etc, bem como na imagem: rugas cabelos brancos, menor elasticidade na pele, flacidez, entre outras” (MUCIDA, 2004, pg. 23). Muitas destas modificações se dão pois os tecidos metabolicamente ativos diminuem progressivamente, ao mesmo tempo em que os metabolicamente inertes aumentam. Na mulher temos ainda a interrupção (quase abrupta) da função reprodutora: a chamada menopausa.

1

Estudos como os de Avicena (século XI), Roger Bacon (século XIII) entre outros, seguem os mesmos princípios elementares daquilo que Galeno conjecturou.

2 Além do custo financeiro que não é acessível a todos, sabemos que qualquer cirurgia ou utilização de produtos para retardar o envelhecimento tem algum efeito colateral, sem contarmos o custo psicológico da negação daquilo que está acontecendo ao corpo do indivíduo.

3 Chamamos de ‘Ciência moderna’ aquela que surge após a revolução científica que ocorre no século XVI até o XVIII, com as importantes transformações trazidas por Galileu, Descartes e Newton.

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Como já dito anteriormente, esta nova ciência não trabalha mais com a ideia de que a velhice seja uma patologia. Mas ao mesmo tempo não se pode ignorar que há uma relação entre as duas. A doença pode acelerar o processo de envelhecimento. Ao mesmo tempo, esta involução fisiológica característica do envelhecimento pode também facilitar perturbações patológicas. Isto não irá depender somente de fatores orgânicos, pois a pessoa velha não é apenas corpo. Outras questões influenciam nesta condição do idoso. Por exemplo, um indivíduo que mantém um nível intelectual elevado durante sua vida tem uma perda dos processos mentais muito mais lento em sua velhice (BEAUVOIR, 1970).

Para entendermos o significado da velhice através da história é necessário transcender o âmbito organicista, não esquecendo a parcela de importância das questões orgânicas. Dessa forma, pensaremos agora nos lugares sociais que o idoso ocupou nas diferentes épocas, o que o envelhecimento significou, quais foram as significações dadas em cada contexto social, e como estes sujeitos se organizaram psicologicamente.

Nas sociedades primitivas a velhice é encarada de diferentes formas. O declínio físico por um lado, e a experiência e saberes acumulados por outro, fazem a diferença dentro de cada cultura. Enquanto o primeiro fator diminui o velho ao status de fardo, pois ele não pode mais trabalhar (produzir economicamente), os outros o colocam em um lugar especial na cultura, como detentor de algo importante para que os economicamente produtivos possam levar uma vida melhor. Desse modo, o lugar da velhice varia entre extremos dentro de cada contexto: desde ser temido como a um deus, até ser abandonado ou morto como um indigente.

Estas sociedades a-históricas geralmente se dividem conforme seu modo de trabalho; os nômades (caçadores, coletores) e os sedentários (criadores e camponeses). Sua forma de viver dita em grande parte os recursos da comunidade, e consequentemente acaba designando o lugar da velhice. Não é regra, mas observa-se que "quando o clima é duro, as circunstâncias difíceis, os recursos insuficientes, a velhice dos homens assemelha-se muitas vezes à dos bichos” (BEAUVOIR, 1970, pg. 58).

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Segundo Beauvoir era assim que se observava entre os „incautos‟, um povo seminômade da Sibéria. Viviam em um clima difícil e com pouquíssimos recursos. Os pais tinham grande autoridade sobre os filhos, os quais eram tiranizados por esses. Isso era transformado em ódio, e quando os pais já velhos perdiam sua força, eram maltratados por seus filhos. Isso lhes reservava um lugar de mendicância, excluídos da coletividade, por vezes até mesmo explorados como escravos pelos filhos. Escapavam deste destino apenas os xamãs que eram respeitados, mas não por sua experiência (se chegava relativamente com pouca idade a esse status), e sim pela sua ligação mística. Os demais como nos conta o

observador Sieroshevski, citado por Beauvoir, são deixados para “[...] morrer

lentamente num canto, de frio e de fome, não como homens, mas como bichos.” (1970, pg. 59). Os níveis de miséria exacerbados acabam sufocando os sentimentos.

Existem também sociedades primitivas em que a morte do velho não se dá pela via do desprezo, existe todo um cerimonial onde o velho consente em sua morte (ou pelo menos se faz transparecer isso aos demais). Eram em grande parte sociedades nômades onde as grandes marchas e os poucos recursos tornavam a vida penosa para os mais idosos. Estes eram respeitados enquanto lúcidos e robustos, mas tornavam-se um fardo quando perdiam suas forças e pensamento claro, e a melhor alternativa era livrar-se deles. Na adaptação cinematográfica de „A balada de Narayama‟ (1983) podemos ver um retrato claro deste tipo de sociedade, baseado em situações reais descritas no romance homônimo de Fukazawa. O filme retrata a vida em uma aldeia muito pobre no Japão. Nela a escassez de alimentos obrigava-os a sacrificar seus velhos (a partir dos 70 anos). Estes sacrifícios aconteciam de forma aparentemente honrosa onde, através de um ritual elaborado, os velhos eram levados até as „montanhas da morte‟ para fazer a travessia ao outro plano. Dentro deste contexto é contada a história de O‟Rin, uma senhora velha que apesar de sua idade está com a saúde boa, não perdeu nenhum dente, está em plena capacidade de suas funções. Isso é motivo de preocupação para ela (e até de chacota para os outros), pois é uma boca a mais para alimentar, o que era um grande problema dentro das condições que viviam. Ao perceber que a família vinha aumentando, sente-se na obrigação de arrumar o caminho para as futuras gerações, forçando sua ida para a „montanha da morte‟,

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mesmo contra a vontade de seu filho (o qual a amava muito). Por outro lado temos na história o personagem Matayan que, mesmo passando dos 70 anos, reluta em ir para o monte. Ele é amarrado por seu filho, que quer se livrar dele, mas mesmo assim dá um jeito de fugir. Ao final é amarrado e jogado aos corvos no caminho do monte, tendo uma morte desonrosa por conta de sua resistência. Podemos ver por isso que nem todos os velhos aceitavam a morte imposta pelo contexto cultural, e talvez os submissos fossem minoria.

Até agora trouxemos exemplos apenas de sociedades precárias, com níveis culturais e espirituais rudimentares. No decorrer da história houveram sociedades que desenvolveram sua cultura um pouco além da sobrevivência, e nestas é observado um lugar de maior importância para o velho:

“[...] Quando é menos árdua a luta contra a natureza, permitindo um certo distanciamento desta, a magia e a religião florescem; o papel do velho torna-se, então, mais complexo: ele pode ser detentor de grandes poderes.” (BEAUVOIR, 1970, pg. 77).

Nesse sentido Beauvoir nos relata sobre uma tribo de

caçadores coletores da Austrália, os „arandas‟. Esse grupo consegue manter seu

padrão de vida mesmo com alguns períodos de dificuldade. As crianças são muito bem tratadas, apesar da prática de infanticídio com os bebês que nascem com anomalias. Os mais antigos da tribo são sempre respeitados sendo divididos em dois grupos: os „quase mortos‟ e os „grisalhos‟. Nos primeiros, encontramos aqueles que já não levam uma vida ativa, e não podem mais influenciar os outros. Mesmo assim eles são bem cuidados e acompanhados neste estágio de suas vidas. Já o grupo dos grisalhos tem destaque nesta sociedade. Estes detêm uma experiência prática que só o tempo pode fornecer, principalmente na parte da caça e coleta, da qual depende a sobrevivência da tribo e isto é muito valorizado por todos. Ele sabe como “[...] descobrir águas ocultas, como preparar certos alimentos de maneira a tirar-lhe as propriedades nocivas.” (BEAUVOIR, 1970, pg. 78). Se, além disso, um grisalho souber as tradições sagradas, seu poder é maior. Interessante que nesta sociedade existe ainda um estágio intermediário entre „grisalhos‟ e „quase mortos‟,

que se chama „Yenkos‟ (quase-incapazes). Um Yenko que detém conhecimentos

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da morte pode fazer a mediação entre os dois mundos, se encontrando acima dos tabus da tribo e além da condição humana.

Além da via do sagrado e do místico, houveram sociedades que valorizaram os idosos graças à sua memória. Os „mendes‟ são um povo muçulmano com organização política muito antiga. Organizam-se em famílias grandes, de várias gerações em uma mesma casa. O chefe da família é o homem mais idoso, ou mulher no caso do marido estar morto. Este detém vantagens, pois carregam em sua memória as tradições do grupo, e nelas reside a sua organização política. Nessa sociedade “aquele que aspira liderança deve conhecer a história do lugar, as genealogias, as biografias dos fundadores [...] e este saber lhe é necessariamente legado pelos mais velhos.” (BEAUVOIR, 1970, pg.90).

Seguindo o percurso feito por Beauvoir, passaremos a falar

agora do lugar do idoso em sociedades históricas4. Mas antes, seria importante

destacar alguns pontos do que levantamos até o momento, pois muitos destes ver-se-ão refletidos nas sociedades históricas. É observável a impossibilidade de criar um lugar padrão para o idoso nas sociedades antigas. O lugar do velho sempre esteve ligado mais à forma de organização (econômica e política) de cada sociedade, do que sua condição de velho. O que se destaca em nosso recorte é que os velhos têm menos chances em sociedades precárias, em que a força de trabalho para conseguir sustento se sobressai à experiência. Já nos povos cujo conhecimento da história grupal, a experiência vivida e as ligações espirituais têm destaque, o velho costuma ser mais valorizado. Como aponta Mucida:

“Nas comunidades nas quais a arte, a religião, a magia e o saber triunfaram, triunfa no geral o poder dos mais velhos. Se existe na velhice uma suposição de saber, existe, concomitantemente um tratamento respeitoso à mesma. Da mesma forma, se a morte é vista como uma boa e necessária passagem para uma vida mais evolutiva, o idoso [...] tem um papel social importante.” (2004, pg. 66).

O velho vai estar engendrado, a partir de sua condição física e psicológica, dentro de um jogo de poder. Um jogo que varia suas regras em cada sociedade. Inclusive podendo colocá-lo em um lugar tão alto que o torna perigoso. Como em algumas aldeias da Polinésia, nas quais se devorava os velhos como

4

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forma de assimilar sua sabedoria e evitar, ao mesmo tempo, que fizessem algum mal com seus poderes mágicos adquiridos com a experiência. O ponto comum que parece garantir ao velho um lugar de amor dos demais é a forma como este cuidou dos seus entes queridos enquanto esteve jovem. Ou seja, a atitude deste durante sua vida (dentro das possibilidades apresentadas) é o que mais tem influência em seus anos de senescência. “É o sentido que os homens conferem à sua existência, é seu sistema global de valores que define o sentido e o valor da velhice.” (BEAUVOIR, 1970, pg.108).

Nas sociedades históricas (que costumamos chamar de civilizadas) o destino das pessoas idosas terá muitos pontos de intersecção com o que vimos até agora. Há contextos onde o velho é supervalorizado e em outros „escrachado‟. Mas na forma de tratar tais indivíduos, são observados dois pontos característicos deste tipo de sociedade. O primeiro é que mesmo em épocas onde os velhos foram tratados com desprezo, o assassinato destes era proibido (ou pelo menos era algo velado, disfarçado). A segunda questão diz respeito à forma como esses registros históricos eram feitos. Eles consistiam no resultados de lutas de poder e consequentemente foram quase todos produzidos por pessoas das classes abastadas. Poetas e moralistas constituíram os principais ícones destas classes que antagonizavam a disputa pelo poder, cada uma defendendo seus interesses práticos e ideológicos. Por isso é pouco encontrado nos registros, informações sobre como era à velhice das mulheres e dos indivíduos pobres nestas épocas, pois sempre foram negligenciados.

Na luta entre poetas e moralistas, veremos a sociedade passando por diversas formas de organização, abrindo ou fechando lugares de importância para o idoso, conforme o status dominante. Em sociedades mais tradicionais, mais organizadas e que cultuam sua história, veremos um lugar de estima para o velho. Em sociedades desorganizadas, ou passando por tempos de revolução e tensão, serão os jovens que assumirão a dianteira.

A China, por exemplo, se manteve durante muito tempo, estática e hierarquizada, com um poder centralizado e autoritário. Isso garantiu privilégios aos idosos, principalmente os homens, que tinham poder absoluto dentro da família, onde todos seguiam as palavras do homem mais velho. As mulheres

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eram submissas, mas também tinham poderes aumentados conforme crescia sua experiência dos anos, tendo autoridade sobre jovens de ambos os sexos. O influente

pensador chinês Confúcio5 afirmava que essa autoridade deve ser depositada nos

idosos, pois é com a velhice que se chega à sabedoria. Havia pessoas que até fingiam serem mais velhas, tamanho o respeito depositado nos idosos. Existem registros da literatura oriental em que os jovens chegam a lamentar-se da opressão de que são vítimas, mas nem por isso veem a velhice com desprezo.

Nas culturas ocidentais os primeiros registros históricos terão outra temática, a qual tem reflexos até os dias atuais. Um texto de 2500 anos A.C. irá falar da decadência orgânica do velho. E isso será algo que perpassará a história das civilizações: quando uma sociedade fica presa às questões orgânicas, a velhice será tratada apenas como declínio, será temida e combatida através dos métodos disponíveis de cada época. Dos tempos dos egípcios, Beauvoir vai nos trazer

informação de registros nos quais aparecem „pérolas‟ da medicina, tais como:

„Transformar um velho em jovem‟, propondo que as pessoas consumissem “[...] glândulas frescas tiradas da terra e jovens animais.” (BEAUVOIR, 1970, pg. 114).

Reconhecido por tratar com muito respeito a velhice, é interessante resgatarmos aquilo que existe de registro do povo judeu. A bíblia como seu registro maior, traz diferentes pontos daquilo que se pensa sobre a velhice. Em Levítico, por exemplo, é colocado que o filho desobediente deve ser levado aos anciãos da cidade para ser apedrejado. Beauvoir nos lembra que a bíblia é feita por moralistas (principalmente no antigo testamento) que expressam em sua escrita uma nostalgia do passado, projetando os valores que esperam ser seguidos pelos demais. Ou seja, tal poder era incumbido aos anciões na busca de manter o domínio político sobre os jovens rebeldes. Sobre conflitos de gerações há também uma parte

do Livro de Daniel6 que conta uma história de dois velhos juízes, os quais usam de

seu poder para desmoralizar uma jovem moça que recusou seus favores sexuais, mas o jovem profeta Daniel frustra seus planos, derrotando-os. Vemos nisso um conflito de gerações bem típico: velhos usando do poder de forma abusiva e sendo desmascarados por jovens. Esse fato pode ter um fundo histórico factual, mas

5 Suas ideias que moldaram a filosofia e a política do 1º império chinês. 6

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também devemos considerar o ressentimento que os autores desses livros poderiam ter com a posição privilegiada dos velhos em sua época.

A questão do sentido da longevidade também oscila na bíblia. Isso se deve a questões dos seus diferentes autores e as ideologias com que estão implicados. Livros mais antigos (e moralistas) colocam-na como uma recompensa divina por uma vida de virtudes. Já no livro de Eclesiastes, um livro muito poético, vemos uma descrição do envelhecer como infortúnio:

“Lembra-te do teu criador durante os dias de tua juventude, antes que cheguem os dias maus, e que se aproximem os anos em que dirás: não experimento mais nenhum prazer. Antes que se obscureçam os sol e a luz, a lua e as estrelas, e que as nuvens retornem após a chuva [...]”. (BÍBLIA SAGRADA, apud BEAUVOIR, 1970, pg. 117).

Nas demais sociedades antigas pouca informação ela encontrará sobre a situação dos velhos. Algumas indicações podem ser encontradas nas mitologias, sendo que na maioria destas, a velhice é tratada como conflito de gerações. O mito de Urano é muito recorrente nestas sociedades. Nos gregos ele é um grande fecundador, pai imponente e destruidor, que tiraniza seus filhos. Esses se rebelam e acabam com o reinado do pai. Com diferentes variantes este é um mito padrão que pode refletir de certa forma a ideia do envelhecer para estes povos: os deuses quando envelhecem ficam piores e cruéis, o que acaba rebelando os jovens contra eles. Dois outros mitos trazem uma visão diferente da velhice na época. Primeiro o mito de Tirésias traz um ponto que marca outra forma de pensar a velhice: que a idade traz uma cegueira para o mundo, mas uma visão ampla para o mundo interior. Pois assim era Tirésias, um profeta cego que dava respostas infalíveis para os conflitos humanos. Já o mito de Títono e a deusa Eos (Aurora) fala sobre questões da velhice e imortalidade. Eos pede imortalidade para Títono, por quem está enamorada, mas esquece de pedir a juventude eterna. Sem permanecer jovem o corpo de Títono envelhece até ficar decrépito, mas nunca morre.

Da mitologia para os registros históricos, Beauvoir (1970) constata a escassez de material, mas naquilo que consta; a velhice sempre aparece ligada à honra, ao direito de ancianidade. Homero fala que esta se liga à sabedoria e a arte da palavra, mas ao mesmo tempo o velho aparece como fisicamente

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enfraquecido. Desta forma não era ele que garantia a soberania nas guerras. A velhice detinha uma valorização no conjunto social, mas era vista como uma fase difícil na individualidade.

Essa dualidade é observável também na diferença de visão ente dois dos pensadores gregos mais importantes, naquilo que eles pensam da velhice. Platão, focado mais na questão política, coloca os homens mais idosos como os magistrados em seu modelo de „República‟, pelo fato de que a educação do indivíduo (nos seus moldes) estará plena aos 50 anos. Seria a partir deste ponto que ele possuiria a verdade e conduziria a cidade com sabedoria. Beauvoir destaca a importância dada à velhice por Platão ao citá-lo: “Os mais idosos devem mandar, e os jovens, obedecer.” (1970, pg. 135). Aristóteles teve um pensamento diferente, não levando em consideração apenas aspectos do intelecto, mas a união entre intelecto e corpo. Para ele precisaria que o corpo também se mantivesse intacto para uma velhice feliz. O bem exterior é necessário para ter um bem de espírito. Conclui que os velhos são inseguros pelas circunstâncias em que vivem, e seu desempenho em qualquer função não será satisfatório.

Se uma sociedade estabilizada costuma proporcionar boas condições aos velhos (como afirmamos anteriormente), os romanos foram mais um bom exemplo disto. Alguns resquícios parecem apontar que nos primórdios desta civilização este povo livrava-se dos velhos afogando-os. Mas após a ascensão do império isto não é mais cogitado, e os velhos passam a ser muito respeitados como proprietários de terras e bens (dos velhos pobres e mulheres nada é registrado). A política se apoia em uma ideologia que desconfia da novidade e aposta na permanência, tendo o espírito dos ancestrais sempre muito presente. Esse poder dos idosos se firma na célula familiar, sendo que dentro desta, ele é quase ilimitado (podendo matar, mutilar e até vender quem quiser). Apenas na literatura esse poder era de certa forma, destituído mostrando que ele não era de todo absoluto. Peças de Plauto faziam muito sucesso com papéis onde se ridicularizava personagens velhos, que em grande parte eram avaros e ambiciosos, buscando alcançar objetivos sujos através de seu poder.

Na decadência do império romano (o chamado baixo império) e durante a Idade Média, os velhos foram excluídos da história. É uma época de

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instabilidades e guerras e poucos chegam a uma idade mais avançada, e o poder está nas mãos dos jovens. Até o surgimento da burguesia, em meados do século XIII e XIV, somente o adulto é considerado nas decisões políticas e sociais. Talvez a contribuição mais significativa desta época para com o envelhecer foi a criação de modelos (precários ainda) de asilos e hospitais (século IV). Também a ideia do „rejuvenescimento‟ ressurge nesta época, com histórias sobre lagoas da juventude, talismãs, elixires e etc. Erasmo de Rotterdam descreve em seus „Colloquia‟ o idoso modelo como aquele acima dos 66 anos que apresenta ainda jovialidade.

No século XVI novamente os poetas e dramaturgos voltam a atacar intensamente os idosos. Mas esses ataques não são justificados apenas pela questão da velhice em si, mas por jogos de poder. Os atacados não são os velhos patrícios (que tem a fortuna garantida por direito divino), mas os novos burgueses que começam a surgir como classe social, resultado do inicio do capitalismo e se colocam como rivais dos jovens. Nestes versos e peças, o velho perde qualidade de sujeito, e é apenas objeto de chacota, através de personagens caricatos. Como o personagem da „Commedia dell‟arte‟ que Beauvoir descreve: “O outro velho é o Doutor, um grande estúpido pedante, membro de todas as academias [...] é ignaro, diz enormes tolices, estropia o dia inteiro citações gregas ou latinas.” (1970, pg. 188).

Vemos através dos tempos muitos clichês que se repetem sobre a velhice. Alguns se perpetuam até os nossos dias. Mas em algumas épocas teremos autores que conseguem criar além do que se repete. Shakespeare é uma destas exceções. Sua obra do século XVII „O Rei Lear‟, traz como personagem principal um velho encarando seu destino. O autor gera reflexões sobre a velhice, pois não a coloca como limite da condição humana: ela é a verdade desta. E é somente a partir dela que se poderia buscar um sentido para a vida na terra. Se ela tem um fundo triste e louco, não é apenas pelo fato do personagem ser velho, mas porque a existência humana assim o é. O século XVII era muito duro, principalmente para os velhos e crianças, e a média de vida era de 20 a 25 anos (as pessoas mais velhas morriam por volta dos 35 ou 40 anos).

Quando a burguesia firma definitivamente seu lugar social, os velhos voltam a ganhar um espaço de importância. Por volta de 1745 há um

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aumento significativo da qualidade de vida, principalmente proporcionada por uma melhor higiene, que possibilita as pessoas (das classes mais altas principalmente) viver bem e consequentemente alongar seus anos de velhice. Fazer piadas sobre os velhos começou a escandalizar a opinião pública e já não gerava grande interesse. Os personagens idosos nas peças passam a ser domésticos, dedicados, simpáticos, em cenas de pais e filhos que se amavam. Voltou-se no social a valorizar a memória dos idosos, os quais faziam sucesso na vida social (inclusive com mulheres) contando seus relatos de vida. A ideologia criada pela burguesia valorizava a velhice, pois estes trabalhadores que se preocupam em acumular riquezas durante a vida, esperavam desfrutar dela quando não poderiam mais continuar a trabalhar.

Esse século foi marcado também por uma abertura maior ao individualismo, o que permitiu surgirem novas formas de pensamento sobre a velhice. Na contramão da ideologia burguesa, Jonathan Swift fez um retrato não muito alegre da velhice (influenciado por suas próprias mazelas pessoais). Em um

de seus livros das „Viagens de Gulliver‟; seu herói encontra uma raça chamada

„Struldbruggs‟, que nascem com uma marca de imortalidade. A princípio seu personagem fica admirado com isso, pensando nas possibilidades destes seres imortais. Mas depois se decepciona ao saber que estes envelhecem, acabam não acompanhando as evoluções da língua, e vivem o resto de seus dias sozinhos e exilados. Ou seja, envelhecer vai ser o exílio se a vida que o sujeito leva não buscar

e atualizar vínculos. Já em „Fausto‟ de Goethe a temática que ressurge, com uma

nova visão, é a do rejuvenescimento. O autor usa isso para falar dos limites da condição humana. Nessa obra apresenta o velho Fausto, grande doutor, que não sente mais prazer na ciência, porém a mente continua aberta para aprender. Este está disposto a vender sua alma para alcançar seu desejo: rejuvenescer preservando os conhecimentos adquiridos, para não cometer os mesmos erros em sua vida. A finitude faz pensar no sentido de viver.

O século XIX é marcado pela expansão demográfica na Europa, o que resulta em um grande acréscimo da população idosa. Como os velhos passam a ser numerosos demais para serem ignorados, acontecem avanços importantes dentro da ciência, derrubando alguns mitos da velhice (que já discutimos no inicio do capítulo). Mas essa evolução não atingiu igualmente todos os idosos; sendo que aqueles das classes mais altas, e na maioria urbanas, é que

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puderam desfrutar de avanços na medicina e técnica. Para os outros, os avanços aprisionaram ainda mais. A exploração pelas indústrias (Revolução industrial) era cruel e o envelhecer deixava os indivíduos incapazes de continuar com o trabalho, o que não permitia muitas perspectivas de qualidade de vida. E quando perdiam o emprego por causa da idade, saiam de mãos vazias, na miséria. Nos campos, os anciões mantinham seu poder enquanto controlavam suas terras. Quando não podiam mais, os filhos assumiam as terras, abandonando seus pais em asilos, mas não sem antes lhes tirar todos os seus bens. Em sua grande maioria eram desprezados pelos filhos e privados de qualquer regalia, mesmo quando permaneciam morando com os filhos (o que nos lembra dos casos de sociedades primitivas precárias). Tentou-se na época corrigir tais atos pelo poder do estado, com leis em defesa dos velhos - e até uma espécie de aposentadoria - onde o velho entregava seus bens ao estado e ele o mantinha com um salário fixo ao mês. Mas atos de abusos dos filhos continuavam a acontecer.

Durante o século XX ocorre que novamente algumas ideias retornam e contaminam o pensamento da época; como a ideia otimista de que o envelhecer é apenas ganhar sabedoria; ou o seu oposto, de que ele só consiste na decadência orgânica. Como nos traz Beauvoir:

“A velhice é um outono, rico de frutos maduros; é também um inverno estéril, do qual se evocam frieza, as neves, as geadas. Tem a serenidade das belas noites. Mas a ela também é atribuída a tristeza sombria do crepúsculo. A imagem do „bom velho‟ e a do „velho rabugento‟ fazem boa dupla.” (1970, pg.258).

Alguns pensadores, abaixo citados, trazem outro ponto de vista sobre a situação do idoso: de que o velho tem todo o direito de repousar no passado, pois viveu à sua maneira a vida, e isto é uma das poucas coisas que ninguém pode lhe tirar. Jacob Grimm (1880) era um dos que apoiava este pensamento. Ele também questionava as comparações de desempenho entre adultos e velhos. Para ele isto não era concebível pelo fato de que o velho não é um adulto com limitações (assim como a criança). O que muitos veem como decadência, Grimm pensa como outra forma de organização. Victor Hugo (autor de „Os Miseráveis‟) é outro escritor que irá exaltar algumas das qualidades dos velhos em seus livros. Mesmo quando jovem ele já representava sua admiração pelos mais

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velhos em seus versos. Acreditava em uma ligação espiritual entre crianças e velhos, pois a primeira ainda não chegou à condição humana, e o segundo se eleva acima dela. Ingenuidade e sabedoria parecem aproximá-los e, segundo o autor, os deixa mais perto de Deus. Com a criança, o velho vê refletida sua infância.

A partir de 1900, com os progressos da industrialização, e a diluição da célula familiar, o papel do velho passa a ser cada vez mais desimportante. Apesar do considerável envelhecimento populacional, o prestígio da velhice é cada vez menor dentro de uma sociedade tecnocrata. As técnicas tomam o lugar da experiência e o conjunto social não crê mais no acúmulo de sabedoria através dos anos. Pelo contrário, assim como os produtos, os conhecimentos passam a ter prazos de validade cada vez menores. Os valores ligados ao novo e a

juventude passam a ser apreciados. O belo passa a ser efêmero. Neste ponto da

história se afirma a forma de organização social na qual nossa sociedade ainda se encontra: o capitalismo. Um capitalismo tecnológico, selvagem e de consumo.

Com nosso levantamento histórico observamos as diversas formas como o velho se relacionou no social, assim como os significados que o envelhecer teve neste percurso. Pela diversidade de significações percebemos que a velhice não é algo simples, que acontece sempre da mesma forma. Varia dependendo de como as mudanças corporais e a experiência de vida são levadas em consideração nas necessidades do conjunto social. Em algumas sociedades a força de trabalho que esvai representa um grande déficit; em outras a experiência vivida a compensa. Seu valor depende em torno do que cada uma destas sociedades se organizou.

Dando continuidade ao nosso trabalho vamos, em seguida, analisar mais a fundo os aspectos da organização social, principalmente em nossa época. Sabemos que todo ser humano é organizado pela linguagem, somos seres que falam. Pelo viés psicanalítico, trabalharemos esta organização social pela linguagem através dos conceitos de „discurso social‟ e „sintoma‟. Com isso,

pensaremos a velhice em nosso tempo como uma forma de „sintoma‟ que se

defende da imposição do „discurso social‟ de nosso tempo (o discurso capitalista) tentando fazer falar algo que este quer esconder.

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CAPÍTULO 2 - ORGANIZAÇÃO SOCIAL CONTEMPORÂNEA E SEUS EFEITOS NA VELHICE

“Enquanto o tempo acelera e pede pressa. Eu me recuso, faço hora, vou na valsa. A vida é tão rara.” - Paciência, Lenine.

Seguindo o trabalho, trataremos da questão concernente ao lugar e os efeitos da velhice em nossa sociedade. Nossa tarefa até o momento foi de levantar a complexidade do lugar dialético que a velhice ocupou na história das civilizações. Isso dá fundamento e permite partir da seguinte premissa: mesmo que a subjetividade seja essencial para pensarmos a forma como cada sujeito encara o envelhecer, o contexto histórico de cada época é fundamental para questionar o porquê dele se organizar, ou se defender de uma ou de outra forma. Consequentemente, a maneira como o velho irá se defender, pelos seus sintomas individuais, denuncia as falhas que nossa civilização (nosso contexto social) tenta esconder. O contexto que se apresenta como texto falado pelo social, organizando-se como um discurso, organizando-segundo Lacan (1964). Portanto, iniciaremos esclarecendo o conceito de discurso social.

A teoria dos discursos proposta por Jaques Lacan, principalmente em seus livros „O avesso da psicanálise‟(1970) e „Televisão‟ (1973), vem dar conta de estruturar seu pensamento sobre os laços sociais entre as pessoas, vendo-as como seres de linguagem (que se organizam por aquilo que é dito e o não dito durante suas vidas) e de libido (suscetíveis a trocas de energia sexual, sentimentos e emoções). Quanto a isso Freud em „O mal-estar na civilização‟

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(1930) já concluíra que é no relacionamento entre humanos que produzimos nosso sofrimento. Nosso mal-estar está nos laços sociais. A evolução tem seu preço:

“[...] boa parte da culpa por nossa miséria vem do que é chamado de nossa civilização; seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e retrocedêssemos a condições primitivas. [...] o homem se torna neurótico porque não pode suportar a medida de privação que a sociedade lhe impõe, em prol de seus ideais culturais, e conclui-se então que, se estas exigências fossem abolidas ou bem atenuadas, isso significaria um retorno a possibilidade de felicidade.” (FREUD, 1930, pg. 30/31).

É, portanto, um mal-estar necessário, na medida em que o laço social é uma forma de permitir o estabelecimento das relações entre pessoas, renunciando à tendência impulsiva de tratar o outro como objeto, o qual é usado apenas para sobrevivência, pois parece que a inclinação do homem é ser lobo do próprio homem (FREUD, 1930). Para haver civilização necessita-se uma renúncia destes impulsos e uma cota de sofrimento.

Lacan como um bom estruturalista, irá buscar a partir do que Freud conjecturou, a estrutura fundamental dos laços sociais. Para compreender de uma forma mais clara esta ideia de Lacan, deve-se considerar que sua teoria (fazendo uma releitura freudiana) pensa o sujeito como dividido estruturalmente, consciente e inconsciente (LACAN, 1964). O inconsciente atua constantemente na forma de agir e ser. Ele é estruturado como uma linguagem na relação do sujeito com os outros sujeitos, desde sua maternagem, quando são registrados os primeiros

traços da linguagem7. Assim, aquilo que é inconsciente escapa da compreensão do

próprio indivíduo, pois estes traços não estão apenas nele, mas na sua relação com outros sujeitos. Essa forma de estruturação pode ser interpretada na clínica e no social, se escutada em seus elementos, sem juízo de valor, atentando aos contextos que se formam em cada situação.

É desta forma então, que Lacan trata a organização social através de formas discursivas, nas quais sujeitos divididos podem se vincular inconscientemente. O inconsciente estruturado como linguagem (assim como outras formas de linguagem) necessita se ordenar em discursos para circular socialmente. A forma como cada um dos discursos atua no social, irá depender de qual elemento

7

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estará ocupando cada lugar da estrutura. Estrutura esta que se diferencia pelas “[...] respostas que cada um [dos discursos] dá ao fracasso; como cada um conduz a verdade e o saber, bem como aquilo que cada um produz.” (MUCIDA, 2004, pg. 72).

Assim, a estrutura fundamental dos discursos é a seguinte:

Agente Outro

Verdade Produto

Nesta estrutura cada lugar terá uma função (no sentido de função matemática). O que está abaixo da barra representa aquilo que não está totalmente explícito no discurso, latente e de certa forma oculto, mas atuante. As flechas indicam a forma como se estabelecem as relações entre estes elementos,

mudando de sentido conforme os elementos. O lugar de „Agente‟ é daquele que

conduz o discurso, ou seja, o responsável por fazê-lo funcionar. Ele que vai colocar o „Outro‟ a trabalhar. A ação deste „Outro‟ (seu trabalho) incitado pelo „Agente‟ gera um „Produto‟ ou resto. Para pensar a função do „produto‟ Lacan (1970) se remete ao

conceito marxista de „mais-valia‟, chamando-o de um „mais-de-gozar‟. Para Marx a

mais-valia é um efeito da forma de organização capitalista. Ela é representada por aquilo que sempre excede da produção do trabalhador em relação ao custo da mercadoria. Esse excedente de trabalho é algo que escapa ao indivíduo (não é de sua posse), mas ao mesmo tempo o aliena à produção e gera o lucro do capitalista. Análoga a esta ideia, Lacan cunha o conceito de mais-de-gozar. Ele é algo que está além daquilo que o sujeito pode alcançar, desejar. Situa-se na dimensão da perda (assim como a mais-valia), é um resto de prazer (ou desprazer) impossível de se alcançar, mas que coloca o sujeito em movimento ao tentar recuperá-lo. Mais-de-gozar é uma das formas de chamar aquilo que Lacan denomina como objeto „a‟:

“É nessa hiância que certo número de objetos vêm certamente preencher, objetos que são, de algum modo, pré-adaptados, feitos para servir de tampão [...] oral, anal, escópico e mesmo vocal. Estes são os diversos nomes com os quais podemos designar como objetos que concerne ao „a‟.” (LACAN, 1970, pg.48).

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Por fim, a função da „Verdade‟, como aquilo que suporta o „Agente‟ do discurso. Ela não está ligada a imagem de verdadeiro e falso com a qual a articulamos normalmente. Não é o real do fato. Lacan (1970) busca em Heidegger embasamento para pensar o sentido da verdade, naquilo que este chama de

„althéia‟ (a verdade para os gregos). Ela é um desvelar que vela. Ao mesmo tempo

em que apresenta algo, oculta alguma coisa. É impossível dizer toda a verdade, pois sempre faltam palavras, ela está além da significação pela linguagem.

Ao articular essas funções discursivas, Lacan (1970) coloca diferentes atores em cada uma delas, e elabora teoricamente os diferentes discursos que criam laços sociais através dos tempos, permitindo uma nova forma de abordá-los. Primeiramente ele trabalha com quatro discursos principais: do mestre, do universitário, do analista e da histérica. Não aprofundaremos estes primeiros discursos, pois nosso foco será os efeitos na velhice do discurso predominante da contemporaneidade, o discurso capitalista. Mas cada um deles representa uma forma de vinculo social ainda presente (com mais ou menos intensidade) em nossa

época: O „discurso do mestre‟ representa o ato de governar e ser governado,

quando o poder é que domina; O „universitário‟ está ligado ao educar e ser educado, no qual o saber é o agente; O do „analista‟ é a forma discursiva que trata do vínculo entre analista e analisante numa situação terapêutica de psicanálise. Nela o analista se apaga como agente, colocando-se como objeto vazio, causa de desejo (semelhante ao objeto „a‟), para que o outro como sujeito dividido possa falar de um

saber de si; No da „histérica‟ (que impulsionou Freud na criação da psicanálise)

temos como predomínio o ato de fazer desejar, em que o agente é o sujeito da interrogação, o qual faz um mestre (no lugar do outro) querer saber mais sobre seu enigma, produzindo um conhecimento.

Quando Lacan vai tratar sobre o mal-estar contemporâneo, primeiramente em „O avesso da psicanálise‟ (1970), coloca como predominante em

nosso tempo o discurso universitário. E neste, como vimos, o saber é o „agente‟

dominante o qual interpela o „outro‟ na posição de objeto. Era o que Lacan

observava em sua geração. No auge do cientificismo, o qual buscava um novo saber

científico a todo custo, os laços sociais tomavam o „outro‟ sempre como um objeto

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contemporâneo numa nova forma discursiva emergente (além das quatro principais já colocadas), a qual se sobrepõe ao „universitário‟: o discurso capitalista.

Essa forma discursiva não surgiu simultaneamente ao próprio capitalismo histórico, mas na sua ascensão, quando se afirmam a sociedade de consumo e o mundo globalizado, e se consolidou ainda mais em nossos dias com a cultura do espetáculo. Ela organiza os elementos discursivos da seguinte forma:

1 S S a S2

Nela o lugar do „agente‟ é ocupado pelo sujeito dividido ($) da teoria lacaniana, determinado estruturalmente pela linguagem e o inconsciente, encarnado em nosso tempo pela figura do consumidor. Barrado como a „verdade‟ abaixo do sujeito, temos o significante mestre (S1), o qual representa o „Um‟; aquilo que dá sentido a todos os outros significantes. Quando pontuamos sobre o discurso do mestre tratamos esse significante como as relações de poder (no ato de governar, o poder é o que move os significantes), mas no discurso capitalista este é o próprio capital. O saber (S2) se coloca como o „outro‟ do discurso, principalmente pelas produções do saber científico. Este vai trabalhar para criar como seu „produto‟ objetos „a‟, objetos de satisfação. Este tipo de objeto que satisfaria o sujeito (como tratamos anteriormente ao falar do mais-de-gozar), assim como a mais-valia, é algo inalcançável, ele sempre será em parte insatisfeito. E este é o engodo criado pelo discurso capitalista: a possibilidade do sujeito obter a satisfação total através dos

produtos produzidos pela ciência, superando qualquer tipo de

frustração/castração/divisão. Completando a fórmula temos duas flechas demostrando a forma das relações impostas pelo discurso. Entre os objetos produzidos pela ciência e os sujeitos (a--->$), e a influência do capital sobre o trabalho científico (S1--->S2).

Mesmo estando no lugar de „agente‟, não é o sujeito que opera o discurso capitalista. Ele está ali apenas como um semblante, uma peça inserida na lógica de mercado dos objetos produzidos pela ciência. Seduzido, o sujeito acha que é livre para escolher os objetos, mas na verdade é determinado por eles. Por este motivo, atualmente os homens quando detêm poder, não se cercam de outros homens poderosos, mas de objetos, como carros, apartamentos, celulares,

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computadores... As relações sociais mais importantes não estão nos laços com outros, mas na recepção e manipulação de bens e mensagens (mídia). Como colocado no esquema, a ligação do sujeito não é com o saber (S2) ou o poder (S1), é com os objetos consumíveis (a).

Então, será o capital que irá operar como novo significante mestre (S1), colocando o discurso para funcionar. Seu lugar sob a barra, ocupando a função da „verdade‟ diz muito da sua forma de agir. Diferente do mestre como „agente‟ (no discurso do mestre), que demostrava seu poder se expondo, o mestre capitalista opera oculto e inatingível, através de leis do mercado (com mecanismos geralmente impossíveis de compreender), cartéis econômicos, e outras organizações impessoais. O dinheiro é o poder, e passa a ter um caráter virtual. Ele é “[...] um mestre sem faces, irreconhecível, mas que traça, como nunca, efeitos devastadores sobre o particular que reside em cada sujeito” (MUCIDA, 2004, pg. 78).

A ciência (S2) entra neste discurso como a produtora dos objetos de consumo. O saber científico será sustentado pelo capital (S1), para alimentar o sistema com tudo o que possa representar os objetos do desejo (a), vendendo com estes a ilusão de que é possível ter uma satisfação completa, quando de fato tudo que é produzido por ela, serve somente ao consumo curto e rápido. A verdade oculta pelo capital é de que o sujeito sempre será incompleto, algo faltará, pois isso faz parte do real de sua estrutura. Mas ao invés de conformá-lo com isto, criando algo em uma dimensão sublimatória, o discurso capitalista impele à produção de objetos, e à ilusão de satisfação. Se no fim, este não satisfez foi „porque não era o certo, mas se continuar consumindo uma hora vai encontrar‟. Assim, este discurso cria sujeitos insaciáveis em seu consumo. Buscando o lucro a todo custo, estes se tornam exploradores potenciais de seus semelhantes, tirando vantagem do outro quando for possível. Tudo para consumir mais.

Neste contexto criado pelo discurso capitalista, destacam-se autobiografias de pessoas que sabem como se dar bem. Produtos de autoajuda como ‟10 maneiras de ser feliz‟, ‟50 maneiras de obter prazer‟, ou ainda „Leve uma vida sem sofrimento‟, são os que mais fazem sucesso, pois reforçam este engodo de apontar onde está o objeto de nossa satisfação. E a velhice não escapa desta

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tentativa de se apagar a divisão do sujeito e sua incompletude. O „mestre Capital‟ também tenta envolvê-la, tornando-a um novo mercado de consumidores. Programas e propagandas prometem uma velhice mascarada de juventude através de plásticas, cosméticos, exercícios, remédios, e demais produtos. A ciência e o mercado se ocupam da velhice da mesma forma que tratam tudo aquilo que escancara a impossibilidade do sujeito ser completo: tentando ocultar falhas, frustrações e castrações, que lhe são constitutivas. E o fazem saturando suas vidas com produtos (objetos semblante do „a‟) que prometem a tão sonhada felicidade, eliminando qualquer tipo de sofrimento.

Nossa cultura tenta calar tudo aquilo que fala do sofrimento. O infortúnio humano que era destaque nas tragédias gregas, a sociedade atual tenta maquiar a todo custo, o que cria uma prática segregatória cruel que irá atingir, dentre outros, a velhice. Se os objetos não satisfazem totalmente, se não calam este sofrimento (estrutural) do sujeito, o discurso capitalista impele a culpar os outros sujeitos que sofrem - aqueles que não se adaptam ao discurso - pelo roubo desta felicidade prometida. Conforme Mucida:

“[...] o rapto do prazer ou da felicidade, é dirigido a todos aqueles que fazem furo à felicidade prometida – favelados, descamisados, desabrigados, falidos, idosos, etc – afirmando, como veremos, uma prática segregatória”. (2004, pg. 78).

É deste modo que o vovô, que não consegue ser feliz com os objetos da ciência moderna é o rabugento, é infeliz, e por isso é melhor se manter

afastado, não dar ouvidos a ele, para não se „contaminar‟ com seu sofrimento. O

familiar doente precisa ser tirado do convívio e colocado em um hospital, internado, mesmo que sua doença seja incurável e/ou terminal. Qualquer resquício de sofrimento ou tristeza (rapidamente diagnosticada como depressão) deve ser medicado, nem que custe a convivência da pessoa, privando-a de suas ultimas palavras, que em outros tempos era de suma importância para aqueles que o cercavam. Tudo o que aponta as falhas deste discurso, o que vai contra este excesso de velocidade e produtos, precisa ser silenciado, pelo „bem da civilização‟. Este é o mal-estar contemporâneo. E o idoso com seus sintomas demonstra claramente isso, e consequentemente é o primeiro a ser tirado de sua condição de

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sujeito, por não produzir mais (dentro da lógica capitalista), “[...] tornando-se aquele que já passou do „seu tempo‟” (MUCIDA, 2004, pg. 80).

Os sintomas da velhice mudam a cada época, pois justamente demonstram o que cada sujeito resiste naquilo que lhe é imposto pelo contexto. Segundo Soler, citada por Mucida, “[...] o sintoma é precisamente o que faz com que cada um, em alguma coisa, não consiga, de maneira nenhuma, fazer o que lhe é prescrito pelo discurso de seu tempo” (MUCIDA, 2004, pg. 83). Assim como sociedades antigas, em que o lugar da velhice denunciava uma precariedade social, econômica e cultural, também em nosso tempo sua condição demostra nossas deficiências. Em uma sociedade veloz, deixamos (como os nômades) nossos velhos para trás. Numa época onde tudo fica obsoleto rapidamente, envelhecer também é obsoletar.

Através de seus sintomas8 o sujeito se defende de diluir-se,

demarcando sua singularidade. O idoso com sua marcha mais lenta faz contraposição a nosso mundo atual, sempre veloz, em que tempo é dinheiro. Seu apego às memórias e passado (inclusive na forma patológica do Alzheimer), vem como única saída para mantê-las presentes, já que nosso discurso ordena o desapego de tudo, para possibilitar o consumo de coisas novas. A inadaptação do idoso, aquilo que ele nos fala através de suas queixas sintomáticas, vem para nos apontar o sofrimento inerente em nossa forma de organização social. Nossa resposta é de tentar adaptá-lo a este discurso, entretendo-o ou medicando-o. E para aquele que não se adapta resta o desamparo. Ficará desamparado por sua história não ter lugar frente às novidades de mercado, por sua imagem demonstrar o que ninguém quer ver, por seu corpo não responder aos imperativos de beleza e agilidade.

Precisamos criar furos neste discurso, abrindo novas possibilidades ao sujeito em seu envelhecimento. Nossos laços sociais necessitam ir além da forma de objetos consumíveis, nos confrontando com nossa incompletude. A sociedade deve se firmar justamente sobre esta falta estrutural dos sujeitos, não

8 Lembramos que não são apenas os sintomas da velhice que incorporam as falhas do discurso atual. Seus efeitos aparecem também em sintomas contemporâneos que abrangem todas as faixas etárias, como a depressão, toxicomanias, delinquência e alcoolismo. Não tratamo-las no texto, pois nosso foco de estudo é a velhice. Para expandir este assunto consultar “O tempo e o cão: a clínica das depressões” de Maria Rita Kehl, e “Alcoolismo, delinquência, toxicomania” de Charles Melman.

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buscando escondê-la ou vela-la (assim como as sociedades precárias faziam com seus velhos); mas usá-la de motor para criar novos laços, possibilitando trabalhar com o desamparo reservado atualmente à velhice.

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CONCLUSÃO

Uma abordagem através da leitura histórica e psicanalítica, como a que desenvolvemos no presente trabalho, dá outro status à condição do idoso em nosso tempo. A velhice se torna uma temática complexa, se vista de uma ótica mais ampla, a qual considera o indivíduo além de padrões pré-estabelecidos de rendimento, beleza ou felicidade. Isso permite pensar novas questões, e possibilita diferentes formas de trabalhar com os sintomas contemporâneos.

O resgate histórico desenvolvido nos trouxe a dimensão das transformações pelas quais o envelhecer passou em cada forma de organização social. Pudemos observar que existem traços característicos deste processo, como: certa involução fisiológica, diminuição das atividades, maior experiência de vida, proximidade com a morte e etc. Estes traços não fazem sentido por eles mesmos, pois o discurso de cada época lhes darão diferentes significações, juntamente com a singularidade de cada sujeito.

A ideia de decadência da velhice e a proximidade da morte, por exemplo, tem em sociedades primitivas, uma grande ligação com o sagrado. Em algumas delas, como vimos, estas pessoas são as mais evoluídas da tribo. Sua proximidade com o final da vida lhes garante poderes especiais.

Na literatura do século XVII, com Shakespeare, notamos que isto traz outro efeito: é o encontro com a morte que impulsionará o homem a buscar o sentido de sua vida. Mesmo sendo pessimista, o sujeito desta época a vê como força criadora de sentido.

No discurso capitalista, que concerne ao nosso tempo, vemos uma dificuldade no que diz respeito às questões da finitude e da morte. Sua forma

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de organização, que procura ocultar as faltas estruturais do ser, não busca criar sentidos para o viver, mas objetos que ocultem essas falhas e maquiem o horror da morte. Isso impulsiona o sujeito a consumir produtos que prometem uma juventude eterna, não produzindo laços nem significações, mas, alienando-os aos objetos.

A alienação aos objetos, que prometem a satisfação mas não podem cumpri-la totalmente, leva o sujeito a uma vida desprovida de sentido. Desta forma, em nosso atual sistema, valoriza-se a produção material em detrimento do humano. O mais importante é consumir e fazer a máquina funcionar. Mas quando o corpo não consegue mais responder ao imperativo de sempre consumir para ser feliz, resta a ele o desamparo. Assim, a velhice se mostra como um reflexo daquilo que foi o decorrer da vida do sujeito. O desamparo é aquele do ser humano que consumiu durante a vida - cultura, bens, lazer... através dos produtos da ciência - mas que não criou laços mais profundos, para além dos objetos, e ao envelhecer viu-se sem um sentido para sua vida. Seus bens já estão obsoletos, sua história não tem valor, seu corpo já não suporta os lazeres.

É necessária uma atenção especial aos sintomas dos idosos, pois eles são sua forma de se defender do apagamento subjetivo, imposto pelo discurso capitalista. Enquanto sintomatiza, ele preserva algo de singular e busca uma forma de se enlaçar além dos objetos. Seu apego aos bens de sua história, a teimosia em se prender ao passado, nos aponta aquilo que o discurso atual não quer saber: Que enquanto tivermos raízes culturais, laços mais concretos, e memórias bem vivas; é possível ainda manter uma subjetividade para além da lógica do consumo. Os laços e objetos podem ter valor de troca subjetiva.

Este estudo teve como intenção ser um levantamento inicial, uma contextualização, para pensar o papel do idoso dentro de nossa organização social. Sabemos da sua limitação e superficialidade em alguns pontos, nos quais deu-se prioridade a uma maior clareza e consistência do texto, ao invés de profundidade teórica. Porém, acreditamos que o texto cumpre com seu objetivo, de dar uma visão mais ampla sobre a questão da velhice em nosso tempo, permitindo sua discussão a partir de outros paradigmas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FREUD, S. (1930). O mal-estar na civilização. Tradução Paulo Cézar de Souza. In:_____. Obras Completas de Sigmund Freud. São Paulo: Cia das letras, 2010.

IMAMURA, Shohei. A balada de Narayama. Filme. Japão, 1983

LACAN, J. (1964). O Seminário. Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2ª ed. Tradução de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1992.

_______ (1970). O seminário. Livro XVII: O avesso da psicanálise. Tradução de Ari Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.

_______ (1973). Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

MUCIDA, Ângela. O sujeito não envelhece: Psicanálise e velhice. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

Referências

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