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A Necessidade da Certeza na Explicação Cien­tí­fi­ca Cartesiana e o Recurso à Experiência

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Academic year: 2021

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A NECESSIDADE DA CERTEZA NA EXPLICAÇÃO

CIENTÍ-FICA CARTESIANA E O RECURSO À EXPERIÊNCIA

MARISA C. DE O. F. DONATELLI Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC Departamento de Filosofia e Ciências Humanas Rodovia Ilhéus/Itabuna, km 16

45650-000 ILHÉUS, BA madonat@uesc.br

Resumo: Este trabalho aborda a questão das explicações construídas por Descartes no âmbito da física, e por extensão no campo da medicina, enfatizando o papel da experiência e o grau de certeza que ela proporciona. O enfoque dessa questão está baseado, principalmente, no Discours de la Méthode e nos Principes de la Philosophie, uma vez que nesses textos são encontradas referências a evidências empíricas que correspondem a um nível específico de certeza, segundo Descartes.

Palavras-chave: física; medicina; evidência; interação corpo-alma.

Abstract: This work approaches the subject of the explanation built by Descartes in the field of Physics and by extension to the area of Medicine, emphasizing the role of experience and the level of certainty which it provides. The focus on this question is based mainly on Discours de la Méthode and Principes de la Philosophie, since it is in these texts where references to empirical evidences are found, corresponding to a specific level of certainty according to Descartes.

Key-words: physics; medicine; evidence; mind-body interaction.

I

Se é verdade que em 1630, em uma carta a Mersenne1, Descartes

mostra-se empenhado em mostra-seu projeto de aproximar a medicina da matemática, de forma que a medicina teria por base o conhecimento do corpo concebido sob o aspecto físico, ou seja, como máquina, logo depois2, ele admite que a medicina não pode

1 DESCARTES, Oeuvres Complètes, 1996, I, p. 105-106. Doravante, as citações a essa obra serão indicadas por AT, seguido do tomo e do número da página.

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se restringir à fisiologia e à anatomia que estão na base da explicação das funções do corpo considerado como puro mecanismo.

A construção da Física envolve, juntamente com a matemática e a geometria, não só o recurso à experiência cotidiana, como também a construção de experimentos, como pode ser constatado por meio da leitura das três últimas partes dos Principes3: à medida que o conhecimento vai se ampliando, o recurso a experimentos vai ganhando espaço. Essa mescla entre o que os comentadores chamam de “ideal matemático-dedutivo” da ciência cartesiana4 e o recurso a

outros dados não mais provenientes do entendimento puro pode ser detectada desde o texto das Regulæ: texto em que Descartes refere-se à importância das observações para a ciência. De fato, o enunciado da regra XII remete à necessidade de se valer do entendimento auxiliado pela imaginação, pelos sentidos e pela memória. Essa mescla parece indicar que aquele “ideal” fica restrito a um campo do conhecimento que não necessita de evidências observacionais em sua composição, e não deve, portanto, ser generalizado a todo o conhecimento, como é o caso da Física, por exemplo, à medida que se reporta a casos particulares5. A recomendação da regra XII, no que diz respeito à Física e às suas aplicações, que se voltam para a vida, é respeitada por Descartes em todos os seus textos que contêm referência à medicina.

A medicina, enquanto ciência do composto, não pode ser submetida a uma matematização que se mostra adequada no campo dos conhecimentos que dependem somente do entendimento. Se é verdade que as ciências do composto, tal como Descartes menciona na Meditação Primeira, e dentre as quais encontra-se a Medicina, apresentam como fundamento comum proporções e relações entre os objetos por elas estudados, deve também ser considerado que elas não se reduzem a essa matematização, uma vez que envolvem outras informações, de

3 A leitura dos Essays também fornece exemplos nesse sentido. 4 Cf. GUÉROULT, 1968, t.II.

5 Confira as partes V e VI do Discours: à medida que passam a tratar da Física, recorrem a exemplos tirados da experiência ordinária e a experimentos, ou seja, essas partes indicam que as explicações da Física, exceto seus princípios básicos, não podem ser reduzidas àquele “ideal”.

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natureza distinta das matemáticas, que são levadas em conta na formulação das explicações dos fenômenos aos quais se referem. No caso da Medicina, afirmar simplesmente a impossibilidade de ela se constituir como ciência6 implica

diretamente a efetivação dessa redução, desconsiderando o campo7 que lhe é próprio e que se distancia do entendimento tomado isoladamente.

O fundamento da medicina cartesiana remete ao campo do entendimento, uma vez que a física apoiada na distinção entre as substâncias constitui a base de construção da fisiologia mecanicista que, por sua vez, funda toda a possibilidade de estruturação do restante da medicina: patologia e terapêutica. Porém nessas duas áreas, o recurso a informações não mais provenientes do entendimento puro, mas sim estruturadas sobre a união substancial, passa a caracterizar o tipo de conhecimento que vai sendo construído ao longo das investigações. Dessa maneira, a Meditação Sexta, As paixões da alma e a correspondência com Elisabeth são textos de grande importância na abordagem desse assunto, uma vez que a partir de questões concernentes à união entre corpo e alma, bem como à interação dessas substâncias, Descartes estabelece um conteúdo extremamente rico para o estudo das questões médicas, ao mesmo tempo em que mostra a importância que elas tiveram ao longo de todos os seus estudos, integrando-se na própria estruturação de seu sistema.

Pode-se notar, ao longo da obra cartesiana, que o projeto de construção de uma medicina como ciência dedutiva a priori é ultrapassado pela construção da ciência do composto corpo-alma, voltada para a natureza humana. Essa ultrapassagem pode ser entendida da seguinte forma: aquela medicina fundada em demonstrações infalíveis, como é afirmado na carta a Mersenne8, e que se volta para o corpo sob o ponto de vista físico-geométrico, estabelece as bases sobre as quais a medicina vai se desenvolver, uma vez que ela requer conheci-mentos de anatomia e de fisiologia. Conheciconheci-mentos estes que são fundamentais no tratamento de problemas ligados ao corpo humano que devem considerar a

6 Cf. GUÉROULT, 1968, cap. XX, t.II.

7 Campo no qual intervêm suposições e experimentos.

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interação constante entre corpo e alma: a natureza composta do homem nunca foi desconsiderada por Descartes nas questões médicas.

Desta forma, em Descartes não são encontradas duas medicinas, mas sim a constituição do fundamento de uma medicina voltada para o homem, ou seja, os princípios da física constituem a base da compreensão de casos vinculados às ciências que lidam com as coisas compostas – Física, Astronomia, Medicina9 – e

que recorrem ao sensível com o filtro da razão que, por sua vez, procura corrigir as informações distorcidas que provêm dos sentidos. A medicina, ao pertencer ao rol dessas ciências, trabalha no âmbito não mais da evidência segura do entendimento que caracteriza a Matemática e a Geometria, mas sim da evidência que é própria à união, isto é, trabalha no domínio da evidência experimental. Ora, o plano da união é dotado de uma verdade que se identifica ao útil. Na Meditação

VI, constata-se que o conhecimento proveniente dos sentidos, e que se

caracteriza como obscuro sob o ponto de vista do entendimento, encontra o seu campo de atuação validado no que diz respeito às informações úteis à conservação do homem: os sentidos indicam o que é útil ou nocivo ao composto que caracteriza o homem. Essas indicações experimentadas, vivenciadas constituem a evidência própria dos sentidos que caracteriza a medicina enquanto ciência que se volta para o campo da união entre duas substâncias que estão em constante interação, e que tem na experiência a base de sua evidência.

II

É preciso, portanto, estabelecer uma distinção entre dois tipos de certeza pertinentes a domínios diferentes do conhecimento e que parecem ter sido considerados por Descartes. No que diz respeito às naturezas simples, o grau de certeza defendido por Descartes é absoluto, ou seja, é o tipo de certeza vinculado ao âmbito da metafísica, que resiste ao processo de aplicação da dúvida mais extremada. Esse tipo de certeza Descartes defende, também, no campo do conhecimento científico, mas somente no que concerne às demonstrações matemáticas,10 porém, no nível das coisas que estão no mundo, às quais são

9 AT IX, 16; AT VII, 20.

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aplicados os princípios dotados de evidência matemática, o grau de certeza defendido passa a ser outro. Em Les Principes de la Philosophie, Descartes discorre a respeito desse outro grau de certeza, vinculando-o à explicação dos fenômenos físicos que é fundada sobre aqueles princípios gerais.

A explicação cartesiana da sensação, por exemplo, que está na base da patologia, associa a experiência inquestionável da natureza composta do homem à teoria da distinção entre as duas substâncias. Esta última fornece os princípios que estruturam a sua teoria da sensação, ao possibilitar a abordagem mecanicista da transmissão de informação ao cérebro por meio do sistema nervoso. Essa abordagem considera as leis da física como fundamento para as explicações fisiológicas sob o ponto de vista estritamente mecânico, indicando que a fisiologia é deduzida dos princípios gerais da física. Ao considerar a interação corpo-alma, Descartes se refere à atuação da alma, isto é, passa a trabalhar no âmbito da unidade entre corpo e alma que corresponde ao nível da experiência. Nesse âmbito, ele vai se valer da explicação mecânica, baseada na distinção entre as duas substâncias, para mostrar como têm início essas experiências. Apesar da dificuldade em se explicar o que ocorre no domínio da união substancial, não há como duvidar da experiência que a torna evidente. Assim, a experiência da união parece ter primazia perante qualquer teoria que se proponha a explicá-la: não se pode duvidar dessa experiência que se dá por meio da dor, dos sentimentos, das sensações, pelo fato de não haver concordância entre os dados e a explicação teórica disponível.

Na física, o que ocorre é similar: a evidência experimental lhe serve de apoio. Desta forma, todas as deduções feitas a partir dos princípios dotados de evidência matemática devem remeter à experiência, de tal modo que devem estar conformes a ela. Nos Discours, Descartes defende a necessidade da experiência, à medida que se avança no conhecimento, uma vez que ao tratar das coisas particulares a variedade é tão grande que

je n´ai pas cru qu´il fût possible à l´esprit humain de distinguer les formes ou espèces de corps qui sont sur la terre d´une infinité d´autres qui pourraient y être (…), ni, par

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conséquent, de les rapporter à notre usage, si ce n´est qu´on vienne au-devant des causes par les effets et qu´on se serve de plusieurs expériences particulières.11

No campo das coisas particulares, a dedução a priori a partir dos princípios, das causas, que se mostra adequada quando se trata de generalidades, deixa de atuar, dando lugar a um encaminhamento inverso: parte-se dos efeitos para se chegar às causas. A evidência observacional mostra-se, assim, fundamental à construção do conhecimento científico, chegando a ser defendida como a principal responsável pelo desenvolvimento na ciência. No âmbito da ciência física, são postuladas causas que possam explicar os efeitos observáveis, de forma que os fenômenos físicos são explicados por meio de uma descrição que mostra como os fenômenos poderiam ter acontecido, de acordo com os princípios físicos já estabelecidos. Descrições estas que não correspondem, necessariamente, à forma como as coisas são produzidas: caracterizam-se, portanto, como descrições hipotéticas, plausíveis que estão de acordo com nossa experiência e são deduzidas dos princípios gerais. Em outras palavras, a composição racional de uma explicação referente ao mundo físico só é possível a partir de um modelo daquilo que foi observado. A estratégia de Descartes consiste em partir do observado para explicar o inobservável12 e fornecer uma

descrição do fenômeno estudado sob o ponto de vista da possibilidade de sua ocorrência. Desta maneira, o modelo facilita a construção dessa descrição: trata-se da analogia entre o que é obtrata-servado e aquilo que é suposto na física. Nestrata-se contexto, deve ser entendido aquele outro grau de certeza que se vincula ao que está sendo chamado aqui de evidência experimental.

III

A física cartesiana, da qual a medicina constitui uma ramificação13, comporta a construção imaginativa de descrição dos movimentos de partículas

11 AT VI, 63.

12 AT IX, 319 (AT VIII, 324).

13 Medicina que inclui a anatomia, fisiologia, patologia e terapêutica voltadas para o homem enquanto composto corpo-alma.

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que estão por trás das ocorrências deste mundo que são experimentadas por nós. O recurso à imaginação e às suposições é assumido plenamente por Descartes, bem como a prevalência da experiência em relação à “force du raisonnement”14.

Desta forma, a partir de causas imaginadas são considerados seus efeitos de forma semelhante como se fossem as verdadeiras causas, uma vez que esses efeitos devem ser semelhantes àqueles que encontramos no mundo:

(…) car la médecine, les mécaniques, et généralement tous les arts à quoi la connaissance de la physique peut servir, n´ont pour fin que d´aplliquer tellement quelques corps sensibles les uns aux autres, que , par la suite des causes naturelles, quelques effets sensibles soient produits; ce que nous ferons tou aussi bien, en considérant la suite de quelques causes ainsi imaginées, bien que fausses, que si elles étaient vraies, puisque cette suite est supposée semblable, en ce qui regarde les effets sensibles.15

Em relação a essa forma de demonstrar como as coisas do mundo podem existir podemos ter somente uma certeza moral: uma vez que a reconstrução do mundo, tanto em Le Monde como nos Principes, se dá por meio de suposições, esse tipo de certeza parece ser o único possível em termos de ciência física16. Descartes tomava como moralmente certa a dedução de toda a diversidade existente no mundo a partir dos poucos princípios referentes à matéria em movimento17, estes sim dotados de evidência matemática. Se é verdade que

Descartes defende o ideal da construção de um sistema de conhecimento indubitável, no entanto, em seus textos – especificamente os que dizem respeito à ciência física e, conseqüentemente, à medicina – nota-se o relaxamento desse rigoroso padrão de certeza. Uma vez que a certeza na ciência física está embasada na evidência empírica, ela será sempre questionável, ou seja, sempre poderá ser colocada em dúvida. Esse caráter da certeza é defendido por Descartes na longa

14 AT IX, 124-125 (AT VIII, 100-101). 15 AT IX, 322 (AT VIII, 327).

16 Cf. Oeuvres Philosophiques, nota 1, p. 247: “Au niveau de la science effective, nous retournons

aux hypothèses, et ne suivons plus nécessairement le réel: nous le retrouvons et reconstruisons.” Confira,

também, a interpretação de D. Clarke a respeito da relação entre física e metafísica em CLARKE, 1986, capítulo 4.

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carta escrita a Vœtius, ao afirmar que a certeza por ele sustentada não é aquela que “dura toda a vida do homem”, mas sim aquela que se tem no momento da aquisição do conhecimento18.

A partir do que foi exposto, pode-se afirmar que a medicina proposta por Descartes caracteriza-se como ciência sem a necessidade de apresentar características matemático-dedutivas: a evidência com a qual ela trabalha é compatível com a construção de um conhecimento que se constitui por meio da remetência constante à experiência. Evidência que é pertinente a um tipo de conhecimento que envolve a consideração das duas substâncias que compõem a natureza do homem. Esse dualismo defendido por Descartes remete à teoria da sensação: nas Meditações, fica estabelecida, em primeiro lugar, a distinção entre corpo e alma, e, logo depois, é afirmada a união entre elas a partir da experiência da sensação. As referências aos sentimentos de dor, cócegas, sede, sons, sabores e odores, que se constatam ao longo dos textos, são as experiências que aparecem na base da constituição da própria medicina voltada para o homem considerado como composto corpo-alma. Se a explicação mecanicista dá conta das funções básicas do corpo, nem tudo o que aí ocorre consegue ser assimilado por ela, uma vez que é preciso levar em conta a referência à união entre corpo e alma. As questões médicas consideram a interação entre as duas substâncias que é atestada pela união: um desajuste no corpo humano deve ser considerado tanto sob o aspecto do mecanismo, como sob o ponto de vista de sua união a uma alma, quando alguma emoção provoca um distúrbio no funcionamento do organismo.

A importância que o sentimento de dor tem para Descartes fica evidenciada pelo fato de a natureza composta do homem ser afirmada por ele. Desta forma, os exemplos tirados da patologia atestam a união entre corpo e alma e compõem um acervo que mostra o ponto de entrelaçamento da medicina com a filosofia: a formulação de uma patologia e terapêutica. Na patologia, as doenças são localizadas no campo híbrido da união substancial; na terapêutica, essa `localização´ das doenças é considerada para que se possa chegar a resultados satisfatórios. Por meio dessa consideração, pode-se

18 AT VIII, 170 (Epistola ad G. Vœtium).

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compreender que a medicina constitui-se não como uma simples extensão e aplicação da física; ela vai além ao tomar como objeto o corpo que sofre a ingerência da alma, e não apenas o corpo reduzido à compreensão do mecanismo que está por trás de suas funções. Desta forma, a medicina se volta para a união que é incompreensível, sob o ponto de vista da metafísica, mas é vivenciada na experiência da dor: a patologia considera a interação entre a alma e o corpo, e a terapêutica se vale dessa interação para promover o equilíbrio necessário ao bem-estar do homem.

Na medicina proposta por Descartes, pode-se, portanto, notar que o papel principal fica por conta das experiências – a mais conhecida é a referente à circulação do sangue e ao movimento do coração – e da construção de modelos explicativos que recorrem à física e à observação. A partir dessas considerações, não há como imputar a Descartes a construção de uma “medicina mecânica” que não parece ter sido pensada por ele, uma vez que os seus textos remetem constantemente à interação que caracteriza a própria natureza do homem.

A defesa que Descartes faz, no Discours, de uma filosofia prática19, que seja

útil àvida, atacando a filosofia especulativa que se caracteriza pela sua inutilidade, encontra a sua última elaboração na definição de filosofia por meio da imagem da árvore que consta na carta-prefácio dos Principes de la Philosophie20. A utilidade está

ligada aos ramos da árvore que constituem as ciências que se voltam para a vida. É assim que se caracteriza a medicina já afirmada no Discours como o objetivo dessa filosofia prática, uma vez que a partir dos princípios da física chega-se a um conhecimento daquilo que é útil à vida, sendo que a “conservation de la santé (…) est

sans doute le premier bien et le fondement de tous les autres biens de cette vie”21, o que

significa afirmar a primazia da medicina nessa busca por um aperfeiçoamento das práticas humanas.

Para Descartes, a verdade teórica só tem valor à medida que se volta para a prática, ou seja, ela se apresenta com a finalidade de trazer benefício para o

19 AT VI, 61-62.

20 AT IX, 14. 21 AT VI, 62.

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homem. A metafísica, desta forma, aponta para uma prática, passando pela elaboração da física que mostra a sua aplicabilidade no desenvolvimento da mecânica, da moral e da medicina, isto é, no desenvolvimento de áreas ligadas à ação humana.

IV

A “medicina científica”, afirmada por alguns comentadores22, ou seja, a

medicina fundada em demonstrações infalíveis, e que constitui a explicação mecânica das funções dos órgãos, está na base da construção da medicina voltada para o homem e, conseqüentemente, para o campo da união corpo-alma. Essa vinculação é um indício da constância de Descartes em seu projeto de construção de uma medicina, bem como da sua continuidade: em momento algum parece ser possível constatar aquele sentimento de “fracasso” nessa área, tantas vezes atribuído a Descartes23. Afirma-se que, a partir dessa “derrota”, Descartes teria abandonado o seu projeto de medicina em proveito da moral. Ora, o que se nota ao longo de sua obra é justamente o oposto de um abandono: a pesquisa em medicina será desenvolvida até o final de sua vida. Aliás, a partir de 1648, ao formular a explicação sobre a formação dos seres vivos – a embriologia – Descartes pode efetivar o que pretendia fazer à época do Discours, quando ainda sentia a necessidade de proceder a mais experimentos: de acordo com a exigência do método, explicar o homem a partir de seus elementos mais simples,e não mais recorrer a um corpo já formado24. Além disso, o seu último texto, Les Passions de l´âme, comumente visto apenas como um tratado de moral, comporta uma interpretação médica, como nos indica H. Dreyfus Le-Foyer, desde 193725.

22 Cf. GUÉROULT, 1968 e RODIS-LEWIS, 1984.

23 “La morale se présente avec des caractéristiques plus nettes. C´est que, là, Descartes pense avoir

réussi, tandis qu´il reconnaît échoué en médecine”. (GUÉROULT, 1968, p. 250, t.II.)

24 Segundo Theo Verbeek, a decepção referida na carta a Chanut (15 juin 1646) diz respeito a essa solução que só foi encontrada em 1648. A partir de 1646, Descartes não se voltou para questões morais, como costumam indicar os comentadores: ele fica absorvido na tentativa de solucionar o problema referente à formação dos seres vivos, e jamais abandona a medicina. (Cf. VERBEEK, 1989, p.46)

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Desta forma, apesar de Descartes reconhecer, em 1646, que seus estudos referentes à medicina não progrediram tanto quanto ele esperava, esse reconhecimento não dá margem àquela interpretação corrente que defende a assunção do fracasso nessa área por parte de Descartes. Na verdade, o autor assume o inacabamento da medicina, uma vez que alguns pontos ainda permanecem em aberto, como por exemplo o problema concernente à geração que só encontrará uma solução satisfatória, dentro do sistema cartesiano, em 1648. Esse inacabamento reflete-se na construção de uma patologia e de uma terapêutica. Esses dois assuntos, ao se reportarem ao domínio da união entre corpo e alma, determinam a principal característica da medicina cartesiana que a afasta, definitivamente, de uma medicina mecanicista. As doenças e sua cura consideram a interação corpo-alma que não se resolve no âmbito da física26, mas remete a um domínio que trabalha com uma evidência que lhe é própria: a experimental. Se a união não possibilita a evidência segura nos moldes do entendimento, ela deve ser considerada de acordo com o conhecimento proporcionado pelos sentidos. Em outras palavras, a evidência própria à união prescinde da reflexão e vincula-se à experiência que a sua vivência proporciona. A união corpo-alma pertence ao mundo dos fatos; ela é um dado da experiência que cada um de nós vive, e nesse plano não há lugar para demonstrações certas, matemáticas. Da união substancial nasce um mundo que parece ser o mais real em relação aos outros dois que emergem das substâncias concebidas separada-mente. Trata-se do mundo que compreende “la plupart des choses qui sont en la

nature”27, ou seja, “monde de la lumière et des couleurs, et des sons, et de toutes les qualités sensibles, monde des sentiments, monde des passions”28. O âmbito no qual se move a

medicina cartesiana está relacionado a esse mundo captado pelos sentidos cujo acesso se dá somente pela experiência.

O interesse de Descartes por assuntos concernentes à esfera da união substancial faz com que sobressaia um traço que lhe é bastante peculiar, apesar

26 Nesse domínio, apenas o corpo pode ser considerado sob o ponto de vista de uma

máquina.

27 AT IX, 310 (AT VIII, 315). 28 AT XII, 495 (éd. Cerf, 1910).

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de muitas vezes negligenciado: o de um filósofo que não fica encerrado em seu gabinete montando discursos bem estruturados a respeito do mundo sem dele se aproximar. As palavras que constam na edição de Charles Adam e Paul Tannery de 1901 sintetizam com precisão esse modo de trabalhar a filosofia:

Nous ne voyons là que les efforts méritoires d´un philosophe qui ne s´enferme pas dans son cabinet d´étude, ou plutôt dont le cabinet n´est pas, comme pour tant d´autres, une bibliothèque de livres, mais une cour, sur le derrière de son logis à la campagne, aménagée pour la dissection. Jamais peut-être il n´était plus philosophe, que lorsqu´il ne s´en rapportait qu ´à lui-même pour ses observations et ses expériences. Et ce n´était pas seulement le corps qu´il étudiait ainsi, ni le mécanisme de la vie dans les organes; mais au fond de ce mécanisme même, il essayait de surprendre le fait essentiel de la nature humaine, l´union de notre âme et de notre corps.29

BIBLIOGRAFIA

CLARKE, D. La Filosofia de la Ciencia de Descartes. Madrid: Alianza Editorial, 1986. DESCARTES, R. Œuvres de Descartes. Publiées par Charles Adam & Paul

Tannery. Paris: Vrin, avec le concours du Centre National du Livre, 1996 (11v.).

___________. Œuvres Philosophiques. Éd. Ferdinand Alquié. Paris: Garnier, 1973. GUÉROULT, M. Descartes Selon l´Ordre des Raisons. Paris: Aubier Montaigne, 1968

(2 v.).

LE-FOYER, D. Les Conceptions Médicales de Descartes. Revue de Métaphysique et

Morale. Paris, 237-286, 1937.

RODIS-LEWIS, G. Descartes: textes et débats. Paris: Le Livre de Poche, 1984. VERBEEK, T. Les Passions et la Fièvre: l´idée de maladie chez Descartes et

quelques cartésiens néerlandais. Tractrix. Utrecht, 1:45-61, 1989.

29 Ibidem.

Referências

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