• Nenhum resultado encontrado

Memórias na formação do professor: um estudo do/no Projeto Irecê

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Memórias na formação do professor: um estudo do/no Projeto Irecê"

Copied!
101
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

FABRÍZIA PIRES DE OLIVEIRA

MEMÓRIAS NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR:

UM ESTUDO DO/NO PROJETO IRECÊ

Salvador

2010

(2)

MEMÓRIAS NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR:

UM ESTUDO DO/NO PROJETO IRECÊ

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação.

.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Roseli Gomes Brito de Sá.

Salvador

2010

(3)

SIBI / UFBA / Faculdade de Educação – Biblioteca Anísio Teixeira Oliveira, Fabrízia Pires de.

Memórias na formação do professor : um estudo do/no Projeto Irecê / Fabrízia Pires de Oliveira. – 2010.

95 f.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Roseli Gomes Brito de Sá.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2010.

1. Professores – Formação. 2. Autobiografia. I. Sá, Maria Roseli Gomes Brito de. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título.

(4)

MEMÓRIAS NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR:

UM ESTUDO DO/NO PROJETO IRECÊ

Dissertação apresentada em 09 de abril de 2010 como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora.

Banca Examinadora

Maria Roseli Gomes Brito de Sá – UFBA – Orientadora _______________________ Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia

Elizeu Clementino de Souza – UNEB _____________________________________ Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia

Maria Inez da Silva de Souza Carvalho – UFBA _____________________________ Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia

Marcea Andrade Sales – UNEB __________________________________________ Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia.

(5)

A

meu filho Rodrigo Oliveira Queiroz, razão maior do meu viver, estímulo que me impulsionou a viver a cada dia na busca dos meus sonhos e realizações, meu pedido de perdão pelas ausências, e agradecimentos por conceder a mim a oportunidade de me realizar ainda mais.

(6)

As minhas Histórias....ou algumas histórias de agradecimentos a pessoas que me ajudaram a me constituir no que sou hoje. São referências que marcaram e

marcarão para sempre meu estar-no-mundo.

Começo com a maior referência que tenho: Minha Família. Tudo começou na Rua da Mata. Lembro-me com saudades da minha infância, nasci na cidade de Ibititá-BA, na conhecida Rua da Mata, com mãe Dú, uma parteira muito conhecida na cidade. Viver “na Mata” era realmente o lugar onde qualquer criança desejaria viver, o lugar da fantasia, dos encantos, dos sonhos. As árvores, os “pés de manga”, as brincadeiras de lama, de casinha, de boneca, de bila, o corre–corre após chuva atrás da “tanas juras” com minhas primas me faz recordar de uma época de extrema felicidade. Meu primeiro sincero agradecimento, a minha MÃE Agnalva Oliveira Pires (Ná), mulher, professora primária, católica – me ensinou as primeiras letras e os primeiros valores. Muito obrigada minha mãe por me incentivar a prosseguir nos estudos, e especialmente neste, na ajuda com Rodrigo e nos cafés e orações nas madrugadas de estudos, Te amo incondicionalmente.

Ao meu PAI Gilson Pires Dantas (mamona preta), Homem, taxista e que adora um

“se diverte”, com sua simplicidade e mesmo sem entender direito o que significa uma

pesquisa de mestrado, se orgulha que eu terei mais uma “formatura”. O que seria de mim meu pai sem o senhor para administrar minhas coisas do dia-a-dia durante esses dois anos?

Meus irmãos: Hernandes – “jeitão fechado”, mas companheiro acima de tudo e Giovanni Stephann – Obrigada pelo carinho de sempre.

A minha querida avó Juscelina pela Torcida, e AIÁ Ana ou simplesmente Dona (in memorian) – Sei que lá no céu, sempre esteve por perto.

Meus Tios e Tias de Ibititá Maria (Ia), Ana, Dide, Iêda, Nicinha, Iracema, Ceiça, Lene, Miguel, Artuzinho, Lando, Valtinho e Tom pelos incentivos constantes em tudo que proponho fazer, jamais esquecerei da ajuda financeira do meu tempo de cursinho em Salvador.

(7)

Primos e Primas, especialmente a Anaílton – por toda a confiança em mim depositada em suas escolhas; a Kívia – pela ajuda nas transcrições e a Fredson – meu primo irmão, saberes trocados e partilhados constantemente.

Ao meu amor e companheiro João Neto, pessoa forte e determinada nos objetivos que quer alcançar. Ajudou-me e incentivou-me muito a lutar pelos meus também, sei que as “ausências” e conflitos... muitas vezes nos afastou, mas nosso amor foi bem maior que as diferenças.

Na nova família que constituí, agradeço as minhas cunhadas, sobrinhos, especialmente minha sogra Delita e meu sogro Faustino. Agradeço com bastante carinho minha família em Salvador, minha cunhada Márcia e meu sobrinho Juninho, nesses dois anos de convivência semanais, passei a admirá-los cada vez mais, obrigada por me acolher tão bem na casa de vocês, ou melhor, na nossa casa, pois assim me sentia.

Não poderia deixar de agradecer a Rivânia, pela dedicação e zelo a minha casa, as minhas coisas e com os meus livros. A tia IA, com minhas roupas sempre cheirosinhas para as viagens e a Tia Dide com as comidinhas e mimos.

Os espaços escolares sempre nos deixam marcas, professores e colegas são sempre especiais, destaco: Ivana Viana e Maria Helena – primário, ensino fundamental II e médio – Tempos do CEII: Edna, Ivan, Floriano e Ito.

Os colegas de tempo da escola são muitos, me reporto as amizades sinceras e duradouras: Bruno Alencar, Lidiane, Lívia, Vanessa e Willian.

Aos colegas da CEIBIT – Casa dos estudantes de Ibititá em Salvador, república onde aprendi a dividir, rir, brincar e também brigar, um aprendizado e tanto: Jurema, Edna, Aninha, Clarissa, Débora, Amanda, Juninho, Fred, Joãzinho, Glaciane e tantos outros...

No campo profissional sou grata a cada pessoa com quem pude conviver e aprender.

(8)

Nesse espaço encontrei primeiramente Inez Carvalho, nos conhecemos em 2001, fui a primeira bolsista de iniciação científica do projeto, de lá para cá, não nos afastamos nunca mais, brinco sempre... se “existiu outras vidas”, tenho certeza que fui sua filha, e como toda mãe quis e quer sempre o melhor para mim, carinho mas também puxões de orelha nas horas certas. Aprendi com você Inez, o verdadeiro sentido das palavras: Formação, competência e generosidade. Obrigada por me proporcionar fazer parte do seu mundo.

Roseli de Sá – Minha Orientadora, amiga e conselheira. Rose querida, obrigada por me sentir tão acolhida no mundo da pesquisa. As nossas coisas em comum nos aproximaram ainda mais: o cafezinho com biscoito, as rezas... A admiração profissional é desde seu ingresso no projeto Irecê, sua confiança e respeito com meu trabalho foram fundamentais para a concretização deste, agradeço imensamente a oportunidade de partilhas dos seus saberes.

Marcea Sales (Xú) – Obrigada pelo zelo, afeto e amizade.

Ana Paula Moreira – “Pops” – Obrigada pela parceria e amizade há mais de 7 anos. Nesses anos de convivência no Projeto Irecê, muitas pessoas que por aqui passaram e outras que passam deixaram ou deixam marcas significativas em meu processo formativo: Rita Dias, Gideon, Edilene Maioli, Luiza Seixas, Celinha,

Maiza – agradeço de coração os favorzinhos...

Josevania da Conceição – “Boca” – Obrigada pela atenção, carinho e ajudas mil, com você eu aprendi a “cortar papel”.

Clívio e Ivana – agradeço imensamente a ajuda com a pesquisa de campo realizada para esta pesquisa, foi significativa a participação de vocês para com este trabalho.

Aos professores da FACED, especialmente: Roberto Sidinei, Dante Galeffi, Lícia Beltrão, Tuca Tourinho, Vera Fartes, Maria Helena Bonilla e Nelson Pretto.

(9)

caronas e os acarajés do costa-azul, Verônica – parecia que já nos conhecíamos há anos e André – pela contribuição com seus “textos filosóficos”.

A equipe do projeto Irecê: Local – Andréia, Patrícia, Veridiana, Fernanda, Nizan, Paulinho, Aline, Ednaldo, Gil, Irene, Carla, Binha.

A Emanuela, Solange e Soraya pela acolhida em 2005.

A Secretaria de Educação de Irecê, na pessoa de Margô – pela viabilização da participação de Clívio e Ivana no grupo focal;

Ao Ponto de Cultura: Paulinho, Rita e Ariston pelo apóio tecnológico durante a pesquisa.

Aos professores-cursistas da 1ª turma que proporcionaram a realização desse trabalho: Ana Maria Campos, Claudia Dourado, Ariston Eduão, Everaldo Pereira, Jussara Sena, Andreia Rodrigues, Maria Cristina de Souza, Maria Geane, Judite Márcia, Euclébia de Sousa, Neivanete Alecrim, Vera Lúcia, Alaíde da Silva, Laureci Brasil e Maria Gouveia.

Aos professores-cursistas da 2ª turma;

A minha comadre e companheira Rita Chagas e Afonso que me incentivaram a ingressar no mundo da pesquisa.

Ao meu povo de Ibititá:

Ao prefeito Dr. Chiquinho e a secretária Nerivânia pela confiança depositada com meu trabalho; obrigada por entenderem as minhas “ausências” durante esses dois anos.

Aos colegas e amigos da secretaria de educação: Vânia, Bel, Clau, Binha, Itamar, Dani, Cezinha, Gláucia, Laidinha, Rosilda, Coy e Neide – pela amizade, quebra-galhos e agüentarem o meu stress da reta final.

(10)

A Taty – Amiga, incentivadora e minha fã incondicional; A Nágela e Eloísa pela torcida de sempre;

Enfim, a todos que a memória agora não selecionou, mas que certamente permanece nela.

(11)

Este trabalho se move na seara da temática Memória e a Formação Docente, abordando questões relativas à memória e a história de vida na formação de professores e suas formas de análise, interpretação e compreensão. Investiga as relações entre memória e formação docente a partir do Programa de Formação de Professores da Universidade Federal da Bahia/Faculdade de Educação em parceria com a Prefeitura Municipal de Irecê/BA. A pesquisa busca discutir tanto questões conceituais ligadas à memória, como questões metodológicas pertinentes ao âmbito dos trabalhos de formação de professores com histórias de vida. O objetivo do estudo foi analisar como os professores-cursistas compreenderam seu processo formativo através do trabalho com memórias/memorial no Curso de Pedagogia da UFBA/FACED/IRECÊ. A formação do educador diante dessa perspectiva envolve as múltiplas referências que compuseram o seu saber ser e seu saber fazer ao longo da existência singular de cada ser-no-mundo. Este trabalho trata, ainda, da memória como uma experiência histórica indissociável das experiências peculiares de cada indivíduo e de cada cultura. Desse modo, sua(s) compreensão (ões)/

interpretação(ões) propõe (m) uma reflexão sobre as suas práticas vivenciadas na

relação pedagógica e na vida. A pesquisa bibliográfica pautou-se em referências sobre memórias, autobiografia, tendo como suporte teórico-metodológico a hermenêutica fenomenológica. A investigação foi inscrita na abordagem qualitativa de base fenomenológica e existencial, a leitura prévia dos 15 memoriais-formação foi fundamental para a escolha dos recortes das formulações produzidas pelos professores-cursitas. O memorial faz parte das atividades de registro e produção escrita oferecidas pelo Curso de Licenciatura em Pedagogia UFBA/FACED/IRECÊ, e tem sido um rico instrumento para a análise e reflexão do que está sendo construído por esses professores. Discutir memória na formação do professor é procurar tornar possível sua intervenção na construção do seu espaço pedagógico, para que ele não seja mais um produto dos saberes, mas que ocupe um lugar na construção do seu saber.

(12)

This present work moves in the harvest of the theme Memory and Teacher Education, addressing issues of memory and life history in teacher education and its forms of analysis, interpretation and understanding. Investigates the relationship between memory and teacher training from the Program of Teacher Education at Federal University of Bahia / Faculty of Education in partnership with the Municipality of Irecê / BA. The research aims to discuss both conceptual issues related to memory, and methodological issues relevant to the work of teacher education with life stories. The study was to analyze how teachers, course participants understand their learning process by working with memory / memorial in the Pedagogy at UFBA / FACED / IRECÊ. The training of educators at this perspective involves the multiple references that made up their knowledge and be their know-how throughout the life of each individual being in the world. This work is also the memory as a historical experience inseparable experiences peculiar to each individual and each culture. Thus, their understand/ interpretation proposing a reflection on their practice experiences in the pedagogical relationship and in their lives. The literature search was based on references to memorials, autobiography, based by theoretical and methodological phenomenological hermeneutics. The investigation was put on a qualitative basis of phenomenological and existential, the previous reading of 15 memory-training was essential for the choice of cuts of the formulations produced as teachers. The memorial is part of the activities of recording and writing offered by the Degree in Pedagogy UFBA / FACED / IRECÊ, and has been a rich tool for analysis and reflection of what is being built by these teachers. Discuss memory in teacher education is to seek to make possible their participation in shaping their own educational space, so it is no longer a product of knowledge, but to occupy a place in the building of their knowledge.

(13)

UFBA Universidade Federal da Bahia FACED Faculdade de Educação

PIBIC Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica CEII Centro de Educação Integrado de Irecê

GEACs Grupos de Estudos Acadêmicos GECIs Grupos de Estudos Cinematográficos GELITs Grupos de Estudos Literários

TCC Trabalho de Conclusão de Curso

(14)

1 MEMÓRIAS DE UM PROJETO ... 13

2 HORIZONTE METODOLÓGICO ... 21

2.1 AS MEMÓRIAS EM DEBATE ... 21

2.2 CONSCIÊNCIA E INTERPRETAÇÃO DA HISTORICIDADE HUMANA ... 23

2.3 ABORDAGEM (AUTO) BIOGRÁFICA: MEMORIAL – A MEMÓRIA COMO FORMAÇÃO ... 26

2.4 MEMÓRIA E MEMORIAL NA DINÂMICA DA INVESTIGAÇÃO ... 31

3 MEMÓRIA E HISTÓRIA: AS NARRATIVAS COMO ALICERCES FORMATIVOS ... 35

3.1 TERRITÓRIOS DA HISTÓRIA: MEMÓRIA E EXPERIÊNCIA NA FORMAÇÃO DOCENTE ... 40

3.2 MEMÓRIA E ESQUECIMENTO ... 48

4 O PROJETO IRECÊ: MEMÓRIA E FORMAÇÃO DOCENTE ... 50

5 TRAMAS DA MEMÓRIA: HISTÓRIAS DE PROFESSORES ... 60

5.1 A TRAVESSIA ... 61

5.2 O SENTIDO QUE OS PROFESSORES-CURSISTAS ATRIBUÍRAM AO MEMORIAL NO SEU PROCESSO FORMATIVO ... 63

5.3 MEMORIAL: APRENDIZAGENS EXPERIENCIAIS DE PROFESSORES ... 73

5.4 QUANDO PENSO NO PASSADO NÃO ESQUEÇO O FUTURO ... 78

6 MEMÓRIAS FINAIS... ... 83

(15)

1 MEMÓRIAS DE UM PROJETO

Memória é, aqui, a concentração do pensamento que, concentrado, permanece junto ao que foi propriamente pensado porque queria ser pensado antes de tudo e antes de mais nada.

(HEIDEGGER, 2006)

A história é feita com e no tempo, na experiência do homem, com suas histórias, com suas memórias. Remexer, vasculhar, revolver na memória lembranças da infância, adolescência, da escola, de uma viagem, de viagens...

Podem ser muitas as formas de viajar, reais ou imaginárias, demarcando momentos ou épocas, a busca pelo desconhecido, a experiência insuspeitada, a novidade. Em geral, a viagem compreende várias significações e conotações, simultâneas, complementares ou mesmo contraditórias.

É como se a viagem, o viajante e a sua narrativa revelassem todo o tempo o que se sabe e o que não se sabe, o conhecimento e o desconhecido, o próximo e o remoto, o real e o virtual. A viagem pode ser breve ou demorada, instantânea ou de longa duração, delimitada ou interminável, passada, presente ou futura (IANNI, 2000, p. 13).

Álvaro de Campos, heterônomo de Fernando Pessoa (2009), metaforiza a viagem perfazendo um passeio pelo sentir, “Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir, sentir tudo de todas as maneiras, sentir tudo excessivamente, Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas [...]”... sentir como se fazem as pessoas, a estrada, as histórias...

E assim eu senti coisas e ouvi muitas histórias durante as idas e vindas semanais no trecho Irecê/Salvador ou Salvador/Irecê durante os anos de 2008/2009. A viagem que fazia então – ou nesse período – era a da minha itinerância como estudante do mestrado do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia, e a metáfora que escolho para falar dela é a do voo. Posso dizer que fiquei muito próxima de uma águia, não a Águia Branca, pássaro veloz, rei dos pássaros, mensageiro do sol... Quero me reportar a outra

(16)

Águia, a empresa de ônibus Águia Branca, que realiza suas viagens diariamente por muitos lugares do Brasil, entre eles o percurso Irecê/Salvador. Os bilhetes de passagem, os motoristas dos ônibus, as pessoas da sala “Vip”, os companheiros de poltrona, as histórias, as memórias...

“Boa noite senhores passageiros, meu nome é Marco Polo1

, irei conduzi-los até Irecê. O nosso tempo previsto de viagem é de, aproximadamente, 7 ou 8 horas. O nosso serviço de bordo é composto de água e café, temos saídas de emergência nas laterais do veículo, o cinto de segurança é de uso obrigatório, que tenhamos uma boa viagem”.

Por diversas vezes ouvi mais ou menos esse discurso sempre antes da saída do ônibus. No início nem me chamava a atenção, mas logo percebi que muitas vezes esse texto de boas-vindas era “cortado”, modificado, acrescentado. A cada viagem era sempre um novo texto, sem perder a tônica do texto original. Posso dizer que “Desta vez o texto não é mais amarrotado, dobrado feito uma bola sobre si mesmo, mas recortado, pulverizado, distribuído, avaliado segundo critérios de uma subjetividade que produz a si mesma” (LÉVY, 1996, p. 36).

Curiosa, perguntei informalmente onde aquele texto fora aprendido. Um dos motoristas, muito simpático, por sinal, respondeu que foi durante o treinamento oficial para ingresso na empresa e reforçado nos encontros de capacitação com o setor de RH (Recursos Humanos).

O texto, o contexto, os passageiros misturavam-se com aqueles profissionais “motoristas” – suas singularidades, crenças, maneiras de se expressar, de gesticular, de ser tímido, descontraído ou até mesmo de se autorizar a não repetir o texto convencional e se limitar a dizer simplesmente “Boa-Noite”. Se todos os motoristas recebiam o mesmo texto como modelo de boas-vindas para os clientes, por que emergiam outros textos? E por que alguns tentavam repetir o mesmo texto? Tentavam simplesmente, pois nunca era o mesmo, a memória falhava, esticava, diminuía... o esquecimento se misturava com o improviso. Conforme Pierre Lévy (1996, p. 37):

1

Optei pelo uso de pseudônimos. Aqui, escolhi o viajante Marco Polo, o grande mercador e viajante italiano. Ele nasceu em 1254, Curzola, na Dalmácia (atual Croácia), na época província veneziana. Aos 17 anos acompanhou o pai e o tio, ambos mercadores, em uma viagem de 24 anos ao Extremo Oriente.

(17)

Escutar, olhar, ler equivale finalmente a construir-se. Na abertura ao esforço de significação que vem do outro, trabalhando-o, esburacando, amarrotando, recortando o texto, incorporando-o em nós, destruindo-o, contribuímos para erigir a paisagem de sentido que nos habita [...] para criar, recriar e reatualizar o mundo de significações que somos.

O cenário era bastante singular. O texto chegava diferente para cada passageiro que circulava nas viagens da Águia Branca: alguns respondiam as boas-vindas, acrescentavam, ironizavam, invocavam crenças religiosas; outros nem ouviam. No meio a tantas pessoas, uma estudante/pesquisadora – às vezes cansada da viagem, às vezes atenta a tudo que lembra, cheira, instiga a Memória e

Formação. Fiquei a imaginar a concepção da empresa na capacitação daqueles

motoristas; que formação era aquela? Será que as singularidades daqueles profissionais eram respeitadas? Era apenas um treinamento para atender a clientes? E por que eles transgrediam? E, antes do sono chegar, ficava a comparar a minha própria formação e a pensar na temática de meus estudos – a formação de professores.

Pensamentos, memória de uma aluna, naquele momento na pós-graduação, se misturavam com lembranças das viagens naquele mesmo trecho, quando aluna do curso de Pedagogia da FACED (Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia). O mural de avisos do ônibus me fazia recordar outro mural, o da FACED. Nós, seres humanos, temos o poder de construir a ideia de tempo a partir da consciência de certos traços que caracterizam a experiência, e se sabe que ele “[...] não se deixa ver, tocar, ouvir, saborear, nem respirar como um odor” (ELIAS, 1998). Mas, apesar de aparentemente abstrato, o tempo é construído a partir de uma experiência concreta e traz em si a marca do rememorar. A palavra recordar nos leva à raiz da palavra coração, formada a partir “Do latim cor, cordis (como sede, centro da alma, da inteligência e da sensibilidade)” e no seu sentido figurado como lembrança, memória (HOUAISS, 2001 apud BRANDÃO, 2008).

Na obra Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino apresenta relatos do viajante veneziano Marco Polo. Em um dos diálogos com o imperador Kublai Khan, Marco Polo comenta que “O passado do viajante muda de acordo com o itinerário

(18)

realizado” (CALVINO, 1990, p. 28). Era assim que me sentia, em um novo passado a cada viagem:

Não o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava mais existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos (CALVINO, 1990, p. 28).

A experiência de rememorar, de refletir, requer que tenhamos alguma noção de temporalidade e, também, que estejamos situados no espaço. É impossível lembrarmos tudo, o tempo todo. Mas a lógica da emoção encaminha as lembranças de alguns momentos, sentimentos e ações para serem “estocados” em algum lugar da nossa interioridade. Recordo também quando narrei, em minha monografia de final de Curso da Graduação, como cheguei ao Programa de Formação de Professores da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia em parceria com a Prefeitura Municipal de Irecê, o Projeto Irecê:

Em julho de 2001, através do mural de avisos da FACED, fiquei interessada por uma vaga para bolsista PIBIC (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica) com o professor Nelson Pretto. Durante a entrevista da seleção, fiquei sabendo sobre a existência do Projeto de Formação de professores da Faculdade de Educação em parceria com a Prefeitura Municipal de Irecê.

A cidade de Irecê fica a 470km de Salvador, no semi-árido baiano, com uma população de mais de 57.000 habitantes e uma agricultura de subsistência baseada na produção de feijão, milho e mamona. A micro região comporta 19 cidades. Irecê comercializa tudo que é produzido nas cidades vizinhas, o que torna o comércio local forte. Nasci em Ibititá, uma das cidades da micro região. Tanto minha mãe quanto eu tínhamos o interesse que eu estudasse em um bom colégio. Como as “melhores” escolas particulares encontram-se em Irecê, fui estudar lá da 6ª série do ensino fundamental até terminar o ensino médio no colégio CEII. Era uma verdadeira maratona, íamos de transporte escolar e voltávamos todos os dias para Ibititá, prática que é ainda muito comum entre estudantes de cidades vizinhas. Esta familiaridade com os costumes e com a cultura local seria um ponto positivo naquela seleção.

Seriam escolhidas três bolsistas PIBIC. O tema de pesquisa do professor Nelson Pretto era relacionado com as novas tecnologias. O conhecimento em informática era um fator decisório naquela seleção. Nelson Pretto já logo perguntou: “Quem entende mesmo de computação aqui?” Percebi ali que já teria “dançado” por ter apenas noções básicas de informática. Das treze alunas que concorriam as

(19)

três vagas, só uma levantou a mão: uma carioca que tivera feito curso técnico em informática no Rio de Janeiro que ficou como primeira bolsista; a segunda bolsa ficou com uma voluntária que já trabalhava no grupo de pesquisa do professor Nelson há um ano; a terceira bolsista ficaria para o Projeto Irecê. Durante a entrevista, após contar minha origem, fui selecionada por unanimidade, até mesmo pelas colegas que estavam disputando comigo.

Escolhida, conheci a professora Maria Inez Carvalho, coordenadora do Projeto Irecê. Cheguei num momento em que o projeto já estava elaborado e começando a se montar a equipe. Nunca poderia imaginar que fosse ouvir, na capital, falar com tanta freqüência o nome Irecê. Justo Irecê que me fazia lembrar de tudo que vivi durante a minha vida, meu colégio, meus professores e meus amigos... Empolguei-me bastante. Mandamos o projeto para a seleção do PIBIC e ficamos na torcida pela aprovação.

Em agosto de 2001, o resultado do PIBIC contemplou uma bolsa que, no caso, seria a minha. Encantei-me pela proposta do projeto, e procurei logo saber por que Irecê? Com tantas outras cidades mais perto de Salvador, por que ir para tão distante? Surgiu da demanda por formações de professores existentes no município, para atender a LDBEN 9392/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e formalmente encaminhada em novembro de 2001 pelo então prefeito de Irecê, Beto Lélis, na Faculdade de Educação. Pensando-se na possibilidade que a FACED teria de criar um curso específico de formação de professores em nível superior para o município de Irecê. Estava nascendo, aí, o grande desafio de colocar em prática os anos e anos de estudo no campo do currículo que a FACED desempenhara.

Em uma simbiose cheia de sutilezas, fui aos poucos me envolvendo e de tal forma que já fazia parte da equipe. Sofri nos momentos difíceis, comemorei cada passo à frente que conquistávamos, e segurei os momentos de aprendizado para o meu crescimento pessoal dentro do processo Piagetiano de desequilíbrio, equilíbrio e acomodação (OLIVEIRA, 2005, p. 7-8, 13).

Naquele momento, não poderia imaginar que hoje, depois de quase oito anos, estaria fazendo parte da equipe de orientação local da 2ª turma do Curso de Pedagogia UFBA/IRECÊ, um processo formativo e autoformativo de quase nove anos.

Formação é uma palavra que apareceu com grande significado naquele momento. Afinal, estava vivenciando a minha: era a minha itinerância, estava na estrada literal e metaforicamente. Segundo Gadamer, em “formação” (Bildung) encontra-se a palavra “„imagem” (Bild), sendo que essa última abrange ao mesmo tempo “cópia” e “modelo” (GADAMER, 1999, p. 50). Com essa conotação, a

formação designa mais o resultado de um processo de devir do que o próprio

(20)

rechaçada em alguns meios, pela remissão possível à idéia de formatação, de limitação de espaços e possibilidades” (SÁ, 2008).

Professores, motoristas, passageiros, pessoas... Poderíamos pensar que a formação daqueles motoristas era meramente um treino para suas atividades rotineiras, em um processo de fora para dentro com caráter técnico com/ou estritamente prático e profissional? Ou cada performance tímida, alegre, religiosa demonstrava a complexidade do termo? Que subjetividades emergiam naquele texto memorizado?

Diria aqui que a conotação da imagem citada por Gadamer, que por sua vez abrangeria a cópia e o modelo, encontra-se bem presente tanto no imaginário dos formadores da empresa Águia Branca, como nas concepções que orientam prioritariamente as políticas de capacitação dos seus funcionários.

A caminho de universidade, percebi que o ônibus era mais um espaço de

aprendizagem, os causos populares, as crenças religiosas, o bate papo informal, o

multiculturalismo. É interessante discutir aqui o conceito de aprendizagem referido por Froés Burnham (1994, p. 4):

A palavra Aprendizagem é considerada, então, como possibilitadora de uma ligação que garanta construirmos nossos próprios sensos e sentidos a partir da informação disponível na sociedade; dirigindo a atenção para a dinâmica das relações, por um lado, entre informação [conhecimento] e tecnologias da informação e, por outro, entre o indivíduo e a comunidade.

Nesse contexto pode ser identificada a potencialidade de significados dos espaços sociais alicerçando a construção de Espaços de Aprendizagem, tomando-o como um conjunto de movimentos e de relações com o espaço que, constituído por indivíduos sociais e objetos sociais, proporciona mudanças que denominamos Aprendizagem. Essa aprendizagem está intimamente ligada aos cenários e realidade vivenciada pelos indivíduos sociais que o compõem, portanto, indivíduo que aprende e ensina numa dinâmica inerente a sua condição humana. Larrosa Bondia (2002) evidencia o sentido da formação em Nietzsche, que corresponderia a “como se chega a ser o que se é” ou “como se vem a ser o que se é”. A formação, em Nietzsche, “[...] rejeita explicitamente o imperativo de „conhecer-se a si mesmo‟ e

(21)

descontrói, deslocando-o, o imperativo de „ter valor de servir-se do próprio entendimento‟” (LARROSA BONDIA, 2002, p. 61).

A partir dessa concepção de formação e tendo em vista esses muitos cenários, com tantas histórias e memórias, a presente pesquisa inscreve-se também na minha história pessoal e profissional. A implicação com este trabalho me remete à reflexão sobre meu percurso de formação, exercitando a endo-etnografia, como denomina Macedo (2008), a pesquisa em que o/a pesquisador/a se depara com sua própria itinerância (neste caso, minha itinerância no Projeto Irecê), buscando ser possível tornar “o familiar-estranho e o estranho-familiar” (MACEDO, 2008).

A pergunta inicial foi formulada, dessa forma, buscando, muito mais que explicações para os processos de formação dos sujeitos da pesquisa, a compreensão desses processos, incluído aí o percurso formativo da pesquisadora: Como os professores-cursistas2 compreendem o seu processo formativo através do trabalho com memórias/memorial no curso de Pedagogia da UFBA/IRECÊ?

Assim como os professores de Irecê, que construíram seus memoriais desde o processo seletivo do curso, vou inventando3 minha história. Falar de formação de professores e abordar memorial de formação é, acima de tudo, um modo de narrar nossas histórias, nossa memória. “É o registro de um processo, de uma travessia, uma lembrança refletida de acontecimentos dos quais somos protagonistas” (PRADO e SOLIGO, 2005). Basicamente, é usar a ideia de Bosi (1997, p. 48) para quem “O passado não é o antecedente do presente, é sua fonte”.

O relato do exercício de interpretação/compreensão das narrativas dos professores-cursistas que constitui esta dissertação foi organizado em seções temáticas, a começar pelas formulações acerca dos caminhos teórico-metodológicos empreendidos, na seção intitulada: Horizontes Metodológicos – As memórias em

debate. Após uma breve introdução sobre a complexidade da pesquisa qualitativa e

com a explicitação da escolha de uma perspectiva fenomenológica e existencial da

2 O campo empírico da investigação que alimenta o presente estudo é o Curso de Pedagogia Ensino

Fundamental/séries iniciais realizado pela UFBA na cidade de Irecê-Ba, com vistas à formação de professores da Rede, aqui denominados de professores-cursistas. O memorial começa a ser elaborado desde a seleção para ingresso no curso, é alimentado no percurso curricular dos cursistas e apresentado como trabalho de conclusão do curso.

3 Inventar: Palavra que etimologicamente vem de invenire: fazer vir à luz do dia o que já existe, vivido

(22)

pesquisa como um referencial orientador dos estudos, procuro fazer breves considerações sobre a dimensão fenomenológica conferida por Gadamer (1999, 2003), Husserl (2008) e Heidegger (1998, 2006). Na segunda parte, descrevo a dinâmica da pesquisa.

Na seção seguinte, Memória e História: As Narrativas como alicerces

formativos, procuro discorrer sobre algumas das fontes de conhecimento do

passado: História e Memória e com suas etimologias, a partir de Lowenthal (1996) e Le Goff (1998), e a utilização do exercício da memória na elaboração de relatos autobiográficos como estratégia formativa na formação de professores.

Na seção O Projeto Irecê: memória e formação docente, a proposta é apresentar a estrutura curricular do Programa de Formação de Professores da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, em parceria com a Prefeitura Municipal de Irecê/BA, e como é realizado o trabalho com as memórias narrativas fundamentais para a formação de professores em exercício.

Até esse ponto do texto, realizo minhas próprias interpretações da abordagem autobiográfica para a formação docente. Na seção Tramas da Memória: Histórias de

Professores, passo a ampliar essa interpretação com as falas dos

professores-cursitas envolvidos na pesquisa, chamados a pensarem comigo sobre seus processos formativos a partir do trabalho com memórias/memorial do Curso de Pedagogia UFBA/FACED/IRECÊ.

E nas Memórias Finais... última seção, como já sugere o título, retomo, mais uma vez, fazendo-me ouvir pelas falas dos professores-cursitas, alguns pontos básicos das discussões e reafirmo a incompletude deste trabalho e destas memórias.

É nessa direção que convido o leitor para percorrer Memórias na Formação Docente: um estudo do/no Projeto Irecê. “Um jogo entre o que esquecer, o que lembrar e o que falar que, embasado em vestígios concretos, resulta em uma história. Um jogo que usarei para inventar a história” (CARVALHO, 2001 p. 10).

(23)

2 HORIZONTE METODOLÓGICO

A Pesquisa é sempre um ato contestado. Em cada corpo de conhecimento, sempre há uma história de conflito em um conjunto de decisões [...].

(KINCHELOE e BERRY, 2007)

2.1 AS MEMÓRIAS EM DEBATE

Uma pesquisa científica tem a pretensão de desenhar uma compreensão do real e da realidade que se apresente como problema ou questão, produzindo, por consequência, conhecimento, ou seja, uma crença verdadeira justificada. Por sua vez, as diversas abordagens epistemológicas existentes no campo das investigações, tanto das ciências humanas quanto nas ciências naturais, moldam adequadamente as indagações que fazemos, a partir das decisões que tomamos sobre o conhecimento que produzimos.

Nesse sentido, optar pela pesquisa qualitativa, mais do que uma opção apropriada, exige do pesquisador um saber lidar com a complexidade própria da pesquisa científica em articulação com o próprio conhecimento. Assim, a opção por uma perspectiva fenomenológica e existencial para esta pesquisa, conforme denominação de Dutra (2002), justifica-se na medida em que a compreensão das experiências narradas nos memoriais pelos professores-cursistas exige, antes de tudo, uma compreensão prévia do existir humano enquanto fenômeno singular do mundo. Em outras palavras, não é possível “objetificar” a existência humana, mesmo no sentido de torná-la objeto de conhecimento de um sujeito do conhecimento (apontando aqui a clássica relação sujeito versus objeto na produção do conhecimento).

Assim, além do caráter formativo para o pesquisador, a leitura crítica dos memoriais possibilita o diálogo com o outro e coloca-nos como participante da sua experiência, “[...] fazendo do pesquisador um sujeito dessa experiência” (DUTRA, 2002, p. 371). Dessa forma, tal abordagem contribui para a apreensão de

(24)

dispositivos sobre os percursos de formação. Apropriar-se e pensar a formação, focados em relatos autobiográficos, configura-se como fator preponderante para o entendimento das trajetórias formativas, uma vez que abordam as experiências vividas por cada indivíduo, só desvendando o que somos e o que queremos ser, é possível conhecer a própria historicidade e ressignificar conhecimentos e aprendizagens experienciais.

Conforme Gadamer (2003), o homem tem a possibilidade de buscar ter total consciência da historicidade do tempo presente e da relatividade de toda opinião, diferentemente das antigas tradições, fechadas em si mesmas. Como consequência, visões de mundo – até mesmo as mais antagônicas – devem formar um todo instável que é sempre refeito pelo círculo hermenêutico compreensivo e coerente. A necessidade de compreensão de múltiplos pontos de vista, que nos coloca na perceptiva do “outro”, através do diálogo, exige de nós a constituição de certo “senso histórico”, que deve ser entendido como “[...] a disponibilidade e o talento do historiador para compreender o passado a partir do próprio contexto em que ele emerge” (GADAMER, 2003, p. 122).

O entendimento deste senso histórico é particularmente importante para este trabalho em virtude do objeto trabalhado, ou seja, o memorial no processo de formação do professor. Assim, possuir um senso histórico apurado é superar, de modo consistente e consequente, a ingenuidade do senso comum, que nos leva a julgar o passado a partir de medidas supostamente evidentes da atualidade. Ao escrever o memorial, os cursistas não apenas expressam objetivamente fatos antigos de sua vida, mas travam um diálogo carregado de subjetividade com suas lembranças e com o seu passado. O memorial traduz uma leitura particular do passado em estreita ligação com o presente. Conforme Schmidt (1990 apud DUTRA, 2002, p. 374): “Cabe ao pesquisador colocar-se, então, mais como um recolhedor da experiência, inspirado pela vontade de compreender, do que como um analisador à cata de explicações”.

Pelos argumentos expostos, poderemos pensar, então, na categoria ser

geo-histórico, isto é, um ser instável construído por um horizonte de mundo delimitado

num espaço e tempo, ou seja, um intérprete geo-histórico. O professor-cursista, entendido como sujeito de sua própria constituição existencial, deve se reconhecer a partir de suas experiências cotidianas e de sua vivência histórica no mundo através

(25)

de suas intervenções conscientes no processo educacional. É através desse processo que o professor se distingue – a partir de técnicas interpretativas para as quais a primazia da linguagem é fundamental – como profissional que trabalha com o processo de educação, e por isso é a partir desses pressupostos vinculados às suas pré-compreensões da realidade que o professor se reconhece ontologicamente como parte do mundo que o cerca.

2.2 CONSCIÊNCIA E INTERPRETAÇÃO DA HISTORICIDADE HUMANA

De modo específico, a consciência contemporânea assume com o senso histórico tudo que é comunicado pela tradição, ou seja, o Ser se move na/pela tradição. Tal atitude denomina-se “interpretação”, sendo esta uma dimensão humana, independentemente da narrativa textual a que ela se refere (um memorial, por exemplo), pois “quando um significado de um texto qualquer não é de imediato compreendido, uma interpretação é necessária, resultando na explicitação das condições que conduziram o texto em questão a ter esse ou aquele significado” (GADAMER, 2003, p. 126).

De modo geral, a interpretação é aplicada não apenas aos textos escritos, mas, de forma mais abrangente, a tudo que nos é transmitido pelas tradições. No processo de interpretação, é exigido olhar para além do sentido mais imediato, pois, ao entrar em diálogo com o outro, há a fusão de horizontes, e nesta fusão os sentidos e significados são postos em xeque para interpretações futuras mais radicais, densas ou aprofundadas. Para as ciências humanas na contemporaneidade, todo material que ela trabalha – e aí incluímos o memorial – requer uma interpretação, sendo esta uma postura decisiva e fundamental.

Coerente com a perspectiva do conhecimento histórico desenvolvido por Gadamer, em sua exigência de interpretação de tudo aquilo que seja abordado como objeto de pesquisa, observo na fenomenologia uma postura decisiva para que tal descrição e interpretação sejam levadas a efeito de modo consistente. É importante frisar que a narrativa como técnica de pesquisa fenomenológica, não contempla a redução fenomenológica de Husserl, mas se dá através da hermenêutica filosófica de Gadamer com aporte na hermenêutica fenomenológica

(26)

de Heidegger. Para Dutra (2002, p. 376) “justamente por saber-se da impossibilidade de uma redução completa, tal como já fora reconhecido por Merleau-Ponty (1945/1994), entendemos que o retorno ao mundo da experiência implica no reconhecimento de que somos seres de abertura e de relação”.

O núcleo principal da fenomenologia é a noção de intencionalidade, pela qual é sugerida a superação das tendências racionalistas e empiristas surgidas ainda no século XVII. A fenomenologia pretende realizar a superação da dicotomia razão-experiência no processo de conhecimento, afirmando que toda consciência é intencional. Isso significa que, contrariamente ao que afirmam os racionalistas, não há pura consciência separada do mundo, mas toda consciência tende para o mundo; e mais, que toda consciência é consciência de alguma coisa. Também, contrariamente aos empiristas, os fenomenólogos afirmam que não há um objeto em si, já que o objeto só existe para um sujeito que lhe dá significado (HUSSERL, 2008).

Com o conceito de intencionalidade, a fenomenologia se contrapõe, então, à filosofia positivista do século XIX, presa a uma visão objetiva do mundo. À crença na possibilidade de um conhecimento científico neutro, privado de subjetividade, e, por consequência, mais distante do homem concreto, a fenomenologia se contrapõe, apontado uma retomada da "humanização" da ciência e estabelecendo uma nova relação entre sujeito e objeto, homem e mundo, estes considerados como pólos inseparáveis de uma mesma realidade (HUSSERL, 2008).

A superação das concepções metafísicas entificadoras que se propunham a analisar a realidade como algo pronto, que se apresentava ao sujeito como definitiva (e por isso criava a realidade dicotômica que opunha sujeito de um lado e objeto do outro), representa um avanço no sentido dessa humanização. A ascensão da filosofia da linguagem, em detrimento da filosofia da consciência, traz à tona o debate quanto à natureza do objeto das ciências humanas, ou seja, o próprio homem nas relações que trava socialmente e, por isso, a distinção sujeito-objeto sustentada pelos padrões positivistas de produção do conhecimento não mais se sustenta. O ser humano é um ser eminentemente histórico, e assim é visto como parte da totalidade das relações sociais, pelo qual não há como sustentar o

(27)

distanciamento do seu objeto de estudo tão caro à pretensa neutralidade científica do positivismo do século XIX.

Para Dutra (2002), o conceito de fenômeno em sua raiz grega significa “o que aparece”. Daí a fenomenologia abordar os objetos do conhecimento tais como aparecem, isto é, como se apresentam à consciência. Nesse sentido, inexiste uma realidade “em-si”, separada da relação com o sujeito que a conhece, isto é, não existe um ser “escondido” atrás das aparências ou do fenômeno. A consciência desvela paulatinamente o objeto através de perspectivas variadas. Assim, para a fenomenologia, a consciência se torna doadora de sentido, isto é, fonte de significado para o mundo. Conhecer, então, se torna um processo interminável, quando a consciência realiza uma exploração exaustiva do mundo. No entanto, a consciência que o homem tem do mundo é mais ampla que o mero conhecimento intelectual, visto que a consciência se torna fonte de intencionalidades não apenas cognitivas, mas também afetivas e práticas. Assim, o olhar que o homem lança sobre o mundo é o modo pelo qual este experiencia o próprio mundo.

Na tradição filosófica da teoria do conhecimento, este é descrito a partir da relação dicotômica entre sujeito e objeto. Neste viés, o homem – o sujeito do conhecimento ou sujeito cognoscente – é tido como uma das instâncias na produção, compreensão e interpretação do conhecimento. Dito de outra forma, o homem é percebido em separado do mundo que o rodeia, resultando numa espécie de objetivação desse homem. Para Heidegger (1999), no entanto, essa visão dicotômica sujeito/objeto deve ser ultrapassada. É necessário um conhecimento mais profundo para que se revele o que está encoberto, isto é, a verdade do ser. Essa compreensão da verdade do ser, no entanto, diz respeito à compreensão do ser humano que cada um de nós somos a cada momento. Não se trata propriamente de uma antropologia, pois esta, como ciência, recairia na dicotomia sujeito/objeto, mas de analisar a existência tipicamente humana que Heidegger denomina Dasein.

O Dasein – que em última instância somos nós mesmos em nosso ser-no-mundo – designa a realidade humana que é marcada pela temporalidade. Nesse sentido, “a busca do sentido do ser não significa, portanto, uma essencialização de um ser universal e metafísico”. Heidegger desenvolve a ideia do ser-no-mundo, fundamento do Daisen, que poderia ser definido como pre-sença, estar-aí, ser-aí (TOURINHO e SÁ, 2002). Assim, quando considerada a perspectiva de

(28)

transformação do conhecimento científico do significado do ser humano, a tarefa da analítica existencial heideggeriana é a de resguardar as estruturas ontológicas do

Dasein dos riscos próprios ao procedimento da objetivação coisificante, comum nas

abordagens científicas, e mesmo filosóficas, consideradas por Heidegger como insuficientes. Em nosso ser ou estar no mundo, ou em nosso processo de interpretação do mundo, vamos lançando mão ou nos deparando com, e nos apropriando de referências que poderão possibilitar a ampliação da compreensão de mundo.

Esta abordagem descarta, dentre outras coisas, a possibilidade de uma observação científica absoluta e direta da realidade – que é sempre a realidade humana – e coloca em pauta ossentidos atribuídos ao mundo ou à ação. A memória é uma das possibilidades de atribuir esses sentidos desses projetos. Diz-nos Heidegger: “A memória é a concentração do pensamento. Em relação a quê? Em relação a isso que nos atém ao modo próprio de ser, à medida que, ao mesmo tempo, o pensamos cuidadosamente junto de nós” (HEIDEGGER, 1998, apud TOURINHO e SÁ, 2002).

2.3 ABORDAGEM (AUTO)BIOGRÁFICA: MEMORIAL – A MEMÓRIA COMO FORMAÇÃO

A abordagem (auto)biográfica nas Ciências Humanas e Sociais surge na Alemanha, com os trabalhos de Wilhelm Dilthey (1833-1911), numa ruptura com os modelos positivistas. Dilthey coloca a reflexividade autobiográfica no centro do paradigma compreensivo e toma a autobiografia como modelo hermenêutico para a compreensão do mundo humano. As (auto)biografias como procedimento pedagógico são introduzidas no contexto universitário da formação de adultos, momento em que o Brasil institucionaliza os memoriais (PASSEGI, 2006a).

“O memorial (do latim memoriale) é a escrita de memórias e significa memento ou escrito que relata acontecimentos memoráveis” (PRADO e SOLIGO, 2005, p. 7). Podemos compreender um memorial como expressão da memória, uma referência narrativa do que é memorado. Contudo, ainda se faz necessário apontar distinções entre memorial e a narrativa histórica.

(29)

A narrativa histórica pretende descrever a trajetória de acontecimentos pessoais da maneira como aconteceram ou foram percebidos. Nesse caso, os eventos significativos para o indivíduo estão geralmente vinculados a situações de vivências, como por exemplo as de caráter familiar, ocorridas numa certa escala de tempo. O memorial, por sua vez, além dos aspectos descritivos já mencionados, possui um caráter reflexivo, tornando-se um evidente esforço de compreensão crítica do sujeito histórico. Nesse sentido, vemos nas ideias de Dilthey que traz as chamadas ciências do espírito e da vida uma busca de alcançar uma interpretação das “expressões da vida interior”. Essa vida interior, entretanto, não significa um mergulho solitário na subjetividade, já que é “só pela compreensão de mim com os outros que experimento o que há em mim de individual”. (PALMER apud TOURINHO e SÁ, 2002).

Para os professores, trazer à memória aspectos importantes do processo de formação profissional pode se constituir num instrumental importante para o desenvolvimento da (auto)crítica e compreensão de sua prática docente. Kenski, em seu texto Memória e Prática Docente (1996), afirma que a análise crítica das diversas situações vivenciadas pelos professores abre caminhos para que estes possam superar ou reformular concepções pessoais sobre práticas envolvidas no processo de ensino-aprendizagem. Dentro do contexto de análise das experiências vividas e de nossa percepção de realidade, Russell, por sua vez, observa:

Na vida quotidiana assumimos como certas muitas coisas que, se as examinarmos melhor, descobrimos serem tão contraditórias que só uma reflexão demorada permite que saibamos em que acreditar. Na busca da certeza é natural que comecemos pelas nossas experiências imediatas e, num certo sentido, sem dúvida que o conhecimento deriva delas (RUSSEL, 1977, p. 33).

Assim, entendemos que trabalhar com memória na pesquisa e/ou no ensino é partir para a desconstrução/construção das próprias experiências, tanto do professor/pesquisador como também dos sujeitos da pesquisa e/ou do ensino. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que se descobre no outro, os fenômenos revelam-se também em nós. Dewey(1985, grifo nosso) afirma :

(30)

A experiência ocorre continuamente porque a interação da criatura viva com as condições que a rodeiam está implicada no próprio processo de vida. Sob condições de resistência e conflito, aspectos e

elementos do eu e do mundo implicados nessa interação qualificam a experiência com emoções e idéias, de maneira tal que emerge a intenção consciente.

Dewey aqui pode ser chamado para reforçar a ideia de experiência como o “[...] modo de apropriação da formação não como um acúmulo de saberes, mas como algo vivido em processo, que possui em si uma finitude” (SÁ, 2008). Para tal, é exigido entender, antes de tudo, que as apreensões que se constituem as narrativas dos sujeitos são a sua representação própria da realidade e, como tal, são passíveis de reinterpretações. A compreensão, “[...] processo pelo qual com a ajuda de signos percebidos do exterior através dos sentidos, conhecemos uma interioridade” (DILTHEY apud SÁ e TOURINHO, 2002), faz-se “a partir da própria vida” encarada como sentido, como experiência conhecida a partir de dentro, já que a experiência concreta, e não a especulação, deve ser o ponto de partida e o ponto de chegada para uma teoria das ciências do espírito (SÁ e TOURINHO, 2002).

Diferentemente de outros objetivos de pesquisa, não é tanto o produto das narrativas que mais interessa em um memorial, mas o processo de produção pelo qual vive o sujeito. Nelas vale explorar, como sugestão de categorias, aquelas que a sociologia e a psicologia já nos ajudaram a construir, ou seja, de quem é a voz que fala, de onde se dá esta fala, em que circunstâncias ela é produzida, quais e por que são as suas revelações, quais e por que são as suas ocultações, dentre outras questões (CUNHA, 1997).

Outro aspecto importante é que o trabalho com as narrativas contidas no memorial se torna profundamente formativo, na medida em que proporciona transformações e redirecionamentos nas práticas de ensino-aprendizagem. Como bem expressa Ferrer (apud CUNHA, 1997),

[...] compartir a historicidade narrativa e a expressão biográfica dos fatos percorridos se converte em um elemento catártico de des-alienação individual e coletiva, que permite situar-se desde uma nova posição no mundo.

(31)

Assim, “O nosso pensamento não pode ir além da própria vida, não tentamos encontrar idéias por detrás da vida porque é a partir da própria vida que temos que desenvolver o nosso pensamento e é para ela que orientamos as nossas questões” (PALMER, 1997 apud SÁ e TOURINHO, 2002).

Por certo, o professor constrói sua performance a partir de inúmeras referências. Entre elas está sua história familiar, sua trajetória escolar e acadêmica, sua convivência com o ambiente de trabalho, sua inserção cultural no tempo e no espaço. Provocar que ele organize narrativas dessas referências em um memorial é fazê-lo viver um processo profundamente pedagógico, no qual sua condição existencial se torna o ponto de partida para a construção de seu desempenho, tanto na vida cotidiana como na profissão. Através da narrativa, ele vai (re)descobrindo os significados que tem atribuído aos fatos que viveu e, assim, vai (re)construindo a compreensão que tem de si mesmo. Percebemos uma aproximação dessa (re)construção quando Calvino fala da possibilidade do texto se renovar a cada leitura:

Kublai pergunta para Marco:

– Quando você retorna ao Poente, repetirá para a sua gente as mesmas histórias que conta para mim?

– Eu falo, falo – diz Marco –, mas quem me ouve retém somente as palavras que deseja. Uma é a descrição do mundo à qual você empresta a sua bondosa atenção, outra é a que correrá os companários de descarregadores e gondoleiros à margem do canal diante da minha casa no dia do meu retorno, outra ainda a que poderia ditar em idade avançada se fosse aprisionado por piratas genoveses e colocado aos ferros na mesma cela de um escriba de romances de aventuras. Quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido (CALVINO, 1990, p. 123).

Na perspectiva de Kenski (1996), o narrado é praticamente uma reconceitualização do passado a partir do momento presente, e esta condição qualifica a reflexão contextualizada, ou seja, aquela que ressignifica o vivido. Shor, em diálogo com Freire, reforça essa perspectiva afirmando que, constantemente,

(32)

devemos pesquisar as palavras faladas e escritas dos estudantes para saber o que eles sabem, o que eles querem e como eles vivem (FREIRE e SHOR, 1987).

A perspectiva de trabalhar com as narrativas tem o propósito de fazer a pessoa tornar-se visível para ela mesma. O sistema social comumente envolve as pessoas numa espiral de ações sem uma reflexão necessária.

“Acabamos agindo sob o ponto de vista do outro, abrindo mão da nossa própria identidade, da nossa liberdade de ver e agir sobre o mundo, da nossa capacidade de entender e significar por nós mesmos” (CUNHA, 1997).

Para o educador, tal perspectiva é problemática, porque não só ele se torna vítima dessa armadilha, como não consegue estimular seus educandos a que se definam a si mesmos como uma pessoa em sua singularidade.

Contudo, diferentemente da ação humana tradicional, motivada pelos costumes, tradições, hábitos e crenças, quando o indivíduo age movido pela obediência aos hábitos fortemente enraizados em sua vida, é preciso desenvolver a condição da racionalidade prática, que é criada pelos conhecimentos e saberes do indivíduo. Nesse sentido, Pérez Gomez (apud NÓVOA, 1995) afirma que o professor tem de ser o sujeito da análise que faz de seu próprio cotidiano, implicando a imersão consciente do homem no mundo de sua experiência, num mundo carregado de conotações, valores, intercâmbios simbólicos, correspondências afetivas, interesses sociais e cenários políticos.

O processo de formação do professor a partir de produções de memórias legitima o lugar de sujeito do conhecimento que deve ser assumido por esse professor. O trabalho com memoriais possibilita também ao professor relatar os fatos vividos por ele mesmo, perceber-se muitas vezes na sua reconstrução e na trajetória percorrida, dando-lhe novos significados.

Essa compreensão é fundamental para aqueles que se dedicam à análise de depoimentos, relatos e recuperações históricas, especialmente porque a estes se agregam as interpretações do próprio pesquisador, numa montagem que precisa ser dialógica para poder efetivamente acontecer. Discutir as memórias na formação do

(33)

professor é procurar tornar possível sua intervenção na construção do seu espaço pedagógico, para que ele não seja mais um produto dos saberes, mas que ocupe um lugar na construção do seu saber.

2.4 MEMÓRIA E MEMORIAL NA DINÂMICA DA INVESTIGAÇÃO

Partindo do pressuposto de que um memorial possui uma função pedagógica, isto é, a de ser um exercício de elaboração e reelaboração crítica das experiências pessoais em conexão com as experiências profissionais de sujeitos que atuam como educadores, a discussão toma como campo empírico o Projeto Irecê, mais especificamente a estratégia curricular desse curso, de utilizar o memorial como dispositivo de formação docente. Acredito ser possível, com a escolha deste caminho teórico-metodológico, contribuir com as reflexões acadêmicas acerca do papel da memória e do memorial na formação docente. Ao trabalhar com as narrativas dos sujeitos das pesquisas, participamos não só da sua história, expressa na experiência vivida. “Também estaremos participando da sua reconstrução, através da profusão de sentidos, em função do seu não-acabamento essencial” (DUTRA, 2002, p. 374, grifo nosso).

O fato de ter participado do projeto do Curso de Licenciatura em Pedagogia

UFBA/IRECÊ, campo empírico, como foi dito, desta pesquisa, faz com que minha

história de vida se misture com as histórias de professores desse curso de formação em exercício. As inquetações que nortearam a pesquisa foram um desejo que esteve presente, desde a minha conclusão do Curso de Pedagogia na FACED/UFBA. A proposta da monografia que elaborei naquela ocasião foi relatar analiticamente a minha itinerância no Projeto Irecê através de um texto-memorial, já que havia vivenciado intensamente o projeto desde sua implantação.

A ideia foi vivenciar o cotidiano do Projeto Irecê através de memórias. Naquele momento, narrei as lembranças dos fatos que selecionei, trazendo para o presente acontecimentos já vividos dentro do projeto. Durante a escrita do texto, passei a compreender e interpretar experiências vivenciadas durante os anos como bolsista de iniciação científica, e despertou-me um interesse muito grande em me perceber naquele processo formativo. Esse desejo de pesquisar o trabalho com

(34)

memórias do Curso de Pedagogia UFBA/IRECÊ perdurou até a entrada no mestrado.

Como os professores-cursistas compreendem seu proceso formativo ao narrar suas memórias, utilizadas como dispositivo de formação pelo currículo do Curso de Licenciatura UFBA-IRECÊ? Enfim, essa e outras questões fazem parte daquelas que não são lançadas para serem imediatamente respondidas, mas para nos inquietar e fazer pensar ainda mais, pois pesquisar é antes de tudo inquietar-se; é questionar a realidade, procurando respostas sempre temporárias, visto que, no contato com as mesmas, novas inquietações engendram-se levando-nos à busca incessante de novas respostas e explicações. Outras questões foram medrando:

Como os professores-cursistas compreendem o seu processo formativo através do trabalho com memórias/memorial no curso de Pedagogia da UFBA/IRECÊ?

A escrita do memorial no Curso de Pedagogia UFBA/Irecê possibilitou experiências formativas?

Nas leituras dos memoriais realizadas para a pesquisa, encontrei muitas reflexões de mudanças do fazer cotidiano em sala de aula e projeções de futuras formações que cada um almejava naquele momento, e hoje, após dois anos de conclusão do Curso, as projeções foram alcançadas? Que efetivas mudanças aconteceram no seu fazer pedagógico?

Buscou-se hermeneuticamente uma compreensão dos discursos narrados nos memoriais, e foi através da observação participante e do grupo focal como possibilidade metodológica de produção de dados, que travei discussões campartihadas acerca das narrativas contidas nos memoriais, problematizando as experiências relatadas e enfatizando as potencialidades ainda não plenamente desenvolvidas na prática docente de cada um/a deles/as, mas que estejam de algum modo reveladas no próprio memorial.

(35)

Segundo Macedo, (2000, p. 103) “o grupo focal é um recurso de coleta de informações tradicionalmente organizado a partir de uma discussão coletiva sobre um tema preciso e mediado por um animador ou mais de um”.

Foram convidados, intencionalmente, 20 professores, dos quais 15 responderam ao chamado da pesquisa. Trabalhei, como critério de escolha, com professores de diferentes grupos de orientação distribuídos pelo Curso. Nos encontros de orientação, discutem-se as atividades do curso, a prática pedagógica do professor-cursista, o percurso (re)construído por cada um ao longo do ciclo, as dificuldades enfrentadas, os avanços conquistados, além de outras demandas surgidas no grupo, assim como cada professor-cursista relata o desenvolvimento de seu trabalho docente e discute, com os pares, o que foi positivo e o que pode ser melhorado em sua prática. Eram quatro grupos de orientação.

A leitura prévia aos memoriais foi fundamental para a escolha dos recortes das falas produzidas pelos professores-cursitas. O memorial faz parte dasatividades de registro e produção escrita, oferecidas pelo Curso, e tem sido um rico instrumento para a análise e reflexão do que está sendo construído pelos cursistas. Foi imprescindível que o texto produzido neste trabalho trouxesse as vozes dos sujeitos envolvidos nas pesquisas como constituintes dos sentidos e das interpretações visando “[...] compreender/explicitar a realidade humana tal como está vivida pelos atores sociais em todas as perspectivas” (MACEDO, 2006, p. 141). Nessas narrativas, os autores encontram a melhor forma de contar seus sentimentos, suas inquietações, suas experiências, seus “olhares”, suas opiniões.

O objetivo de integrar conhecimentos de distintos domínios e compreender as interconexões que moldam, por exemplo, o biológico e o cognitivo, é irrelevante no paradigma da ordem e da fragmentação; tudo é estudado de forma separada em nome do rigor. A bricolagem nesse trabalho subverte o caráter conclusivo do ato empírico. A pesquisa empírica nele, considerando uma bricolagem, é marcada em todos os níveis pelos seres humanos. Nesse contexto, os bricoleurs avançam para o domínio da complexidade. A bricolagem existe a partir do respeito pela complexidade do mundo real.

(36)

A apreciação da complexidade da vida cotidiana e da dificuldade de entendê-la demanda humildade de parte dos pesquisadores. Os bricoleurs entendem que a certeza e a interpretação acabada simplesmente não são possíveis devido a tais complicações (KINCHELOE E BERRY, 2007, p. 47).

Outros analisarão as narrativas contidas nos memoriais e empenharão outros processos interpretativos. A interpretação é sempre uma atividade criativa aberta à especialização hermenêutica. Dessa maneira, Memória na Formação Docente: Um

estudo do/no Projeto Irecê foi se configurando como pesquisa a partir do momento

em que me apropriei das narrativas dos percursos formativos dos professores-cursistas e a reflexão sobre as relações docentes e o a-con-tecer em um Curso de Formação em Exercício.

(37)

3 MEMÓRIA E HISTÓRIA: AS NARRATIVAS COMO ALICERCES

FORMATIVOS

O nosso lugar é hoje um lugar multicultural, um lugar que exerce constante suspeição contra supostos universalismos ou totalidades.

(Boaventura de Sousa Santos, 1999)

Em nenhum outro momento da história do pensamento e da ciência moderna, foi tão necessário reconhecer a diversidade do mundo como elemento central para o entendimento de toda a sua complexidade. Como afirma Boaventura de Sousa Santos, “Temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, B., 2008, p. 462). Assim, expressa o eminente professor português a necessidade de alargar os marcos da igualdade moderna para o reconhecimento da diferença, da alteridade.

O reconhecimento das diferenças, da alteridade humana, é condição necessária para entender as distintas formas de construção social da história, que invariavelmente refletem, a partir dos sujeitos que a constroem, o lugar de fala desses sujeitos que têm características sociais diferentes, bem como relações identitárias também distintas, dadas as especificações étnicas, religiosas, políticas, ideológicas e culturais.

A história do mundo é constituída por todos os sujeitos que a constroem, através dos atos políticos, ações religiosas, representações culturais cotidianas e datadas, a dinâmica das ações de movimentos sociais e das elites globais que redefinem os marcos em que se fundam a sociabilidade contemporânea.

A história é assim, a formação consciente de todo um conjunto de experiências sociais acumuladas ao longo do tempo demarcadas no presente. Essas demarcações temporais constituem as temporalidades características da própria história. E essa história não é visualizada como as estáticas representações dos fatos passados. A história é dinâmica, ela pulsa segundo as determinações do presente e dos interesses que se hegemonizam nas relações sociais. É dessa forma que nas diferentes fases da história, alguns de seus elementos são melhores

Referências

Documentos relacionados

As resistências desses grupos se encontram não apenas na performatividade de seus corpos ao ocuparem as ruas e se manifestarem, mas na articulação micropolítica com outros

- Se o estagiário, ou alguém com contacto direto, tiver sintomas sugestivos de infeção respiratória (febre, tosse, expetoração e/ou falta de ar) NÃO DEVE frequentar

determinou, nomeadamente: “III - Salvo prova em contrário, de ocorrência de circunstâncias excecionais, o acordo no qual o sócio e gerente de uma sociedade garante

O gráfico nº11 relativo às agências e à escola representa qual a percentagem que as agências tiveram no envio de alunos para a escola Camino Barcelona e ainda, qual a percentagem de

O objetivo desse trabalho é analisar a relevância dada à pesquisa do professor da educação básica por meio da análise de documentos e de entrevistas com

Portanto, podemos afirmar que alcançamos o nosso objetivo, pois o resultado do estudo realizado nos forneceu dados importantes para a compreensão daquilo que nos

xii) número de alunos matriculados classificados de acordo com a renda per capita familiar. b) encaminhem à Setec/MEC, até o dia 31 de janeiro de cada exercício, para a alimentação de

c.4) Não ocorrerá o cancelamento do contrato de seguro cujo prêmio tenha sido pago a vista, mediante financiamento obtido junto a instituições financeiras, no